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Vínculos entre Crianças


em Situação de Acolhimento
Institucional e Visitantes da
Instituição
Bonds Between Sheltered Children
and Visitors of Host Institutions

Vínculos Entre Niños en


Situación de Acogida Institucional
y Visitantes de la Institución

Karollyne Kerol de Sousa


& João Luiz Leitão
Paravidini

Universidade Federal de
Uberlândia
Artigo

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2011, 31 (3), 536-553


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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
Karollyne Kerol de Sousa & João Luiz Leitão Paravidini
2011, 31 (3), 536-553

Resumo: Este artigo teve como objetivo principal discutir a forma vincular constituída e constituinte de um
processo vigente em muitas instituições de acolhimento a crianças no Brasil, o apadrinhamento afetivo, que
pode ser descrito como uma forma de proporcionar às crianças vínculos alternativos dotados de significado
através da sua relação com as pessoas que as visitam nas instituições de acolhimento. Entretanto, percebe-se
que o apadrinhamento tem sido usado como um dispositivo para preencher lacunas existenciais, tanto pela
via da criança como do padrinho. Depois de um breve percurso pela situação da infância institucionalizada,
foram analisadas quatro entrevistas com madrinhas e o caso clínico de uma criança apadrinhada. O método
psicanalítico foi utilizado como instrumento de pesquisa, e, a partir de analisadores elencados, importantes
reflexões foram construídas em relação ao processo de apadrinhamento: exaltação da solidariedade,
correlacionada a sentimentos como a bondade e o amor ao próximo, narcisismo exacerbado como tentativa
de recuperar a onipotência perdida nos primórdios da existência, a sedução que perpassa a relação padrinho-
criança institucionalizada, a ambivalência de sentimentos despertados nessa relação e as semelhanças do
processo de apadrinhamento com o processo de adoção, no que diz respeito à busca do filho ideal, que
se estende à procura do padrinho ideal e do afilhado ideal.
Palavras-chave: Comportamento de apego. Crianças institucionalizadas. Co-dependência (Psicologia).
Psicanálise.

Abstract: This article aims to discuss a form of bond in the practice of acting as a godfather/godmother in
some host institutions in Brazil. This can be described as a way to give children alternative significant bonds
through the relationship between children and the people who visit them in the host institutions. Nevertheless,
it can be noticed that this practice has been used as a way to fulfill existential gaps. After a short verification
of the sheltered children situation, we analyzed four interviews with godmothers of sheltered children and
a clinical case of a godchild. The method used for the research was the psychoanalytic method. From the
analyzers listed in the interviews, important reflections were constructed about the way of the relationship
fostered by being a godfather: the exaltation of solidarity, correlated with feelings like goodness and love for
the other one, an exacerbated narcissism as an attempt to recover the omnipotence felt in the beginning of
life, the seduction that permeates the relationship between the godfather and the sheltered children, the
ambivalence of feelings aroused in this relationship and the similarities of the act of being a godfather with
the adoption process, according to the search for the ideal son, that is extended to the search for the ideal
godfather/godmother and the ideal godchild.
Keywords: Attachment behavior. Children institutional care. Codependency (Psychology). Psychoanalysis.

Resumen: Este artículo ha tenido como objetivo principal discutir la forma vincular constituida y constituyente
de un proceso vigente en muchas instituciones de acogida de niños en Brasil, el apadrinamiento afectivo,
que puede ser descripto como una forma de brindar a los niños vínculos alternativos dotados de significado
a través de su relación con las personas que las visitan en las instituciones de acogida. Sin embargo, es
notable que el apadrinamiento ha sido utilizado como un dispositivo para rellenar huecos existenciales,
tanto por el lado del niño como por el del padrino. Luego de un pronto recorrido por la situación de la
niñez institucionalizada, se han analizado cuatro entrevistas con madrinas y el caso clínico de un niño
apadrinado. El método psicoanalítico ha sido llevado a cabo como instrumento de investigación, y,
partiendo de análisis enumerados, importantes reflexiones han sido construidas en relación al proceso de
apadrinamiento: exaltación de la solidaridad, correlacionada a sentimientos como la bondad y el amor
al prójimo, narcisismo exagerado como intento de recuperar la omnipotencia perdida en los primordios
de la existencia, la seducción que rebasa la relación padrino-niño institucionalizada, la ambivalencia de
sentimientos despertados en esa relación y las similitudes del proceso de apadrinamiento con el proceso
de adopción, en lo que respeta a la búsqueda del hijo ideal, que se extiende a la búsqueda del padrino
ideal y del ahijado ideal.
Palabras clave: Conducta de apego. Niños institucionalizados. Codependencia (Psicología). Psicoanálisis.

Este artigo é resultado de uma pesquisa de sobre o tema. Em contrapartida, encontramos


mestrado e tem como objetivo principal inúmeros sites da internet 1 que falam
discutir as formas vinculares constituídas e sobre o apadrinhamento, com o objetivo
constituintes de um processo vigente em quase que exclusivo de convocar pessoas a
1 Um exemplo de
site voltado para o muitas instituições de acolhimento a crianças contribuir afetiva e/ou financeiramente para
apadrinhamento no Brasil, o apadrinhamento afetivo. Após o desenvolvimento físico e/ou psíquico de
é: www.
amigosdelucas. uma revisão na literatura, verificamos a crianças em situação social desfavorecida,
org.br escassez de estudos científicos específicos seja em acolhimento institucional, seja como

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um auxílio a comunidades em situação de das crianças, além de pedagogas, psicólogas,


pobreza e miséria. coordenadores e motoristas, entre outros.
São comumente instituições sustentadas por
A partir dessas constatações iniciais e entidades não governamentais, como igrejas,
das experiências possibilitadas por esta por exemplo. As crianças frequentam escolas
pesquisa, definimos o apadrinhamento e possuem atividades de lazer, como passeios
afetivo como uma prática que intenta fora da instituição.
proporcionar às crianças acolhidas vínculos
alternativos dotados de significado, que Além de uma indispensável estrutura física e
contribuam para que elas tenham vivências material, as crianças necessitam construir e
familiares e emocionais saudáveis ao seu manter laços vinculares, relações significativas
desenvolvimento psíquico. com pessoas que se enderecem a elas e a
quem elas também possam se endereçar
Considerando a importância das origens, é (Jerusalinsky, 2005). É fundamental que
importante mencionar que o nascedouro desta advenham desses vínculos experiências
pesquisa se deu por meio de atendimentos de afeto, gratificações e frustrações, que,
psicoterápicos a crianças institucionalizadas combinadas, possam permitir a simbolização
na Clínica de Psicologia da Universidade desses laços no imaginário das crianças
Federal de Uberlândia. A realidade daquelas (Chasseguet-Smirgel, 1992). A partir desse
crianças nos fez pensar como era possível prisma, é possível pensar e discutir sobre o
lugar chamado instituição de acolhimento
nascer ali um sujeito desejante, diante dos
como possibilidade de subjetivação para
percalços do tempo e das rupturas de vínculos
crianças, e não como destino de infelicidades
vivenciadas por elas.
e desatinos.

Apesar da singularidade característica de


Impregnados por leituras sobre a psicopatologia
cada uma das histórias de crianças em
na infância, resultante da perda repentina de
situação de acolhimento institucional, um
vínculos de afeto significativos, percorremos
contexto abrangente se apresenta, uma
trilhas de pessimismo, pensando que aquelas
jornada marcada por violências, negligências,
crianças atendidas durante o estágio na
abandonos, sejam eles físicos ou psíquicos,
clínica, entre outras tantas em situação de
contornada por um lugar, a instituição familiar.
acolhimento institucional, estavam fadadas
Esta, por sua vez, carrega consigo condições
a adoecer psiquicamente, caso não fossem
de vida precárias, também marcadas, muitas salvas por um adotante. Mas o caminho
vezes, pelos mesmos infortúnios vivenciados que foi se revelando é que, a despeito das
pelas gerações de filhos, como uma corrente inúmeras psicopatologias encontradas nos
que se arrasta demarcando e limitando estudos sobre crianças abrigadas, é possível,
destinos. sim, alcançar formas subjetivantes, desejantes,
almejantes de sonhos, de crescimento e de
As instituições de acolhimento a crianças amadurecimento emocional. A partir de
em situação de risco psicossocial funcionam então, nosso olhar passou a ser destinado
como uma tentativa de proteger a infância a novas direções. Percorrendo o espaço
desvalida (Venâncio, 1999). São lugares do abrigo, pudemos ver crianças que se
constituídos por um corpo de funcionários apropriavam de sentidos de existência, de
denominados cuidadores, envolvidos na vida, e não de morte.
tarefa de acolher e de cuidar das crianças
separadas de suas famílias de origem, como as Foi durante a visita a uma instituição de
mães sociais, responsáveis pelo cuidado diário acolhimento que os padrinhos de crianças

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institucionalizadas despertaram nossa mencionar. Em alguns deles, o contato físico


atenção, pessoas que, de alguma forma, com as crianças não ocorre, e por isso não tem
convocam as crianças a comparecer em um a denominação de afetivo. Nessas situações, os
campo de significação humana, já que os padrinhos/madrinhas são pessoas que auxiliam
pequenos são sujeitos capturantes de tudo o financeiramente uma criança em situação de
que aí se coloca. risco psicossocial e que recebem informações
sobre o seu desenvolvimento. Em certos casos,
Mas o que vem a ser, essencialmente, um as crianças se correspondem com os padrinhos
padrinho de criança institucionalizada? através de cartas em datas comemorativas e
Comecemos pelo significado da palavra, da aniversários, recebem presentes e seguem
qual originou a expressão apadrinhamento. prazos para responder às cartas enviadas pelos
Padrinho/madrinha são termos de cunho padrinhos.
religioso que significam pais e mães espirituais,
que exercem a função de segundo pai e de Todo esse contexto nos leva a pensar naquilo
segunda mãe, a função de proteger (Bueno, que move o desejo de apadrinhar e de ser
2007). Na falta do pai e da mãe, são os apadrinhado, desejo que toca nossa própria
padrinhos os responsáveis pelo cuidado condição humana de desamparo. O que
e pela criação das crianças. A palavra podemos considerar a priori é que o desejo de
padrinho tem muito a nos revelar sobre ser apadrinhado está atrelado ao desejo de ser
as relações constituídas e constituintes do adotado, ao desejo de ser querido por alguém,
campo institucional, e é sobre esse terreno desejo de ser o objeto de desejo de outrem.
que iremos nos debruçar. A que vem a função Sinteticamente, quando nos fundamentamos
do apadrinhamento? Que forma de se formar em Freud (1914/1996), falamos sobre o desejo
laço social é essa? de ser amado.

Na instituição de acolhimento em que A partir de uma lógica institucional, importa,


foi realizada esta pesquisa, bem como pois, avaliar as relações interpessoais que ali se
em outras na cidade de Uberlândia-MG, dão como uma possibilidade de estarem sendo
o apadrinhamento afetivo pressupõe um tecidas novas configurações familiares, apesar
modo de se estabelecer relações entre de esse ser um ambiente que possui limitações,
crianças institucionalizadas e visitantes da também presentes em muitos outros contextos,
instituição, de tal modo que os padrinhos, se nos respaldarmos no que nos diz Neves
como são chamados alguns visitantes, vão (2009) sobre família em sua condição não
até as crianças, o que caracteriza a visitação, ideal. A despeito de a institucionalização de
e as levam para passear, seja em suas casas, crianças ser medida de caráter excepcional
seja em outros lugares conotativos de lazer e e provisório, de acordo com o Estatuto da
prazer. Algumas vezes, são levadas também Criança e do Adolescente (ECA (1990)), o que
para atendimentos psicológicos, médicos, se sabe é que elas são colocadas nas instituições
odontológicos e fisioterapêuticos. Há um de acolhimento por tempo indeterminado, à
padrinho para cada criança, e, normalmente, espera de uma nova família ou do retorno à
não se pode ser padrinho de duas crianças ao própria família renovada. Parecem vivenciar,
mesmo tempo. Apenas uma é levada, a não nesse lugar, relações familiares com uma
ser que tenha irmãos e o padrinho queira estrutura diferente das famílias tradicionais. Os
levá-los também. padrinhos, visitantes, voluntários, funcionários
da instituição e todas as crianças que ali estão
2 www.
visãomundial. Muitos apadrinhamentos veiculados pela podem estar fazendo parte de uma tessitura
org.br internet2 diferem desse que acabamos de familiar.

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É fundamental destacar que “a função essas preferências se confirmam, de acordo


materna e paterna não se estabelecem por com Silva. Esses dados nos interessam, na
uma correspondência a personagens fixos” medida em que deflagram uma questão
(Jerusalinsky, 2005, p.10). Isso significa que fundamental à compreensão da prática do
outras pessoas podem exercer os papéis apadrinhamento: a busca pelo filho ideal. De
resguardados a pais e mães, sustentando acordo com a responsável pelo cadastramento
suficientemente o desenvolvimento de candidatos à adoção, 95% das famílias
físico e psíquico de crianças afastadas do brasileiras escolhem o perfil do futuro
convívio com pais biológicos, como reforça filho, ao contrário das famílias estrangeiras
Winnicott (2000), ao falar sobre o ambiente (Silva, 2010). Segundo a agente da Vara
suficientemente bom. Pensando sob essa da Infância e da Juventude de Uberlândia,
perspectiva, é nesse ambiente-mundo que enquanto as famílias estrangeiras buscam
as crianças se constituem psiquicamente. crianças ou adolescentes para aumentar suas
Resta a nós, pesquisadores, investigar a famílias, as brasileiras procuram uma criança
sustentabilidade do exercício das funções para fazer de conta que tiveram um filho
materna e paterna por essa possível família biológico e mostrarem-no para a sociedade. A
extensa, apontada por Jerusalinsky (2005). comprovação dessa realidade está no fato de
que, no ano 2009, 16 de 29 crianças foram
Para avaliar essas questões abordadas, faz- adotadas por famílias estrangeiras, mesmo
se necessário situar o leitor no contexto em tendo prioridade as famílias do Município,
em seguida, as do Estado e, depois, as do
que as crianças em situação de acolhimento
País (Silva, 2010). A adoção internacional só
institucional estão inseridas.
é efetivada quando as outras possibilidades
são descartadas.
Um breve percurso sobre
a atual situação da infância Segundo relatos de profissionais da Vara da
institucionalizada Infância e da Juventude de Uberlândia, a
prática do apadrinhamento está suspensa
Falemos um pouco da realidade das crianças por falta de determinações legais. A principal
acolhidas na cidade de Uberlândia. São justificativa dessa suspensão é a de que
aproximadamente 185 crianças que vivem o ato de apadrinhar tem prejudicado o
hoje em oito instituições de acolhimento em funcionamento dos processos jurídicos e
Uberlândia (Silva, 2010). O interessante é que trazido complicações para as crianças, porque
o número de candidatos à adoção ultrapassa muitas pessoas se propõem a apadrinhar,
mas depois não mantêm o compromisso.
o número de crianças acolhidas. Isso quer
Ainda segundo relatos de profissionais da
dizer que, se não fossem as exigências
área, são pessoas que, por diversas razões, se
dos candidatos, todos já teriam família, já
candidatam ou são chamadas pelas crianças
que, agora, a destituição do poder familiar
a ocupar o lugar de padrinhos, levam as
foi acelerada em virtude das mudanças
crianças para suas casas, passeiam com elas
nas leis que regem esse processo, que
e, algum tempo depois, se afastam do posto
determinam um tempo máximo de dois anos assumido a princípio, deixando-as com
de permanência da criança na instituição. sentimentos de tristeza e frustração. Além
disso, cria-se uma expectativa na criança de
A preferência da maioria dos candidatos que ela poderá ser adotada pelos padrinhos,
brasileiros direciona-se a crianças de até três o que, geralmente, não ocorre, ou seja, a
anos, de cor branca, saudáveis e que não sejam adoção não se concretiza, causando intenso
prematuras (Silva, 2010). Em Uberlândia, sofrimento à criança.

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Nesse contexto, para avaliar o processo de os padrinhos, não simbolizados, carentes


apadrinhamento, percorremos caminhos para de registro no psiquismo. Nessa direção,
além da situação atual da adoção no Brasil, percorremos conceitos como o narcisismo
intimamente ligada ao apadrinhamento, (Freud, 1914/1996), a servidão voluntária
considerando que se trata de relações (Birman, 2006) e o masoquismo (Freud,
vinculares em um campo institucional 1924/1997), dentre outros, que nos servirão
cuja premissa básica é a de propiciar um de aporte teórico para pensar sobre as formas
ambiente familiar a crianças abandonadas de subjetivação contemporâneas em um
ou afastadas dos pais por razões extremas, campo institucional como esse.
sustentados pelas determinações do ECA
(1990). Propomos uma reflexão sobre Fundamentados nesses balizadores teóricos
a constituição do sujeito psíquico e sua e tendo em vista a atual situação da
possibilidade de amadurecimento emocional infância institucionalizada, faz-se necessária
no contexto de uma instituição, enfatizado uma investigação sobre o processo de
por seu limitado aporte afetivo, através dos apadrinhamento afetivo, que denuncia
estudos teóricos de Winnicott (1975/2000) dinâmicas institucionais importantes e que
e Jerusalinsky (2005). Nesse sentido, nos leva a repensar as práticas vigentes
indagamos acerca dessa limitação no intento na contemporaneidade. É partindo dessa
de repensar um lar ideal, supostamente necessidade que nos propomos a percorrer
presente em uma família de moldes o campo da subjetivação humana por
tradicionais, ancorada nos pensamentos meio de um olhar voltado para as formas
de Neves (2009). Propomos ainda pensar vinculares, estabelecidas entre padrinhos
sobre a possibilidade de construção de e crianças em situação de acolhimento
sentidos significativos para a subjetivação institucional, caminho sustentado pelo
na infância abrigada, por meio da relação método psicanalítico.
de crianças com adultos que encarnam
funções paternas e maternas, oferecendo- Método
lhes um olhar simbólico constitutivo, como
os padrinhos, fundamentados no que O método psicanalítico é um método de
argumenta Jerusalinsky (2005) acerca dessas investigação que toma como objeto o
funções. inconsciente e, como fundamento essencial,
a interpretação. As técnicas utilizadas são a
Logo nos deparamos com questões mais associação livre, que possibilita a emergência
complexas, referentes às formas de vinculação de formações do inconsciente, e a atenção
presentes na contemporaneidade, amparada flutuante, que, para Freud (1912/1974),
pelas formulações teóricas de Freud (1912/1 significa manter a atenção uniformemente
914/1915/1924/1929/1933), Birman (2006) suspensa em tudo que se escuta. Nessa lógica
e Chasseguet-Smirgel (1992). A relação das inconsciente, estão inscritas pulsões, marcas
crianças institucionalizadas com os padrinhos identificantes, suas relações com os objetos
vem denunciar a incessante trajetória do de satisfação e com o Outro (Birman, 1993).
sujeito na busca pela felicidade, em que a
submissão ao outro traduz uma tentativa Inaugurado por Freud, o método psicanalítico
de reencontrar a perfeição perdida nos trouxe relevantes mudanças nas formas de
primórdios de nossa existência (Chasseguet- se fazer pesquisa ao abandonar a noção
Smirgel, 1992). Essa relação pode gerar de que deve haver uma distância entre
sofrimento, principalmente para as crianças, investigador e objeto investigado. É o que
se engajadas em vínculos insustentáveis com explica Silva (1993), ao destacar que o

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método psicanalítico é uma forma de madrinhas de crianças institucionalizadas e


investigação em que sujeito e objeto se do caso clínico de uma criança apadrinhada.
criam mutuamente. De acordo com essa Entende-se por entrevista aberta aquela
autora, qualquer modelo que desconsidere a em que não há um roteiro predeterminado
subjetividade dos envolvidos é incompatível de perguntas a ser seguido. O entrevistado
com a natureza do psiquismo humano. recebe apenas um estímulo que o instigue
a falar sobre sua relação com as crianças
Freud (1912/1974) nos faz uma importante institucionalizadas.
advertência, de que não devemos iniciar
uma pesquisa já com uma seleção prévia Os contatos com os padrinhos foram
do que poderemos encontrar baseados disponibilizados por uma instituição de
em expectativas próprias, pois, assim, acolhida onde a prática de apadrinhamento
estaremos nos arriscando a não descobrir adquire um significado importante. As
nada além daquilo que já sabíamos, ou até madrinhas entrevistadas foram aquelas que
a falsificar aquilo que se possa saber. Ele se dispuseram a falar sobre a relação com as
afirma: “O analista é certamente capaz de crianças abrigadas.
Seguindo o método
psicanalítico, fazer muito, mas não pode determinar de
o inconsciente antemão exatamente quais os resultados que A eleição do caso clínico e das quatro
pode se revelar produzirá” (p.172). entrevistas se fez necessária por acreditarmos
na articulação
ser fundamental a articulação entre os
entre linguagem e
pulsão, “enquanto Seguindo o método psicanalítico, o aspectos inconscientes das crianças e os das
real da língua inconsciente pode se revelar na articulação madrinhas. Foi a tentativa de se fazer um
incidindo sobre um
entre linguagem e pulsão, “enquanto real da estudo de dois pêndulos que trabalhassem
corpo” (Guerra,
2001, p.3). língua incidindo sobre um corpo” (Guerra, com ambas as perspectivas, e que pudessem,
2001, p.3). Mas, entre o significante e a nesse sentido, alcançar discussões mais ricas
pulsão, existe uma lacuna, que permite a no que diz respeito ao campo de significação
emersão do desejo e que, ao mesmo tempo, humana. A proposta inicial era a de se fazer
nos impede de acessar todo o conteúdo entrevistas com padrinhos e madrinhas de
inconsciente. A linguagem não dá conta de crianças institucionalizadas, entretanto, com
apreender todas as experiências (Guerra, o decorrer da pesquisa, o contato só foi
2001). concretizado com as madrinhas.

Entendemos, a partir de Freud, que os Por meio de uma escuta analítica, proposta
restos deixados como traços, possivelmente por Freud (1912/1974), e de uma análise
acessíveis por meio de uma análise, seriam interpretativa do conteúdo das entrevistas
os elementos que estruturam e organizam e do caso clínico, foi possível trazer à tona
um discurso (Guerra, 2001). Isso denota questões importantes para se pensar sobre o
que mais importa aquilo que não pode ser objetivo do trabalho. É importante frisar que
apreendido de imediato, o que não foi dito esses fragmentos estão tomados pela condição
ou escrito, ou seja, “aquilo que se constrói de terem sido dimensionados a partir do que
no silêncio do lado avesso ao significante” circunda o campo analítico, a transferência.
(Guerra, 2001, p.93), acessível somente É fundamental salientar que o número
através do poder da escuta analítica. de madrinhas entrevistadas não foi um
fator relevante para os fins desta pesquisa.
Ancorado nessas proposições, este trabalho As entrevistas foram suspensas quando
de investigação foi realizado por meio da percebemos que havia um fio condutor que
análise de entrevistas abertas com quatro perpassava todas elas, e que forneciam um

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material imprescindível para buscarmos A quarta madrinha entrevistada inicia sua


compreender a lógica dessa relação fala dizendo direta e imediatamente o que
padrinho-afilhado. Em relação ao caso a levou ao abrigo, um acidente de família.
clínico, interessa-nos destacar que, para Jovem, perdeu o marido em um acidente e
Safra (1993), a investigação do particular pensou que jamais se casaria de novo, por isso
possibilita compor modelos mais abrangentes optou por apadrinhar para conhecer a criança
do psiquismo humano, mesmo com toda a e depois, possivelmente adotá-la. Passados
singularidade que o caso apresenta. dois anos e alguns meses, compreendeu que
a adoção seria uma forma de superar uma
Entre o desejo de apadrinhar perda, e, a partir de então, decidiu que seria
e o de ser apadrinhado: uma apenas madrinha. Durante esse processo, a
síntese das entrevistas com criança apadrinhada ficou em sua casa por
um mês, em uma convivência intensa, já que
madrinhas e do caso clínico de
a madrinha tirou licença do trabalho para se
uma criança apadrinhada dedicar exclusivamente a ela. A madrinha
Entrevistas conta que a criança se parecia fisicamente
com seu falecido marido.

Através do conteúdo das entrevistas e do caso As madrinhas enfatizam a relação de afeto que
clínico, poderemos pensar sobre o que há de constroem com as crianças que apadrinham.
substancial na função de apadrinhamento. Falam da alegria com que as crianças as
As entrevistas têm aspectos divergentes e recebem nos dias de visita e da tristeza
convergentes. São madrinhas com histórias com que se despedem no momento da sua
de vida diferentes, mas que se entrelaçam partida. Por meio da fala sobre os sentimentos
em sentidos semelhantes. despertados na relação, as madrinhas
contam sobre a vontade de adotar a criança
Inicialmente, as madrinhas foram instigadas que apadrinharam. Relatam inúmeros
por um dos pesquisadores a falar sobre empecilhos para concretizar a adoção, como
as crianças em situação de acolhimento a postura negativa de seus companheiros e o
institucional. O que marca o começo do pensamento de que não é o momento ideal
relato de três das madrinhas entrevistadas é a para uma adoção, tendo em vista a fase da
carência das crianças institucionalizadas e os vida em que se encontram. Outros conteúdos
sentimentos despertados por essa condição. importantes, mas ainda encobertos nas falas,
Falam de uma forma que sugere preocupação culminam na desistência do processo de
com o que falta às crianças, como roupas, adoção. Dentre eles, temos as histórias de
afeto, individualidade, alimentos, enfim, sofrimento das crianças, as vivências precoces
enfatizam as suas inúmeras carências. na infância e a preocupação com a sua carga
Discorrem sobre como podem restituir e/ genética, com as heranças familiares. Mesmo
ou oferecer às crianças coisas que elas assim, reforçam como a relação de afeto
possivelmente perderam ou nunca tiveram, com as crianças é significativa e como se
como laços afetivos e condições materiais, um confundem na função de mãe ou madrinha.
guarda-roupa individual, roupas, brinquedos,
passeios, futuro. Falam também da facilidade Ao falar sobre como funciona o
em agradar as crianças e do papel solidário apadrinhamento, as madrinhas dizem que
que fazem ao ajudá-las. Os sentimentos não há determinações legais de que se deve
marcantes nos relatos são a piedade e a visitar a criança todos os fins de semana, posto
compaixão. que as visitam quando podem e as levam para

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passeios também quando é possível para crianças e a mãe social. Ao todo, são sete
elas. Relatam que alguns padrinhos iniciam o casas-lares, como são chamadas as casas em
contato com as crianças porque a instituição que vivem as crianças, cada uma com uma
de acolhimento se mobiliza para encontrar mãe social.
pessoas que as recebam em suas casas no
Natal, e esse contato inicial pode perdurar A assistente social da instituição de
ou não. Alguns passam apenas o Natal e acolhimento em que vive Maria procurou
depois perdem o contato com a criança, atendimento psicológico para a criança, e
assim como fazem alguns visitantes que explicou que seus padrinhos, Rita e Jorge,
se tornam padrinhos por interesse próprio estavam dispostos a pagar esse atendimento.
ou por pedido das crianças, mas não mais Primeiro, foi ao atendimento a assistente
retornam à instituição. Em contrapartida, social da instituição para falar sobre Maria;
as madrinhas entrevistadas falam sobre a depois, foi Maria. Após algumas sessões e
intenção de cuidar da criança apadrinhada tentativas de falar com Rita, marcamos uma
pelo resto de suas vidas. sessão com a madrinha.

Caso clínico Rita veio sozinha, sem o marido, que, na


ocasião, viajava. Ela falou sobre os prejuízos
A criança apadrinhada é Maria, 13 anos, de aprendizagem de Maria, seus problemas
abrigada aos 10. Vivia com os avós maternos com a higiene, com a sexualidade e com
e a mãe biológica, e não conheceu o pai. Por o xixi. Rita disse que Maria tem sérios
denúncias de vizinhos, Maria foi abrigada. comprometimentos na área escolar, não
Sofria de negligência familiar e de maus tratos. sabe ler, só sabe escrever copiando de outros
Sua família vivia em condições impróprias de lugares, não sabe cuidar de sua higiene, lavar
higiene, armazenanando lixo dentro de casa e os cabelos e escovar os dentes, tem interesses
consumindo água não tratada. A avó materna sexuais precoces, porque, quando vai a sua
sofre de um transtorno mental, e a mãe é casa, quer sair para se relacionar com os
garota de programa. Maria tem mais seis meninos do condomínio em que vive. Além
irmãos, cada um de um pai diferente, e cada disso, faz xixi na cama. Rita contou que havia
um vive com o respectivo pai. Foi destituída dito a Maria que, quando ela fizesse xixi na
do poder familiar em 2009, está na lista de cama, não iria buscá-la para passar o fim de
espera para ser adotada e foi apadrinhada por semana em sua casa.
dois casais de maneira informal, ou seja, sem
o registro da Vara da Infância e da Juventude Ainda durante essa mesma sessão, Rita
da cidade. informou que havia adotado duas meninas
recentemente, um pouco mais novas que
Maria começou a frequentar a escola aos 10 Maria. Na época, já conhecia Maria, mas
anos, quando foi abrigada. Até então, não disse que não a adotou por causa da idade e
sabia ler nem escrever. Apesar disso, está também por temer suas limitações. Explicou
no quarto ano. Segundo a instituição que que ainda está à procura de mais uma menina
a acolheu, Maria é uma ótima copiadora e para adotar, e que, por seu marido, adotariam
também não poderia ser colocada em uma Maria, mas que não se sente segura para
série em que as crianças fossem bem menores isso, principalmente por causa da idade da
que ela. menina.

Maria vive em uma casa no espaço da Depois de algumas semanas de atendimento,


instituição de acolhimento com mais dez no dia de acertar o primeiro pagamento da

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psicoterapia, Jorge, padrinho de Maria, diz escolares, a cabeça sem lavar, tudo isso estava
querer conversar com a psicoterapeuta. presente, mas parecia não poder ser dito. O
Marcamos uma sessão. Ele veio sozinho, sem a que Maria tinha de humano necessitava ser
esposa Rita. Demonstrou-se preocupado com escondido, o que poderia ser mostrado eram
Maria. Contou sobre o xixi, foi questionado as suas proezas. Estas, sim, poderiam ser
sobre o significado desse fato e respondeu valorizadas. O seu silêncio perante as suas
que achava que era uma afronta, uma vacâncias demarcava os limites de seu corpo
rebeldia de Maria. Foi esclarecido a ele que e de sua alma.
o xixi é um sintoma que, ao contrário de ser
punido, necessita ser compreendido. Jorge É imperioso retornarmos aos primeiros
disse que tomou a atitude de não levar Maria movimentos de Maria nas sessões
para passear quando faz xixi na cama durante psicoterápicas. No começo, ela se recusava a
a semana, porque a instituição o instruiu ler quaisquer enunciados, como os que fazem
assim, e a instituição informou que essa havia parte dos jogos que escolhia para brincar.
sido uma decisão dos padrinhos, quando a Tentava se justificar dizendo que não queria
psicóloga da instituição foi solicitada a falar ler. Era instigada a tentar, que não haveria
sobre Maria. A psicóloga reafirmou a teoria problema se errasse ou se não soubesse tudo o
de Jorge, de que o xixi é uma forma de Maria que estava escrito. Ela dizia que tinha vergonha.
desafiar a autoridade de toda a equipe de Mas, com o auxílio psicoterapêutico, começou
trabalho da instituição e que, quando dizem a ler. O interessante é que Maria tinha como
que ela só vai passear com os padrinhos se preferência os jogos que requerem leitura.
não fizer xixi na cama, Maria não faz. Foi
conversado com Jorge sobre as possíveis Foram percebidas dificuldades, mas Maria
representações do xixi para Maria, como uma demonstrou reconhecer letras e palavras.
possível regressão, o desejo de ser pequena Isso foi se tornando cada vez mais claro no
para poder ser adotada. decorrer dos atendimentos; a cada um deles,
Maria lia melhor. Deve-se ressaltar que ela
Jorge comentou que está muito preocupado copiava qualquer texto de letra de forma com
também com as dificuldades de Maria em letra cursiva. Isso quer dizer que reconhecia
relação ao conteúdo escolar. Perguntou se, todas as letras do alfabeto.
com a psicoterapia, ela iria vencer essas
limitações. Foi explicado a ele que parte Maria passou a levar alguns livros para ler
dessas dificuldades advém de seu estado durante a sessão, livros que já tinha lido
emocional, mas a outra parte se deve ao fato outras vezes. Ela os conhecia tão bem que
de que Maria começou a frequentar a escola já sabia de cor algumas passagens. Precisava
aos 10 anos, em uma turma mais avançada levar exatamente esses para evitar o que, para
em termos de conteúdo. Foi orientado ela, seria um constrangimento, o erro. Com
sobre a necessidade da alfabetização de o tempo, passou a ler outros desconhecidos
Maria, trabalho para uma psicopedagoga por ela. Cada vez mais, desafiava os próprios
especializada. Ele concordou, e pediu uma limites.
indicação. Poucos dias depois, Maria iniciou
o acompanhamento psicopedagógico. Durante os quatro primeiros meses de
psicoterapia, Maria demonstrou algumas
Ao longo dos atendimentos, percebemos dificuldades em lidar com seus sentimentos.
que, apesar das queixas dos padrinhos, O mais marcante deles foi a necessidade de
Maria permanecia tentando encobrir alguns ser aprovada pelas pessoas. É como se ela
aspectos importantes. O xixi, as dificuldades precisasse ser boa o bastante para receber

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o amor dos outros. Maria tinha medo de que, se lhe fosse cobrado o dia em que
errar e desapontar as pessoas ao seu redor, faltou, sendo esse o combinado durante
principalmente aquelas que ela gostaria que o contrato, iria tirá-la da psicoterapia. Ela
a adotassem. contou que interrompeu o acompanhamento
psicopedagógico de Maria justamente por
Em alguns momentos, Maria demonstrou esse motivo, pelo fato de a psicopedagoga
se sentir rejeitada, desanimada e ter cobrado uma sessão a que Maria não
desesperançosa. Fugia das lembranças que compareceu. Rita explicou que Maria não
sua casa de origem evocava. Instantes depois, estava se arrumando a tempo para a sessão,
demonstrava vivacidade, desejava crescer, pois, quando o motorista ia buscá-la, nunca
ter uma família, desfilar fora do Brasil. A estava pronta. Comentou que ela não fazia
ambivalência de sentimentos fez com que os deveres que a psicopedagoga passava e
Maria alternasse posições de suficiência e de julgava que ela não estava levando a sério
insuficiência. Por vezes, a possibilidade de o tratamento, e que, por isso, se cansara da
uma adoção era idealizada como a solução sua forma de se comportar. Os atendimentos
de todo o mal. Por outras, era rejeitada como psicoterapêuticos de Maria continuaram,
um lugar obscuro e silenciador de desejos. mas, nessa época, a madrinha já sinalizava o
rompimento da relação com Maria.
Apesar de expor, frequentemente, seu apego
em relação aos padrinhos que a visitavam No retorno das férias escolares, Maria contou
na instituição em que vivia, colocando-os que havia passado o Natal na casa de uma
na posição de pais em potencial, Maria tia que visita a instituição e que a tia Rita e
desconfiava das relações. Isso ficou explícito o tio Jorge não estavam mais indo visitá-la,
quando ela se perguntava sobre os dias em porque deviam estar trabalhando muito.
que os padrinhos não a visitavam. Maria não Revelou também que estava com saudades
queria apenas ser escolhida por alguém, ela de sua outra madrinha, Lúcia. Maria contou
queria escolher. que queria ser adotada por ela. Explicou
que Lúcia não a havia adotado ainda porque
O abrigo, algumas vezes, era visto como um morava com a mãe e as irmãs, e que na
congelamento3, um lugar onde a felicidade sua casa não havia lugar para Maria. Nesse
era quase uma missão impossível. Nessa momento, ela se lembrou de um dia em que
perspectiva, Maria se esforçava em capturar havia dormido na casa de Lúcia e em que a
o olhar dos padrinhos para que a levassem madrinha havia dormido no chão para que
desse lugar, que lhe parecia frio. Por outro ela dormisse em sua cama. Maria contou
lado, ela encontrava, nesse mesmo lugar, que Lúcia havia lhe dito que, quando se
alguns pontos positivos importantes para casasse iria adotá-la, recordou que, antes,
ela: os cuidadores, os momentos, os amigos, ela também ia sempre ao abrigo, mas que
3 O congelamento condições que a aqueciam. O seu campo de há muito tempo não ia mais, e que, por isso,
aqui referido é uma vivências era ambíguo, sem determinantes estava com tantas saudades dela. Antes,
casa do tabuleiro
do jogo Mundo para fracassos nem vitórias. elas frequentavam a mesma igreja, e Maria
dos Negócios. Se ressaltou que, agora, nem à igreja ela vai mais.
você cai nessa casa,
fica congelado, e Depois de quatro meses de psicoterapia, Durante três meses, desde que Maria
só poderá sair se Maria se ausentou dos atendimentos por voltou das férias, o tema predominante nos
tirar nos dados dois
números iguais ou se
cerca de um mês, durante o período de atendimentos foi a saudade da madrinha
pagar para sair. Maria férias escolares. A madrinha Rita ligou para Lúcia e a falta da tia Rita e do tio Jorge. Maria
costuma jogar esse
combinar o dia do retorno. Nesse dia, Rita relembrou passeios com os padrinhos, na
jogo nas sessões de
psicoterapia. se esqueceu do atendimento e informou pizzaria, no Praia Clube, no Center Shopping.

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A cada sessão, uma demonstração de angústia. constantes, a convivência entre eles rompe
Maria persistia em falar dos padrinhos que a ilusão (Winnicott, 1975) criada no início
não a visitavam mais. Insistia em dizer que do relacionamento, fazendo-se presentes
não queria ser adotada por mais ninguém e as feridas da alma, que fazem irromper as
que não queria ir para outro país, ao se referir histórias de sofrimento e de abandono das
à possibilidade de uma adoção internacional, crianças.
queria ser adotada apenas pela tia Lúcia. O
sonho de ser adotada pela tia Rita e pelo tio Desde o princípio da vinculação, as crianças
Jorge foi se esmaecendo com o tempo. Sua foram tomadas em uma condição de falta,
atenção se voltou para a tia Lúcia, de quem já marcadas pelo nome de abandonadas,
ela assegurou que não iria desistir. Maria condição que limita o seu amadurecimento
ficara sabendo que ela ia se casar e aguardou emocional. Os padrinhos se colocaram na
esperançosa um contato seu; fez um desenho posição de salvadores, a daqueles que vieram
para a tia Lúcia e outro para a psicoterapeuta, para aplacar as dores das crianças.
quem sabe assim ela pudesse se sensibilizar
com o seu sofrimento e levá-la para casa ou Ambos, inicialmente tomados pelo anseio de
levá-la até a madrinha Lúcia. serem objetos de desejo do outro, agora se
percebem desiludidos. A criança precisa se
embelezar para permanecer em uma relação
Resultados ideal, não pode ser o que é, demonstrar suas
angústias, medos, sujeiras e insuficiências.
Analisar as entrevistas com madrinhas de Precisa se mostrar devota à madrinha para
crianças institucionalizadas e o caso clínico que ela não deixe de enxergá-la. O olhar
de uma criança apadrinhada propiciou a constitutivo dos padrinhos é possivelmente
emergência de muitas questões. Uma análise um componente essencial à subjetivação das
das escutas registradas traz-nos um rico crianças acolhidas, que se sentem desejadas,
material a ser investigado. queridas, de onde advém a esperança de
que os padrinhos queiram adotá-las. Alguns
A relação entre madrinhas e crianças acolhidas deles usam dessa condição para investigar
aponta a delegação de lugares importantes. uma possibilidade de adoção.
Inicialmente, a relação é idealizada por
ambas as partes (Freud, 1914/1996), um Mas o movimento de ir e vir da criança, da
encontra no outro acolhimento afetivo, uma instituição à casa dos padrinhos e vice-versa,
disponibilidade que sugere um lugar de entre o ideal e a desilusão, sinaliza uma
destaque, de exaltação do outro, como se falta de lugar ou um lugar de miserabilidade
este viesse para aplacar dores e sofrimentos. afetiva, em que a relação com o outro só faz
Logo, a sedução mútua vai se desvelando aumentar a falta. O lugar não é a casa de
como uma forma de permanecer nesse origem, não é a instituição de acolhimento,
lugar ideal (Chasseguet-Smirgel, 1992). nem a casa dos padrinhos. O encontro
A madrinha seduz a criança para que ela desse lugar fica cada vez mais distante no
(criança) a ame, a exalte, a valorize perante imaginário da criança acolhida, posto que
a sua benignidade, enquanto a criança se faz intensamente idealizado.
seduzir para que a madrinha a leve para sua
casa, traga-lhe algum alento e esperança de A relação é marcada pela parcialidade, os
um dia ter um lar como aquele. Mas, como padrinhos buscam as crianças quando podem.
todo processo pode ter um fim, quando as Não há propriamente um comprometimento,
visitas às casas dos padrinhos se tornam mais um laço afetivo simbólico que sustente a

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relação, por isso, tudo pode deixar de existir ocupado por uma mulher com quem seu pai
a qualquer momento. As crianças são, por se casara. A madrasta tem duas filhas, que
vezes, tratadas como mercadorias, usadas também vêm morar em sua casa. Cinderela
para satisfazerem momentaneamente o é mantida pela madrasta como serviçal e,
desejo de alguns padrinhos, para, de modo perante essa realidade, vê-se impossibilitada
subsequente, entrarem em desuso. de ir ao baile promovido pelo príncipe do
reino. Maltrapilha, Cinderela é visitada por
A falta de uma sustentação simbólica na uma fada madrinha que a prepara para
relação entre a criança e a madrinha faz que ela possa ir ao baile. Assim, seu desejo
com que esta saia da condição de sujeito se concretiza. Ela vai ao baile e desperta o
para a posição de vítima, digna de dó, interesse do príncipe, que só tem olhos para
perante o julgamento piedoso do outro. Os ela. Mas, como o encanto tinha hora para
discursos sobre bondade e amor ao próximo se desfazer, e Cinderela tem que deixar o
(Kehl, 2002) encobrem sentimentos de palácio imediatamente; nesse momento,
onipotência, de engrandecimento do eu à perde seu sapatinho de cristal, que é achado
custa do outro (Birman, 2006), apontado pelo príncipe que, a partir de então, tenta
como abandonado. encontrar o seu par. A moça em quem
coubesse o sapatinho seria a escolhida para
O que move o desejo de apadrinhar crianças ocupar o lugar de princesa. Novamente em
em situação de acolhimento institucional são trajes sujos e velhos, Cinderela não se parece
as lacunas subjetivas, a solidão, a carência como uma possível candidata ao posto. Mas o
afetiva, as perdas de entes queridos, os sapatinho vem ao seu encontro, e eles vivem
divórcios e as situações diárias que colocam felizes para sempre.
as pessoas em contato com um sofrimento
que desejam suturar, lacunas que são Pela síntese da história de Cinderela,
depositadas no outro-criança acolhida, que podemos perceber a presença de figuras
se traduz por uma relação não simbolizada, significativas na vida da bela jovem: sua mãe,
marcada pelo desalento (Birman, 2006), no madrinha e madrasta. A mãe, tida como
qual não há espaço para o outro. bondosa, admirável e frágil, a madrasta má,
representante da disputa pelo amor do pai,
Uma análise sucinta da história infantil de e a fada madrinha, a lembrança boa de uma
Cinderela permitirá uma discussão mais infância em que a mãe a completava em um
crítica e apurada da função de madrinha e laço de amor (Corso & Corso, 2006).
de sua vinculação à criança acolhida.
As figuras significativas que destacamos são,
Discussão na verdade, três faces maternas, ou seja, a
mãe ou substituta carrega consigo o lugar de
Mãe, madrasta e madrinha: as
mãe, madrasta e madrinha ao mesmo tempo
três faces maternas em uma (Corso & Corso, 2006). A mãe de Cinderela,
história sem fim que, na maioria das versões, morre antes
mesmo de a história começar, é a mãe que
A história infantil Cinderela atravessou os perdemos quando nos separamos dela, no
limites do tempo. Apesar de termos hoje tempo chamado, por Winnicott (1975), de
várias versões, sua essência permanece desilusão. Nesse momento, o bebê transita
(Corso & Corso, 2006). Trata-se de uma entre um estado de fusão com a mãe para
bela e bondosa jovem, que cedo perdera outro, em que se relaciona com ela como
a mãe e que, por sua vez, tivera seu lugar algo externo e separado dele. No estado de

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ilusão, a mãe é aquela que completa os filhos, pelas características ressaltadas na figura de
uma vez que eles acreditam estar de posse Cinderela, assim como no caso das crianças
dela. Essa mãe é perdida, tanto na história institucionalizadas, o que nos aproxima da
de Cinderela como na de cada um de nós rivalidade entre pais e filhos, em que estes,
como sujeitos de desejo, e, por isso, morre, por vezes, se sentem injustiçados, exigidos,
o que não significa que ela tenha se perdido assim como pouco amados pelos pais (Corso
em nosso imaginário. É através da figura da & Corso, 2006). Além disso, a exposição dessa
madrinha que essa imagem de boa mãe rivalidade desmistifica a intensa idealização do
poderá ser restituída. Corso & Corso (2006) se amor materno, mostrando suas ambiguidades
referem à madrinha como “o que decantou (Corso & Corso, 2006).
do antigo amor dos pais, agora morto,
desencarnado (...)” (p. 111). A madrasta vem As faces maternas encarnadas na figura de
para coroar uma relação mãe-filha em que mãe, madrasta e madrinha também nos levam
o pai aparece superposto à importância do a um lugar onde a função do apadrinhamento
bebê (Corso & Corso, 2006). deixa suas marcas. As madrinhas a quem tanto
nos referimos neste estudo se compõem desses
O olhar do príncipe para Cinderela nos vários elementos maternos, primeiramente,
remete ao olhar da mãe para seu bebê em como mulheres que buscam, na condição
estado de ilusão, e o dom da fada madrinha de amadrinhamento, um amparo para a dor,
é o de “restituir algo que uma filha já as perdas e a solidão, como que tomadas
teve, quando era objeto do olhar materno pela condição de filhas. Cada uma com
apaixonado de que os pequenos se nutrem” suas vivências particulares, as madrinhas
(Corso & Corso, 2006, p.111). Quando a se apossam desse lugar de fragilidade, de
madrinha surge, encontramos a possibilidade dependência e de necessidade de amparo,
de uma reconciliação com a dimensão e encontram na figura das crianças um porto
boa da mãe, identificando-se com os seus seguro, com todas as suas disposições iniciais
bons atributos. É essa figura que preserva de oferecer amor e carinho àquelas que
o lado bom da mãe da primeira infância. tanto precisam delas. No lugar de filhas, as
Por ter desejado demasiadamente o seu madrinhas sofrem de um desamparo, também
bebê, essa mãe idealizada ficaria isenta de sentido pelas crianças da instituição, afastadas
sentimentos hostis (Corso & Corso, 2006), do amor primeiro, nutrido pela mãe perfeita
daí a importância da função de madrasta, e boa, muitas vezes presente apenas no
a quem a criança pode dirigir toda a sua imaginário, mas perdida na infância.
agressividade, e que, na verdade, é a mesma
mãe, só que tomada por um lugar que frustra Encarnadas na posição de madrinhas de
e não apenas sacia. É fundamental pensarmos crianças institucionalizadas deparamo-nos
que a mãe que sustenta é a mesma mãe com uma figura maternal, bondosa, que se
que pune e a mesma que encanta. São as encanta e encanta a criança abrigada, como
respectivas faces maternas de mãe, madrasta a fada madrinha de Cinderela. A madrinha
e madrinha. eleva a criança a um lugar de importância,
de majestade, despertando nela a ilusão da
A história de Cinderela, ao enfatizar a criança onipotência perdida nos primórdios, e vice-
órfã de mãe e pouco amada pelo pai, versa. Apresenta-se, pois, uma relação dual
remete-nos ao lugar que ocupam as crianças que nos impulsiona à atitude de devoção
institucionalizadas, que se encontram na materna no início da vida psíquica. Assim,
posição de preteridas por suas famílias de a madrinha também se sente completa e
origem. A empatia pela história é despertada majestosa, como na primeiríssima relação

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mãe-bebê. Mas o corte feito pela figura queiram procurar os pais biológicos no
paterna irá barrar esse envolvimento ideal futuro, devido à ideia da preponderância
(Jerusalinsky, 2005), levando o olhar da do laço sanguíneo perante o laço afetivo
madrinha para outras direções. Só assim a (Vargas, 1998).
criança irá amadurecer, pois, se permanecer
nesse vínculo simbiótico, estará fadada a se Ao mesmo tempo em que frustra, a madrinha
perder. A relação entre a criança e a madrinha encarna novamente a função de fada
pode se findar em um acorrentamento de madrinha, que, por seu afeto, faz a criança
fundo perverso, em que uma seduz a outra reviver a ilusão da completude uma vez
para permanecer nesse lugar idealizado. experimentada, preservando os aspectos bons
da mãe perdida, que jamais reencarnará, mas
É importante destacar que a função paterna que não nos deixará esquecer que há algum
não precisa ser necessariamente a de um alento, confiança e repouso nessa relação.
pai que interrompa esse estado de ilusão,
mas a da própria madrinha a se desviar para Podemos perceber que a figura de destaque
outros lugares que apontarão a realidade, neste estudo é a madrinha. O padrinho fica
desmistificando a santidade exaltada nos como o pai de Cinderela, pouco falado,
discursos sobre o amor materno. Nesse pouco realçado, como vemos ainda nos dias
momento, a criança pode se sentir frustrada, de hoje, quando nos perguntamos: Onde
abandonada, mas desejosa de reencontrar o está o pai? O pai de Cinderela não aparece
paraíso perdido. para protegê-la em momento algum da
história. Apresenta-se apenas como um servo
Quando o estágio de idealização se rompe, das vontades da madrasta, indiferente ao fato
temos algo como a madrasta, figura que de a filha ser tratada como escrava. Isso nos
enxerga a criança como ela realmente é, leva a pensar na função paterna, atualmente,
e não em uma condição idealizada, assim como a função do pai soberano, detentor da
como a criança abrigada por vezes percebe a palavra e protetor, que aparece nas vestes de
madrinha como uma madrasta. Esta é aquela padrinhos que tampouco se fazem presentes,
face da madrinha que frustra, quando não que se envolvem muito menos nas relações
busca a criança para passear todo fim de com as crianças abrigadas que as madrinhas,
semana, aquela que pune, quando a criança o que merece outro estudo.
faz algo que foge às suas expectativas. É a
mesma mãe nossa de cada dia, mas sob as É importante considerarmos que os papéis de
vestes de maldade, descaso e desatenção mãe, madrasta e madrinha não são fixos, nem
ante a figura frágil da criança. A madrasta precisam estabelecer uma ordem para se dar.
representa, também, a maldade da vida Eles vão e vêm, tal como na relação ambígua
que se avizinha pela instituição fria, que visa da criança abrigada com seus padrinhos.
aos seus interesses como mantenedora de O risco que corremos é o de reduzir as
condições físicas e materiais para as crianças. madrinhas à condição de madrastas más,
Há ainda a desconfiança na genética que e de ignorarmos toda a importância de seu
atormenta o pensamento das madrinhas envolvimento com a criança em seu processo
quando fantasiam sobre a possível adoção de de amadurecimento psíquico, mesmo que
suas afilhadas. Estas, na face de madrastas, cercado de limitações no que diz respeito a
denunciam as imperfeições das crianças uma real sustentação de um laço simbólico
e se atemorizam com a possibilidade de entre as madrinhas e as crianças.
que elas carreguem, em sua carga genética,
psicopatologias graves ou mesmo que elas

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Conclusões despertado em uma relação idealizada,


como a das madrinhas e crianças em situação
A análise das entrevistas com madrinhas de acolhimento institucional. A grande
de crianças institucionalizadas possibilitou preocupação que levantamos ao longo deste
uma avaliação das relações vinculares estudo é a sustentabilidade dessa relação.
constituídas e constituintes do processo de Trata-se de uma questão que não pode ser
apadrinhamento. Dentre eles, havemos de simplesmente respondida, mas que precisa
destacar o lugar da criança como depositária ser percorrida por todos aqueles que se
de aspectos conflitivos dos padrinhos, que interessam pela dinâmica que circunda o
projetam nas crianças aspectos dos quais campo de acolhimento à infância. Temos
querem escapar em função da angústia que um longo caminho pela frente, no que diz
despertam, aspectos como a necessidade respeito a compreensões e mobilizações que
de ser amado e exaltado, mascarados pela favoreçam ao máximo o desenvolvimento
condição bondosa, à espera de ser visto infantil além de condutas mais saudáveis
e tomado em consideração pelo outro, e nesse contexto.
a busca pela felicidade, em que o outro é
usado como um meio para alcançá-la, na Analisar as relações que se dão em um
ilusão de que irá preencher tudo aquilo campo institucional, atravessadas por linhas
que lhe falta. Por essas razões, o outro interrompidas, leva-nos a visitar lugares de
é colocado na posição de abandonado, angústia, de desamparo, de acusação, de
daquele que não tem, em que é instaurada isenção e de salvação. Somos tomados por
a falta, enquanto o padrinho aparece como manifestações psíquicas de onipotência,
a figura que pode salvar a criança dos pois cada um que se debruça sobre essa
infortúnios, desconsiderando o seu próprio realidade da infância abrigada percebe-se
desamparo. Na realidade, o padrinho quer responsável por mudar um contexto de
ser salvo, quer ser também apadrinhado tamanha complexidade, entremeado de
pela criança. Em contrapartida, a criança inúmeras forças de poder. O que esperamos
se faz depositária de todos esses aspectos, é que sejam apenas visitas, que não criemos
colocando-se em um papel de vítima, que moradia nesses lugares, ora confortáveis, ora
precisará sempre do outro para preencher tão obscuros, que possamos transitar por eles
suas próprias lacunas. Essa relação se faz extraindo reflexões que nos sirvam de suporte
coroar em um aprisionamento vincular de para compreender, e então atuar no sentido
angústias impensáveis e indizíveis, que se de promover mudanças que beneficiem
ancoram no tempo, demarcando desatinos, a lógica institucional vigente. Para isso,
frustrações e dor. havemos de nos descolar dos pré-conceitos aí
estabelecidos e legitimados que nos convidam
Pudemos refletir sobre questões fundamentais a um posicionamento moral em relação à
da existência humana, como o narcisismo, função do apadrinhamento. Como vimos na
o desamparo e seus desdobramentos discussão sobre as três faces maternas (Corso
em forma de masoquismo, perversão, & Corso, 2006), as madrinhas não são boas
onipotência, manifestações do psiquismo ou más, são figuras que se misturam e se
do sujeito em busca de ser amado, cuidado refazem a todo momento, ora sob a face da
e valorizado pelo outro (Freud, 1914/1996), mãe saudosa, ora da madrinha ideal, ora da
por vezes, esbarrando nos interditos do madrasta castradora; uma perpassa a outra,
superego, valendo-se do que for preciso caracterizando a ambiguidade marcante nas
para fazer o outro submisso ao gozo, relações de apadrinhamento, e cada uma tem

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sua função essencial ao desenvolvimento pode permitir que as instituições responsáveis


psíquico infantil. O risco é a fixação em não sejam tomadas por uma visão limitadora
uma relação idealizada, acorrentando os e confusa acerca dos papéis das pessoas que
personagens dessa trama a uma busca se interessam por atender às necessidades
incessante por um gozo que, por jamais das crianças acolhidas, clarificando e
poder ser pleno, poderá também nunca desmistificando o processo em benefício de
chegar ao fim. todos os que estão nele envolvidos.

Diante de tal complexidade, podemos Levemos adiante este estudo, para que ele
perceber a importância de estarmos possa amparar todos aqueles que lidam com
imersos na busca pela compreensão da um fenômeno tão ardiloso como esse, e que
função do apadrinhamento e de outras ele faça emergir novos desejos, pois são eles
formas vinculares no contexto institucional, a fonte de todo conhecimento.
porquanto a significação dessa realidade

Karollyne Kerol de Sousa


Mestre em Psicologia da Intersubjetividade pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia,
Minas Gerais, MG – Brasil.
E-mail: karollyne_sousa@hotmail.com

João Luiz Leitão Paravidini


Doutor em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas, Professor Associado do Instituto de Psicologia
Universidade Federal de Uberlândia, MG - Brasil.
E-mail: paravidini@ufu.br

Endereço para envio de correspondência:


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Recebido 23/8/2010, 1ª Reformulação 5/3/2011, Aprovado 5/5/2011

Vínculos entre Crianças em Situação de Acolhimento Institucional e Visitantes da Instituição


553
PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
Karollyne Kerol de Sousa & João Luiz Leitão Paravidini
2011, 31 (3), 536-553

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