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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – HISTÓRIA DA LITERATURA


LITERATURA DE EXPRESSÃO FEMININA

II
Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra
Além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens

Entre os vossos dentes.

(HILST, Hilda. Da poesia. p. 287) Originalmente em Júbilo, memória, noviciado da paixão.

IV
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é o irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
Livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.

(HILST, Hilda. Da poesia. p. 290-291) Originalmente: idem.

Data
(à maneira d’Eustache Deschamps)

Tempo de solidão e de incerteza


Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e tempo de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira


Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro


Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça

(ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral e outros poemas. p. 190) Originalmente em


Livro sexto.
O velho abutre

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas


A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas

(ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral e outros poemas. p. 194) Originalmente: idem.

Torres
Construir torres abstratas
porém a luta é real. Sobre a luta
nossa visão se constrói. O real
nos doerá para sempre.

(FONTELA, Orides. Poesia completa. p. 56) Originalmente em Transposição.

As sereias
Atraídas e traídas
atraímos e traímos

Nossa tarefa: fecundar


atraindo
nossa tarefa: ultrapassar
traindo
o acontecer puro
que nos vive.

Nosso crime: a palavra.


Nossa função: seduzir mundos.

Deixando a água original


cantamos
sufocando o espelho
do silêncio.

(FONTELA, Orides. Poesia completa. p. 121). Originalmente em: Helianto


37.
más allá de cualquier zona prohibida
hay un espejo para nuestra triste transparencia

37.
lá além de qualquer zona proibida
há um espelho para nossa triste transparência

(PIZARNIK, Alejandra. A árvore de diana. p. 88/89)

A esfinge

Ofélia tem os cabelos tão pretos


como quando casou.
Teve nove filhos, sendo que
tirante que um é homossexual
e outro que mexe com drogas,
os outros vão levando no normal.
Só mudou o penteado e botou dentes.
Não perdeu a cintura, nem
aquele ar de ainda serei feliz,
inocente e malvada
na mesma medida que eu,
que insisto em entender
a vida de Ofélia e a minha.
Ainda hoje passou de calça comprida
a caminho da cidade.
Os manacás cheiravam
como se o mundo não fosse o que é.
Ora, direis. Ora digo eu. Ora, ora.
Não quero contar histórias,
porque história é excremento de tempo.
Queria dizer-lhes é que somos eternos,
eu, Ofélia e os manacás.
(PRADO, Adélia. Poesia reunida. n/p)
recuperação da adolescência
é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço
(CESAR, Ana Cristina. Poética. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 17)

Jornal, longe
Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões...?

Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:


e o sol empalidece suas letras infinitas.

Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?


Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.

De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;


de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.

Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:


“Os jornais servem para fazer embrulhos”.

E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.


(MEIRELES, Cecília. Poesia completa. v. 1. p. 583-584)

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