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Unidade II
3 REALISMO/NATURALISMO EM PORTUGAL (1865-1890)
Nessa pintura de Millet, podemos observar uma das principais características do Realismo: a
preocupação em descrever cenas do cotidiano, de forma objetiva e detalhada. A idealização romântica
é deixada de lado. Volte à Unidade I e compare essa pintura realista à pintura romântica. Observe não
somente os temas, mas os detalhes de cada imagem. Nessa tela, não vemos a paixão romântica, a
emoção a flor da pele e sim uma cena comum, ao gosto dos realistas.
Observação
Saiba mais
Para saber mais sobre as pinturas de Millet, acesse: <http://www.ibiblio.
org/wm/paint/auth/millet/>. Acesso em: 22 maio 2012.
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Unidade II
A segunda metade do século XIX foi marcada pelo Cientificismo, a valorização das ciências, e por
uma demanda material e ideológica gerada pela Revolução Industrial. Surgem teorias positivistas que
valorizam o progresso e o conhecimento científico. Com os novos modos de produção, surge uma
grande massa de operários explorados e marginalizados: o proletariado.
Novas teorias passaram a ser apreciadas e estudadas pelos escritores dessa época, que procuram
aplicá-las em seus romances em uma postura mais engajada, repudiando a “ arte pela arte”. Vejamos
algumas dessas teorias principais:
Positivismo: filosofia que propunha uma ciência mais objetiva, oposta ao idealismo, mais voltada
para a razão. Um de seus principiais divulgadores foi Auguste Comte.
O Positivismo é muito importante para entendermos não somente a literatura, mas também o
posicionamento político de vários países. O lema de nossa bandeira, por exemplo, surge a partir de uma
perspectiva positivista: “Ordem e progresso”.
Nem todos os escritores realistas apoiaram essa filosofia. Machado de Assis chega a zombar
dessa visão objetiva na composição da personagem Quincas Borba e sua filosofia “humanistismo”.
Esse personagem aparece inicialmente em Memórias póstumas de Brás Cubas e depois em seu
livro homônimo.
Saiba mais
Para saber mais sobre filosofia, Augusto Comte e o Positivismo,
indicamos o site:
<http://www.mundodosfilosofos.com.br/comte.htm>. Acesso em: 22
maio 2012.
Darwinismo ou evolucionismo: Charles Darwin publica em 1859 A origem das espécies, composto
por teorias que colocam em jogo crenças religiosas. Na natureza, somente quem consegue se adaptar
ao meio, consegue sobreviver, é a lei da seleção natural.
As teorias de Darwin até hoje são discutidas, aceitas ou refutadas. Em Portugal, um país em
que a Igreja Católica e seus valores sempre se sobressaíram, tais ideias trouxeram um considerável
impacto.
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Saiba mais
Para maiores informações sobre o evolucionismo, acesse o seguinte site:
Socialismo utópico: Proudhon constrói as bases do pensamento socialista com suas publicações
nos jornais e a obra Filosofia do progresso, em 1835.
Determinismo: Hipólito Taine (1823-1893) foi um dos principais teóricos do Realismo e Naturalismo.
Segundo ele, a obra de arte deveria demonstrar que o homem é determinado pela herança, pelo meio e
pelo ambiente em que vive, ou seja, um produto desses fatores, sem qualquer livre-arbítrio. Veja a seguir
um fragmento sobre Taine, tirado do site da Universidade Técnica de Lisboa.
Vale ressaltar que Taine não influenciou somente a literatura. Sua distinção entre raças
superiores e inferiores foi utilizada em diversas políticas antissemitas, contra os judeus, como o
nazismo, por exemplo.
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Unidade II
Os artistas dessa época passaram a adotar uma visão mais objetiva da realidade, por meio do uso da
razão, e pautada na sociedade.
Em 1851, por meio de um golpe político, o marechal Saldanha institui a monarquia parlamentarista
(nos moldes ingleses) e se inicia o período de Regeneração (1851-1910), no qual, como o nome designa,
propunha-se a “regeneração de Portugal.” Os partidos no poder eram constantemente mudados,
principalmente em momentos de crise, cabendo-lhes a culpa dos problemas, e não do El-rei que ficava
salvaguardado.
Havia uma política econômica desenvolvimentista que beneficiava a concentração de renda nas
mãos dos proprietários da terra.
Nesse período, Portugal teve cinco reis (D. Fernando II, D. Pedro V, D. Luís I, D. Carlos I e D. Manuel II)
até se instituir a República, em 5 de outubro de 1910.
O Realismo é de origem francesa, inicialmente nas artes plásticas com as obras realistas de Gustave
Courbet que chocaram os românticos. Em 1857, Gustave Flaubert publica Madame Bovary. Dez anos
depois, Émile Zola publica Thérèse Raquin que dá origem ao extremismo realista, o Naturalismo, mas sua
obra-prima é o livro Germinal de 1885.
Antes de falarmos do Realismo na Literatura Portuguesa, é necessário falar um pouco mais desses
dois grandes romancistas franceses que influenciaram a literatura universal.
Observação
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Figura 10 - Gustave Courbet - La Falaise d’après l’Etrerat orage, 1869. Museu d’ Orsay- Paris
Saiba mais
Flaubert foi um dos autores mais importantes do Realismo, influenciado pelas teorias científicas,
pela Revolução Industrial e pela linha filosófica de Augusto Comte, o Positivismo. Ele levou à perfeição
o ideal do romance realista de harmonizar a arte e a realidade. Sua obra se caracteriza pelo cuidado
minucioso com a linguagem e pela estrutura do enredo. Influenciou toda uma geração de escritores,
inclusive Eça de Queirós.
Seu romance de estreia foi Madame Bovary, um retrato crítico da hipocrisia da sociedade burguesa
e romântica. A obra foi resultado de cinco anos de um trabalho minucioso. Em linhas gerais, o enredo gira
em torno da história de Emma, uma moça sonhadora que se casa com um médico provinciano, Charles
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Bovary. Sua vida é sem graça, ociosa, muito diferente de seus ideais. O marido é um simplório. Emma
sente-se muito infeliz, repugna seu marido e, para fugir de sua vida medíocre, entrega-se ao adultério.
Materialista e inconsequente, gasta o que não possui e envolve-se em dívidas absurdas.
Observação
Veja a seguir um trecho do texto do professor Antônio Apolinário Lourenço a respeito dos 150 anos
da publicação de Madame Bovary e sua influência na obra de Eça de Queirós:
Para exemplificar a doutrina do realismo, citou o Sr. Eça de Queirós Madame Bovary, o
célebre livro de Gustave Flaubert, no qual o adultério tantas vezes cantado pelos românticos
como um infortúnio poético que comove perniciosamente a susceptibilidade das almas
cândidas, aparece-nos pela primeira vez debaixo da sua forma anatômica, nu, retalhado e
descosido fibra a fibra por um escalpelo implacável. O efeito é surpreendente e terrível.
Constatamos, assim, que foi a leitura de Madame Bovary que fez Eça compreender
a superioridade civilizacional e ética do Realismo sobre o Romantismo. Outros
autores, como os irmãos Goncourt e Émile Zola, em França, sentiram, perante Madame
Bovary, um deslumbramento idêntico ao de Eça. E enquanto Edmond et Jules de
Goncourt criavam, com Germinie Lacerteux, uma espécie de Bovary das classes baixas,
Zola procuraria, igualmente a partir do romance de Flaubert, desenhar o modelo
técnico‑narrativo do romance naturalista.
Fonte: LOURENÇO, Antônio Apolitário. “Os 150 anos de Madame Bovary”, in Jornal de Letras, 12 de Março de 2008. Fluc-Faculdade de
Letras de Lisboa. Lisboa: 2008.
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Observe que o tema do adultério já aparecia no Romantismo, mas como um infortúnio, um azar do
destino. Já no Realismo, ele aparece de forma crua, direta.
Saiba mais
Leia um trecho do romance em que Charles Bovary atende a um doente que machucara a perna, o
pai de Emma. É a primeira vez que vê sua futura esposa:
Uma jovem, com um vestido de merino azul enfeitado com três folhos, apareceu à
porta da casa, para receber mo o Sr. Bovary, e o fez entrar na cozinha, onde ardia um bom
fogo. O almoço dos criados fervia ao redor em pequenas panelas de diferentes tamanhos.
Algumas roupas úmidas secavam na lareira. A pá, as pinças e os foles, todos de proporções
colossais, brilhavam como aço polido enquanto, ao logo dos muros, estendia-se uma
abundante bateria de cozinha, onde se refletiam, de forma desigual, a chama clara do fogão
juntamente com os primeiros raios do sol que entravam pelas vidraças. (...)
Charles surpreendeu-se com a brancura de suas unhas. Eram brilhantes, com extremidades
finas mais limpas do que os marfins de Dieppe* e amendoadas. Suas mãos, contudo, não
eram bonitas, não eram suficientemente pálidas, talvez, e um pouco secas nas falanges;
eram demasiado longas também e sem suavidade nos contornos. O que tinha de belo eram
os olhos: embora fossem castanhos, pareciam pretos, por causa dos cílios, e seu olhar atingia
o interlocutor com franqueza e com uma cândida ousadia.
Notamos aqui algumas características realistas que veremos a seguir, como a descrição detalhada e
a não idealização da mulher, como faziam os românticos. Emma parece uma pessoa comum, não uma
deusa. Suas mãos não são bonitas, mas seus olhos possuem um certo mistério.
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Unidade II
Observação
Émile Zola foi o fundador e o principal representante do movimento literário naturalista. Inspirado
na filosofia positivista e na medicina da época, Zola acreditava que a conduta humana é determinada
pela herança genética, pela fisiologia das paixões e pelo ambiente, conforme vimos, trata-se do
Determinismo de Taine.
Zola afirmou no ensaio “O romance experimental” (1880), que o desenvolvimento dos personagens
e das situações deve ser determinado de acordo com critérios científicos similares aos empregados
nas experiências de laboratório. Para ele, a realidade deveria ser descrita de maneira objetiva, por mais
sórdidos que pudessem parecer alguns aspectos.
A história de Germinal é baseada em fatos verídicos e retrata a primeira greve de mineiros no norte
da França no final do século XIX. Zola viveu dois meses nessas minas de carvão para poder descrever
fielmente o que acontecia. É a época da criação da I Internacional Operária, fundada com a participação
de Karl Marx em Londres – momento de ebulição política, crise econômica, falências, miséria e fome na
Europa.
Veja um trecho retirado do primeiro capítulo, quando Etienne chega às minas para procurar
emprego:
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Como continuar assim pelos caminhos, sem destino, não sabendo sequer onde
abrigar-se do vento frio? Sim, era de fato uma mina, os raros lampiões iluminavam
o pátio, uma porta subitamente aberta permitira-lhe vislumbrar as fornalhas das
caldeiras das máquinas envoltas numa claridade viva. Encontrava explicação até para
o escapamento da bomba, essa respiração grossa e ampla, resfolegando sem descanso,
e que era como a respiração obstruída do monstro.
— Fábricas é o que não faltam. Você precisava ver há três ou quatro anos: tudo produzindo,
faltava mão de obra, nunca se ganhou tanto. E, de repente, começa-se a apertar o cinto.
Uma verdadeira desgraça cai sobre a região, o pessoal é despedido, as oficinas começam a
fechar uma após outra. Talvez não seja culpa do imperador, mas que necessidade tem ele
de ir lutar na América? E isso tudo sem contar os animais que morrem de cólera, como as
pessoas.
Observamos o descritivismo, já existente no Realismo, mas de uma forma mais contundente. Aspectos
escatológicos, como o homem cuspir, são comuns nessa estética.
Saiba mais
Em Portugal, o Realismo se inicia com a famosa Questão Coimbrã, que consistia em uma crise
acadêmica em que diversos textos ofensivos foram trocados, de um lado os românticos, veteranos e
mestres na academia, como o professor Antônio Feliciano de Castilho, de outro os rebeldes estudantes
da Sociedade do Raio, fundada por Antero de Quental.
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Unidade II
Vale lembrar que o Realismo português foi bastante organizado, repleto de conferências e estudos
sobre a estética. Nunca a literatura portuguesa conseguiu alcançar tal feito.
A Questão Coimbrã se inicia a partir da publicação de uma carta de Antero de Quental, intitulada
“Bom senso e bom gosto”, em 1865 em resposta ao professor Antônio Feliciano de Castilho.
Castilho havia escrito uma carta elogiando a obra de Pinheiro Chagas, O poema da mocidade, e
criticando os jovens escritores. Tal carta foi utilizada como posfácio da primeira edição desse livro. Veja
um trecho:
Observemos que Castilho considera a nova tendência uma enfermidade, com uma poesia que
nega a verdade e simplicidade, aspectos que, podemos concluir, são inerentes à poesia romântica. Cita
nominalmente Teófilo Braga e Antero de Quental que, como líder da Sociedade do Raio, responde ao
professor. Veja alguns trechos de Bom senso e bom gosto:
São claras as referências à poesia romântica, considerando seus versos sem sabor, seus sentimentos
postiços, falsos, pueris, infantis e vãos. Quental estava inspirado! Ao terminar sua carta, demonstra toda
sua irreverência, dirigindo-se diretamente à figura de Castilho:
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Concluo daqui que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a madureza
das ideias, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco anos
têm‑me as verduras de v. ex.a convencido valerem pelo menos os seus
sessenta. Posso, pois, falar sem desacato. Levanto-me quando os cabelos
brancos de v. ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está
debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que sabem d’ele, confesso não
me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade
num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.a
precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão.
E por estes motivos todos que lamento do fundo d’alma não me poder
confessar, como desejava, de V.ex.a.
Veja que Quental não poupa críticas ao professor, chamando-o de infantil e fútil, negando-lhe a
admiração e o respeito.
Observação
Saiba mais
<http://books.google.com>. Procurar:
• Os artistas realistas assume uma postura mais engajada. Há o compromisso entre a arte e a realidade
social. Contudo, a arte ainda assume um viés burguês, com os protagonistas advindos dessa classe.
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Unidade II
• Há uma crítica constante à educação romântica, como alienante e responsável por todos os
problemas culturais da sociedade.
• A crítica ao conservadorismo da Igreja é uma temática constante, podemos encontrá-la na obra
de Flaubert, Zola e Eça de Queirós.
• Em oposição ao Romantismo, os artistas realistas optam por uma visão objetiva da realidade.
• Os realistas preferem a representação da vida cotidiana à evasão romântica.
• Prevalece o uso da razão, não mais da emoção.
Como podemos observar, o Realismo é essencialmente antirromantismo. Faça uma tabela em uma
folha avulsa, de um lado as características do Romantismo, do outro as características do Realismo. Isso
facilita na hora dos estudos.
Identificar uma obra romântica e uma obra realista não é tão simples assim. Há autores românticos
que já apresentam características realistas, muitos escrevem obras de transição e perpassam por várias
manifestações. Assim, não tente encaixar uma obra “à força” em alguma estética, analise-a como um
todo, contexto e linguagem.
Definir nem sempre é fácil, vejamos uma boa definição de Realismo, dada pelo escritor Eça de
Queirós:
Didaticamente, consideramos, como vimos, que Gustave Flaubert inicia o Realismo e Émile Zola
o Naturalismo. Contudo, a distinção entre essas duas tendências não é tão simples assim. Veremos
as características dos romances dessa época de forma generalizada, para depois apresentar algumas
especificidades.
Lembrete
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Como podemos observar, os romancistas não se preocupam mais em enaltecer os valores burgueses,
ou mesmo idealizar uma realidade como os românticos faziam, mas, ao contrário, criticam tudo que era
subjetivo e pretendiam descrever a realidade como ela era.
O romance passa a ser um espaço de experimentação das novas teorias científicas, é o que
chamamos de Romance de Tese, ou seja, o artista procura aplicar os novos conceitos na construção de
suas personagens, como se fossem cobaias em um laboratório.
Há entre os romances realistas e naturalistas muitos pontos de contato. Vale dizer que o Realismo
surgiu antes, o Naturalismo depois. Assim, o Naturalismo é uma nova versão, bem semelhante, mas
extremamente exagerada. Para o Naturalismo, o homem é um ser natural, e como tal é guiado por seus
instintos, principalmente nas questões sexuais.
No livro Théresè Raquin, que é tido como o marco do Naturalismo francês, vemos personagens
movidas por seus desejos, instintivamente, sem qualquer reflexão.
A relação amorosa entre Thérese e Laurent, os protagonistas da história, chega a ser doentia:
Em destaque, nas palavras do próprio Zola, os protagonistas são tratados como animais humanos,
sem alma, somente guiados pelo instinto. É um livro que, pessoalmente, causou-me angústia devido aos
aspectos repugnantes.
Podemos dizer que nos romances realistas, o autor mostra a ferida, as mazelas da sociedade, já o
autor naturalista disseca essa ferida. As cenas de adultério são mostradas sutilmente pelo realista, como
se fechasse as cortinas do quarto dos amantes. O naturalista abre as cortinas e descreve a cena em
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Unidade II
pormenores. Os aspectos científicos são levados ao extremo, os vícios das personagens são analisados
como casos patológicos, doentios.
Observação
Saiba mais
As características a seguir podem ser encontradas nas duas vertentes, tanto Realista como Naturalista:
Lembrete
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
José Maria Eça de Queirós (1845-1900) nasceu na Póvoa de Varzim e faleceu em Paris.
Estudou Direito na Universidade de Coimbra, tornando-se amigo de Antero de Quental,
entre outros. Participou nas Conferências do Casino e é um dos artistas da Geração de
70. Foi nomeado cônsul, tendo viajado pelo Egito, Cuba, Londres e Paris. Das suas obras,
destacam-se Uma campanha alegre (1871), O crime do padre Amaro (1875-1876), O
primo Basílio (1878), A relíquia (1887), Os Maias (1888), A ilustre casa de Ramires (1900),
A correspondência de Fradique Mendes (1900), A cidade e as serras (1901-postumamente),
Contos (1902) e Prosas Bárbaras (1903). Traduziu o romance de Rider Haggard, As minas de
Salomão. É considerado um dos maiores romancistas portugueses do século XIX.
Saiba mais
Para saber mais sobre Eça de Queirós e suas obras, acesse os seguintes
sites:
Vidas lusófonas: <http://www.vidaslusofonas.pt/eca_de_queiros.htm>.
E
Fundação Eça de Queirós: <http://www.feq.pt/eca_de_queiroz.html>.
Acesso em: 29 maio de 2012.
Eça de Queirós foi um êxito no Brasil, mesmo em vida, lido pelos brasileiros enquanto romancista
e também cronista pela ampla colaboração feita a jornais brasileiros, em especial para a Gazeta de
Notícias nodo Rio de Janeiro. Escritores brasileiros ilustres como Manuel Bandeira, Machado de Assis,
José Lins do Rego, Olavo Bilac e Graciliano Ramos foram leitores de Eça. O autor tem sido lido, relido e
estudado durante mais de 100 anos, sinal da atualidade e dimensão artística da obra queirosiana.
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Unidade II
O professor ainda diz que as influências de Eça podem ser sentidas nos romances dos anos 30, como
nas obras de Graciliano Ramos:
A influência da obra de Eça em nossa literatura não foi grande nem sensível,
como vejo tanta gente afirmar. Sobre o público, sim, foi imensa. O povo
recebia cada romance do grande ironista avidissimamente, e compreendia e
amava. Os literatos, porém, eram todos do tipo de Afrânio Peixoto, criaturas
impermeáveis, que não sentiam Eça por deficiência deles mesmos, não
do romancista. Os leitores de A ilustre casa de Ramires eram o povo e os
que com ele se comunicavam diretamente, os jornalistas. Eça melhorou o
pensamento do povo, da imprensa, as ideias correntes. O seu estilo influiu
principalmente no jornal. As elites não o perceberam quase. Eram os moços
que compreendiam a sua obra e a sua imensa significação (ABDALA JR.,
2008, p. 254).
Segundo Benjamin Abdala Júnior, a obra de Eça e Queirós pode ser dividida em 3 fases:
3ª fase: Afastamento do Naturalismo, com destaque para A ilustre casa de Ramires e A cidades e as
serras. Interessante notar que o romancista insere uma certa “fantasia”, como fica evidente nessa sua
última obra, em que Jacinto dispõe de excêntricas modernidades.
Não temos mais o ceticismo irônico dos romances naturalistas, nem mesmo
a insatisfação melancólica das narrativas da primeira fase. Ao invés do
pessimismo problemático, afirma-se o otimismo fácil, que deixaria satisfeito
qualquer político da monarquia constitucional portuguesa, que o escritor
anteriormente tanto criticara (ABDALA JR., 1985, p. 114).
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Ao comentar a última fase de Eça de Queiros, o professor Abdala Jr. faz uma breve síntese de três
momentos tão importantes na produção desse grande escritor. Eça passa de uma melancolia, para o
pessimismo até alcançar o otimismo. Há quem conteste que seja realmente um otimismo, mas mais uma
esperança, ou mesmo um vislumbre ao final da vida.
Lembrete
Esse romance, cuja primeira versão data de 1875 causou um grande escândalo, pois se coloca contra
o clero. Passa-se em Leiria, onde o padre Amaro Vieira, ingênuo e facilmente influenciável, assume
sua paróquia. Envolveu-se sexualmente com Amélia, uma moça simples que catequizava as crianças
da redondeza. Amaro conhece, então, o cinismo de seus colegas, que em nada estranham sua relação
com a jovem. Havia outros padres que também tinham suas amantes. Grávida, Amélia morre no parto e
Amaro entrega a criança a uma “tecedeira de anjos”. A criança também morre e Amaro, agora um cínico
descarado, prossegue com sua carreira. Eça escreveu mais duas versões dessa obra, procurando tirar os
episódios mais agressivos, principalmente após a crítica de Machado de Assis, que aparece na íntegra ao
final desta unidade.
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Unidade II
Saiba mais
3.5.2 Os Maias
Esse livro tem como subtítulo “Episódios da Vida Romântica” e narra a saga da família dos
Maias, na qual ocorrem traições, incesto e suicídio. É considerado por muitos como a obra-prima
de Eça de Queirós. Em seu enredo, o jovem Carlos da Maia se apaixona por sua irmã Maria Eduarda
sem saber, pois haviam sido separados desde a infância. Há uma crítica incisiva sobre a sociedade
portuguesa, principalmente a aristocracia decadente, à qual tinha como patriarca Afonso da Maia,
avô de Carlos.
Lembrete
Veja o contraste das imagens a seguir. A primeira representa “A cidade” do título, no caso Paris no
final do século XIX.
A segunda, apesar de ser uma fotografia atual, representa “As serras”, a região de Tormes em que o
protagonista Jacinto passa a viver em uma vida bucólica, em contraste com a vida moderna de homem
“civilizado” na grande Paris.
Esse contraste entre campo e cidade é bastante comum na literatura. Temas como fugere urbem
(fuga da cidade) ou mesmo locus amoenus viraram clichês árcades. Contudo, as questões suscitadas
nessa obra vão além dessa comparação simplista. As buscas pela harmonia e por certa convivência
pacífica dão o tom ao enredo.
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Esse romance foi publicado após a morte de Eça de Queirós. Seu foco narrativo é interessante, o
narrador em primeira pessoa não é o protagonista, é o que chamamos de narrador-testemunha. O
narrador José Fernandes conta as peripécias e atribulações de Jacinto de Tormes, fidalgo português
nascido em Paris:
Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como há sete anos, neste
velho Paris...
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Unidade II
Observe que a narração é em primeira pessoa, mas o protagonista da história é Jacinto, um milionário
e um homem culto, que se cercava de luxo e de inúmeros amigos influentes e superficiais.
Mas sua vida era entediante, sem graça. Nada lhe dava prazer. Certo dia, precisou viajar para
Portugal para reformar o cemitério de seus antepassados na propriedade rural de Tormes. Em um
primeiro momento, Jacinto sente-se perturbado a ter que viver no campo e abandonar os confortos da
civilização. Contudo, aos poucos, apaixona-se pela vida no interior, casa-se e se torna um homem feliz,
sem abandonar alguns privilégios da civilização.
É uma clara defesa do retorno de Portugal às origens rurais. Eça faz as pazes com sua terra natal. Veja
esse trecho do último capítulo:
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Observe como a serra é descrita em toda sua beleza e plenitude. O Príncipe, Jacinto, está mais
moreno, casado com Joaninha, feliz passeando com seu filho. As “amarguradas ilusões e falsas delícias”
são uma referência à vida que Jacinto tinha junto à Civilização.
Saiba mais
Veja o documentário sobre A cidade e as serras, Disponível em: <http://
videos.sapo.pt/jCKgLUeNNi3pN6lS0ahC>. Acesso em: 29 maio 2012.
Entre também no site da Fundação Eça de Queiroz:
<http://www.feq.pt/>.
Veja a seguir um retrato da cidade de Lisboa no século XIX, prédios baixos, ruas sem asfalto, animais
passeando entre os homens. Se compararmos com a pintura de Paris nessa época, podemos considerar
que os contrastes entre os dois países era bastante significativo. Pois é nessa Lisboa provinciana que se
desenvolve o enredo de O primo Basílio.
63
Unidade II
A obra de Eça de Queirós é extensa e seus livros são verdadeiras obras-primas. Falaremos mais
longamente de O primo Basílio, já que é um dos livros mais conhecidos no Brasil, cobrado em vestibulares
e estudado pelos alunos do Ensino Médio. Faremos alguns comentários sobre essa obra e suas principais
características realistas-naturalistas.
Lembrete
Você pode assistir ao filme O primo Basílio, contudo, o filme não substitui
a leitura do livro já que se trata de uma adaptação bem modificada e não
corresponde fielmente à obra de Eça de Queirós.
Nessa obra, como em outras, percebe-se a crítica social como principal característica. O alvo principal
da crítica, nessa obra, é a família lisboeta como “produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos
que se contradizem”. Ela foi inspirada em Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Há várias semelhanças
no enredo, contudo, as obras se diferenciam principalmente pelo tom irônico de Eça, pela maneira
caricatural e debochada que constrói as personagens. Além do que, O primo Basílio apresenta também
características naturalistas.
Eça de Queirós compõe um pequeno quadro doméstico e familiar, típico da pequena burguesia de
Lisboa da época: Luísa, uma jovem senhora sentimental, de educação romântica, de temperamento
exaltado, fruto da ociosidade e da falta de disciplina moral; seu primo Basílio, um amante baixo e imoral,
sedento de aventuras e amores frívolos; Juliana, uma criada revoltada com a sua situação, sedenta de
vingança. Jorge, o marido medíocre, pouco romântico.
Saiba mais
Para os realistas, o casamento é uma mera conveniência. Jorge casa-se “no ar” como diz seu
amigo Sebastião. Não há paixão, há apenas comodidade. Veja que interessante trecho, logo no
primeiro capítulo:
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LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito
simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como
uma passarinha amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho
louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério.
Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele próprio
melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E recordando aquela
existência fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma
dilatada, sentindo-se tão bem na vida como no seu jaquetão de flanela!
(QUEIRÓS, 2002, p. 17).
Observe o tom irônico de Eça de Queirós. Sabemos que Luísa trairá seu marido, assim, quando
o autor a chama de “serzinho louro e meigo” chega a ser cômico. Para Jorge, o casamento e o
jaquetão de flanela equiparam-se e lhe dão o mesmo conforto, ou seja, o casamento não passa
de uma conveniência.
Como tese, o autor quer nos demonstrar que Luísa trai seu marido devido à sua formação romântica,
às suas leituras açucaradas, à sua formação sem moral, sem disciplina.
Luísa lia Dama das camélias, romance romântico de Alexandre Dumas Filho. Nesta obra são mostrados
somente os aspectos prazerosos da traição, a luxúria e paixão, e não suas consequências ou condenações
morais e religiosas. Como se fosse “chique” ter uma amante.
O romance e a peça Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho passa ser leitura frequente entre
a burguesia. Margarida Gautier tornou-se um símbolo do amor romântico. Cortesã, mulher de muitos
amantes, ao se apaixonar se purifica e acaba por morrer diante da impossibilidade de seu amor.
Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na
Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter
Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses,
que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobiliados com arcas góticas
e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas
legendas heroicas... (QUEIRÓS, 2002, p. 20).
Observe como Luísa é sonhadora. Dizemos que se Luísa tivesse lido Madame Bovary ao invés de
Dama das camélias, provavelmente não teria traído seu marido.
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Unidade II
Vejamos o trecho que comprova as características deterministas da obra. No capítulo III, encontramos
uma composição gloriosa do caráter de Juliana:
Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava
de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a
comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e
as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando
vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!... Era demais! Tinha
agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se
lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a
sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de chapelista
ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa; mas, apesar de economias
mesquinhas e de cálculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram sete
moedas ao fim de anos; tinha então adoecido; com o horror do hospital fora
tratar-se para casa de uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! (QUEIRÓS,
2002, p. 61).
Vocabulário
Fazer despejos: esvaziar os penicos dos patrões, jogando os dejetos em uma fossa.
Lembrete
Muitos críticos consideram Juliana como a personagem mais complexa e bem construída por Eça de
Queirós. Sentindo-se humilhada por toda uma vida, ao ter as cartas de Luísa e Basílio em mãos (provas
do adultério), aproveita a oportunidade para se vingar de todas suas patroas.
Cuidado, não podemos dizer que há luta de classes ou que o socialismo é defendido por Eça. Juliana
não lutava pelo direito das empregadas domésticas ou pela igualdade, o que ela queria mesmo era
tornar-se uma pequena burguesa, uma patroa como Luísa.
O Positivismo de Comte também pode ser verificado. Eça nos mostra um país atrasado, cheio de
crendices, longe do progresso, assim, resvalando na lama. Tudo isso representado por suas personagens.
Lembrete
Vocabulário
Lampreia: parasita, assemelha-se a uma lesma.
Malvasia: bebida.
Queques: doces.
Note a descrição detalhada, repleta de pormenores. Eça, ao descrever a confeitaria, de forma grotesca
e exagerada, até naturalista, antecipa-nos o próximo episódio em que Luísa cometerá adultério.
67
Unidade II
Nesse diálogo, podemos observar a sociedade portuguesa da época. Havia problemas sérios,
pessoas vivendo na miséria. Mas, hipocritamente, o Conselheiro Acácio, que se diz tão bom e
patriota, recusa-se a falar sobre o assunto. Esse é um bom exemplo da crítica social feita por Eça
de Queirós.
Dona Felicidade:
Observe a descrição caricatural. As idealizações românticas são deixadas de lado, vemos uma mulher
gorda, com bigodes, sofrendo de azia e gases.
D. Felicidade se diz religiosa e devota, mas vive de falsidades. Quando Juliana fica doente, D. Felicidade
aconselha Luísa a mandá-la embora, para que não morra na casa. Como diria Eça, “como era generosa
D. Felicidade!”.
Ernestinho:
68
LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Vocabulário
Ernestinho é descrito com um ser ridículo. Alegoricamente, Eça concretiza nessa personagem o
próprio Romantismo. Assim, como bom realista que era, Eça de Queirós é antirromântico, chegando ao
extremo de considerar que todo o atraso em Portugal devia-se às idealizações românticas.
Teríamos muito mais para falar desse grande romancista português e suas obras.
Eça de Queirós soube compor como ninguém um quadro bastante completo da sociedade portuguesa do
século XIX. Com uma crítica voraz, repleta de ironia e deboche, o autor aponta as mazelas de uma sociedade
em crise, ludibriada pelos encantos do fim de século e vislumbrando um novo século, o século XX.
Veja a seguir uma caricatura sobre o livro, publicada na revista O Besouro, 1878. Uma outra madame,
cujo nome não aparece, apresenta para o marido, um comendador, seu primo Quincas. O comendador
faz cara de desconfiado e balbucia “hummm... hummm”. Interessante como a obra criou polêmica e até
virou mote para o humor.
Quanto às polêmicas criadas, podemos citar o texto publicado por Machado de Assis na revista
O Cruzeiro em 1878, no qual faz duras críticas a O crime do Padre Amaro e a O primo Basílio, de Eça
de Queirós. Há muito de verdade nessa crítica, contudo, Machado era contemporâneo de Eça e as
novidades do Realismo e do Naturalismo, de certa forma, assustaram o escritor brasileiro. O exagero, o
tom naturalista que Eça diversas vezes utiliza, é condenado, considerado por Machado como um traço
grosso, rude e descabido:
69
Unidade II
Talvez estes reparos sejam menos atendíveis, desde que o nosso ponto de
vista é diferente. O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas
intenso e completo; e daí vem que o tom carregado das tintas, que nos
assusta, para ele é simplesmente o tom próprio (ASSIS, M. 1878).
Não estamos aqui para julgar o grande escritor Machado de Assis, contudo ele é um homem de seu
tempo, com seus conceitos e preconceitos.
Machado também não compreende a tese de Eça. Considera que Luísa não tem consistência, o que
é uma verdade, e que tese nenhuma é defendida, um erro, já que sabemos que Eça quer justificar o
comportamento de Luísa por sua formação romântica, carente de moral. Ele propositalmente a faz de
marionete nas mãos de Basílio e Juliana. Observe a ironia machadiana ao considerar que não há tese no
romance:
Observação
Machado tece duras críticas ao Realismo praticado por Eça de Queirós, no caso o Naturalismo:
condena veementemente essa faceta do escritor, considerando-o abominável, repleto de “perversões
físicas”:
1
Bestial: grotesco, da besta. Atualmente, bestial quer dizer ótimo, fantástico (adjetivação positiva).
70
LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
A arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias do Monge de
Cister2, do Arco de Sant’Ana3 e d’O Guarani4 .
Eça de Queirós não respondeu diretamente a essa crítica, mas realizou uma terceira versão de
O crime do padre Amaro e passou a dar maior atenção à construção psicológica de suas personagens.
Ao final desta unidade, você encontrará a crítica de Machado de Assis. Leia-a com atenção, assim
como O primo Basílio, e faça suas próprias reflexões.
Destacamos os pontos mais importantes, sobre os possíveis plágios, o enredo sem verossimilhança,
a construção pobre da personagem Luísa, o questionamento sobre a tese do romance, a condenação do
Naturalismo e por último a valorização do Romantismo e seus autores.
Será O primo Basílio uma mera cópia de Madame Bovary? Lembre-se da ironia, do tom caricatural
e do naturalismo de Eça, que não estão presentes na obra de Gustave Flaubert. Eça foi responsável pelo
fortalecimento do romance português, gênero que praticamente não existia em Portugal. Seus modelos
foram franceses, ele mesmo nos revela isso, mas são essencialmente portugueses, no trabalho com a
linguagem, no uso da ironia, da caricatura e o quadro amplo da sociedade portuguesa, seu clero, sua
aristocracia, sua pequena e alta burguesia.
4 APÓS O REALISMO-NATURALISMO
A geração dos realistas portugueses é conhecida como a Geração de 70, incluindo prosadores e
poetas portugueses. Como ocorreu com as várias estéticas literárias, o Realismo e o Naturalismo também
acabaram por se desgastar.
No final do século XIX e primeiras décadas do século XX, surgem então alguns movimentos, ou
simples manifestações artísticas, que anteciparão o Modernismo. Não as estudaremos nessa disciplina,
pois seus grandes artistas destacam-se mais na poesia. Isso não significa que não surgiram romances de
relevância e de qualidade literária após o Realismo, contudo, a prosa portuguesa, após Eça de Queirós,
torna a se revitalizar somente nos anos de 1940 com o Neorrealismo que estudaremos na próxima
unidade.
Para que você possa se localizar cronologicamente, podemos destacar que, após o Realismo/
Naturalismo, temos os seguintes movimentos, denominados didaticamente.
2
Monge de Cister - Obra de Alexandre Herculano.
3
Arco de Sant’Ana - Obra de Almeida Garrett.
4
Guarani - Obra de Gonçalves Dias.
5
Almeida Garrett - poeta ultrarromântico.
71
Unidade II
Em 1915, com a publicação da Revista Orpheu, com a participação efetiva de Mário de Sá Carneiro
e nosso memorável Fernando Pessoa, temos o início do Modernismo em Portugal, que didaticamente é
dividido em três fases, conforme nos apresenta o professor Massaud Moisés:
• Orfismo (1915-1927)
• Presencismo (1927-1940)
• Neorrealismo (1940-1974)
Continuaremos a próxima unidade a partir do Presencismo, sendo que os estudos sobre Orfismo,
assim como do Simbolismo, serão tratados em Literatura Portuguesa: Poesia.
Um dos bons e vivazes talentos da atual geração portuguesa, o Sr. Eça de Queirós,
acaba de publicar o seu segundo romance, O Primo Basílio. O primeiro, O crime do
padre Amaro, não foi decerto a sua estreia literária. De ambos os lados do Atlântico,
72
LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Mas esse triunfo é somente devido ao trabalho real do autor? O crime do padre
Amaro revelou desde logo as tendências literárias do Sr. Eça de Queirós e a escola a que
abertamente se filiava. O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo
propagado pelo autor do Assommoir7. Se fora simples copista, o dever da crítica era
deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá‑lo; mas
é homem de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária; e eu, que
lhe não nego a minha admiração, tomo a peito dizer-lhe francamente o que penso,
já da obra em si, já das doutrinas e práticas, cujo iniciador é, na pátria de Alexandre
Herculano e no idioma de Gonçalves Dias.
Que o sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir, ninguém há que o não
conheça. O próprio Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de
l’Abbé Mouret8. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferença do
desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa, e outras;
enfim, o mesmo título.
(...)
Certo da vitória, o Sr. Eça de Queirós reincidiu no gênero, e trouxe-nos O Primo Basílio,
cujo êxito é evidentemente maior que o do primeiro romance, sem que, aliás, a ação seja
mais intensa, mais interessante ou vivaz, nem mais perfeito o estilo.
(...) Vejamos o que é O Primo Basílio e comecemos por uma palavra que há nele. Um
dos personagens, Sebastião, conta a outro o caso de Basílio, que, tendo namorado Luísa em
solteira, estivera para casar com ela; mas falindo o pai, veio para o Brasil, donde escreveu
desfazendo o casamento. — Mas é a Eugênia Grandet! exclama o outro. O Sr. Eça de Queirós
incumbiu-se de nos dar o fio da sua concepção. Disse talvez consigo: — Balzac separa os
dois primos, depois de um beijo (aliás, o mais casto dos beijos). Carlos vai para a América;
a outra fica, e fica solteira. Se a casássemos com outro, qual seria o resultado do encontro
dos dois na Europa? — se tal foi a reflexão do autor, devo dizer, desde já, que de nenhum
modo plagiou os personagens de Balzac. A Eugênia deste, a provinciana singela e boa, cujo
corpo, aliás robusto, encerra uma alma apaixonada e sublime, nada tem com a Luísa do Sr.
Eça de Queirós.
6
Encetar: começar, iniciar.
7
Peça de Emile Zola
8
Obra de Zola que inspirou O crime do Padre Amaro.
73
Unidade II
Na Eugênia, há uma personalidade acentuada, uma figura moral, que por isso mesmo
nos interessa e prende; a Luísa — força é dizê-lo — a Luísa é um caráter negativo, e no meio
da ação ideada pelo autor, é antes um títere9 do que uma pessoa moral.
Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo
outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência.
Casada com Jorge, faz este uma viagem ao Alentejo, ficando ela sozinha em Lisboa;
aparece-lhe o primo Basílio, que a amou em solteira. Ela já o não ama; quando leu a notícia
da chegada dele, doze dias antes, ficou muito “admirada”; depois foi cuidar dos coletes do
marido. Agora, que o vê, começa por ficar nervosa; ele lhe fala das viagens, do patriarca
de Jerusalém, do papa, das luvas de oito botões, de um rosário e dos namoros de outro
tempo; diz-lhe que estimara ter vindo justamente na ocasião de estar o marido ausente.
Era uma injúria: Luísa fez-se escarlate; mas à despedida dá-lhe a mão a beijar, dá-lhe até
a entender que o espera no dia seguinte. Ele sai; Luísa sente-se “afogueada, cansada”, vai
despir-se diante de um espelho, “olhando-se muito, gostando de se ver branca”. A tarde e
a noite gasta-as a pensar ora no primo, ora no marido. Tal é o introito10, de uma queda,
que nenhuma razão moral explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor,
nenhum despeito, nenhuma perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem
repulsa, sem consciência; Basílio não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que
é. Uma vez rolada ao erro, como nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a saciedade
das grandes paixões criminosas: rebolca-se11 simplesmente. Assim, essa ligação de algumas
semanas, que é o fato inicial e essencial da ação, não passa de um incidente erótico, sem
relevo, repugnante, vulgar. Que tem o leitor do livro com essas duas criaturas sem ocupação
nem sentimentos? Positivamente nada. E aqui chegamos ao defeito capital da concepção
do Sr. Eça de Queirós. A situação tende a acabar, porque o marido está prestes a voltar do
Alentejo, e Basílio começa a enfastiar-se, e, já por isso, já porque o instiga um companheiro
seu, não tardará a trasladar-se a Paris. Interveio, neste ponto, uma criada. Juliana, o caráter
mais completo e verdadeiro do livro; Juliana está enfadada de servir; espreita um meio de
enriquecer depressa; logra apoderar-se de quatro cartas; é o triunfo, é a opulência. Um dia
em que a ama lhe ralha com aspereza, Juliana denuncia as armas que possui. Luísa resolve
fugir com o primo; prepara um saco de viagem, mete dentro alguns objetos, entre eles um
retrato do marido. Ignoro inteiramente a razão fisiológica ou psicológica desta precaução
de ternura conjugal: deve haver alguma; em todo caso, não é aparente. Não se efetua a
fuga, porque o primo rejeita essa complicação; limita-se a oferecer o dinheiro para reaver as
cartas, dinheiro que a prima recusa, despede-se e retira-se de Lisboa. Daí em diante o cordel
que move a alma inerte de Luísa passa das mãos de Basílio para as da criada. Juliana, com
a ameaça nas mãos, obtém de Luísa tudo, que lhe dê roupa, que lhe troque a alcova, que
lha forre de palhinha, que a dispense de trabalhar. Faz mais: obriga-a a varrer, a engomar,
9
Títere: marionete.
10
Introito: começo.
11
Rebolcar-se: lançar-se.
74
LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
a desempenhar outros misteres12 imundos. Um dia Luísa não se contém; confia tudo a um
amigo de casa, que ameaça a criada com a polícia e a prisão, e obtém assim as fatais letras,
Juliana sucumbe a um aneurisma; Luísa, que já padecia com a longa ameaça e perpétua
humilhação, expira alguns dias depois.
Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica, intentou
dar no seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é
confessar que o não conseguiu, a menos de supor que a tese ou ensinamento seja isto: a
boa escolha dos fâmulos é uma condição de paz no adultério. A um escritor esclarecido e
de boa fé, como o Sr. Eça de Queirós, não seria lícito contestar que, por mais singular que
pareça a conclusão, não há outra no seu livro. Mas o autor poderia retorquir:
— Não, não quis formular nenhuma lição social ou moral; quis somente escrever uma
hipótese; adoto o Realismo, porque é a verdadeira forma da arte e a única própria do
nosso tempo e adiantamento mental; mas não me proponho a lecionar ou curar; exerço a
patologia, não a terapêutica.
12
Mister: ofício.
13
Fâmula: criada.
75
Unidade II
Parece que o Sr. Eça de Queirós quis dar-nos na heroína um produto da educação frívola
e da vida ociosa; não obstante, há aí traços que fazem supor, à primeira vista, uma vocação
sensual. A razão disso é a fatalidade das obras do Sr. Eça de Queirós, ou, noutros termos,
do seu Realismo sem condescendência: é a sensação física. Os exemplos acumulam-se de
página a página; apontá-los, seria reuni-los e agravar o que há neles desvendado e cru. Os
que de boa fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas,
para só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam
que isso é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que
importa eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos
ardores, exigências e perversões físicas. Quando o fato lhe não parece bastante caracterizado
com o termo próprio, o autor acrescenta-lhe outro impróprio. De uma carvoeira, à porta da
loja, diz ele que apresentava a “gravidez bestial”. Bestial por quê?
Com tais preocupações de escola, não admira que a pena do autor chegue ao extremo
de correr o reposteiro conjugal; que nos talhe as suas mulheres pelos aspectos e trejeitos
da concupiscência; que escreva reminiscências e alusões de um erotismo, que Proudhon
chamaria onissexual e onímodo; que no meio das tribulações que assaltam a heroína, não
lhe infunda no coração, em relação ao esposo, as esperanças de um sentimento superior,
mas somente os cálculos da sensualidade e os “ímpetos de concubina”; que nos dê as cenas
repugnantes do Paraíso; que não esqueça sequer os desenhos torpes de um corredor de
teatro. Não admira; é fatal; tão fatal como a outra preocupação correlativa. Ruim moléstia
é o catarro; mas por que hão de padecer dela os personagens do Sr. Eça de Queirós? N’O
Crime do Padre Amaro há bastantes afetados de tal achaque; n’O Primo Basílio fala-se
apenas de um caso: um indivíduo que morreu de catarro na bexiga. Em compensação há
infinitos “jactos escuros de saliva”. Quanto à preocupação constante do acessório, bastará
citar as confidências de Sebastião a Juliana, feitas casualmente à porta e dentro de uma
confeitaria, para termos ocasião de ver reproduzidos o mostrador e as suas pirâmides de
doces, os bancos, as mesas, um sujeito que lê um jornal e cospe a miúdo, o choque das bolas
de bilhar, uma rixa interior, e outro sujeito que sai a vociferar contra o parceiro; bastará
citar o longo jantar do conselheiro Acácio (transcrição do personagem de Henri Monier);
finalmente, o capítulo do Teatro de S. Carlos, quase no fim do livro. Quando todo o interesse
se concentra em casa de Luísa, onde Sebastião trata de reaver as cartas subtraídas pela
76
LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
Talvez estes reparos sejam menos atendíveis, desde que o nosso ponto de vista é diferente.
O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas intenso e completo; e daí vem que
o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é simplesmente o tom próprio. Dado,
porém, que a doutrina do Sr. Eça de Queirós fosse verdadeira, ainda assim cumpria não
acumular tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas; e quem o diz é o próprio chefe da
escola, de quem li, há pouco, e não sem pasmo, que o perigo do movimento realista é haver
quem suponha que o traço grosso é o traço exato. Digo isto no interesse do talento do Sr.
Eça de Queirós, não no da doutrina que lhe é adversa; porque a esta o que mais importa
é que o Sr. Eça de Queirós escreva outros livros como O primo Basílio. Se tal suceder; o
Realismo na nossa língua será estrangulado no berço; e a arte pura, apropriando-se do que
ele contiver aproveitável (Porque o há; quando se não despenha no excessivo, no tedioso,
no obsceno, e até no ridículo), a arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias do
Monge de Cister, do Arco de Sant’Ana e do Guarani.
A atual literatura portuguesa é assaz rica de força e talento para podermos afiançar
que este resultado será certo, e que a herança de Garrett se transmitirá intacta às mãos da
geração vindoura. Talvez estes reparos sejam menos atendíveis, desde que o nosso ponto de
vista é diferente. O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas intenso e completo;
e daí vem que o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é simplesmente o tom
próprio.
ASSIS, M. O primo Basílio de Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Revista O Cruzeiro, 16/04/1878. Disponível em:
<http://machado.mec.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=125&Itemid=141>. Acesso em: 23 maio
2012.
Resumo
77
Unidade II
Exercícios
Questão 1. O livro O primo Basílio, de Eça de Queirós, é classificado como um romance de tese, pois
nele o autor procura demonstrar uma ideia. Sobre essa obra, considere as afirmativas a seguir:
I – Trata-se de um romance em que predomina o fluxo de consciência dos personagens, o que coloca
as ações em segundo plano.
III – A protagonista Luísa tem personalidade forte e é um símbolo da luta pelos direitos das mulheres
na sociedade machista do século XIX.
A) I.
B) II.
C) III.
D) I e II.
E) II e III.
78
LITERATURA PORTUGUESA: PROSA
I – Afirmativa incorreta.
Justificativa: não se trata de um romance psicológico, e sim de uma obra que depende essencialmente
das ações.
II – Afirmativa correta.
Justificativa: Luísa é uma personagem fraca, que se deixa iludir pelo primo e amedronta-se com a
chantagem da empregada.
Questão 2. Na música a seguir, de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, há a citação
de um trecho (em destaque) de O Primo Basílio.
79
Unidade II
Fonte: MONTE, M. BROWN, C. ANTUNES, A. Amor, I love you. In: Memórias, crônicas e declarações de amor. Phonomotor Records/
EMI, 2000. Disponível em <http://www.vagalume.com.br/marisa-monte/amor-i-love-you.html#ixzz2Qw4n5koz>. Acesso em: 15 mar.
2013.
II – O trecho transcrito da obra contradiz a mensagem da música, que tem estilo moderno, e não
romântico.
A) I.
B) II.
C) III.
D) I e II.
E) I e III.
80