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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Disciplina de Introdução aos Estudos Literários II - 2018/2 Matutino
Docente Samuel de Vasconcelos Titan Jr.

ANÁLISE E COMENTÁRIO DE TRECHO DO LIVRO


“Madame Bovary”

Discente Mikael Pereira de Queiroz


Nº USP 10760199

11 de dezembro de 2018
Madame Bovary, escrito por Gustave Flaubert e publicado pela primeira vez pela revista La
Revue de Paris no ano de 1856 e em livro em 1857, é um romance marcante para estabelecimento e
sucesso da literatura realista: uma literatura que relata a vida de pessoas comuns, histórias que se
passam em tempos e lugares próximos ao leitor da época e que não perdem sua familiaridade ao leitor
de tempos atuais. As idealizações realizadas e bem sucedidas de heróis e heroínas de tempos e locais
longínquos abrem espaço para as decepções de protagonistas do dia a dia, oriundas dos sonhos e
fantasias cativados pelos novos ideais burgueses que se formavam aos jovens da época: aos homens, a
oportunidade de sucesso profissional, dependente não de sua nascença mas de seu mérito; às mulheres,
o casamento que ocorre por amor, deixando de lado expectativas patriarcais e sociais.
A obra em questão tem seu foco principal neste último ideal e o apresenta através da história da
protagonista Emma Bovary: tendo seu imaginário alimentado pelos romances que lia em sua juventude
no convento, Emma encontra-se perpetuamente descontente com a vida que a realidade lhe apresenta,
culpando suas insatisfações no casamento com Charles. Ela o vê como um marido medíocre e
decepcionante, não chegando aos pés dos heróis de seus romances, conhecedores do mundo e
perdidamente apaixonados; todos os desgostos da vida parecem remeter a ele, este ser sem paixões ou
sonhos de grandeza, contente e inerte nesta realidade comum e pacata que Emma tanto odiava.
Entretanto, ao final do livro, logo após a morte de Emma, vemos exposto um lado romântico de
Charles que faz ressoar os jeitos de sua mulher, como se ele a encarnasse subitamente ou, então,
encarnasse enfim o desejo dela, o homem romântico com o qual ela sempre sonhara, como que se para
honrar sua memória:

“Quero que a enterrem com seu vestido de casamento, com sapatos brancos e uma grinalda. Espalhem
seus cabelos pelos ombros; três caixões, um de carvalho, um de acaju e um de chumbo. Não me digam nada,
terei coragem. Cubram-na com um grande pano de veludo verde. Eu quero. Que assim seja feito.”
Aqueles senhores surpreenderam-se muito com as ideias romanescas de Bovary, e o farmacêutico veio
dizer-lhe imediatamente:
- Este veludo parece-me um supérfluo. O gasto, aliás…
- Isso é da sua conta? - perguntou Charles. - Deixe-me! O senhor não a amava! Vá embora! (p.
314)

Uma extravagância romântica (em forma de carta ou bilhete), a incompreensão do sr. Homais
perante tal exigência e a imposição de Charles de seus desejos, colocando os sentimentos por sua
amada acima de qualquer impedimento mundano. Tal cena seria comum se atribuída à madame
Bovary, que em muitos trechos do romance não economizou esforços ou dinheiro para perseguir seus
desejos: a re-decoração por mero capricho das casas onde morou, apesar das condenações feitas pela
sogra; a dedicação à Rodolpho em forma de mimos e presentes impostos a ele, de forma que este a
achava “tirânica e invasiva demais” (p. 186); e mesmo o desejo de esquecê-lo após o abandono,
impondo sobre sua própria paixão um ideal orgulhoso de devoção cristã. É quase como se o narrador,
tão acostumado a tecer a trama do ponto de vista da madame Bovary, permitisse que seu espírito
transbordasse para o personagem de seu marido.
O trecho narra uma atitude inédita para Charles. Não que ele fosse desprovido de paixão por sua
esposa; muito pelo contrário, amou-a desde seu primeiro dia de casados até o último. Como
evidenciado logo após sua noite de núpcias,

No dia seguinte, no entanto, parecia outra pessoa. Poderia muito bem ser tomado pela virgem da
véspera (...). Mas Charles não dissimulava nada. Chamava-a de “minha mulher”, tratava-a com intimidade,
perguntava por ela a todo mundo, procurava-a por todos os cantos e a conduzia frequentemente até o pátio,
onde podia-se vê-lo de longe, por entre as árvores, enlaçando a cintura dela com os braços e continuando a
caminhar meio reclinado, amassando com a cabeça a gola do vestido dela. (p. 38)

Charles, sendo comparado à virgem da noite de núpcias, papel evidentemente feminino, é


tomado por uma paixão cega e desajeitada que é expressa consistentemente por todo o romance através
de seus afetos com Emma, apesar das frequentes rejeições. Mas nunca vemos dele atos extravagantes
de paixão nem uma grande imposição de seus afetos sobre sua amada, que cediam à qualquer “não”
verbalizado. O que, então, levou o personagem a esta mudança tão repentina? O que levou seu amor a
ser externalizado de tal forma?
Pode-se dizer que ele queria apenas homenagear os gostos luxuosos de sua esposa, mas talvez
esta seja uma maneira muito simplista de olhar seus gestos, uma diminuição do que este momento
narrativo significa. Para melhor entendermos sua mudança repentina, podemos olhar para a própria
inspiração de tal ato, sua esposa Emma.
Apesar de suas fantasias romanescas estarem presentes dentro de si desde os anos no convento,
Emma não as externalizava logo de início e, quando tentava, não as impunha. Mesmo no próprio
casamento, sua fantasia aparece mais como uma sugestão que é rapidamente vetada pelo pai:

Emma, pelo contrário, desejara casar-se à meia-noite, à luz de velas, mas o velho Rouault não
compreendeu aquilo. Realizou-se então um casamento para 43 convidados, no qual ficaram dezesseis horas à
mesa, que recomeçou no dia seguinte e estendeu-se um pouco mais. (p. 34)
Aqui, esta passagem assemelha-se quase que inteiramente ao trecho analisado, apresentando, de
inicial, a mesma narrativa: uma ideia fantasiosa é encarada pelo realismo do mundo, representado nas
cenas pelo sr. Homais e pelo sr. Rouault, com desconsideração, como um exagero sem cabimentos. As
narrativas só não foram idênticas por que apenas após sua decepção amorosa com Charles, quando
encontrou-se em um casamento infeliz que não atendia às suas expectativas românticas, que Emma
passou a atuar e impor suas fantasias, à medida do possível, começando pela re-decoração de sua nova
casa em Tostes. A decepção amorosa levou-a a expressar seus sonhos como pudesse, e depois com seus
amantes, em quem reconhecia, ou melhor, projetava o amor ideal que tanto buscava.
Mas Charles não compartilhava dessas fantasias amorosas plantadas por romances. Charles só
foi conhecer o amor e, então, o sofrimento amoroso, com Emma. De fato ele sofreu com a morte de sua
primeira esposa nos primeiros capítulos do livro, mas não pelo amor que ele teria por ela mas pelo
amor que ela o tinha, e logo este sofrimento é substituído pelo prazer da liberdade e pelos consolos que
lhe davam. E antes mesmo de concluir seu luto, como mandavam as normas sociais, Charles já pedia a
mão da srta. Rouault em casamento.
Apenas no seu segundo casamento é que Charles descobre as felicidades do amor, que antes
nem lhe ocorriam como uma fantasia distante. Toda sorte de atividades mundanas “e muitas outras
coisas nas quais Charles nunca suspeitara existir prazer compunham agora a continuidade de sua
felicidade” (p. 40). Mesmo seus pensamentos estavam repletos de romance, como expressado a seguir.

Mas, agora, possuía para a vida toda essa mulher linda que ele adorava. O universo, para ele, não
passava do contorno sedoso do saiote dela; e censurava-se por não amá-la ainda mais, sentia vontade de revê-
la; (p. 42)

Charles encontrava-se pleno; Emma era tudo para ele e, se o universo não passava dos
contornos sedosos do saiote de sua amada, ela era a única pessoa a quem importava demonstrar seu
amor. Conhecendo a plenitude e a embriaguez do romance, sem grandes concepções prévias para
diminuí-los e estragá-los, Charles encontra-se feliz e contente, como permanecerá até a morte de sua
amada.
É apenas nesta ocasião infeliz em que ele finalmente conhece as dores da decepção amorosa.
Charles agora já conhecia o amor, e vê-lo partir subitamente foi para ele o mesmo que Emma sentira
quando se descobriu infeliz no casamento, levando os dois ao mesmo destino: o das extravagâncias, do
tudo em nome de um amor ideal, agora não mais alcançável. Para Emma, o amor dos romances; para
Charles, o amor de sua esposa.
Este sentimento é explicitado no último capítulo do livro, na cena em que Charles encontra a
carta de despedida de Rodolpho à Emma e, julgando ser um caso de amor platônico por sua amada,
parece tornar-se ainda mais apaixonado por ela:

Essa ideia tornou-a ainda mais bela a seus olhos; e ele concebeu um desejo permanente, furioso, que
inflamava seu desespero e que não tinha mais limites, pois era agora irrealizável. (p. 327)

E então, logo após, a tentativa de Charles de vivenciar esse amor novamente:

Para agradá-la, como se ela ainda estivesse viva, Charles adotou suas predileções, suas ideias;
comprou botas de verniz, passou a usar gravatas brancas. Usava cosméticos nos bigodes, assinava, como ela,
promissórias.

As escolhas de veludos verdes, botas de verniz e gravatas brancas certamente são puramente
inspirados pelos gostos de sua esposa, que ele observara através de todos os anos de seu casamento,
mesmo que sem entendê-los. Mas o motivo pelo qual ele adota tais modos e preferências não se dá por
uma inspiração, mas pelo fato de que, enfim, Charles Bovary tornara-se mais próximo de sua esposa e
suas dores.
O trecho está repleto de ironias narrativas e esta é uma delas. Ainda por cima, vemos Charles
velamdo o corpo de Emma logo em seu vestido e sapatos de casamento, honrando para ele o que foi o
despertar do mais puro amor mas, para ela, o que foi sua primeira grande decepção amorosa. Os dois
nunca estiveram tão próximos, mas tão distantes, quanto neste velório.
Mais irônico ainda é que o ideal burguês que surgia na época, com promessas às mulheres de
casamentos por amor, realiza-se não com a protagonista, mas com seu marido. Ele, que encontra-se
inicialmente em um casamento infeliz, consegue se livrar dele quase que por uma bênção do destino
que veio para permitir que se casasse com a mulher que lhe encantava, e com quem fora feliz até o
final do casamento.
E na contramão, é claro, o ideal reservado aos homens, de ascensão social através do mérito
próprio, parece interessar muito mais a Emma, como quando insiste que seu marido performe a cirurgia
em Hippolyte, sonhando com o prestígio que seu marido receberia realizando uma cirurgia do tipo com
sucesso, não pelo seu carinho e apoio por ele mas por saber que este prestígio refletiria em si,
decepcionando-se mais uma vez quando Charles mostra-se sem o mérito necessário para a ascensão
que Emma almejava.
Charles e Emma são apresentados, através de toda a narrativa, como personagens conflitantes,
que desencontram-se constantemente apesar de seus esforços confusos. Um homem sem grandes
ambições sociais e profissionais, pleno em seu casamento e amor por sua esposa; e uma mulher que
sonha com palácios e luxúrias infinitas, sempre descontentemente correndo atrás de um ideal amoroso
inalcançável. As duas narrativas parecem se inverter até o ponto que, enfim, culminam de uma forma
que os dois personagens parecem finalmente se encontrar, se mesclar, mesmo que apenas por um breve
momento.
Breve pois, por mais que Charles finalmente compreendesse esse desespero amoroso pelo
irrealizável que sua mulher sentira por todo o casamento, ele continuaria sendo o homem que nos foi
narrado durante todo o romance: um homem que contentava-se em sua paixão pelo dominó, que nunca
se interessara pelos teatros de Paris e que, ao invés de ser aquele que iria “iniciar a mulher nas energias
da paixão, nos refinamentos da vida” (p. 49), satisfazia-se admirando os refinamentos da vida que sua
mulher o apresentava, os desenhos que fazia, as músicas que tocava.
Mas se breve, súbito, visto que os dois acabaram por ter um fim semelhante: a morte perante o
inalcançável, perante a fantasia que não se realizava. Mas se Emma sobrevivera quando, abandonada
por Rodolpho, quase sucumbiu à morte, Charles não fora capaz de superar o abandono e traição que
sofrera. Pois Emma vivia sua própria narrativa, perseguindo seus ideais românticos que necessitavam
apenas se projetar sobre algum novo desejo ou amante para serem alimentados; ao passo que Charles,
após ser brevemente introduzido, viveu uma narrativa voltada para sua única paixão, que nascera e
morrera com sua madame Bovary.

Referências:
1. FLAUBERT, G. Madame Bovary. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.
2. AUERBACH, E. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. 6. ed. São
Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2015.
3. Ávila, I. M. Discurso indireto livre em Madame Bovary de Flaubert: o despontar da forma.
2012. Dissertação de Pós-Graduação - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

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