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Representações do trabalho (ofícios) nas pinturas de Gustave Courbet.

(Séc. XIX).
Lucas Queiroz Rozendo 1

Resumo: O artigo estuda a partir das pinturas sociais de Gustave Courbet, as


transformações sociais na Europa do século XIX. Através da análise crítica das
obras, compreende o olhar dado pelo pintor em seus temas e aspectos
pictóricos, desse modo podendo notar as mudanças em curso durante o
momento de produção do realismo em oposição a arte acadêmica romântica e
neoclassicista.

1
Artigo elaborado para a disciplina de Contemporânea II, curso de graduação em História da PUC-SP. E-
mail: lucasrozendo@hotmail.com.
O presente artigo objetiva estudar o realismo social compreendendo a
esfera do trabalho abordada pelo pintor, adequado ao seu contexto propício de
gênesis, por meio da observação critica as pinturas de Gustave Courbert
(1819-1877). O contexto de produção de Courbet atinge a esfera do trabalho
empreendida no instante de florescimento da revolução industrial na Europa,
momento de expansão das burguesias mercantis e formação da classe
trabalhadora.
O estudo da história por meio de imagens revela dimensões sensíveis
de maior âmbito que um documento burocrático escrito, por isso as pinturas de
Courbet apontam muito sobre a sociedade de sua época, não apenas por seu
apego ao real concreto, mas também agrega em possibilitar conhecer o porquê
de suas investidas contrárias aos movimentos artísticos românticos e
neoclassicistas da primeira metade do século XIX.2
É certo que durante muito tempo o registro imagético da pintura foi
tomado como testemunho irrefutável do real ou de uma realidade, por
estudiosos da área das humanidades e por leigos. Justamente nesse quesito
reside uma das maiores armadilhas a serem superadas pelos historiadores que
se propõem a analisá-los.3
As nuances realistas, as cores integrais, a luz sóbria e os temas
agregados ao cotidiano das obras do pintor destoam das pinturas produzidas
do embate entre Neoclassicismo e Romantismo, o realismo surge como força
que iria inicialmente chocar e em seguida dominar a arte na segunda metade
do século XIX.4
Desde meados do século XVIII, floresce na Europa a Revolução
industrial consolidando a organização do processo produtivo por intermédio do
sistema de fábrica, e por meio do qual foram produzidas e reconfiguradas
relações sociais distintas daquelas até então existentes. A revolução industrial
suscita a precarização da vida e do trabalho dos operários nas fábricas, além
da apropriação de saberes pela burguesia, a utilização integral do tempo e a
dominação social. A burguesia em evidente expansão durante a segunda
2
FERRUA, Pietro. Realismo e anarquismo na obra e na vida de Gustave Courbet. VERVE. São
Paulo, n. 3, p. 30-49, 2003
3
PELEGRINI, Sandra C. A. O realismo social de Courbet. Notas sobre as interfaces entre a
pintura e fotografia na pesquisa histórica, São Paulo, Unesp, p.19-21, 2013.
4
Sobre o assunto consultar :HOBSBAWN, Eric. A Era do Capital (1848-1875). Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996.
metade do século XVIII, estabelece sua hegemonia através do incentivo e
instauração de uma cultura de vida citadina empenhada em tornar todo tempo
produtivo para os trabalhadores e lucrativo para os empregadores burgueses. 5

O surgimento de sindicatos que reivindicavam condições mais dignas e


jornadas menos extenuantes nas indústrias, contrastavam diretamente com a
ascendente burguesia, determinada a aumentar cada vez mais seus lucros. 6
Tal impasse fez surgir várias teorias sociais identificadas com os referentes
grupos.
O realismo está conectado a esse momento da história em que surgem
as primeiras lutas sociais contra o imperialismo capitalista. Muitos artistas se
levantam para reagir contra as idealizações amorosas, excentricidades e
patriotismo conservador do movimento romântico. O realismo propõe uma
beleza real e objetiva, ironizando a beleza ideal. 7
Com os primeiros ruídos das Máquina, os anacronismos do
Neoclassicismo e o escapismo do Romantismo, não conseguem se afirmar
frente a cortante sobriedade do Realismo. Por isso, deve se considerar que o
desenvolvimento da revolução industrial, a formação do mundo do trabalho e o
fortalecimento do capitalismo burguês anseia novas compreensões sensíveis
que serão direcionados ao mundo do labor e as dimensões da vida concreta e
rotineira.8
Os artistas se limitavam a fatos do mundo moderno à medida que os
experimentavam pessoalmente; somente o que podiam ver ou tocar era
considerado real. Deuses, deusas e heróis da Antiguidade estavam fora de
suas temáticas. Camponeses e a classe trabalhadora urbana estavam dentro
em tudo, da cor ao tema. O realismo trazia para a arte uma sensação de
sobriedade emudecida.
Gustave Courbet nasceu em 1819 em uma pequena cidade do interior
da França, Ornans no departamento de Doubs, proveniente de uma rica família
de proprietários de terra na aldeia de Flagey. Mesmo tendo origem abastada o
5
Hobsbawn (1996) e Thompson (1987; 2000).
6
Para aprofundar sobre o tema ler: COGGIOLA, OSVALDO. Os inicios das organizações dos
trabalhadores (2010).

7
PELEGRINI, Sandra C. A. O realismo social de Courbet. Notas sobre as interfaces entre a
pintura e fotografia na pesquisa histórica, São Paulo, Unesp, p.26-28, 2013.
8
Ibidem.
pintor partiu da ideia de que a beleza plástica não era privilégio da aristocracia
e dedicou-se ao desvendamento das vivências dos segmentos sociais menos
favorecidos e suas condições de vida. Sem afastar-se dos princípios estéticos
realistas, Courbet desenvolveu a denominada “pintura social” cujo objetivo
explicitou o intento de denunciar as injustiças e as desigualdades sociais, a
miséria do trabalhador pobre em oposição à riqueza e opulência da aristocracia
e da burguesia francesa.9
Seu repertório incluiu percepções de todo o social, mas privilegiou, a
partir de 1850, os personagens comuns e cenas do cotidiano do trabalho.
Reconhecê-lo como profissional inscrito no âmbito da pintura social implica,
segundo Gombrich (1999), proceder a uma análise dos registros do artista com
relação à escolha de seus temas, seus objetivos sociais e ideológicos. Courbet
objetivava não apenas ser um pintor mas também um homem que buscasse
fazer arte atual e isso significava comprometer se com questões do seu tempo
e propor uma forma diferenciada de comercializar suas telas.
Só espero realizar um milagre: viver toda minha vida de minha
arte, sem me afastar de meus princípios, sem ter por um só instante
mentido à minha consciência e sem ter nunca executado um palmo de
pintura para agradar a alguém ou para vender (COURBET apud
CATÁLOGO, 2003, p. 2). 10

As pinturas de Courbet revelam os posicionamentos do pintor no âmbito


político e estético, porém não ocultam os dilemas e contradições vivenciados
por ele: afinal para sobreviver de suas pinturas se submeteu aos favores de
Bruyas, cujo pai era um banqueiro riquíssimo pertencente aos segmentos
dominantes que ele tanto abominava. Apesar disso, em suas cartas que trocou
com familiares e amigos sempre reforçava seu compromisso de atribuir função
social a sua obra e provocar a consciência de seus pares e quem sabe da
burguesia.11
9
FERRUA, Pietro. Realismo e anarquismo na obra e na vida de Gustave Courbet. VERVE.
São Paulo, n. 3, p. 30-49, 2003.
10
Tradução livre de afirmações de Courbet referentes à carta escrita por ele a Jacques Louis Bruyas,
admirador da pintura, mas sem aptidão para o aprendizado, passou a se dedicar a promover e a
colecionar obras de artistas contemporâneos Cf. informações publicadas no Catálogo da exposição
“Bonjour, Monsieur Courbet! Chefs d'œuvre de la collection Bruyas du musée Fabre” (2003).
11
INFORMAÇOES RETIRADAS do Depoimento de Courbet publicado na Coleção Mestres da Pintura
(1978, p.18).
Essa postura social assumida por Courbet deve muito ao contexto
histórico em que vivenciou, as memórias do movimento revolucionário Francês
(1789-1799), a mobilização das ligas proletárias que se formavam no
continente europeu e a eclosão de uma série de greves reforçaram as suas
utopias políticas. Assim, em 1848, não hesitou a unir-se aos grupos que
organizaram as barricadas e embrenharam-se nos embates pela instalação da
República na França.
A partir de todos esses referenciais e práticas, concebeu sua arte como
“ferramenta” da luta social, ao pintar os personagens que aterrorizavam a
burguesia e enalteciam a força do povo, nos anos trinta e quarenta do século
XIX, parecia pressentir o vigor das massas amotinadas da Comuna de Paris
(1871). Por tudo isso, Courbet jamais caiu nas graças dos segmentos mais
abastados por questões políticas e morais, inclusive suscitou a repulsa de
muitos críticos de arte e artistas.
Em seguida, o artigo expõe a análise de pinturas de Courbet que tratam
diretamente da esfera do trabalho (ofícios) no momento de transformação do
labor como atividade regulada pelas necessidades de sobrevivência para o
trabalho empreendido na atividade de produção do capitalismo industrial.

“O passeio” ou “Bonjour Monsieur Courbet”. 1854. Óleo sobre tela, 149 x


155 cm.

A presente pintura “O passeio” ou melhor conhecida como “Bonjour


Monsieur Courbet” de 1854, traz ao fundo da composição um horizonte
interminável de céu azul de nuvens esparsas e grama verde, o primeiro plano
trata de um terreno desgastado de poucos arbustos que se confunde com as
sombras das figuras mais destacadas da pintura.
Os três homens e o cão se encontram em um diverso de expressões
ambíguas e contrastantes. No entanto percebe-se o encontro como algo que
traz surpresa ao personagem de mochila. O primeiro homem a esquerda da
pintura é o criado do segundo homem, esse que está no centro das percepções
da composição se veste com finas vestimentas revelando por sua aparência e
barba ruiva, a identidade do personagem retratado: Bruyas. O supracitado se
tornou amigo e “patrocinador” de Courbet e foi retratado por ele duas vezes em
1854, nas obras “Retrato de Alfredo Bruyas” e na referente pintura. Além disso,
percebe-se a postura do criado que se coloca de cabeça baixa, talvez
contrariado por sua posição humilde e apenas auxiliar ao patrão Bruyas.
O terceiro personagem a direita é o próprio pintor em suas vestes
humildes, inclusive mais miseravelmente vestido do que o criado do Varão.
Disposto em uma posição lateral, Courbet se autorretrata com um olhar
soberbo e uma postura de rosto confiante diante do encontro com seu
patrocinador. Gustave Courbet pinta a si próprio como um simples andarilho,
trajando vestes simples, levando uma espécie de cajado na mão direita e um
humilde chapéu na outra, também carregava uma gualdrapa nas costas e
usava algo comum entre os camponeses para proteger os pés. Provavelmente
uma cena comum durante as caminhadas do pintor pelas paisagens em que
estudava. A Obra sugere o caráter laborioso de seu oficio como pintor e o tema
cotidiano, concreto que essa pintura revela a intenção de retratar o real, o
sóbrio e o verdadeiro. A presença de Bruyas na pintura propõe a discussão
sobre as formas que os pintores se colocam diante da sustentação financeira
de seus ofícios. Provavelmente Courbet se orgulha de sua condição não
totalmente dependente dos compradores e patrocinadores de arte de sua
época.
A posição do pintor referente aos financiadores e compradores de arte
de seu tempo pode ser notada no momento em que teve onze produções
recusadas na Exposição Universal, por ser considerado revolucionário e
socialista.12 Tal contexto levou Courbet a organizar uma exposição concorrente
com cerca de quarenta quadros no chamado “Pavilhão do Realismo” e cobrou
ingresso para a visitação. Esta talvez tenha sido uma das poucas
retrospectivas da vida de um artista sem a intervenção direta de instituições
oficiais. Ao inaugurar a exposição de arte ao público, algo pouco usual em seu
tempo, ressaltou o anseio de comprometer-se com seu tempo e propor uma
forma diferenciada de comercializar a suas pinturas.

A Fiandeira Adormecida. 1853. Óleo sobre tela, 91 x 115 cm.

Na obra acima “A fiandeira adormecida”, Courbet incorpora de forma


muita adequada os traços de cansaço no rosto da mulher que provavelmente
cansada do ofício exercido cai ao sono. Gustave revela a situação de miséria e
sofrimento que assola os mais pobres, e também registra a exploração a que
estão submetidos em suas composições. A obra em questão demonstra um
elemento em especial que os teóricos marxistas chamam atenção: o fato de
que a industrialização não se deu de forma homogênea na Inglaterra,
tampouco em outros países europeus e, muito menos em outros
continentes13.Por isso uma mulher que está submetida ao cansaço é
representada fiando ao tempo que manufaturas tecelãs eram uma realidade
nos centros do desenvolvimento capitalista têxtil.

12
FERRUA, Pietro. Realismo e anarquismo na obra e na vida de Gustave Courbet. VERVE.
São Paulo, n. 3, p. 30-49, 2003.

13
Hobsbawn (1996) e Thompson (1987; 2000).
A transformação desigual do mundo do trabalho permite pensar regiões
em etapas que os historiadores denominam pré-industriais 14.Essa primeira
etapa de transformação desigual das relações produtivas, já permitiam as
manifestações sociais dos trabalhadores em relação ao domínio da carga de
trabalho sobre o tempo.
Na Inglaterra por exemplo, a agitação operária percorreu todo o século
XVIII, em especial a sua segunda metade. Segundo Georges Lefranc: "As
primeiras associações permanentes de assalariados precedem em meio século
o sistema manufatureiro e se localizam em ofícios onde o trabalho manual-
artesanal predomina: o sindicalismo não é filho direto do maquinismo”.
Logo se observa já nos primeiros momentos de transformação pré-
industrial a revolta e organização dos trabalhadores diante de costumes
alterados, como por exemplo a carga de trabalho regido não pelas necessidade
do trabalhador de produção, mas do ritmo imposto pelo empregador que obriga
a produção incessante visando o seu maior lucro.

Peneiradoras de trigo. [1853-1854]. Óleo sobre tela, 131 x


167 cm.

A obra “peneiradoras de trigo" segue no mesmo tema até aqui retratado:


O labor. No entanto, Courbet transmite na pintura as faces cansadas das

14
Ibidem
jovens e o rosto desconsolado do menino convivendo com as más condições
oferecidas a nascente classe trabalhadora que convive com os ambientes sujos
e impróprios dos depósitos e manufaturas. O desconsolo do menino,
proveniente da fadiga do trato com o trigo, desnuda a injustiça com o
contraditório enriquecimento da burguesia francesa através da exploração
dessas forças de trabalho. Uma das singularidades dessa composição é o
entendimento que não necessariamente o trabalho estava ligado a manufatura
têxtil e o espaço fabril. Mesmo no âmbito doméstico o proletariado estaria
alimentando as necessidades das manufaturas em desenvolvimento. As
“peneiradoras de trigo” assim como a “fiandeira adormecida” escancaram o
desajuste das transformações culturais em relação a jornada de trabalho
imposta pelos patrões burgueses, sobre uma massa desacostumada a exercer
jornada complexa, seguindo a alta exigência de produção dos burgueses donos
das primeiras manufaturas de ofícios. Essa mudança da cultura e dos
costumes não compreende apenas transformações técnicas de manufatura que
exigem maior sincronização de trabalho e maior exatidão nas rotinas do tempo.
A transformação na percepção do tempo atinge principalmente a medição do
tempo como meio de exploração da mão de obra. 15
O historiador inglês Edward Palmer Thompson expõe no livro costumes
em comum (primeira publicação-1981) o acirramento, durante a transformação
cultural do tempo, entre a classe trabalhadora e a burguesia. Os trabalhadores
de ofícios tal como os personagens da “fiandeira adormecida” e as
“peneiradoras de trigo” estiveram em um período de estabelecimento de multas
por atrasos e não cumprimento da jornada, maior controle através das folhas
de ponto sobre o período de trabalho semanal e diário, e a difusão de ideias
por meio de instituições sociais que desatrelavam o tempo gerido pelo fatores
naturais. O historiador inglês afirma inclusive a existência de uma severa
doutrina mercantilista que afirmava a necessidade de salários baixos para

15

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
prevenir o ócio de uma massa trabalhadora que devia viver a beira da
miséria.16

Britadores de Pedras. 1849. Óleo sobre tela, 45 x 54 cm.

Em “Britadores de Pedras” o pintor revela outra face do desenvolvimento


do trabalho na Europa. A pobreza de um rapaz e de um senhor que exercem
um pesado trabalho de quebradores de pedras, com toda certeza a intenção de
Courbet era explicitar os danos da ostensiva rotina do trabalho. No momento
que a tela surge não causou muitos rumores e críticas, mas posteriormente foi
tomada como um “manifesto socialista”, uma vez que a composição escancara
o contraste de idades dos trabalhadores, um é excessivamente jovem e o outro
exageradamente velho para tal árdua função. A justaposição entre os
retratados infere a intenção do pintor de revelar o futuro esperado aos jovens
trabalhadores pobres. As roupas rasgadas em más condições de aparato
técnico para um exercício árduo e excessivo davam todos os motivos e
necessidades para a organização dos trabalhadores excessivamente
explorados. Na primeira etapa de contestação contra os novos hábitos
encontramos a simples resistência. Mas na etapa seguinte, quando é imposta
cada vez mais a disciplina de trabalho capitalista, os trabalhadores começam a

16
Ibidem p.289.
lutar, não contra o tempo, mas sobre ele. Sobre poder viver o tempo ou pelo
menos percebe-lo no novo costume em que viver é trabalhar.
Logo, os “Britadores de Pedras” percebem o tempo e o desgaste das
pesadas cargas diárias reduzirem cada vez mais a vida sendo a infância
abreviada pelo trabalho e o jovem trabalhador logo se tornando o idoso em
mesma condição alheia a passagem do tempo.

Retorno da Feira de Flagey. 1850. Óleo sobre tela, 206 x


275,5 cm.

A pintura acima “Retorno da feira de Flagey” provavelmente foi uma


imagem que durante a; infância de Gustave, ele observou de maneira
constante. Com o fundo de um belo entardecer, percebe-se as cores sóbrias e
as expressões cansadas de viajantes que carregam objetos de
armazenamento de mercadorias compradas ou trocadas durante a feira de
Flagey. Além disso retira-se da pintura a concepção de que o labor devia
atender aos imperativos da vida cotidiana, cuja dinâmica era ditada pelo tempo
natural. O entardecer resume o fim da atividade produtiva, o oposto do que
demonstra o historiador Thompson com o advento da revolução industrial, a
submissão do trabalhador ao tempo das tarefas designadas pelo empregador e
não pelo tempo dedicado a desempenhar as atividades básicas de
sobrevivência. Esse universo modernizador-urbano em que o tempo é
compreendido pelo ritmo das maquinas e vendido como força de trabalho ao
burguês, será o alvo da crítica do “Retorno da Feira de Flagey”. Também
questiona-se nessa pintura a noção de tempo útil, a sujeição do tempo ao
dinheiro e a expansão comercial dos relógios na sociedade que observa as
transformações do século XIX. Essa noção do labor e do tempo natural parece
informar as narrativas visuais formuladas por Courbet na composição. Além
disso, observa-se na pintura uma certa valorização da tradição das feiras,
essas que eram compreendidas como atividades de vadios e
descompromissados com o trabalho formal de ofícios. A feira foi mal
reconhecida pelos novos costumes impostos, uma vez que em uma sociedade
capitalista em plena expansão ser necessario todo tempo ser consumido,
negociado, utilizado, é uma ofensa que a força de trabalho meramente passe o
tempo, ou então permita a passagem natural do dia. Toda perda de tempo é
intolerável, porque irrecuperável.17 Isso transforma o conceito de trabalho
sendo apenas compreendido em uma determinada jornada controlada e
supervisionada.
Por fim, podemos notar que a irregularidade do dia e da semana de
trabalho estava estruturada, até as prieiras décadas do século XIX, no âmbito
da irregularidade mais abrangente do ano de trabalho, pontuados pelos seus
feriados e feiras tradicioanis (Thompson, 2000 p.285, grifo meu)

Caçadores na neve. 1867. Óleo sobre tela, 102 x 122,5 cm.

17
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
p.298, 2000.
A obra “Caçadores na neve” dialoga com “O retorno da feira de Flagey”,
uma vez que aborda as atividades do labor associadas a dinâmica do tempo
natural e as imperativas necessidades básicas de vida, como por exemplo a
caça para se alimentar de proteína animal. Embora “O retorno da feira de
Flagey” aborde de maneira menos violenta o tema, as figuras humanas
demonstram o desgaste dos longos deslocamentos por trajetos em precárias
estradas de chão, percorridos a pé ou sobre o lombo de animais. Porém o que
o pintor retrata é que participar de feiras era algo tomado como costumeiro e
prazeroso. De mesmo modo, as caçadas realizadas pelos homens,
acompanhados por seus cães, também eram práticas comuns naqueles
tempos, e embora demandassem esforço físico, reforçavam o vigor e a
masculinidade do personagem. Nas duas telas referidas, tanto as figuras
humanas, quanto os animais apresentam entre si certa harmonia, eles não se
mostram extenuados e vencidos pela fadiga. Compreende-se a capacidade
do pintor de criticar a esfera do Trabalho colocada em função do individualismo
burguês, sedento por lucro a qualquer preço e não o labor que exerce função
comunitária e familiar trazendo benefício para os núcleos e clãs.

Mulher Pobre da Vila –1866 – Gustave Courbet

A pintura “Mulher Pobre da Vila” se assemelha muito aos “Caçadores da


Neve” por notar os ofícios empreendidos no âmbito doméstico familiar ligado a
sobrevivência e necessidades do próprio grupo. A obra de 1866 retrata uma
mulher pobre carregando muitos gravetos em suas costas ao mesmo tempo
que puxa um bode e acompanha provavelmente sua filha em uma caminhada
por uma neve espessa e um clima gelado. A mulher que pelo título dado pelo
pintor é pobre e mora na vila provavelmente tomou a tarefa de juntar os
gravetos que irão sustentar a fogueira da vila em um dia de extrema
necessidade pela neve que contorna todos os limites da pintura. O pintor
retrata o cansaço da mulher trabalhadora que enfrenta o cuidado com os filhos,
com os animais e participa do cuidado comunitário, presumindo que ela está
trazendo grande quantidade de galhos, essa mulher toma conta de um grupo
familiar da vila e exerce suas funções conforme as suas necessidades e da sua
prole. De certa forma o pintor justifica nessa obra o cansaço de uma mulher
empregada em um ofício exaustivo e pesado mas de recompensa comunitária,
familiar e conforme as necessidade naturais- fisiológicas, climáticas e
comunitárias.

Considerações Finais

Por fim, compreende-se que o estudo da história por meio de fontes


pictóricas deve ser feito com um devido tratamento metodológico adequado, as
pinturas devem ser apreendidas no contexto de sua produção e no âmbito de
sua visualidade. A utilização de fontes pictóricas apenas no caso de escassez
documental ou como mera ilustração constitui uma prática inconveniente e
esvaziada de sentido, um verdadeiro empecilho que nos torna incapazes de
vislumbrar a complexidade de uma produção visual.
Portanto o que se retira das pinturas trazidas ao artigo é a centralidade do
tema dos Ofícios nas pinturas produzidas no realismo social de Gustave
Courbet. As fontes focalizam o labor em transformação durante o período de
florescimento da Revolução industrial na Europa. Courbet revela a posição
submissa dos trabalhadores, em relação as mudanças entusiasmadas pela
burguesia, no instante de mudança dos costumes e da percepção do tempo
pela classe trabalhadora em formação.
Os trabalhadores que são pintados no exercício de seus ofícios com feições
cansadas e descontentes indicam a iminente organização de suas lutas pelo
poder e direito sobre o tempo.
Bibliografia
MESTRES DA PINTURA. Courbet. São Paulo: Abril, 1978.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1987. (v. 1 e 2).
________. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

COGGIOLA, OSVALDO. Os inicios das organizações dos trabalhadores.


Agosto de 2010.

PELEGRINI, Sandra C. A. O realismo social de Courbet. Notas sobre as


interfaces entre a pintura e fotografia na pesquisa histórica. São Paulo, Unesp,
julho-dezembro, 2013.

HOBSBAWN, Eric. A Era do Capital (1848-1875). Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1996.

GOMBRICH, Ernest Hans. Arte e ilusão. Lisboa: Martins Fontes, 1997.


______. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC-Editora, 1999.

FERRUA, Pietro. Realismo e anarquismo na obra e na vida de Gustave


Courbet. VERVE. São Paulo, n. 3, p. 30-49, 2003.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. 1951.

CATÁLOGO da exposição Bonjour, Monsieur Courbet! Chefs d'œuvre de la


collection Bruyas du musée Fabre, realizada no pavilhão de Exposições do
Museu Fabre, na cidade de Montpellier (França), entre os dias 28 de maio e 11
de outubro de 2003.

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