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Cognição experiencial, observação

incorporada e sustentabilidade na
avaliação pós-ocupação de ambientes
urbanos
Experiential cognition, embodied observation and
sustainability in the post-occupancy evaluation of urban
environments

Paulo Afonso Rheingantz


Denise de Alcantara

Resumo

E
ste artigo está fundamentado no pensamento de Humberto Maturana e
Francisco Varela – o observador não é independente da realidade – e de
Bruno Latour – observação e experiência são construções; o conhecimento
não reflete um mundo exterior real, mas um mundo interior real. Também
levando em conta a experiência do Grupo ProLUGAR com avaliação pós-ocupação
(APO), o artigo reconhece o objeto da observação como inseparável do observador – o
ambiente construído como algo a ser apreendido; sugere que a observação pode ser
conscientemente guiada; desloca a reflexão para como o observador guia suas ações no
observar; e recomenda maior atenção ao “saber intencional”, em detrimento dos
modelos, regras e procedimentos do “saber-fazer” tradicional. Apresenta a abordagem
experiencial, que implica a mudança de atitude do observador em relação ao ambiente
e sua operacionalização – observação incorporada – na APO de ambientes urbanos. A
reflexão incorpora o “olhar cognitivo-experiencial” no estudo de recortes da área do
Projeto Corredor Cultural, no Rio de Janeiro. Os resultados parciais indicam que esta
abordagem contribui para o campo do desenho urbano sustentável, por qualificar os
olhares técnico e cognitivo-comportamental, enriquecendo a compreensão do caráter
do lugar sobre como os atributos de desenho são percebidos pelos usuários e como este
conhecimento pode vir a ser utilizado para qualificar o ambiente construído.
Palavras-chave: Cognição experiencial. Desempenho ambiental. Empatia. Observação
incorporada. Qualidade do lugar.
Paulo Afonso Rheingantz
Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo Abstract
Universidade Federal do Rio de This paper is based on Humberto Maturana and Francisco Varela’s insights – the
Janeiro
Av. Trompovsky, s/n – sala 443
observer is not independent of reality – and on Bruno Latour’s – observation and
Cidade Universitária experience are constructed; knowledge does not reflect a real exterior world, but a real
Rio de Janeiro - RJ – Brasil interior world. Based also on ProLUGAR Group’s experience on post occupancy
Tel.: (21) 2598-1663
E-mail: par@ufrj.br
evaluation (POE), the paper recognizes the object of investigation as inseparable from
the observer – the built environment as something to be learned; suggests that
Denise de Alcântara observation can be consciously guided; shifts the reflexion to how the observer guides
Faculdade de Arquitetura e his actions during observation; recommends more attention to the “intentional
Urbanismo
Programa de Pós-Graduação em knowledge” instead of on the models, rules and proceedings of the traditional know-
Arquitetura how. It presents the experiential approach, which implies a change of the observer’s
Universidade Federal do Rio de attitude regarding the environment, and its application – the embodied observation – in
Janeiro
Av. Trompovsky, s/n – sala 443 POE of urban environments. The reflexion incorporates the “cognitive-experiential
Cidade Universitária view” in the study of parts of Corredor Cultural Project in Rio de Janeiro. The partial
Rio de Janeiro - RJ – Brasil
Tel.: (21) 2598-1663
results indicate a contribution for the sustainable urban design field, since this
E-mail: dealcantara@ufrj.br approach improve technical and cognitive-behaviourist views, enriching the
comprehension of a place character, on how users perceive design attributes and on
how to use this knowledge for the improvement of the built environment.
Recebido em 30/05/06
Aceito em 11/03/07 Keywords: Experiential cognition. Environmental assessment. Empathy. Embodied
observation. Quality of place.

Ambiente Construído, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 35-46, jan./mar. 2007. 35


ISSN 1415-8876 © 2007, Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído. Todos os direitos reservados.
Introdução
Este trabalho resulta de uma década de pesquisa [...] os estudos científicos tornaram-se reféns da
com Avaliação Pós-Ocupação (APO) do ambiente grande passagem de Ciência para aquilo que
construído (AC) desenvolvida pelo grupo de poderíamos chamar de Pesquisa (ou Ciência No
pesquisa Projeto e Qualidade do Lugar 2). Se a Ciência possui certeza, frieza,
distanciamento, objetividade, isenção e
(ProLUGAR), que se caracteriza pela busca em necessidade, a Pesquisa parece apresentar todas
superar as limitações impostas pela tradição as características opostas: ela é incerta, aberta,
behaviorista desse campo do conhecimento. às voltas com problemas insignificantes como
Alinhada com a crítica (a) aos efeitos negativos da dinheiro, instrumentos e know-how, incapaz de
distinguir até agora o quente do frio, o subjetivo
“excessiva parcelização e disciplinização do saber
do objetivo, o humano do não-humano.
científico faz do cientista um ignorante (LATOUR, 2001, p. 33).
especializado” (SANTOS, 1995, p. 46) e (b) à
necessidade de a ciência assumir seu caráter A tradição behaviorista, aliada com a visão
autobiográfico e auto-referenciável (SANTOS, purificadora das influências “externas” – a
1995), adotando uma forma mais compreensiva e subjetividade humana –, que condiciona a
incerta de conhecimento cuja chave é o evolução da ciência à distinção forjada entre a
entendimento de um mundo que precisa ser beleza tranqüila e a verdade da ciência e o
contemplado, em lugar de controlado, a produção “turbilhão mesquinho das experiências mundanas”
do ProLUGAR (ALCANTARA, 2002; (PEDRO, 1996), ainda é prevalente nos trabalhos
ALCANTARA; RHEINGANTZ, 2004; de APO. Como ela induz a observar os
COSENZA et al., 1996; COSENZA et al. 2000; comportamentos dos usuários sem atentar para as
RHEINGANTZ, 1995, 1998; RHEINGANTZ et razões que os justificam, as descobertas e
al., 1998, 2002) procura: recomendações se limitam a atender índices,
prescrições e recomendações das normas e
(a) evitar incorrer em redundâncias teóricas e regulamentos – em que pese, algumas vezes, se
metodológicas; confrontarem com a avaliação sensível dos
(b) contornar as limitações da racionalidade usuários (RHEINGANTZ, 1995; RHEINGANTZ,
científica que “nega o caráter racional a todas as 2004; RHEINGANTZ et al., 1998).
formas de conhecimento que não se pautarem Mas o bem-estar – essência da arquitetura e da
pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas APO – não se limita às regras e ditames da física
regras metodológicas” (SANTOS, 1995); (RHEINGANTZ, 2002) e reúne natureza e cultura.
(c) atentar para os propósitos das APOs e para a A lógica purificadora da ciência, por exemplo, não
conduta dos pesquisadores1; consegue explicar o sucesso da moda do collant
preto em pleno trópico: o fato de as mulheres que
(d) reconhecer que “nenhuma forma de
adotam essa moda, mesmo contrariando os mais
conhecimento é, em si mesma, racional [... E que]
elementares princípios da física, sentirem-se
só a configuração de todas elas é racional“ (santos,
confortáveis e felizes por estarem na moda.
1995); que a ciência moderna é uma forma de
explicação da realidade, a exemplo da metafísica, O reconhecimento da consciência como produto da
da astrologia, da religião e da arte ou da poesia, e capacidade de o organismo perceber suas emoções
que não existe qualquer razão científica para a e de o ambiente reagir a elas (DAMÁSIO, 1996)
considerar melhor que as explicações alternativas evidencia a necessidade de incluir as emoções e as
(santos, 1995); e impressões que os ambientes provocam nas
pessoas, inclusive nos observadores. Esse
(e) observar que “as alegações de objetividade e
entendimento justificou a proposição de uma
universalidade na ciência são afirmações morais, e
categoria de fatores de análise na APO: os fatores
não ontológicas” (MATURANA, 2001, p. 148);
culturais2.
que:

2
Conforme Rheingantz et al. (2002), a arquitetura não é
apenas um fechamento físico-social, mas um fechamento
cultural; um conjunto de sistemas simbólicos definidores
de grupos socioculturais que se reconhecem como
membros de uma identidade única, que dividem uma
1
Conforme Maturana e Varela (1995, p. 264), “não é o mesma visão de mundo, que compreendem e se articulam
conhecimento, mas o conhecimento do conhecimento o a partir de lógicas próprias de comportamentos,
que nos compromete. Não é saber que a bomba mata, e expectativas e crenças, e na interpretação etnográfica –
sim o que queremos fazer com a bomba que determina se foi a cultura quem moldou biologicamente o Homem, e não
a usaremos ou não”. o inverso.

36 Rheingantz, P. A.; Alcantara, D.


Na medida em que determinado grupo humano se A pesquisa Cognição Ambiental e Revitalização de
adapta ao meio urbano, ele molda seus ambientes, Centros Históricos: o Caso do Corredor Cultural,
que, por sua vez, provocam profundas alterações Rio de Janeiro4, por sua vez, aplica a mesma base
nas lógicas relacionais desse grupo. Assim, torna- teórica e metodológica ao ambiente urbano,
se indispensável que a APO considere o contexto complementada pela noção de sustentabilidade
urbano e social dos edifícios e ambientes, “eco-lógica” de Guattari (2004)5.
reconhecendo seus significados, sua estética e seu
A seguir, são apresentados os principais
papel social. A noção de pertencimento ao lugar, o argumentos teóricos e são indicados os
comportamento humano diante das condições procedimentos metodológicos que vêm sendo
ambientais e as posturas corporais são fortemente
aprimorados e testados pelo ProLUGAR em suas
influenciados pela herança cultural dos habitantes observações.
de determinado lugar.
O estudo sistemático de A Mente Incorporada Abordagem atuacionista da
(VARELA et al., 2003) permitiu consolidar as cognição
bases teóricas da Cognição Experiencial,
abordagem da APO inspirada no Atuacionismo – Em a Mente Incorporada, Varela, Thompson e
uma visão de cognição como ação incorporada que Rosch (2003) criticam as visões da cognição que
questiona o pressuposto prevalente da cognição supõem a existência de um “observador
como representação de um mundo que é desincorporado” ou de uma “mente desterrada” e
independente das capacidades perceptivas e exploram as possibilidades de transitar entre duas
cognitivas do homem por um sistema cognitivo idéias-chave: ampliar os horizontes das novas
que existe independentemente desse mundo ciências da mente, incluindo a experiência de vida
(VARELA et al., 2003) – e na Empatia – tipo e as possibilidades de transformação inerentes a
singular de experiência direta que se distingue da essa experiência; e ampliar os horizontes da
percepção sensorial, pois nesta entendemos as experiência cotidiana beneficiando-se de insights e
coisas do mundo, e não sua representação. Já na análises elaborados pelas ciências da mente.
empatia, em lugar da experiência direta, Inspirados em Merleau-Ponty, afirmam que a
entendemos as experiências do outro, não uma cultura científica ocidental requer um novo olhar
representação delas (THOMPSON, 2004), e da sua sobre nossos corpos capaz de vê-los tanto como
aplicação prática, a Observação Incorporada estruturas físicas quanto como estruturas
(ALCANTARA; RHEINGANTZ, 2004; experienciais vividas, como algo que é ao mesmo
RHEINGANTZ, 2004). tempo “externo” e “interno”, biológico e
fenomenológico. Também indicam a
Como os sistemas cognitivos não operam por meio
impossibilidade de compreender esse movimento
da representação de um mundo independente, mas sem investigar detalhadamente “a incorporação do
“atuam em um mundo como um domínio de
conhecimento, da cognição e da experiência” em
distinções inseparável da estrutura incorporada
um duplo sentido, onde o corpo possa ser
pelo sistema cognitivo” (VARELA et al., 2003, p. entendido como “estrutura experiencial vivida” e
148-149), a experiência vivenciada pelo
como “contexto ou meio dos mecanismos
observador e pelos usuários se transforma cognitivos”.
necessariamente em conhecimento agregado ao
conjunto de dados e descobertas de uma APO. Os autores sugerem ainda que a dissociação entre
mente e corpo resulta do hábito e que este pode ser
Alinhada com essas questões, a pesquisa Projeto e
quebrado com treinamento de “bons hábitos”,
qualidade do lugar para o trabalho: cognição e capazes de resgatar nossa atenção – estado natural
comportamento ambiental na avaliação pós-
da mente temporariamente obscurecido por
ocupação de ambientes de trabalho resultou em
padrões e costumes – e que as atividades mais
cinco dissertações3, que buscaram aplicar a reflexivas da experiência humana recebem um
cognição experiencial e a observação incorporada
na APO. Ao procurar lidar conscientemente com a
subjetividade das emoções e reações vivenciadas 4
Vinculada à tese de doutorado de Denise de Alcantara, em
por observadores e usuários, esses trabalhos foram andamento, cujo objetivo é avaliar o grau de contribuição da
cognição experiencial e da observação incorporada para a
indicativos da contribuição da observação compreensão do caráter e da qualidade do lugar, bem como para
incorporada na produção de avaliações mais a definição de diretrizes de desenho urbano capazes de reduzir
ou até mesmo de eliminar os problemas que interferem na
significantes e abrangentes. percepção da qualidade do lugar.
5
Em resposta à crise ambiental, social e mental que aflige como
um todo a humanidade e, mais especificamente, o ambiente
3
PROLUGAR: Grupo Projeto e Qualidade do Lugar. 2007. urbano ou as cidades, o autor propõe uma revolução política,
Disponível em: <http://www.fau.ufrj.br/prolugar>. Acesso em: social e cultural com reorientação dos objetivos da produção
8 fev. 2007. material e imaterial.

Cognição experiencial, observação incorporada e sustentabilidade na avaliação pós-ocupação 37


tratamento superficial, trivial e incompatível com a da experiência de habitar um mundo espacial
profundidade e a sofisticação da análise científica comum e intersubjetivo9.
(VARELA et al., 2003). Sugerem uma Nesse processo interativo, a mente se acopla
aproximação com a tradição Abhidharma6, que,
estruturalmente ao corpo, que, por sua vez, se
acreditam, pode atender à demanda das ciências acopla estruturalmente ao ambiente. Como numa
cognitivas por um método para investigar a roda improvisada de chorinho, o cérebro é um
experiência, identificando a diferença entre estar
parceiro do grupo de músicos engajados na
ou não presente. Como a reflexão é, ela própria, improvisação e o resultado final emerge da ação de
uma forma de experiência, torna-se necessário dar e receber entre eles. “O comportamento
redescobrir mecanismos capazes de reunir a mente
adaptativo é o resultado da interação contínua
e o corpo, de modo a recuperar o componente entre o sistema nervoso, o corpo e o ambiente,
atenção/consciência da reflexão. cada um com sua dinâmica rica, complicada e
Sua abordagem atuacionista7 da cognição sugere altamente estruturada” (THOMPSON, 2004, p. 5),
que “não é a representação de um mundo e nenhum deles tem o crédito exclusivo desse
preconcebido por uma mente preconcebida, mas, comportamento adaptativo nesse sistema acoplado.
ao contrário, é a atuação de um mundo e de uma As interações entre usuário e ambiente urbano, que
mente com base em uma história de diversidade de
emitem estímulos e influenciam as capacidades
ações desempenhadas por um ser no mundo” sensório-motoras e cognitivas do observador, cujas
(VARELA et al., 2003). A fundação da cognição é reações dependem diretamente dos estímulos, que
a “sua história de incorporação”, delineia uma
reciprocamente dependem da presença do
visão de cognição como ação incorporada8. observador – calor, luz, cores, texturas e sons do
A abordagem atuacionista estuda o modo como o ambiente – são sentidas pelo observador e
observador pode orientar suas ações em uma produzem ações e comportamentos não
situação local, admitindo-se que tais situações dissociados de seu contexto histórico, cultural,
mudam constantemente em função da atividade do social e da consciência da sua experiência no
observador. Em lugar de especificar um mundo ambiente.
predeterminado e independente do observador, o O trânsito entre ciências cognitivas e experiência
ponto de referência passa a ser a especificação do humana proposto por Varela, Thompson e Rosch
modo como o observador pode agir em harmonia
recupera a tradição fenomenológica européia
com os eventos ambientais. fundamentada em Husserl e Merleau-Ponty, que
distingue o corpo objetivo – que pode ser
Empatia observado e analisado como um objeto científico
Segundo Thompson (2004), a consciência da ou uma estrutura física – do corpo vivenciado –
experiência vivenciada pelos indivíduos que vive e sustenta o ato perceptivo. Na reflexão
incorporados emerge da empatia cognitiva com fenomenológica, as origens da cognição partem do
outros indivíduos. A consciência humana pressuposto da circularidade, da indissociabilidade
individual – inerentemente intersubjetiva – é uma e da continuidade entre mundo e sujeito.
relação dinâmica indissociável do ser no mundo A idéia da existência de inúmeros mapas espaciais
integrado ao ambiente natural e ao mundo social. na mente, de que o cérebro não representa o espaço
A empatia é o modo básico de experiência presente em um simples mapa de múltiplas funções, foi
nas relações entre os indivíduos, que entendem e estudada pela fenomenologia e resgatada pela
compreendem as experiências do outro – não sua abordagem atuacionista da cognição. A unidade da
representação – sem a necessidade de ter passado percepção espacial deriva da atividade coordenada
diretamente pela experiência. É uma precondição de diversas redes sensório-motoras especializadas.
Essa visão corresponde à instância filosófico-
6
Tradição tibetana que trabalha com simples descrições da fenomenológica sobre percepção espacial, na qual
experiência como orientadoras da investigação. Entre mente e o espaço “não é uma espécie de éter no qual todas
objetos existe (a) contato que provoca um sentimento específico
de prazer/desprazer/neutralidade; (b) discernimento do objeto;
as coisas flutuam... Os pontos do espaço marcam,
(c) uma intenção em relação ao objeto; (d) uma atenção para em nossa vizinhança, a gama variável de nossos
com o objeto. Sua combinação forma o caráter de um momento objetivos e nossos gestos” (MERLEAU-PONTY
de consciência em particular.
7
apud THOMPSON, 2006, p. 6).
De atuação: do inglês enaction, que significa “exercer ou estar
em atividade, exercer influência” (N. de R.)
8
O termo incorporada chama a atenção para a dependência
cognitiva das capacidades sensório-motoras de nosso corpo, que,
individualmente, estão embutidas em um contexto biológico,
9
psicológico e cultural mais abrangente. O termo ação enfatiza a A intersubjetividade apontada por Thompson (2004) se refere à
indissociabilidade na cognição vivida dos processos sensório- relação indissociável e subjetiva que ocorre na interação entre
motores – percepção e ação. homem, meio e outro.

38 Rheingantz, P. A.; Alcantara, D.


Ao possibilitar que o observador se coloque no a ele relacionadas, que, combinados, formam a
lugar do usuário, a empatia pressupõe que o consciência do observador incorporado.
observador seja capaz de, ao perceber se ele está O observador deve estar atento aos estímulos que o
aberto e disposto, definir ou reavaliar suas
ambiente produz no corpo e na mente e que o
estratégias. Essas questões estão diretamente induzem, e aos usuários, a determinadas respostas
relacionadas com os usuários e com o corporais, que também conferem significado ao
entendimento da experiência por eles vivenciada,
ambiente. O corpo e a mente interagem entre si em
inclusive suas percepções e emoções. Por mais completude com o ambiente, possibilitando o
complexas e sutis que possam ser, elas devem reconhecimento de si próprio e dos outros como
emergir naturalmente na reciprocidade da
indivíduos imersos em um mundo intersubjetivo.
interação entre observador e usuário. Essa interação comunicativa é sempre ambígua,
pois depende do que acontece com o receptor, e
Cognição experiencial e observação não do que se fornece. Não existe transmissão de
incorporada informação.
A designação Cognição Experiencial, adotada para Assim, a observação incorporada implica a
caracterizar as observações que incorporam as ressignificação dos instrumentos e métodos
experiências produzidas nas interações entre tradicionais de avaliação de desempenho. A
homem e ambiente, enriquece e confere novo exemplo dos músicos de chorinho, o observador
significado ao entendimento do lugar10 e à APO. O incorporado deve “combinar e recombinar um
observador deve incorporar11 suas sensações, conjunto” de saberes previamente assimilados em
sentidos e emoções, bem como se deixar um contexto que confere coerência à sua
influenciar conscientemente pelos estímulos “reflexão-na-ação” (SCHÖN, 2000, p. 35).
proporcionados pelo ambiente durante a Ao se integrar aos diversos instrumentos e técnicas
observação. consagrados na APO, a observação incorporada
Enquanto “animais interpretadores” (VARELA et modifica o entendimento do lugar e transforma a
al., 2003, p. 29), os observadores tomam atitude do observador incorporado, que, na medida
consciência das suas emoções e observações e, em que se torna mais livre de seus preconceitos, se
também, das dos usuários, e passam a considerá- torna mais sensível e atento aos acontecimentos
las indissociáveis do processo de avaliação. Ao que se desenrolam à sua volta. Ele também deve
incorporar as dimensões espontâneas e reflexivas questionar a excessiva atenção dispensada aos
da experiência de interação com o ambiente, aspectos operacionais e instrumentais – que podem
podem lidar conscientemente com elas. O papel de provocar significativos desvios em sua atenção –
“protagonistas” ou “atuadores” conscientes de sua em detrimento da reflexão sobre sua própria
experiência de observação permite aprofundar a experiência. A observação de Abraham Maslow
reflexão sobre a influência das dimensões “se a única ferramenta em sua caixa de ferramentas
espontâneas e reflexivas da experiência humana no é um martelo, uma porção de coisas começa a
ambiente. Assim, a observação incorporada passa a parecer pregos” (apud MARINOFF, 2004, p. 45) é
ser uma explicação das distinções da experiência ilustrativa desse tipo de problema.
vivenciada conscientemente da avaliação pelo O reconhecimento de que a observação
observador. incorporada pode ser conscientemente guiada
Se aplicada na APO, a observação incorporada (VARELA et al., 2003), além de buscar a
implica a necessidade de capacitar os observadores integração entre corpo e mente – aumentando a
a experienciarem o AC com uma atenção tão vitalidade do corpo e a clareza da mente –,
precisa e desapaixonada quanto possível; de demanda que o observador treine sua atenção a
aprender a observar o “pensamento” e a dirigir sua pensar e a sentir com o corpo, com a mente e com
atenção para o processo ininterrupto da os pensamentos.
experiência; e de reconhecer o contato entre mente Todas as capacidades sensório-motoras – visão,
e ambiente – o sentimento dele proveniente, o audição, olfato, paladar, tato e seus movimentos e
discernimento do ambiente, a intenção e a atenção ações – devem ser consideradas na observação,
além das linguagens verbal e não-verbal. Por
10
Fundamentamos os conceitos de lugar em Yi-fu Tuan (1983), serem biunívocas, indissociáveis e recíprocas, na
como o lugar significativo, o lugar da experiência, da história e abordagem experiencial da cognição, as
da memória; em Christian Norberg-Schulz (1979): caráter do
lugar: orientação e identificação do homem com o ambiente e capacidades não podem existir sem a interação
sua conotação simbólica como base existencial; e em Kevin com o meio, que, por sua vez, não pode existir sem
Lynch (1981), pelo sentido do lugar: relação entre a forma do
ambiente e os processos perceptivos e cognitivos humanos. a presença do indivíduo que o experiencia.
11
Origem da designação observação incorporada.

Cognição experiencial, observação incorporada e sustentabilidade na avaliação pós-ocupação 39


Assim, a realidade da experiência pode ser muito cidades como centros de vida social, suportes da
diferente dos conceitos utilizados para interpretá- economia, guardiãs da cultura, do patrimônio e da
la, que “podem ser rígidos ou limitados demais tradição, amplia a subjetividade da APO do
para expressar a natureza dinâmica dos sentidos do ambiente urbano.
corpo e da mente” (TULKU, 1997, p. 229). O Duas questões sugerem a necessidade de validar
observador deve ser capaz de saber como dissipar, um modus operandi capaz de apreender esse
explorar e transformar a variabilidade das tensões
conhecimento subjetivo – diversificado, complexo
físicas, mentais e emocionais vivenciadas, de e polifônico –que possa ser aplicado nos
modo a conscientemente considerar os insights procedimentos de análise das interações entre
produzidos na relação entre corpo, mente e
homem e ambiente urbano em seu viver cotidiano:
ambiente. a compreensão e a consideração das relações
Ao dar mais atenção ao seu “saber intencional” do sociais e dos modos de vida nos processos e
que aos modelos, regras e procedimentos do seu intervenções urbanas; e a importância da
“saber-fazer” tradicional, o foco da observação participação comunitária nas decisões locais
passa a ser o conjunto de acontecimentos e relacionadas com as cidades e com os aglomerados
sentimentos produzidos durante a interação do urbanos.
observador com o ambiente.
Se o ambiente é uma criação dos seres vivos, e não
Sustentabilidade “eco-lógica” uma estrutura externa imposta a eles, se é um
reflexo de sua biologia, e não um processo
do ambiente urbano autônomo – “assim como não há organismo sem
Ante a sensação de crise ecológica mencionada na ambiente, não há ambiente sem organismo”
introdução, Félix Guattari propõe uma revolução (LEWONTIN apud VARELA et al., 2003, p. 203)
“eco-lógica” – política, social e cultural – e uma –, a qualidade de um lugar está intrinsecamente
reorientação dos objetivos da produção material e ligada: (a) à topofilia (TUAN, 1980) – sentimento
imaterial, e sugere o conceito de ecosofia complexo, atemporal relacionado com a memória e
(GUATTARI, 2004), que congrega três ecologias: com a imaginação, regulado pelas relações de
a social, a mental e a ambiental. Não é só o planeta atração, afeto ou repulsa aos lugares; e (b) a uma
que está doente: as relações sociais em todos os base existencial (NORBERG-SCHULZ, 1979) –
âmbitos – familiar, trabalho, contexto urbano, etc. relacionada com a orientação e a identificação do
– e as do sujeito com sua mente e seu corpo, com homem com o ambiente e sua conotação
sua identidade e subjetividade, também estão simbólica, que conferem caráter ao lugar.
doentes. Diferentemente do espaço geométrico, o lugar
significativo ou vivenciado é definido pela
A uniformização e a banalização promovidas pelas experiência adquirida; seu significado é conferido
mídias e modismos junto com as manipulações da pelos seus símbolos, memórias e histórias.
opinião pela publicidade amplificam os efeitos
desse contexto globalizante e criam um paradoxo: Assim, a qualidade do ambiente não é uma
enquanto o desenvolvimento produz novos meios experiência objetiva e absoluta, nem seu estudo é
técnico-científicos potencialmente capazes de um processo cognitivo realizado no nosso cérebro,
resolver as problemáticas ecológicas dominantes e pois “todo conhecimento significativo é
de reequilibrar as atividades socialmente úteis, conhecimento contextual, e grande parte dele é
aumenta a incapacidade das forças sociais tácita e vivencial” (CAPRA, 1997).
organizadas de se apropriarem desses meios para Como os incessantes fluxos orgânicos –
torná-los operativos. sintetizando e dissolvendo estruturas e eliminando
As culturas particulares e outros contatos de produtos residuais –, a cidade vive um processo
cidadania devem ser desenvolvidos. A contínuo de crescimento, desenvolvimento,
singularidade, a exceção e a diversidade devem evolução e transformação completamente diverso
agir em uníssono com uma ordem estatal menos do processo de purificação (PEDRO, 1996, p. 16)
opressiva e limitante, pois é “na articulação da característico da ciência moderna, que separa os
subjetividade em estado nascente, do socius em humanos e não-humanos em duas zonas
estado mutante, do meio ambiente no ponto em ontológicas completamente distintas. A fronteira
que pode ser reinventado, que estará em jogo a que separa é a mesma que liga natureza e cultura,
saída das crises maiores de nossa época” pois o mundo contemporâneo as mistura no seu
(GUATTARI, 2004, p. 55). cotidiano. Essa condição sugere uma parte ativa e
receptiva da cognição humana nesse processo,
A “eco-lógica” da sustentabilidade implica a envolvendo linguagem e pensamento abstrato.
impossibilidade do não-reconhecimento das Inclusive na ciência, “as decisões humanas nunca

40 Rheingantz, P. A.; Alcantara, D.


são completamente racionais, estando sempre mente está fazendo enquanto ela o faz; estar junto
coloridas por emoções, e o pensamento humano com a própria mente” (VARELA et al., 2003, p.
está sempre encaixado nas sensações e nos 40). O abandono de hábitos de desatenção torna-se
processos corporais que contribuem para o pleno fundamental no desenvolvimento da
espectro da cognição” (CAPRA, 2002, p. 216). atenção/consciência. Assim, a incorporação da
Diferentemente do pensamento ocidental, que abordagem experiencial à APO implica o
desenvolvimento de técnicas que permitam que a
transforma o conceito de espaço em objeto, e da
dualidade cartesiana da realidade – a mente como mente do observador se “esvazie” sem esforço,
substância do pensamento e a matéria como deixando fluir, coordenar e incorporar com
naturalidade corpo e mente atentos.
substância do espaço –, a fenomenologia e a
filosofia oriental consideram mente e ambiente Isto implica transformar a natureza da reflexão,
relacionados intrinsecamente e podendo ser vistos que deixa de ser uma atividade abstrata e
em sua forma experiencial: o espaço psicológico desincorporada, para se tornar uma reflexão
que pode ser diretamente vivenciado. incorporada e atenta, capaz de incluir relatos cujos
Os tibetanos consideram o espaço vivenciado significados se aproximem mais das experiências
externo (denso) como o espaço da orientação (e das emoções) vivenciadas pelos usuários desses
ambientes.
corporal em suas diversas dimensões espaciais:
planos vertical e horizontal, localização, tamanho, Explicação da experiência
distância; o espaço interno (sutil), como o espaço
dos sentimentos e dos panoramas afetivos em As explicações científicas não fazem referência
mutação. O espaço externo pode ser vivenciado de a realidades independentes do observador.
acordo com as variações do espaço interno do (MATURANA, 2002, p. 57)
sujeito. Já o espaço secreto (muito sutil) relaciona- A mudança de atitude produzida pela cognição
se com a vastidão de pensamentos, perspectivas e experiencial e pela observação incorporada não
silêncios. No espaço aberto da percepção, “quando restringe as descobertas aos seus aspectos
nos sentimos conectados interiormente, o espaço objetivos e possibilita a incorporação da
sentido adquire profundidade e textura” subjetividade encoberta pela objetividade da
(WELLWOOD, 2003, p. 95). Compreender esse tradição behaviorista. Segundo Maturana (2001;
espaço aberto do ser pode ser útil no estudo das 2002), na experiência os seres humanos não
interações entre homem e ambiente. conseguem distinguir entre ilusão e percepção
A condição de fechamento cultural do AC e o enquanto afirmações cognitivas sobre a realidade.
reconhecimento da influência da cultura nas Como viver é conhecer, “explicar é sempre propor
relações entre homem e ambiente implicam uma reformulação da experiência a ser explicada
considerar os significados e símbolos e o seu papel de uma forma aceitável para o observador”
social para os diferentes grupos socioculturais que (MATURANA, 2002, p. 40). Para fugir da
os habitam. Se o homem e o AC são produtores e armadilha que nos impede distinguir a ilusão da
produto do processo de hibridação entre natureza e percepção, o autor aponta a existência dos dois
cultura, é conveniente observar as transformações caminhos explicativos – ou caminhos da
significantes produzidas nas relações entre os objetividade.
grupos humanos e o AC, seus aspectos cognitivos, No caminho da objetividade sem parênteses, o
seus valores declarados e reais. observador escuta uma resposta explicativa quando
A observação atenta e consciente do ambiente espera ouvir uma referência a uma realidade
urbano e de suas influências sobre nossa independente dele próprio para aceitar a sua
experiência – racional e emocional – é importante explicação. Assim, a existência acontece
na avaliação de sua sustentabilidade social e independentemente de conhecê-la ou não, e ela
cultural, e demanda exercícios e práticas de tanto pode implicar uma referência a algo que
reflexão atenta, aberta e incorporada. A exemplo independe das ações do observador e que se
da tradição budista, em que atenção significa que a constitui, implícita ou explicitamente, no
mente está presente na experiência incorporada de fundamento do critério de aceitação. Esse “apelo
cada dia, técnicas de atenção podem ser ao conhecimento equivale a uma petição de
desenvolvidas para trazer a mente de volta das obediência” e impede a ciência de ir adiante.
teorias e preocupações – atitude abstrata – para a “Quando o observador não se pergunta pela
própria experiência (VARELA et al., 2003, p. 39). origem de suas habilidades cognitivas e as aceita
A exemplo da meditação budista, é possível como propriedades constitutivas suas, ele atua
desenvolver técnicas com o “objetivo de levar a como se o que ele distingue preexistisse à sua
pessoa a tornar-se atenta, experienciar o que a distinção.” (MATURANA, 2002, p. 194).

Cognição experiencial, observação incorporada e sustentabilidade na avaliação pós-ocupação 41


No caminho da objetividade entre parênteses, por relação indissociável com o ambiente que o cerca,
sua vez, o observador aceita explicitamente que é incluindo seus usuários.
um sistema vivo e que suas habilidades cognitivas Para dar conta da subjetividade e complexidade na
são biológicas. Ele aceita sua incapacidade de
interação entre homem e ambiente, uma vez que
distinguir, na experiência, a diferença entre sua interpretação não se resume ao reducionismo
percepção e ilusão, e, também, que não dispõe de da objetividade “sem parênteses”, apresentamos
bases operacionais para fazer qualquer declaração
uma primeira proposta de sistematização dos
ou afirmação sobre objetos, entidades ou relações, procedimentos necessários para incorporar a
independentemente de si ou de sua ação. experiência produzida na interação e na APO de
Operacionalmente, é responsável por todos os
um ambiente urbano.
domínios de realidade ou explicações, e aceitar
essa condição significa uma “passagem” para uma O roteiro da observação incorporada com
nova forma de conhecimento. percursos à deriva permite vislumbrar, por meio de
um olhar desprendido e sem preconceitos, as
Do mesmo modo, a ciência deve validar as
sensações e emoções produzidas na experiência de
afirmações e explicações através de uma rede de observar.
conversações pelo critério de validação das
explicações científicas. O cientista opera sob a A exemplo das observações clássicas, a visão
paixão do explicar e reformula suas experiências, serial (CULLEN, 1996) e a análise visual
abrindo-se incessante e recursivamente a novas permitem identificar aspectos relacionados com o
perguntas, considerando que as ações cotidianas, contexto e as características físicas e morfológicas
em qualquer domínio operacional, implicam as do ambiente observado. A principal diferença
mesmas coerências operacionais do critério de reside em considerar a influência das sensações e
validação das explicações científicas. A diferença emoções vivenciadas pelo observador durante a
básica entre a ação do cientista e a dos seres observação.
humanos na vida cotidiana – multidimensionais em Com base nos resultados e impressões das etapas
seus desejos, interesses e prazeres – está na anteriores, são aplicadas entrevistas informais e
emoção e no uso indiscriminado e não tão semi-estruturadas com pessoas-chave – também
criterioso dos domínios fenomênicos para validar identificadas nas etapas anteriores – e usuários do
suas explicações e afirmações. lugar. Como complemento, pode ser utilizada a
No explicar científico nossas emoções atuam técnica de mapeamento cognitivo, visando captar a
legítima e constitutivamente na especificação do essência e a visão subjetiva do usuário do lugar.
domínio de ações pelo qual geramos nossas
perguntas, apesar das alegações de objetividade e Observação incorporada
independência emocional daqueles que crêem na
Não existem coisas independentes do processo
realidade objetiva e independente de suas
de cognição... não há um território pré-dado do
existências. O que importa não é impedir que os qual podemos fazer um mapa – a própria
desejos, interesses ou preferências distorçam ou construção do mapa cria as características do
interfiram no critério de validação da explicação território. (CAPRA, 2002, p. 213).
científica, mas assumir a responsabilidade pelas
nossas ações – como cientistas ou seres humanos – A versão preliminar do roteiro de campo da
e ter consciência das emoções vivenciadas durante observação incorporada focaliza a experiência do
a experiência. observador no lugar – como, a um só tempo, cada
lugar influencia sua ação, e como a atenção do
Proposta metodológica observador dá sentido e significado à compreensão
de cada lugar.
Aquele que sabe – o sujeito – e o que está para
ser conhecido – o mundo – são a especificação Na medida em que emergem os conteúdos da
recíproca e simultânea um do outro – conhecer experiência – pensamentos discursivos, emoções e
é ser e ser é agir no mundo – num processo sensações corporais –, o observador incorporado,
contínuo a que chamamos vida. (PEDRO, 1996, em lugar de se ocupar do conteúdo ou do sentido
p. 147). do pensamento, deve simplesmente observá-lo e
A explicação da abordagem experiencial favorece voltar sua atenção para o próprio processo da
a construção de um pensamento e de uma atitude experiência.
de observação para avaliar o AC a partir das A observação atenta das próprias reações às
capacidades sensório-motoras do observador em tensões produzidas na interação do observador
interação permanente com sua bagagem com o ambiente pode ter sua vitalidade e clareza
psicológica, cultural e histórica, presentes em sua amplificadas. Na medida em que a mente fica mais
liberta de pensamentos e imagens, o corpo torna-se

42 Rheingantz, P. A.; Alcantara, D.


naturalmente mais relaxado e estável, equilibrando complementado por desenhos e mapas
sua tendência à agitação. “Quanto mais abertos e esquemáticos, indicando os percursos, as
relaxados, os sentidos percebem melhor tudo interrupções, os marcos e demais elementos
aquilo que se apresenta dentro ou fora do corpo, a considerados importantes;
mente se torna menos reativa e mais (d) análise compartilhada: caso a experiência
silenciosamente atenta” (TULKU 1997, p. 230) e tenha sido realizada por mais de um observador –
as sensações, mais diretas e presentes. Ao se
inicialmente realizada e registrada individualmente
libertar de seus preconceitos, o observador –, a seguir deve ser feita uma troca de experiências
aumenta sua sensibilidade e atenção sobre os e impressões vivenciadas, anotando-se os pontos
acontecimentos que se desenrolam à sua volta.
comuns e as discrepâncias;
Procedimentos (e) análise crítica: já no laboratório/escritório, o
observador deve reler ou ouvir os relatos de
Munido dos instrumentos usuais de uma campo, reunindo os dados em um novo
observação – tais como prancheta, papel de documento, agora mais sistematicamente e
rascunho, lápis macio, caderno de campo, máquina devidamente fundamentado, contendo a seqüência
fotográfica e gravador, – o observador deve dirigir- ordenada das fotos e desenhos produzidos,
se ao local da observação e seguir as seguintes identificados com número e título. A seguir, a
etapas e procedimentos: equipe de pesquisa deve ser reunida e todo o
(a) preparação: antes de iniciar a observação, o processo apresentado e discutido. Esse encontro
observador deve procurar um ambiente onde possa também deve ser registrado em gravador e
fazer um breve relaxamento das tensões e transcrito; e
ansiedades produzidas em seu deslocamento – um (f) se necessário, novas observações mais
templo religioso, um banco de praça ou uma mesa estruturadas – com roteiros previamente definidos
de bar, e tomar água, café ou refresco. Por alguns – podem ser realizadas no local.
minutos, deve se libertar de seus pensamentos
Todos os registros devem conter os seguintes
cotidianos, voltando sua mente para a sensação
dados de identificação: nome e identificação do
produzida por sua respiração, inicialmente lenta e
projeto de pesquisa, local, data e horário de início
profunda, movimentando toda sua capacidade
e de término da observação, número da
toráxica. Conforme a mente vai se libertando dos
observação, nome do(s) observador(es), seguido de
pensamentos e da ansiedade, a respiração e os
um breve parágrafo informando as condições do
batimentos cardíacos estabilizam-se, e diminui a
tempo, bem como um mapa ou desenho
intensidade da respiração gradativamente;
esquemático do percurso.
(b) observação atenta: quando a mente e o corpo
estiverem suficientemente relaxados e libertos, a Percursos à deriva
intersubjetividade apontada por Thompson se
refere à relação indissociável e subjetiva que Os percursos à deriva pressupõem que o
ocorre na interação entre homem, meio e outro; a pesquisador deve reconhecer (ou redescobrir) a
atenção deve se voltar para os acontecimentos que cidade, descontruindo as formas culturais
se desenrolam e, na medida do possível, deixar-se tradicionais e impregnadas de pré-concepções, a
envolver pela atmosfera do ambiente, iniciando um partir de um caminhar pelo ambiente sem uma
percurso à deriva. Em lugar de direcionar seus direção ou rumo predefinido. Se utilizados antes de
pensamentos e sentidos, deve atentar para as qualquer outro instrumento, permite ao observador
reações e efeitos produzidos em seu corpo e sua sentir, se deixar impregnar, se incorporar aos
mente. Esse percurso deve ser complementado por lugares, às pessoas e às ações que se passam ao seu
fotografias contendo instantâneos ou elementos redor e penetram sua mente e seu corpo.
considerados relevantes pelo observador e, sempre Essa técnica inspira-se nas propostas da
que possível, por um gravador para registro oral de Internacional Situacionista12, que defendia a idéia
sua experiência; de que a cidade deveria ser recriada conforme a
(c) análise in loco: terminado o percurso, ainda situação gerada na experiência do momento ou,
“contagiado” pelas emoções vivenciadas, o ainda, que a situação se construía a partir de um
observador deve procurar um lugar calmo onde
possa sentar e reviver passo a passo sua 12
Conforme Paola Jacques (2003), sociedade de ultra-esquerda
experiência recente; um gravador ou um caderno fundada em 1958 por Guy Deborde, entre outros intelectuais,
artistas alternativos e estudiosos de todo o mundo que,
de anotações podem ser valiosos auxiliares para o descontentes com o modo de vida e de consumo do espetáculo
registro, com a maior liberdade, naturalidade e imposta pelo capitalismo moderno, criticavam a transformação
do urbanismo em espetáculo e destruição das relações sociais e
riqueza de detalhes. O relato deve ser da participação pelo capital.

Cognição experiencial, observação incorporada e sustentabilidade na avaliação pós-ocupação 43


jogo de acontecimentos aleatórios e, ao final, contato é fácil ou difícil, etc.; deve observar as
designavam a unidade da organização coletiva de emoções provocadas pelo ambiente e pela
um ambiente. Ao vagar como um ser errante, o atividade no entrevistado.
observador percebe o percurso e, na medida que
este atrai seus sentidos e o caminhar se delineia, a Mapas mentais
situação e as impressões que emanam do ambiente
se definem. Para possibilitar uma melhor avaliação da
dimensão sentido (LYNCH, 1981) na avaliação da
Sua operacionalização se dá através de anotações, qualidade de um lugar, o conceito de mapeamento
relatos e registros em cadernos de campo diários – cognitivo (LYNCH, 1960) torna-se complementar
podendo se constituir de textos, croquis, palavras com aplicação da técnica de mapas mentais. A
soltas e impressões –, os quais são posteriormente exemplo das entrevistas e questionários, a
sintetizados em relatos dos elementos e aplicação e a análise dos mapas devem considerar
descobertas subjetivas complementares à as razões e dificuldades – falta de tempo ou de
observação. habilidade manual, por exemplo – para sua
elaboração, interagindo com o respondente durante
Visão serial o andamento da atividade e com o registro de todas
A técnica de visão serial (CULLEN, 1996), as suas observações.
conhecida e consolidada nas avaliações da Em uma observação incorporada, a análise dos
paisagem urbana – visa identificar os elementos mapas mentais pode se utilizar dos elementos que
físicos estruturais componentes da legibilidade e configuram a forma urbana propostos por Kevin
estrutura formal do espaço13. Ao reconhecer que os Lynch – caminhos, limites, nós e marcos – bem
múltiplos estímulos percebidos sofrem também a como suas inter-relações, mas as categorias de
influência dos valores, percepções e análise como a proposta por Appleyard (1980) –
conhecimentos relativos ao ambiente – quer eles simbólico, semi-estruturado e estruturado –
tenham sido adquiridos previamente ou durante a tornam-se irrelevantes.
aplicação da técnica –, a observação incorporada
integra a experiência vivenciada, a bagagem Considerações finais
cultural e as emoções do observador na análise.
Como em um percurso à deriva, apesar de seu Cognição, sustentabilidade, cultura e experiência
percurso agora ser estruturado, ele se deixa são palavras cujos significados se entrelaçam e se
surpreender e reagir ao impacto provocado pela mesclam em nossa compreensão fenomenológica e
força de tais registros. intersubjetiva de um AC saudável e sustentável
que considere seus aspectos sociais e culturais
Entrevistas e questionários como indissociáveis de um entendimento e uma
“eco-lógica” uníssonos.
As entrevistas e questionários são instrumentos
muito utilizados nas APO para identificar a visão Vivemos um presente que tende a especializar e a
dos usuários, apesar do risco de, quando mal espacializar nossa cognição e nossa compreensão
elaborados, tornarem-se tendenciosos e de mundo. Na tentativa de reverter esse processo,
direcionarem as respostas – tal como os pregos de são apresentados propostas e procedimentos de
Maslow. Na observação incorporada, as questões observação e validação do ambiente urbano
das entrevistas e dos questionários devem ser segundo uma visão mais abrangente e menos
preparadas durante a observação, incorporando compartimentada da ciência e do conhecimento
sugestões e informações produzidas ao longo da humano. No conhecimento dos atributos,
experiência. Na aplicação e na análise das características, idiossincrasias, da complexidade do
descobertas, o distanciamento entre observador e viver cotidiano e do processo de interação humana
usuário deve ser evitado ou reduzido. O no ambiente, o argumento gira em torno da
observador deve sempre interagir com o transformação da atitude do observador com vistas
entrevistado percebendo e registrando atentamente ao melhor entendimento e à melhoria e/ou à
as respostas, valendo-se de todas as capacidades preservação da qualidade dos ambientes urbanos.
sensório-motoras e da empatia. O uso consciente
da empatia implica verificar se o
usuário/respondente está confortável, se é franco,
aberto e compreensivo sobre seus sentimentos, se o

13
Definidos por Kevin Lynch (1960) como nós, percursos, limites,
setores e marcos.

44 Rheingantz, P. A.; Alcantara, D.


Os resultados alcançados nas observações ALCANTARA, D.; RHEINGANTZ, P. A
experimentais e pré-testes realizados e na Cognição ambiental na avaliação da qualidade do
avaliação de desempenho do ambiente urbano de lugar: conceitos e métodos para o aprimoramento
setores do Corredor Cultural, no Rio de Janeiro14, do desenho urbano. In: NUTAU’2004. Anais...
são indicativos da riqueza de incorporar a São Paulo: NUTAU/USP, 2004. (CD-ROM).
subjetividade e a complexidade da experiência Disponível em: <http://www.fau.ufrj.br/prolugar>.
humana no AC, relativizando os aspectos abstratos Acesso em: 8 fev. 2007.
e impessoais, e enfatizando a subjetividade dessa
experiência. ALCANTARA, Denise de; RHEINGANTZ, P.;
BARBOSA, A.; LAUREANO, A.; AMORIM, F.
Os registros de campo resultantes da observação Pires de Almeida: observação incorporada de um
incorporada aplicada nos percursos à deriva e na lugar público particular. In: ENEPEA’2006.
análise visual devem ser confrontados com os Anais... São Paulo: ENEPEA, 2006. (CD-ROM).
dados resultantes da análise morfológica, de check-
lists, registros fotográficos e das APPLEYARD, Donald. Why buildings are known:
interações/empatia com os usuários, resultantes da a predictive tool for architects and planners. In:
aplicação de entrevistas, mapas mentais e novas BROADBENT, G. et al. Meaning and behavior
observações incorporadas. in the built environment. Londres: John Wiley
and Sons, 1980.
A importância dos instrumentos e da crença em
sua eficiência intrínseca é relativizada, e a CAPRA, F. Sabedoria incomum. São Paulo:
experiência intersubjetiva de um observador que Cultrix, 1991.
atua alinhado com o caminho da objetividade entre
parênteses, valorizada. _____. A teia da vida: uma nova compreensão
científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix,
Mesmo reconhecendo a dificuldade para que nosso
1997.
modo de explicar – que é sempre uma
reformulação da nossa experiência a ser explicada CAPRA, F. As conexões ocultas: ciência para
(MATURANA, 2001) – venha a atender aos uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002.
critérios de aceitação adotados pela comunidade
acadêmica da APO, acreditamos que a mudança de COSENZA, C. A. N.; LIMA, F. R.;
atitude e a incorporação dos relatos das RHEINGANTZ, P. A. Análise do complexo RB1.
experiências vivenciadas pelo observador Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 1996. 4 v.
contribuam para produzir respostas mais (Relatório Técnico).
significantes e individualizadas para as questões
relacionadas com a vitalidade do ambiente e com o _____. Diagnóstico de adequação ambiental e
bem-estar de seus habitantes. condições de uso do Edifício do INPI no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: COPPE-UFRJ, 2000.
Para aqueles que consideram que os argumentos (Relatório Técnico).
apresentados ainda não são aceitáveis, pedimos um
pouco mais de compreensão e tolerância, CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa: Ed.
lembrando que, apesar de a ciência não ter 70, 1996.
encontrado uma explicação para a origem da vida,
DAMÁSIO, Antonio. O erro de Descartes. São
ela não pode negar nossa existência.
Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Acesso em: 8 fev. 2007. ______. A theory of good city form. Cambridge,
MA: MIT Press, 1981.
MARINOFF, Lou. Mais Platão, menos Prozac: a
14
filosofia aplicada ao cotidiano. 7. ed. Rio de
Os resultados das experiências e testes foram apresentados e
publicados em eventos e seminários. Ver: Alcantara; Rheingantz
Janeiro: Record, 2004.
(2004); Alcantara; Barbosa; Rheingantz (2006); Alcantara;
Rheingantz; Barbosa, Laureano; Amorim (2006).

Cognição experiencial, observação incorporada e sustentabilidade na avaliação pós-ocupação 45


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46 Rheingantz, P. A.; Alcantara, D.

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