Você está na página 1de 18

REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

INTELECTUAIS NEGRAS NO BRASIL: INCORPORANDO TRADIÇÕES


AFRO-BRASILEIRAS NA ACADEMIA1

Agatha Silvia Nogueira e Oliveira

University of Texas at Austin2

Resumo

Neste artigo, analisa-se como a presença da mulher negra e a introdução de tradições de matriz
africana nos estudos de teatro e dança podem contribuir para problematizar o eurocentrismo e a
hegemonia de gênero e racial na academia brasileira. Baseia-se aqui em teóricas feministas
negras para revelar como o sexismo e racismo atuam construindo mitos que afastam a mulher
negra do reino do intelecto e, consequentemente, do meio acadêmico e inspira-se nos trabalhos
desenvolvidos pelas artistas, teóricas, e educadoras Inaicyra Falcão dos Santos e Evani Tavares
Lima nas Escolas de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas -UNICAMP e
Universidade Federal da Bahia -UFBA respectivamente, a fim de demonstrar as contribuições
que metodologias alternativas baseadas nas tradições de matriz africana podem trazer para o
artista em formação e para a academia.

Palavras chave: Eurocentrismo. Mulher negra. Academia. Metodologias alternativas. Tradições

Abstract

In this paper, I analyze how the presence of black women and the introduction of African
traditions in studies of theater and dance can contribute to problematize Eurocentrism and the
hegemony of gender and race in Brazilian academia. Fostered by black feminist theorists I seek
to reveal how sexism and racism operate building myths that keep black women distant of the
realm of the intellect and hence academia. This article is also inspired by the work undertaken by
artists, theorists, and educators Inaicyra Falcão dos Santos and Evani Tavares Lima in the

1
Trabalho apresentado no Congresso de Pesquisa em Dança -Riverside/CA ( November/2013 ).
2
Doutoranda no programa de Estudos da Performance como Prática Pública no Departamento de Teatro e Dança da
University of Texas at Austin. Mestra em Artes pelo Departamento de Estudos da Africa e da Diáspora Africana da
University of Texas at Austin. Mestra em Ciência das Artes pela Universidade Federal Fluminense.

Vol. 02, no 02
136
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

Schools of Performing Arts at the State University of Campinas UNICAMP and Federal
University of Bahia -UFBA respectively, to demonstrate the contributions that alternative
methodologies based on the traditions of African origin can bring out the artist in training and the
academia.

Key words: Eurocentrism. Black women. Academia. Alternative Metodologies. Traditions

Introdução

Para pesquisadores, que estão continuamente investigando e revisitando suas próprias práticas
acadêmicas, não é raro um interesse especial em filosofias pedagógicas e metodologias de
ensino. Um olhar atento para identificar quando conteúdos e métodos precisam ser reavaliados e
reelaborados é fundamental no processo de atualização da estrutura do ensino superior. No
intuito de tornar o conhecimento acessível a diferentes grupos sociais e de contemplar a diversa
gama de informação que circunda o universo acadêmico busca-se decentralizar estudos, e, para
tanto, revela-se necessário questionar hierarquias e hegemonias no ensino elaborando-se
estratégias mais plurais e que dialoguem com a cultura na qual a academia está imersa. Nesse
sentido, o ensino torna-se uma ferramenta importante para problematizar pensamentos
fundamentados em teorias exclusivistas que ao reforçar estruturas binárias dificultam a inclusão
de indivíduos historicamente e socialmente marginalizados bem como de filosofias e conteúdos
não ocidentais.

O ensino revela-se um importante veículo de informação e formação de consciência política que


desafia e transcende hierarquias raciais, de gênero, de classe, e sexuais. Inspirados pelo olhar
sensível das intelectuais, artistas, e educadoras Inaicyra Falcão dos Santos e Evani Tavares Lima,
neste artigo analisa-se como a introdução de uma filosofia de educação que busca unir
conhecimentos científicos e empíricos e de tradições de matriz africana nos estudos de teatro e
dança podem contribuir para problematizar o eurocentrismo e a hegemonia de gênero e racial na
academia brasileira. No Brasil, as escolas de artes em geral ainda priorizam e universalizam os
estudos das danças de matriz europeia. Em consequencia, as técnicas de treinamento corporal e
preparação física mais usadas na academia seguem padrões europeus seja em relação à dança

Vol. 02, no 02
137
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

clássica, moderna ou contemporânea. Em geral, as informações que vem de fora, são assumidas
como fundamentais restringindo as possibilidades de experimentações e práticas dialógicas que
contemplem também traços das culturas locais.

As principais questões levantadas aqui são: Como filosofias pedagógicas e metodologias de


ensino podem contribuir para descentralizar teorias e práticas na academia brasileira? Como a
inclusão ou negação de tradições e técnicas alternativas podem limitar ou ampliar possibilidades
no processo de construção de identidade e estética artística? Nesse trabalho, argumenta-se que as
metodologias alternativas podem abrir espaços para a produção de um corpo de conhecimento
mais plural na academia e que dialogue com o universo cultural e as experiências vividas. Ao
reconhecer a necessidade de flexibilização dos métodos de ensino e formação artística, e
estimulando a valorização de elementos de matriz africana nos estudos de corpo e movimento as
criações e produções artísticas refletem universos pessoais e coletivos, história, memória, e
ancestralidade.

Aqui explora-se inicialmente, como o sexismo atua construindo mitos que afastam a mulher, e
principalmente a mulher negra do reino do intelecto e consequentemente da academia (HOOKS,
2010; PACHECO, 2011). Como resquícios da escravidão a mulher negra ainda é vista como “só
corpo, sem mente” (PACHECO, 2011, p. 1). Tal fato aliado ao pensamento cartesiano dominante
na academia contribui para a escassez de intelectuais negras nos cursos de teatro e dança, apesar
de nestes cursos a presença feminina superar a masculina. Dois outros fatores associados ao
afastamento da mulher negra da academia brasileira são: o eurocentrismo, e a folclorização das
manifestações de matriz africana.

Num segundo momento, a partir da consideração feita por Joy James (1993) em relação ao uso
de narrativas individuais como fontes de estudo que representam história de resistência, atuação
política, e memória comun revela-se como Inaicyra Falcão dos Santos e Evani Tavares Lima
descentralizam estudos de dança e corpo nas Escolas de Artes Cênicas da UNICAMP entre os
anos de 1996 e 2010 – Santos - e da UFBA entre os anos de 2000 e 2002 - Lima. Santos e Lima
têm trabalhado para revelar novas possibilidades estéticas na dança e no teatro e, ao fazê-lo, têm
também desvendado a hierarquia do conhecimento que prioriza métodos pedagógicos ocidentais
europeus na academia brasileira. Além disso, a presença destas duas intelectuais negras na

Vol. 02, no 02
138
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

academia brasileira serve de estímulo para outras mulheres negras interessadas em ocupar esse
espaço afirmando-se enquanto intelectuais, artistas e educadoras capacitadas para atuar e
contribuir para a formação de indivíduos e construção de um corpo de conhecimento mais
amplo.

Santos, atualmente vinculada à Escola de Dança da UFBA, é Doutora em Educação pela


Universidade Federal de São Paulo, Brasil, e Mestra em Artes Teatrais pela Universidade de
Ibadan, na Nigéria. Professora de dança, artes cênicas, coreógrafa, dançarina e cantora lírica,
Santos investiga as tradições africanas e afro-brasileiras como elementos fundamentais para a
composição de um método de "dança- arte- educação pluricultural” (SANTOS, 2006). Ela
também estudou na Universidade Obafemi Awolowo em Ifé, na Nigéria, e no Instituto Laban em
Londres, Inglaterra. Sua metodologia de ensino baseia-se na tradição Iorubá e na mitologia dos
Orixás, a fim de facilitar a conexão dos atores e dançarinos com sua memória ancestral afro-
brasileira. Em seu trabalho, Santos defende o reconhecimento e valorização da pluralidade dos
corpos brasileiros. Desse modo ela inspira e estimula novas produções no meio acadêmico.

Lima está atualmente realizando Pós-doutorado na Escola de Artes Cênicas da UFBA. Ela foi
orientada por Santos durante seu Doutorado na UNICAMP (2006-2010) no qual desenvolveu
pesquisa sobre O Tearo negro do Teatro Experimental do Negro e do Bando de Teatro Olodum.
Nesse período, Lima também realizou uma pesquisa na Universidade de Michigan entre os anos
de 2007-2008. Durante o seu mestrado em Artes Cênicas na UFBA (2000-2002), Lima começou
a desenvolver sua pesquisa com foco no uso da Capoeira Angola como treinamento para o ator3,
tendo ministrado cursos para alunos da graduação da escola de Artes Cênicas na UFBA como
parte prática da sua pesquisa. O propósito de Lima nessa investigação era incorporar a Capoeira
Angola como método de treinamento do ator com o objetivo de capacitá-lo para desenvolver e
investigar novas estéticas no palco.

A IMPORTÂNCIA DE DESCENTRALIZAR ESTUDOS NA ACADEMIA BRASILEIRA

3
Título do seu primeiro livro editado pela Fundação Pedro Calmon em 2008.

Vol. 02, no 02
139
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

Ao observar a atuação de intelectuais negras na academia brasileira, entende-se que este é um


espaço em que a voz delas tem sido “subalternizada” pelos projetos colonialista, imperialista,
escravista, miscigenista, e nacionalista. Ana Claudia Lemos Pacheco observa:

Nas ultimas décadas do século XX e nesta primeira década do século XXI, o


desenvolvimento de estudos e pesquisas na academia sobre as mulheres negras cresceu
significativamente. Entretanto, numa análise bastante realista, o reconhecimento e a
legitimação das intelectuais negras nas academias brasileiras ainda continuam
‘marginalizadas’(PACHECO, 2011, p. 5)

A autora reconhece as recentes conquistas de intelectuais ativistas negras e as trasnformações na


academia brasileira, no entanto, enfatiza o fato de que a produção de intelectuais negras ainda é
amplamente ignorada, silenciada e invizibilizada nos cânones acadêmicos. Diante das
dificuldades encaradas por uma intelectual negra baiana, ativista do Movimento Negro
Brasileiro4 observada por ela, Pacheco direciona a questão de Gayatri Chakravorty Spivak
(2010) às intelectuais negras. “Pode o subalterno falar?” Para pensar tal questão, Pacheco
considera a interseccionalidade nos modos de opressão em relação não só à raça e gênero, mas
também em relação à classe ou à condição econômica que neste caso relega o Brasil a um país
subdesenvolvido e de terceiro mundo. A realidade da intelectual negra brasileira que resolve
investir na sua carreira enquanto teórica é que ela tem que enfrentar diversos obstáculos como,
por exemplo, o não reconhecimento como teórica, mas usualmente apenas como ativista
(JAMES, 1997, p. 42), as oposições políticas internas, os conflitos e questionamentos nos
movimentos sociais, além do isolamento emocional. (PACHECO, 2011)

Tanto como objeto de estudo ou como pesquisadora, a mulher negra ainda carrega heranças
históricas sendo genericamente conectada à funções de servitude e afastada do mundo das ideias
e da capacidade de contribuição não só intelectual mas também política. De acordo com Bell
Hooks, é clara a “desvalorização sexual da mulher negra e noções sexistas racistas que sugerem
que as mulheres negras não são capazes de pensamento racional" (HOOKS, 1995, p.468;
tradução nossa5). No Brasil, tais noções foram reafirmadas pelo discurso Freyriano da

4
A autora utiliza nome fictício ao descrever a trajetória de tal intelectual. (PACHECO, 2011, p.6 )
5
“sexual devaluation of black womanhood and racist sexist notions that black women are not capable of rational
thought” (HOOKS,1995, p. 468)

Vol. 02, no 02
140
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

democracia racial6 ou de uma excepcionalidade brasileira em relação à raça, e são reatualizadas


no imaginário social a cada vez que - em eventos como Carnaval, por exemplo - clama-se por
uma união popular, multicutural e multiracial. Lélia Gonzales (1995) descreve claramente como
a mulata é a “rainha”durante o Carnaval. Gonzales afirma que através da figura da mulata,
símbolo da miscigenação, na performance da democracia racial a mulher negra desempenha
novamente o papel principal de reprodutora, o que implica na exposição do seu corpo para
consumo visual e indiretamente a induz à manter relações sexuais com o homen branco para
cumprir sua função no projeto da miscigenação. No entanto, fora desse parênteses, no caso o
Carnaval, as histórias de discriminação, racismo, e desvalorização intelectual e cultural negra
tém-se revelado parte de um “amplo esforço ideológico criado para justificar o autoritarismo e
oligarquia no Brasil” (ANDREWS, 1996, p. 484) no qual a mulher negra continua exercendo
papel coadjuvante servindo a casa e a família branca e cumprindo funções que vão do serviço
doméstico à fornicação.

Além do modo como sexismo e racismo contribuem para a ausência de mulheres negras no
imaginário social como intelectuais, as teorias determinista também contribuem para a
inferiorização da mulher negra à medida em que entende que as funções ligadas ao corpo e
espírito são inferiores às funções ligadas ao raciocínio. De acordo com Audre Lorde:

Nós mulheres temos sido induzidas a desconfiar do poder que emerge de um


conhecimento profundo e não-racional. Nós temos sido advertidas contra isso toda vida
pelo mundo masculino que valoriza este sentimento profundo o suficiente para mater as
mulheres exercitando esse poder em benefício dos homens, mas que teme demais essa
mesma profundidade para examinar as possibilidades desta beneficiar elas próprias.
(LORDE, 2007, p. 53-54; tradução nossa)7 .

6
Uma identidade nacional singular, ou raça brasileira como resultado de uma relação "harmônica" entre brancos,
negros e indígenas , ou, mais especificamente , entre o senhor - homem branco e a escrava - uma mulher negra ou
indígena. Este modelo de relação relega a mulher negra ao reino da servitude e de objeto. Ao descrever a
miscigenação como resultado de uma relação " harmônica ", o cientista social Gilberto Freyre legitima a dominação
sexual dos homens brancos sobre mulheres negras , mesmo que este ocorresse através da violência e estupro.
(MUNANGA, 1999; GONZALES, 1995) O argumento de Freyre mercantiliza tanto a mulher negra quanto a
mulata, fruto da miscigenação; a mulher negra como a trabalhadora reprodutora e a mulata como o símbolo da
fornicação (BAIRROS, 1991).
7
“As women, we have come to distrust that power which rises from our deepest and nonrational knowledge. We
have been warned against it all our lives by the male world, which values this depth of feeling enough to keep
women around in order to exercise it in the servisse of men, but which fears this same depth too much to examine
the possibilities of it within themselves.” (LORDE, 2007, p. 53-54)

Vol. 02, no 02
141
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

Lorde explora um potencial erótico feminino como fonte de transformação e auto-


empoderamento da mulher negra. Para a autora a sexualidade e o erótico afloram de um eu
profundo e de uma relação íntima inicialmente consigo mesma e com seus sentimentos e desejos.
Nesse sentido, o reconhecimento e valorização da sexualidade feminina tornam-se um ato
espiritual, físico, intelectual e político. Lorde afirma que ela “está falando da necessidade de
reacessar a qualidade de todos os aspectos de nossas vidas e trabalhos, e de como nos movemos
em direção a e através destes aspectos” (LORDE, 2007, p.55; tradução nossa8) comumente
suprimidos no sistema capitalista. O sistema estimula indivíduos a priorizar as necessidades
materiais de sobrevivência e trabalho suprimindo certas necessidades físicas e emocionais e
“rouba nosso trabalho do seu valor erótico” (LORDE, 2007, p. 55; tradução nossa 9) O trabalho
deve ser um ato de prazer e de completude. Santos, por exemplo, revela que viveu o conflito
entre seguir seu o desejo profundo de trabalhar como profissional da dança e a cobrança por um
retorno financeiro requerido pelo sistema. Ao completar sua graduação, Santos se deparou com a
dificuldade de obter um retorno financeiro no Brasil, mas afirma: “dançar era a minha única
emoção profunda, a minha religião, o meu prazer de ser.” (SANTOS, 2006, p. 28). Mesmo diante
do conflito a autora não se distanciou do “valor erótico” do seu trabalho, persistiu trabalhando
como dançarina e logo começou a viajar com companhias de dança brasileiras, se apresentar em
diferentes países e equilibrar necessidades financeiras, espirituais, e emocionais.

O conceito de erótico que Lorde propõe clama pelo reconhecimento e valorização de todos os
diferentes aspectos que constituem o indivíduo para uma atuação deste no mundo enquanto ser
inteiro e múltiplo. A autora enfatiza a importância e o real valor dos atributos ligados ao físico,
espiritual e emocional, frequentemente mais associados à mulher e inferiorizados num sistema
que segue o pensamento cartesiano. Tal fato explica a excessão, ao se tratar da presença de
mulheres no meio acadêmico, quando se trata das escolas de dança. Associam-se as artes do
corpo e movimento a valores intelectuais inferiores e admite-se assim uma maior aptidão das
mulheres para exercer tal profissão. Desse modo justifica-se o elevado número de mulheres nas
escolas de dança no ensino superior. No entanto, ao observar-se através do conceito de

8
“I am speaking here of the necessity of reassessing the quality of all the aspects of our lives and of our work, and
of how we move toward and through them.” (LORDE, 2007, p. 55)
9
“…the principal horror of such a system is that it robs our work of its erotic value.” (LORDE, 2007, p. 55)

Vol. 02, no 02
142
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

intersecionalidade10 (CRENSHAW, 1993), as formas de opressão e exclusão, percebe-se a


excassez no número de mulheres intelectuais negras integrando o corpo docente nesses espaços
por uma herança histórica que continua arraigada ao imaginário social. Além da herança
histórica da mulher negra destacam-se dois outros fatores que contribuem para a ausência de
mulheres negras compondo o corpo docente das escolas de dança no ensino superior: o
eurocentrismo e a folclorização das danças de matriz africana.

Apesar do fato de que "o Brasil é o segundo país com a maior população negra no mundo,
ultrapassando-o apenas a Nigéria" (LEBON, 2007, p. 52; tradução nossa)11 o eurocentrismo na
academia brasileira ainda é um obstáculo para a implementação de pedagogias alternativas de
origem afroameríndia. De acordo com James (1993), eurocentrismo não é necessariamente o
resultado da presença de descendentes de europeus. "Em uma sociedade e cultura, onde o branco
europeu representa tanto a manifestação ideal quanto universal da civilização, sem surpresa,
tanto 'Negro' quanto 'Branco' adotam ou adaptam-se a este paradigma como visão de mundo"
(JAMES, 1993, p. 119; tradução nossa12). Em sua experiência em instituições majoritariamente
brancas, a autora observa que existe uma intolerância em relação à negritude e feminilidade que
os relega ao reino do selvagem, exótico, e à invizibilização. Em contraste, admite-se que
branquitude e masculinidade são padrões supremos a serem imitados e seguidos.

Como exemplo de como o eurocentrismo atua no campo da dança, Santos observa:

Na Escola de Dança [UFBA], o contato com as experiências dos professores e


coreógrafos, Clyde Morgan na interpretação e; Margarida Parreira na organização,
disciplina e pesquisa direcionaram o meu trabalho artístico; todavia, o currículo de
curso dava ênfase aos valores das técnicas corporais euro-americanas. Eu sentia a
necessidade de algo mais profundo. A tradição cultural brasileira deveria fazer parte da
formação profissional do bailarino, coreógrafo e intérprete. (SANTOS, 2006, p. 27)

10
Crenshaw utiliza o conceito de interseccionalidade para denotar os vários caminhos em que raça e gênero se
cruzam e interagem produzindo as múltiplas dimensões nas experiências das mulheres negras. (CRENSHAW, 1993,
p. 1244)
11
“Brazil is the second only to Nigeria in the world in terms of the size of the black population” (LEBON, 2007, p.
52).
12
“In a society and culture where the white European represents both the ideal and universal manifestation of
civilization, unsurprisingly, ‘Black’ as well as ‘white’ people adopt or adapt this icon as worldview”(JAMES, 1993:
119).

Vol. 02, no 02
143
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

No depoimento de Santos evidencia-se que uma das implicações da perpetuação do


eurocentrismo na academia brasileira é a negligência de tradições culturais afro-brasileiras.
Mesmo com iniciativas que facilitaram o contato de Santos com o coreógrafo Clyde Morgan, que
nos anos 1960 estimulou o intercruzamento entre a dança moderna e os elementos das danças
populares e ritualísticas de matriz africana em trabalhos coreográficos desenvolvidos por ele ao
dirigir o GDC- Grupo de Dança Contemporânea da UFBA, entre os anos 1960 e 1970, a grade
curricular não contemplava as danças brasileiras e com o tempo, passaram a ser contempladas
numa proporção pequena em relação ao que se vivencia no universo cultural baiano. Entre os
anos 1990 e 2000 o currículo do curso incluia apenas a disciplina Dança Folclórica (I e II) que
contemplava elementos das danças brasileiras de matriz africana, no entanto, a base técnica
corporal da Escola continuava a ser euro-americana. Recentemente, outras disciplinas que foram
incluídas e estão mais diretamente relacionadas com a cultura brasileira são optativas como é o
caso de Dança Folclórica II, História da Dança Brasileira, Cultura Brasileira, Cultura Baiana e
Antropologia do Folclore. O fato de essas disciplinas tratarem da cultura brasileira aponta para
uma possível mudança, mas não significa necessariamente que tais disciplinas tenham foco nas
manifestações de matriz africana.

Partindo da premissa de que as danças de tradição africana são entendidas como “folclórico” ou
“baixa arte”, observa-se a reminiscência de um olhar folclorista que posiciona alta cultura e
cultura popular, subalterno e hegemônico, tradicional e moderno como polos opostos e
excludentes (CANCLINI, 1989, p. 207 ). Neste cenário, as manifestações e danças populares de
matriz africana tendem a ser vistas como práticas isoladas no tempo e no espaço e que devem ser
investigadas apenas como práticas de grupos específicos em determinadas regiões que
conseguem manter-se alheias às “transformações tecnológicas e culturais decorrentes da
combinação da microeletrônica com a telecomunicação” (CANCLINI, 2008, p. 215). O que Canclini
afirma é que as culturas tradicionais estão transformando-se e acompanhando os avanços da
contemporaneidade, portanto não correm risco de serem suprimidas pelo processo de
modernização porque elas fazem parte de um mesmo universo. Do mesmo modo, Marilena
Chauí (1986) observa numa perspectiva gramisciana que a cultura popular não deve ser vista
como oposta e desconectada da cultura dominante ou hegemônica, mas é parte dela (OLIVEIRA,

Vol. 02, no 02
144
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

2012, p. 21). Nesse sentido não existiria motivo para separar e minimizar o potencial técnico
corporal, expressivo, criativo e cênico das danças de matriz africana, nem para categorizá-las.

O que Santos e Lima fazem é aliar o conteúdo filosófico, histórico, político e social adquiridos
nas suas vivências com a cultura Iorubá e a Capoeira Angola, a elementos técnico- corporais e
expressivos estudados no campo da dança e do teatro para ampliar as possibilidades de atuação
artística. Os estudos do corpo e do movimento desenvolvidos por Rudolph Laban13, por exemplo,
servem de referencial para Santos repensar o gestual e os movimentos presentes nas danças dos
Orixás, mais especificamente na dança Batá, e outras danças afro-brasileiras como o Samba de
roda, maculelê, capoeira, dentre outras. Como sua aluna afirma:

Não pesquisamos o samba enquanto objeto folclórico , mas sim enquanto instrumento
enriquecedor do nosso fazer artístico. Que juntemos às seculares técnicas americanas e
européias, a sabedoria presente na arte da dança popular, que é a própria caracterização
do ser brasileiro (SANTOS, 2006, p. 112 ) .

No caso de Lima, os estudos de Eugênio Barba sobre uma Antropologia Teatral informaram sua
investigação da Capoeira Angola. Lima pensa numa pré-expressividade da capoeira e identifica
princípios apontados por Barba como o equilíbrio e o equilíbrio precário, a dilatação, e o
princípio da equivalência presentes no treinamento da Capoeira. A Capoeira aborda tais
princípios de modo diferenciado do utilizado por Barba, ampliando as possibilidades de
exploração do ator em relação ao corpo e movimento.

Um fator fundamental para a profundidade dos trabalhos desenvolvidos por Santos e Lima é o
conhecimento empírico das práticas ou a vivência como pesquisadoras praticantes mais do que
como pesquisadoras observadoras. Santos encontra na cultura Iorubá uma riqueza mitológica que
lhe fornece subsídios para a elaboração de uma proposta de preparação corporal e artística
inspirada pela tradição transmitida por seus ascendentes no Brasil e com a qual conviveu durante

13
Rudolph Van Laban criou um Sistema de Análise de Movimento hoje conhecido como “Análise Laban de
Movimento” ou “Labananálise”. Tal Sistema nasceu da vontade de encontrar uma maneira de manter vivas e
arquivar obras de dança que, a partir de então, poderiam ser escritas numa linguagem universalmente compreensível.
O Sistema Laban de Análise do Movimento é formado por quatro pilares: estudos do corpo, esforço, espaço e forma.
Laban identifica tais componentes como fundamentais para a realização do movimento, e aprofunda sua pesquisa
em três vertentes que denomina: Notação ou Labanálise – ligada ao registro do movimento; Corêutica ou Coreutics
– voltada para a orientação do corpo-movimento no espaço; e Eucinética ou Eucinetics – vinculada à energia
aplicada para a execução do movimento. (OLIVEIRA, 2012, p. 38)

Vol. 02, no 02
145
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

seis anos na Nigéria. Santos procura aliar técnica e história de vida para pensar a arte da dança.
Ela afirma:

Meu objeto de investigação tem sido a tradição cultural e a criatividade,


porém devidamente compreendidas como expressão da diversidade
corporal dos povos que vivem no Brasil e que tem colaborado para este
tecido social complexo, colorido, belo, e tão mal compreendido. A
homogeneidade de expressão é destruidora, sendo, por isso,
indispensável compreender a pluralidade cultural brasileira. (SANTOS,
2006, p. 35)

Ao tratar de pluralidade a autora enfatiza a necessidade de esclarecer e divulgar tradições de


matriz africana que “diz[em] respeito, direta e indiretamente, a todos que vivem no Brasil”
(SANTOS, 2006, p. 36). A autora encontra na cultura e mitologia Iorubá a possibilidade de
reafirmar história pessoal na vivência da tradição através da recriação artística dos gestos e
princípios revelando o quanto as autobiografias vão além de narrativas pessoais porque elas
revelam através da história de um indivíduo a história de muitos e aponta questões, sociais,
históricas e políticas que afetam uma comunidade como um todo e não só um indivíduo isolado
(JAMES, 1993). Do mesmo modo, ao tomar a sua própria experiência com a Capoeira como
base para o treinamento para a cena Lima procura aliar técnica às “suas necessidades e
especificidades culturais, o que possivelmente conduzirá a uma melhor compreensão de si,
autocrítica, visão de mundo e diálogo com o universo circundante” (LIMA, 2010, p. 19).

James chama atenção para um risco no uso das tradições de matriz africana ou indígenas, o risco
destas servirem apenas para auto-promoção ou em interesse próprio e desconectado de um saber
empírico. Ao falar da introdução de tradições africanas na academia norte-americana, James
afirma:

Estórias Afro-americanas podem ser contadas, músicas cantadas e danças


dançadas não em benefício da comunidade e dos ancestrais mas para a

Vol. 02, no 02
146
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

exibição e auto-promoção e para entreter empregadores. (JAMES, 1993,


p. 42; tradução nossa)14

James faz referência à produção e repercussão do documentário dirigido por Maya Deren Divine
Horsemen: The Living Gods in Haiti, que promoveu Deren no meio artístico e acadêmico
durante os anos 1980, mas revelava a inexistência de uma real ligação com aquelas comunidades,
crenças e rituais.(JAMES, 1993, p. 42) A formação de produtores culturais e profissionais que
tém como objetivo a promoção e a venda de shows folclóricos, por exemplo, funciona como
entrenenimento para a indústria de turismo e eleva os nomes dos que divulgam estes grupos, mas
não trazem nenhum real benefício aos que perpetuam e praticam tais tradições.

Como as tradições africanas fazem parte da história de vida e experiências diárias de um grande
número de brasileiros, e, considerando-se que a produção cultural tem sido uma importante
estratégia de sobrevivência para os afrodescendentes (AFOLABI, 2009, p. 1), a negação destas
influências equivale a uma negação das identidades culturais e raciais Eurocentrismo na
academia brasileira, certamente contribui para o seu isolamento. De acordo com Lima, o Teatro
contemporâneo tem demandado uma heterogeneidade nos métodos de treinamento que
contemplem a diversidade corporal, cultural, teórica e filosófica.

Ela afirma:

De fato, se olharmos em perspectiva, pode-se observar que são as


orientações que primam pela heterogeneidade de abordagens que têm
enriquecido a arte do ator ao longo de toda história. A diversidade das
técnicas e os instrumentos para o ator têm sido, naturalmente, tão
diversos quanto ele. Isso significa que a visão que restringe o olhar
apenas para um referencial branco-europeu, por exemplo, segue na
contra-mão do que poderia ser chamado de bom-senso. Por essa razão,
enegrecer e indianizar essa visão será sempre uma maneira de ampliar e
subverter esse “olhar branco”de mão única. (LIMA, 2008, p. 18)

14
“African (American) stories can be told, songs sung, dances danced not for the benefit of the community and
ancestors but for the purpose of exhibition and self-promotions to entertain employers.” ( JAMES, 1993, p. 42)

Vol. 02, no 02
147
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

Santos (2006) e Lima (2008) questionam os centrismos que limitam e estreitam tanto a atuação
de mulheres negras na academia brasileira quanto a inclusão de elementos de matriz africana.
Através da introdução de tradições e filosofia africanas e afro-brasileiras como ferramentas
eficazes no treinamento do ator e do dançarino e na criação artística, elas criam a possibilidade
da cultura popular afro-brasileira, relegada à esfera do primitivo e folclórico, ser entendida como
epistemologia.

INCORPORANDO TRADIÇÕES AFRICANAS: PROPOSTAS METODOLÓGICAS

Santos e Lima operaram como o que James chama de "pensadores vivos" (1993, p. 34).
Pensadores vivos são contadores de histórias que por via oral ou literal integram teoria e
filosofia, o que significa a prática de "viver nossos pensamentos e contar nossas vidas,
simultaneamente refletindo sobre isso" (1993, p. 35; tradução nossa15). Ao descrever sua própria
trajetória na dança, ressaltando a necessidade que sentia de estudar o corpo e os movimentos que
faziam parte dos rituais afro-brasileiros, as autoras provocam reflexões sobre a hierarquia nos
métodos de treinamento corporal, a necessidade de identificação dos artistas negros com os
estudos de corpo na academia e sobre o vocabulário de movimento abordado nas escolas de
dança, a tendência a tratar as manifestações culturais de matriz africana como folclóricas, e como
pensar corpo-mente-espírito, sagrado e secular, indivíduo e coletivo como partes
complementares de um único ser.

No processo de desenvolvimento de sua proposta metodológica, Santos baseia-se em aspectos


sociais e artísticos do ritual Batá, geralmente relacionado ao Orixa Xangô. Ao observar
specificamente a dança do Batá a autora identifica qualidades de movimento como gestos
rápidos, cortados e diretos, posturas que exploram flexão e extensão de joelhos, deslizar dos pés
em contato com o solo, sapateado e inclinação do corpo da cintura para a frente. Santos também
observa o uso do espaço, figurino e a relação entre ritmo e movimento ou entre o corpo e os
tambores também chamados de Batá. Ela se inspira e incorpora tais elementos em sua prática em
sala de aula incluindo no processo de preparação corporal exercícios físicos para o

15
“Philosophizing and theorizing in autobiographical storytelling are practices, in which we live our thoughts and
recount our lives, reflecting this.” (JAMES, 1993, p. 35)

Vol. 02, no 02
148
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

desenvolvimento técnico e estudo das qualidades de movimento, exercícios criativos e de


improvisação à partir de diferentes estímulos, explorando as possibilidades de recriação e
transformação dos movimentos e elementos investigados, além de leituras relacionadas com a
dança e a cultura afro-brasileira e, a pesquisa de campo na qual os alunos realizam entrevistas,
observações e práticas. Durante os cursos que Santos oferece, outros rituais e manifestações são
explorados permitindo o contato dos alunos com diferentes princípios corporais e estruturais que
tornam-se elementos potenciais para o desenvolvimento de habilidades para a atuação e criação
artística e para a formação de uma identidade na arte. O espaço do aprendizado e da formação
artística profissional torna-se também espaço de afirmação de identidade cultura e racial, contato
com memória e com o “eu”. Santos estimula “os estudantes a tomarem consciência do seu ser, à
valorização da sua singularidade, da sua sensibilidade e da sua criatividade, levando em
consideração o aspecto cultural de cada um” (SANTOS, 2006, p. 40), o que facilita o
engajamento do poder espiritual, corporal, intelectual e político.

Uma das ex-alunas de Santo afirma:

A maioria dos movimentos que aprendi nesses dois semestres, sinto que
não foi aprendido, mas sim aflorado do subconsciente e das raízes
profundas de mim mesma. Aparentemente acredito que tinha uma
memória corporal que não havia antes percebido em nível consciente e
que a técnica nesses dois semestres me ajudou a perceber. (SANTOS,
2006: 112).

A partir do trabalho e experiência com Santos, outras pesquisas, propostas metodológicas e


composições coreográficas foram desenvolvidas por artistas alunos e ex-alunos da UNICAMP.
Tais propostas geraram artigos publicados no livro Rituais e linguagens da cena: trajetórias e
pesquisas sobre corpo e ancestralidade. As pesquisas desenvolvidas revelam relações com
manifestações de matriz africana e indígena cultuadas em diferentes regiões do Brasil e buscam
“fomentar discussões acerca da escassa bibliografia no contexto acadêmico sobre contextos
estéticos e ideológicos alicerçados na questão negro-africana e na cultura popular brasileira”
(ANDRAUS, 2012). Tal contribuição tem certamente posicionado a Escola de Campinas e
Santos, como referências para outros pesquisadores e principalmente pesquisadoras negras que

Vol. 02, no 02
149
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

visam ocupar o espaço acadêmico e contemplar as danças de matriz africana enquanto


epistemologia em suas pesquisas e produções artísticas em todo o Brasil.

Lima (2008), por sua vez, propõe o engajamento da arte que engloba música, jogo, dança e luta
revelando através da relação entre duas pessoas o diálogo corporal de presteza e jocosidade,
como método preparatório para o jogo da cena. Através da Capoeira ela busca desenvolver
aspectos físico-corporais como flexibilidade, força, coordenação motora, domínio do
movimento, voz e a destreza para responder aos desafios corporais colocados pelo outro
ator/jogador. Ao mesmo tempo este trabalho estimula a capacidade intelectual e de criação de
estratégias no tempo do jogo. Os princípios: equilíbrio e equilíbrio precário, oposição, dilatação,
e equivalência são explorados para desenvolver habilidades pré-expressivas dos atores que se
tornam também capoeiristas através desta prática. Lima divide seu processo de treinamento
diário em quatro etapas: 1) aquecimento - contemplando demandas individuais e ativando
aspectos físicos e energéticos do corpo; 2) ginga - um movimento básico em que o praticante
transfere seu peso, mobilizando todo o corpo e ativando o centro de equilíbrio. Ela afirma que
durante a ginga, o ator/capoeirista trabalha com diferentes eixos do corpo porque ele/ela tende a
passar de um equilíbrio precário para outra posição de equilíbrio precário. Ritmo, nível, forma,
poder e energia também estão engajados na ginga; 3) repetição - revisitar sequências de
movimentos, a fim de enfatizar as funções de ataque e defesa do jogo. O ator/capoeiraista
aprende e repete sequências variadas da capoeira, o que lhes permite trabalhar com foco, a
direção das ações, e o desenvolvimento da força física; 4) jogar - o momento da improvisação,
criando uma conexão coletiva e incorporando a dinâmica de pergunta/resposta. O jogo é o
momento em que o ator/capoeirista expressa sua individualidade. Os
atores/jogadores/capoeiristas não só lutam, mas também jogam com o outro. De acordo com
Lima, no jogo/luta reside o maior potencial dramatúrgico da capoeira em que a interação e a arte
de ser astuto e “mandigueiro” com todo o corpo é uma técnica adquirida com a prática. No
momento da composição, Lima estimula atores a inserir e colocar verbalmente textos
dramatúrgicos no diálogo corporal, enquanto eles jogam capoeira eles falam o texto,
possibilitando o entendimento de novas possbilidades de movimento durante o diálogo. O
principal objetivo de Lima é capacitar atores para desenvolver e investigar novas estéticas no
palco, enriquecidas pela diversidade de identidades.

Vol. 02, no 02
150
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

Conclusão

Através de uma análise das propostas metodológicas desenvolvidas por Santos e Lima, entende-
se que essas intelectuais negras não só desafiam a posicionalidade de mulheres negras na
academia, mas também contribuem para a descolonização e descentralização de teorias e práticas
de dança e teatro na academia através do emprego de novas metodologias baseadas em tradições
afro-brasileiras. Em um país com uma das maiores populações negras do mundo, o diálogo entre
a academia e a cultura popular é essencial para permitir a expressão de vozes e memórias
pessoais e coletivas. Para aqueles educadores envolvidos no ensino como uma forma de
transcender as estruturas hegemônicas que marginalizam as práticas ancoradas em elementos da
cultura afro-brasileira deve lembrar-se de que toda teoria/prática é política, mesmo quando essa
natureza política não está explícita. Ao explorar potenciais técnico-corporais, estéticos,
históricos, ideológicos e filosóficos presentes nas danças populares brasileiras de matriz africana
e rituais, as autoras clamam pelo reconhecimento e des-hierarquização nos métodos e conteúdos
estudados nas escolas de teatro e dança na academia brasileira.

A recente presença de Santos na Escola de Dança da UFBA, aponta uma possibilidade de


mudança na grade curricular da escola que apesar de ter em seu corpo de funcionários
professoras competentes que coordenam projetos ligados às danças de matriz africana como o
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) e o grupo de pesquisa Odundê, mantém a maior
parte destes projetos e cursos apenas como trabalhos de extensão. O trabalho de inclusão de
conteúdos de matriz africana e de intelectuais negras na academia pode fazer o diferencial na
formação não somente dos que pretendem seguir a carreira artística e acadêmica, mas de todos
que tém contato com a arte e com a cultura brasileira. O conhecimento possibilita o
desenvolvimento do ser enquanto agente social e político. Questionar centrismos na sociedade
torna-se um compromisso não só de educadores e artistas, mas de todos aqueles que primam pela
igualdade de direitos e oportunidades e pelo respeito à pluralidade.

Para que a educação seja transformadora (SANTOS, 2006) é preciso superar os resquícios dos
preconceitos impressos pelos sistemas de dominação como as divisões de raça, gênero e classe.
A educação deve atender não somente interesses e demandas de pequenos grupos, mas de uma
maioria e o espaço da academia não pode ficar isolado da experiência vivida e da cultura que a

Vol. 02, no 02
151
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

circunda. Nesse sentido as iniciativas que problematizam a perpetuação de prioridades e


hegemonias revelam-se não só importantes, mas necessárias.

Referências

AFOLABI, Niyi. Afro-Brazilians: cultural production in a racial democracy. Rochester Studies


in African History and the Diaspora. Rochester, NY: University of Rochester Press, 2009.

ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Rituais e linguagens da cena: trajetórias e pesquisas


sobre ancestralidade. São Paulo: CRV, 2012.

ANDREWS, George Reid. Racial democracy in Brazil, 1900-90. In Journal of contemporary


history 31, no. 3 (Jul., 1996): 483-507.

BAIRROS, Luiza. Mulher negra: o reforço da subordinação. In Peggy Lovell (ed.),


Desigualdade racial no Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 1991.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução Heloisa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2008.

CHAUI, Marilena. Comformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1986.

CRENSHAW, Kimberle. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence
against women of color. In Standford Law Review. Vol. 43 (July, 1991): 1241-1299.

DANIEL, Yvonne. Dance in the African Diaspora. In Encyclopedia of the African Diaspora:
origins, experiences, and culture. Ed.Carole Boyce Davies.Santa Barbara, CA: ABC-CLIO,
2008.

GONZALES, Lélia. The Black Woman in Brazil. In African Presence in the Americas. New
Jersey: Africa World Press, 1995.

Vol. 02, no 02
152
REVISTA OLHARES SOCIAIS – PPGCS – UFRB

HOOKS, Bell. Teaching Critical Thinking: practical wisdom. New York and London: Routledge
Taylor & Francis, 2010.

JAMES, Joy. Teaching theory, talking community. In Spirit, Space and survival: African
American women in (white) academe. New York: Routledge, 1997

LIMA, Evani Tavares. Capoeira Angola no treinamento do ator. Salvador: Fundação Pedro
Calmon, 2008.

LORDE, Audre. Uses of the erotic: the erotic as power. In Sister Outsider. Crossing Press
Feminist Series. Kindle Edition, 2007.

LEBON, Nathalie. Beyond confronting the myth of racial democracy: the role of Afro-Brazilian
women scholars and activists. In Sage, V. 34, 6 (November, 2007): 52.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Coleção Identidade Brasileira.


São Paulo: Editora Vozes, 1999.

PACHECO, Ana Cláudia Lemos. A trajetória de uma intelectual negra: uma voz
subalternizada?.In XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Salvador de 7 a 11 de
Agosto, 2011.

SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural de dança-
arte-educação. 2.. ed. São Paulo: Terceira Margem, 2006.

Vol. 02, no 02
153

Você também pode gostar