Você está na página 1de 8

DIREITO CONSTITUCIONAL I – AULA 5

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

ENTRE OS FUNDAMENTAIS OS MAIS FUNDAMENTAIS


(ARTIGO 5º, CAPUT, I E II)?

Não há, propriamente, uma hierarquia entre os dispositivos constitucionais


que tratam de Direitos Fundamentais. No entanto, é preciso reconhecer que
entre as o caput do artigo 5º e o inciso II do mesmo artigo estão aqueles
com maior carga de conteúdo, dos quais muitos outros apresentados na
sequência são uma especificação. São eles:

DIREITO À VIDA

O mais elementar dos direitos fundamentais, sem o qual nenhum outro


direito pode ser fruído: quando se protege este direito, em última instância
se resguarda o seu titular, o cidadão sujeito de direitos. Trata-se aqui da
própria existência

Em princípio, trata-se de um “direito negativo”, de primeira dimensão: a


proteção contra a retirada arbitrária da vida (pelo Estado ou por particulares
– tumulto, revolta). É o direito de continuar vivo ou de não ser morto.

No seu trato, as perguntas mais importantes são: a) quando se inicia a vida?


b) quando a vida acaba? c) inclui autodefesa? Em que limites, caso
positivo? Tudo isso é determinante para fixarmos a extensão do que
estamos tratando.

Não há nenhuma especificação na Constituição de que ela seja “protegida


desde a concepção”1, como muitos pleiteiam. Não existe norma no Brasil
que defina o momento de início da vida. O fim da vida é regulada por uma

1
Mesmo entre os defensores deste ponto dividem-se entre aqueles que acreditam que a concepção se
dá no exato momento do encontro do óvulo com o espermatozoide, ou se se dá por ocasião da nidação
(implantação do óvulo no útero), que se dá entre cinco ou seis dias depois.
lei ordinária (hierarquicamente inferior à Constituição), a lei 9.434/97, que
estabelece como termo final da vida o “diagnóstico de morte encefálica,
constatada e registrada por dois médicos não participantes das
equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal
de Medicina.”2

O aborto é proibido no Brasil simplesmente em razão de lei ordinária


(Código Penal), que se situa abaixo da Constituição. E o mesmo Código
Penal prevê situações em que o aborto não é crime, o que seria impossível
se a Constituição protegesse expressamente a vida desde a concepção.

O STF também já deu indícios de que não adota este raciocínio: em


sentido contrário, por exemplo, foram suas decisões sobre interrupção de
gravidez de Anencéfalos – ADPF 54/DF, e sobre descarte/utilização
científica de embriões utilizados em fertilização artificial – ADI 3510/DF).

Já a Constituição é expressa, como veremos daqui a algumas aulas, a


proibir a pena de morte, salvo guerra declarada. Questões como a prática da
Eutanásia também são objeto de grande polêmica. E assim também as
recusas a tratamentos em razão de convicções religiosas.

O direito à vida inclui o direito a uma existência digna? Neste caso também
seria um direito prestacional: fornecimento de um aparato mínimo para o
sustento da pessoa. A maior parte dos Autores de Direito Constitucional
acham que sim. Também o STF nas várias decisões em que assimila o
direito à saúde ao direito à vida.

Inclui também o direito à saúde? Embora com forte ligação com o direito à
vida, com este não se confunde. O próprio texto constitucional faz essa
distinção, trazendo o direito à saúde como algo autônomo no artigo 6º, que
examinaremos em algumas aulas. Mas podemos adiantar que o direito à
saúde é mais bem compreendido como o direito a que o Estado crie e
mantenha uma rede pública de prestações de saúde à coletividade, e não a
obrigação deste Estado de preservar individualmente cada vida,
independentemente do custo.

2
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
As discussões filosóficas mais recentes e mais instigantes sobre o direito à
vida estão na obra do filósofo italiano Giorgio Agamben3. Ele recupera
conceitos da filosofia grega, segundo os quais, o que chamamos de “vida”
divide-se em dois aspectos:

“Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós
queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica
e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum:
zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos
(animais, homens ou deuses) e bios que indicava a forma ou maneira de
viver própria de um indivíduo ou de um grupo”

É preciso reconhecer que há ramos do direito brasileiro, como o Civil, que


já adotam esta distinção, ainda que não sejam claras em suas referências
filosóficas. Todas as questões envolvendo capacidade civil, por exemplo,
ilustram que esta distinção. Uma pessoa interditada é alguém que tem
zoé4, mas já não tem bios5 no sentido que o filósofo trata, pois já não é
mais admitida a participar de nenhuma forma da vida política da
comunidade. Por outro lado, quando se aceita a ideia do direito à herança,
está se projetando a vontade (atribuindo-se bios) a um ser morto, que já
não dispõe de zoé.

Historicamente, esta escala entre zoé e bios move-se ao sabor das


decisões políticas da comunidade: estrangeiros, escravos, mulheres já
foram pessoas a quem somente se reconhecia a zoé, e não a bios, na
medida em que não eram considerados sujeitos políticos, recebendo
tratamento, no limite, semelhante a animais e coisas.

É possível que a recuperação dessa distinção de conceitos nos traga mais


clareza para solução dos seríssimos problemas que existem em torno do
direito à vida, e que resultam em discussões extremamente amargas.

3
Para conhece-lo, veja o link https://pt.wikipedia.org/wiki/Giorgio_Agamben.

4
A vida simples, comum a todos os seres vivos

5
A vida política
Vamos tentar? Para debate, pensemos na questão do aborto (tanto as
hipóteses legais quanto as ilegais) sob esta perspectiva.

DIREITO À LIBERDADE

O direito à liberdade, como direito geral, consiste na possibilidade de o


indivíduo realizar seu projeto de vida, sem a intervenção do Estado ou de
outros grupos sociais (liberdade de locomoção, de crença, de expressão).
Nas palavras do filósofo inglês Stuart Mill, a liberdade é “procurar o
próprio bem pelo método próprio. Cada qual é o guardião conveniente da
própria saúde, quer corporal, quer mental e espiritual. Os homens têm
mais a ganhar suportando que os outros vivam como bem lhes parece do
que os obrigando a viver como bem parece ao resto.”6

Outro filósofo, mais moderno, Robert Alexy, diz que a liberdade é ter a
permissão para fazer algo ou deixar de fazê-lo, quando algo não é nem
obrigatório, nem proibido.7

Ou seja, a liberdade é o espaço da autonomia privada, é a garantia da


vontade do sujeito como única fonte do seu agir8 A liberdade não é criada
pelo Direito. Ela é protegida pelo Direito, a ele pré-existindo.9 O direito
à liberdade é exigível tanto diante do Estado quanto diante dos demais
particulares.

Diferente do que o senso comum afirma, o limite da liberdade não é “a


liberdade do outro”. Esta fórmula, aparentemente neutra, desconsidera a
força social de determinadas grupos e pessoas, que leva à contínua

6
Em “Sobre a Liberdade”

7
Teoria dos Direitos Fundamentais

8
Ricardo Marcondes Martins, em Teoria Jurídica da Liberdade, Editora Contracorrente, 2015, p. 49.

9
Atenção: há uma relevante extrapolação a este princípio: a Administração Pùblica não goza de
liberdade, pois não é um ente privado, ela pertence ao conjunto da sociedade, sendo exercida por
agentes políticos eleitos e servidores contratados. Enquanto estiverem neste exercício, manejando
recursos públicos, não existe em favor deles a ideia de autonomia privada. Sua atividade deve ser
completamente regulada pela lei, sendo-lhes exatamente proibida qualquer conduta não prevista em
lei.
expansão da liberdade destas últimas em detrimento daqueles grupos e
pessoas mais fracos.

“O traço fundamental da República, e mais ainda de uma democracia:


todos os particulares têm valor jurídico igual, o que significa inexistir
algum particular que possua supremacia sobre os demais.”10

Ao que ainda acrescentaria também: tampouco algum grupo social ou


mesmo o governo. Os únicos limites possíveis da liberdade são a
legalidade (princípio que estudaremos abaixo) ou a cessão autônoma de
fração dessa liberdade pela realização de negócios jurídicos unilaterais
ou bilaterais dentro da legalidade.

Direito essencialmente liberal, cuja fruição, em princípio, não depende da


intervenção estatal, senão para sua preservação (e não para que seja
implementado).

Nas aulas seguintes, trataremos dos direitos de liberdade específicos


(expressão, reunião, etc). Mas sua existência também como direito geral é
um sinal da Constituição de 1988 sobre quanto a sociedade brasileira o
presa: a) permitindo ao cidadão que exerça sua autonomia como regra
geral; b) servindo de guia para intepretação da Constituição em novas
situações que se apresentem.

Neste momento, fica também a reflexão: quanto realmente livre é alguém


sem condições econômico-sociais para exercício de sua liberdade?

DIREITO À IGUALDADE

A primeira pergunta a responder: trata-se de igualdade somente formal ou


também material? Igualdade como direito liberal ou prestacional?

Do ponto de vista formal, consiste na submissão de todos que se encontrem


na mesma situação à mesma norma, não se criando tratamentos legais que
diferenciem (para melhor ou pior) as pessoas em razão de traços pessoais
impossíveis (raça, sexo, idade, ou muito difíceis (riqueza, convicções
políticas, religiosas) de serem alterados. Esta é a verdadeira pedra angular

10
Idem 8,
do Constitucionalismo Moderno, afirmação presente desde os primeiros
textos constitucionais.

Isso vale tanto para nossas relações verticais (com o Estado) como para as
relações horizontais. As manifestações mais conhecidas de desigualdade
são o racismo e o machismo. O respeito à orientação sexual homossexual,
foi se dando paulatinamente na última década, culminando com o
julgamento da ADI 4.277, e é pauta muito importante atualmente.

Existe, no entanto, a permissão de se reconhecer que existem desigualdades


materiais, que precisam ser corrigidas (cotas raciais – ADPF 186/DF, Lei
Maria da Penha). A atribuição de um sentido material à igualdade foi uma
reação histórica à sensação de que somente a igualdade formal não afastava
as sensações de injustiça, e encontra seu suporte no texto do artigo 3º da
Constituição, que indica a redução dos vários tipos de desigualdade como
um dos objetivos centrais do país.

Outras discriminações são possíveis, mas precisam sempre ser


excelentemente bem justificadas (concurso público com diferenças de
critérios seletivos entre homens e mulheres) e previstas em lei, ou no
próprio texto constitucional. Uma justificação objetiva e racional, não
podendo ser arbitrárias e contrárias à dignidade humana. Normalmente,
estão relacionadas à realização da igualdade em sentido material.

SEGURANÇA

Tratamos aqui tanto de segurança individual, quanto da segurança coletiva.

Prevenção contra a atuação privada/pública arbitrária que resulte em risco à


integridade pessoal (física/financeira). Trata-se da obrigação do Estado de
preservar a todos dos peritos e ameaças provenientes da sociedade e do
próprio Estado.

Também pode ser compreendida, em um nível mais amplo, como


previsibilidade, estabilidade, redução de riscos. Estabilidade das relações
contratuais: direito adquirido, respeito às decisões judiciais. Em seu
sumário, seria a recusa a aceitar que qualquer um se imponha pela força,
seja ela física ou não (econômica, por exemplo).
Direito negativo (respeito à incolumidade física e à estabilidade jurídica),
com um crescente conteúdo prestacional, decorrente da necessidade de
gastos com a segurança pública.

PROPRIEDADE

A relação de propriedade é aquela que se estabelece entre uma pessoa e


uma coisa, com a pessoa assenhorando-se da coisa e simultânea e
imediatamente, excluindo todas as demais dessa possibilidade em relação a
essa mesma coisa.

O Brasil é um país capitalista, que expressamente admite a propriedade


privada, de renda ou coisas (materiais/imateriais), embora indique que ela
deva exercer uma função social (não egoística, mas nem de longe
socialista): respeito às relações de trabalho, respeito ao meio ambiente.

O respeito deve ser tanto à propriedade individual, quanto também à


propriedade coletiva tradicional (terras indígenas, quilombos) e a
propriedade pública.

LEGALIDADE

Em um Estado Democrático de Direito, a expressão da vontade geral se dá


por meio de leis: atos legislativos abstratos, gerais e voltados para o futuro.
Não se incluem neste conceito regulamentos sem apoio na lei.

Ninguém pode ser obrigado a fazer algo em razão de um capricho de outra


particular ou de um agente do Estado. Isso seria a violação da sua esfera de
liberdade, como vimos acima.

E todas as pessoas privadas no Brasil, tanto físicas quanto jurídicas, tem em


seu campo de liberdade tudo aquilo que a lei não proíba. Expressão da
nossa autonomia da vontade.

Outra faceta deste princípio é que os agentes do Estado somente podem


fazer o que a lei manda.

E, em ambos os casos, a lei deve obedecer ao que diz a Constituição.


A crescente produção de normas pelo Poder Judiciário, principalmente pelo
Supremo Tribunal Federal, tem sido um desafio à concepção mais clássica
do conceito da legalidade acima estudado.

Este desafio atingiu certamente o seu auge com o julgamento pelo STF da
Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 (ADO 26)11, por
meio da qual ele criminalizou atos de homofobia e transfobia,
independentemente de norma legislativa neste sentido.

Voltaremos ao assunto em tópico mais específico do curso, destinado ao


estudo do princípio da reserva legal em matéria penal.

11
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4515053

Você também pode gostar