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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.

Elaboração de Celestino Rafael

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA


FACULDADE DE DIREITO

PARTE I: INTRODUÇÃO

1. Preliminares
 Propósito da Parte Introdutória: compreender o objecto de estudo, o âmbito, as
funções e a importância da TGDC.
 Pré-compreensão: - Divisão do Ordenamento jurídico e do Direito Privado
 Necessidade de revermos alguns conceitos, tais como:
- o conceito de direito;
- seus sentidos
- suas divisões ou especializações

2. Conceito de Direito:
 O Direito como fenómeno humano (muitas vezes oculto) e cultural (ubi homo ibi
ius)
 Dificuldade de se definir o direito.
 Noção normativa: conjunto de normas impostas coactivamente pelo Estado
(ou normas de tutela coactiva) e que visam disciplinar as relações sociais de
um determinado grupo de pessoas, com vista a garantir a harmonia, a paz e o
desenvolvimento.
 Outras noções:
- Guia de acção e de decisão para resolver conflitos (FUNÇÃO REPRESSIVA)
- Meio para organizar o convívio entre os homens, como se este não fosse possível
sem a lei positiva. CRÍTICA: o direito não está todo escrito.
- Meio de que os governantes se servem para dominar os governados
- Conjunto das decisões dos tribunais ou o que um juiz dita como justo;
- Direito como “conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um se pode
harmonizar com o arbítrio de outro, segundo uma lei universal da liberdade”
(Immanuel Kant)

3. Funções do direito. REMISSÃO:


As funções do Direito decorrem justamente do papel que ele representa para prevenir e
acautelar as situações de conflitos, incertezas e rupturas com o normal, com o dever-ser. O
Direito é uma realidade natural, isto é, decorre da natureza do homem.
 Função pacificadora (preventiva e repressiva).
 Ordenação e garantia da liberdade individual: o direito limita as acções dos
indivíduos, para garantir o respeito pelos direitos e interesses dos outros e da
comunidade, mas também garante a liberdade individual (positiva e negativa). A
liberdade positiva diz respeito à dimensão espiritual do homem e entende-se como
o poder que cada homem tem de fazer tudo quanto lhe possibilite a sua realização
como pessoa, dentro dos limites da lei. A segunda entende-se como ausência de
coação.

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A liberdade negativa é a condição de realização da liberdade positiva. Ela garante


uma esfera de actuação tão ampla quanto possível. Por isso, o Direito privilegia a
liberdade negativa, procurando, no máximo, proteger os indivíduos de todas as
coações externas não legítimas, não interferindo nas opções de cada um, e deixar a
todas as pessoas o espaço necessário para que elas possam conformar a sua vida e os
seus interesses. Daí que o Direito que regula as relações dos particulares entre si faça-
o, tendo em conta que as pessoas actuam, nas relações entre si, sob o signo da
liberdade e, por isso, respeitando a sua autonomia e liberdade (princípio da autonomia
privada, da liberdade contratual); quanto ao Direito Público, deve admitir o princípio
da participação, que é uma das bandeiras do Estado Democrático.

 Legitimação e limitação (legalidade) do poder: o poder só é legítimo quando


tomado e exercido de acordo com as leis estabelecidas, o que por sua vez reforça o
consenso à volta das decisões tomadas pelos detentores do poder.
 Função integradora: o direito visa garantir a coesão da sociedade, coordenando
a acção das várias entidades, sejam elas do Direito Público ou do Direito Privado, para
a unidade e o Bem Comum. As regras de direito exteriorizam, objectivam, o conjunto
de valores jurídicos dominantes na comunidade que se impõem como importante
factor de coesão.
 Função educativa e conformadora: A função educativa reflecte, não o que o
homem é e faz, mas sim o que ele deve ser e fazer, ao contrário da função
ordenadora que reflecte, em certa medida, o ser. No que à função conformadora
diz respeito, importa dizer o seguinte: conformar é dar forma a alguma coisa, é
moldar. O Direito é o instrumento valioso de que o Estado se serve para conseguir
ter o tipo de cidadãos que quer para si, inculcando nos seus membros a
necessidade de adoptarem determinados comportamentos, através do hábito, o que
se torna possível através da coercibilidade das suas normas, e realizar o modelo de
desenvolvimento preconizado para a sociedade. O Direito foi, e sempre será uma
força civilizadora incontornável em todas as sociedades na medida em que o
progresso e civilização de qualquer sociedade depende e está ligado à criação de
um sistema de normas jurídicas e de instituições para a sua aplicação.(Mário Reis
Marques).

Ao desempenhar estas funções, o Direito contribui de maneira insubstituível para a


justiça, e, por isso, para a paz, a segurança e certeza na vida social.
Aliás, circula, como moeda corrente, de manual em manual de Direito, que o
Direito tem como fins últimos: a justiça, a certeza e a segurança jurídicas.
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Resumindo esta função, diremos que a ordem jurídico-estadual visa a manutenção


da paz e a prevenção de conflitos.

4. Sentidos da palavra direito. REMISSÃO


 Direito objectivo: é o direito entendido como sistema de normas ou preceitos
jurídicos que se destinam a regular a vida social, ou simplesmente, o conjunto de
normas de conduta social. Este sentido, o sentido objectivo, deriva do facto de se
tratar de um ‘corpus iuris’, isto é, um corpo de normas postas diante, ou adiante do
homem (do Latim, objectum).

 Direito subjectivo (do Latim, subjectum= que subjaz ou é inerente ao sujeito): a


palavra direito significa também o poder, a faculdade, ou autorização, que a Ordem
Jurídica reconhece aos membros da comunidade. Corresponde às prerrogativas
individuais que são atribuídas às pessoas, na base das quais está a ideia de que, no
ordenamento jurídico cada indivíduo goza de uma ‘zona’ delimitada de poderes de
que ele pode dispor livremente. Assim, por exemplo, o credor tem o direito de
cobrar a dívida ao devedor; o proprietário de um bem danificado tem o poder de
obrigar o lesante a reparar os danos; o proprietário de um bem tem o poder de o
reivindicar caso de ser espoliado. Qualquer pessoa tem o direito a processar
judicialmente quem utilize o seu nome ilicitamente; o escritor tem o direito a pedir
uma indemnização a quem publique uma obra sua sem a sua autorização ou que,
tendo sido autorizado, a publique com deturpações. Em todas estas situações se
usa a palavra direito em sentido subjectivo

Noção clássica do direito subjectivo: a faculdade ou o poder atribuído pela ordem


jurídica a uma pessoa de exigir ou pretender de outra um determinado comportamento
positivo (fazer) ou negativo (não fazer) ou de, por um acto de sua vontade – com ou sem
formalidades – só de per si ou integrado depois por um acto de autoridade pública (decisão
judicial,) produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inevitavelmente a outra
pessoa (adversário ou contraparte)- MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral
da Relação Jurídica, cit., vol. Nº I - 2.

 Nem todo o poder se traduz num direito subjectivo. Tal é o caso do poder paternal
e do poder tutelar, que devem ser exercidos, não no interesse do titular do poder,
mas sim no de outra pessoa (o menor e o tutelado, respectivamente).
 Relação entre o direito objectivo e o direito subjectivo: apesar de ter constituído
objecto de controvérsia doutrinária, hoje não se reveste de grande importância
prática. Todavia, são consideradas as seguintes relações:
- Ralação de derivação e protecção: a tradição jurídica mais difundida considera
que o direito subjectivo é uma faculdade que é atribuída pelo direito objectivo e é
por este protegido mediante a atribuição de direitos e a imposição de vinculações
correlativas;
- Relação de interdependência/tensão e conexão: o direito objectivo tem a sua
razão de ser no direito subjectivo e vice-versa; os dois se condicionam;
mutuamente. O direito objectivo e o subjectivo se dirigem à mesma realidade, são
dois aspectos da mesma realidade ou a mesma realidade sob dois aspectos
diferentes.

4.1 Tipos de direitos subjectivos:


Conforme o número de pessoas obrigadas ao respeito dos direitos subjectivos, temos:
a) Direitos subjectivos absolutos, também chamados direitos de domínio: são aqueles
que têm efeitos que operam contra todos (erga omnes), são oponíveis a todas as
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pessoas; a eles corresponde uma obrigação passiva universal (direitos de


personalidade e direitos reais, etc.). A sua violação desencadeia a responsabilidade
civil extracontratual e, em certos casos, criminal.
b) Direitos subjectivos relativos, também designados por direitos de crédito: actuam
apenas contra as pessoas que são parte na relação jurídica em causa (operam inter
partes); ao contrário dos primeiros, estes impõem apenas obrigações às pessoas
em causa, por são relativos. Conferem um direito de crédito. Da sua violação
decorre a responsabilidade civil contratual.

Diferenças marcantes entre os direitos subjectivos absolutos e os direitos


subjectivos relativos.
Estas diferenças podem ser vistas com base nos seguintes critérios:
- Oponibilidade: os direitos absolutos (ex. direitos de personalidade e direitos reais)
não oponíveis erga omnes, enquanto os direitos de crédito são oponíveis apenas inter
partes (entre os sujeitos da relação jurídica creditícia);
- Imprescriptibilidade: os direitos subjectivos absolutos são perenes ou perpétuos,
isto é, são adquiridos para durar. Esta característica, quanto aos direitos reais só se
aplica ao direito de propriedade. Os direitos de crédito são temporários. Extinguem-se
fatalmente, pelas causas que lhe são próprias. Por exemplo, a obrigação extingue-se
pelo pagamento, pela impossibilidade da prestação, pelo perdão ou pela prescrição. A
prescrição é causada pela inércia do credor. O direito real (mormente o de
propriedade) não se extingue pela inércia (o não exercício do direito) do seu titular,
excepto se durante o seu não uso ocorrer alguma situação incompatível ou antagónica
com o direito (ex. usucapião).
- Objecto: o objecto de um direito real é sempre uma coisa determinada, enquanto o
objecto de uma obrigação é uma prestação (um comportamento do devedor).
- Tipicidade: os direitos absolutos são típicos (com excepção dos direitos de
personalidade), isto é, só podem ser constituídos os tipos de direitos existentes e
previstos na lei, sendo que é a lei que determina o seu conteúdo; os direitos relativos
ou de crédito são atípicos; surgem cada vez mais novos modelos de obrigações e
direitos de crédito.
Os acabados de ver são os direitos subjectivos propriamente ditos. Existem outros.
c) Direitos subjectivos potestativos: conferem ao seu titular a faculdade unilateral
de constituir, modificar ou extinguir relações jurídicas … sem que o atingido pelo
exercício deste direito se possa subtrair ao efeito que lhe é imposto, pois encontra-
se num estado de sujeição. Por via de regra, pressupõem a existência precedente

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de relações jurídicas não genéricas, pressupõem a existência de direitos absolutos


ou relativos com base nos quais podem ser invocados.
d) Direitos oponíveis: semelhantes aos direitos potestativos, mas apenas
semelhantes. Têm um alcance menor, são direitos mais fracos do que os
potestativos. São aqueles que “impedem a mera exequibilidade de um outro direito
contra o qual são invocados” (HÖRSTER). É o caso das obrigações cujo
cumprimento pode ser recusado por falta de cumprimento de outra obrigação com
a qual mantém uma relação de interdependência. Ex.: excepção de não
cumprimento do contrato exceptio non adimpleti contractus) (art. 428 C.C.).

5. Divisões ou especializações do direito objectivo:


As normas do direito objectivo são divididas segundo o seu objecto de regulação ou a
natureza ou o tipo de relação jurídica por elas disciplinadas.

5.1 Direito Público e Direito Privado:


Objecto de regulação/qualidade dos sujeitos: o Direito Privado é a parte do Direito
que regula as relações jurídicas dos particulares entre si e destes com os entes públicos,
quando estes intervenham como particulares, isto é, desprovidos do seu poder de
autoridade ou de soberania (ius imperii), isto é, o poder de “emitir comandos, gerais ou
individuais, que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários
…). A relação jus privatística apresenta, deste modo, uma estrutura horizontal, ou seja, os
seus intervenientes estão em pé de igualdade jurídica. O Direito Privado regula as relações
entre os particulares com base em dois princípios fundamentais: o princípio da autonomia
privada e o princípio da responsabilidade.

O Direito Público disciplina as relações estabelecidas entre os entes públicos e


entre estes (investidos do poder de soberania) e os particulares. Ao contrário do que
acontece no Direito Privado, no Direito Público, a disciplina das aludidas relações é feita
tendo como base o princípio da legalidade, cujo sentido pode ser fixado nos termos
seguintes: 1º as entidades públicas e os agentes da administração pública devem pautar
toda a sua actuação na lei; 2º as relações estabelecidas entre os entes públicos e entre
estes e os particulares, bem como a sua modificação e extinção, decorrem apenas da lei,
sendo irrelevante a vontade dos particulares (a relação jurídica do direito público é uma
relação de carácter indisponível), com a ressalva que deve ser feita quanto aos contratos
administrativos, cujo estudo se faz em sede da cadeira de Direito Administrativo.

Outros critérios apresentados na doutrina para distinguir entre o direito público e


o direito privado, mas que não são os mais decisivos, embora sejam relevantes em muitas
situações:
- Critério do interesse: as normas do direito público protegem interesses da colectividade,
enquanto os do direito privado protegem os interesses dos particulares;
- Critério da sobreposição dos sujeitos: as normas do direito público regulam relações entre
sujeitos que se encontram em situação de supra e infra ordenação; as normas do direito
privado, regulam relações entre sujeitos que se encontram em pé de igualdade jurídica.

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Quadro sintético de diferenciação entre Direito Privado e Direito Público


Direito Privado Direito Público
Objecto 1- Relações dos 1 Relações entre os entes
particulares entre si. públicos
2- Relações entre os
particulares e os 2 – Relação entre os
entes públicos particulares e os entes
(desprovidos do ius públicos (investidos do ius
imperii) imperii)
Princípios Autonomia = Legalidade
autodeterminação - A criação, modificação e
- Relevância da vontade na extinção das relações
criação, modificação e jurídicas decorrem da lei
extinção das relações (irrelevância da vontade)
jurídicas (direitos e
obrigações) - Actuação pautada no
- O que não é proibido por lei estrito cumprimento da lei
é permitido (lícito = não (lícito = legal, previsto na
proibido por lei) lei)
Estrutura relacional Horizontal (paridade Vertical, subordinação
jurídica, igualdade)

Enumeração (exemplificativa) dos ramos do direito público e do direito privado

5.1.1. Apreciação crítica da distinção entre direito público e direito privado:


Críticas:
a) Trata-se de uma distinção que não é universal, não é reconhecida por todos os
ordenamentos jurídicos;
b) Há quem defenda que não existe um direito público e um privado; existe apenas o
Direito. Todas as normas, sejam elas do direito público ou privado, emanam da
vontade do Estado (Léon Giguit); a distinção entre direito público e direito privado
destrói a ideia de unidade do sistema jurídico (Mário Reis Marques)
c) Não existe uma linha de demarcação nítida entre o direito público e o direito
privado; há uma compenetração recíproca entre os dois

Relevância da distinção:
a) A distinção tem relevância para determinar a competência dos tribunais para
dirimir os conflitos que são submetidos à sua apreciação.
b) Interesse científico: a distinção está largamente difundida e serve para a
sistematização e arrumação lógica e separação dos grandes grupos de normas
jurídicas.
c) Serve de critério para demarcar as áreas de estudos jurídicos especializados (pós-
graduação, mestrado, doutoramento).

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5.2. Direito substantivo e direito adjectivo

Esta distinção assenta na função da norma jurídica.

Direito substantivo (ou material)


Os adjectivos “substantivo” (de substância) e “material” (de matéria) dizem respeito
ao conteúdo; por conteúdo deve entender-se os direitos e deveres dos sujeitos da relação
jurídica. Neste contexto, o direito material é o conjunto das normas jurídicas que
disciplinam directamente a relação jurídica material ou substantiva, definindo os seus
sujeitos (activos e passivos) e fixando-lhes os respectivos direitos e deveres.
O direito material tem uma função preventiva: ao disciplinar a relação jurídica
material, atribuindo direitos e impondo vinculações, previne os conflitos e concilia os
interesses divergentes.
Enumeração (exemplificativa) dos ramos do direito substantivo: Direito das
Obrigações, Direitos Reais, Direito da Família, Direito Administrativo, Direito Penal,
Direito Fiscal, Direito Constitucional, Direito do Trabalho, etc.

Direito adjectivo:
Os ramos do direito material visam prevenir os conflitos, mas nem sempre os evitam.
Os homens, amiúde, entram em conflito uns com os outros e com a sociedade. Ora, em
virtude do princípio do monopólio estadual da função jurisdicional, é proibido aos
particulares o recurso à justiça própria; só ao Estado compete fazer justiça, mediante os
órgãos competentes, nomeadamente os tribunais e outras instâncias extrajudiciais criadas
para o efeito, e mediante um processo tendente a dirimir os conflitos.
Ao conjunto de normas que estabelecem o processo, a forma, o caminho a seguir na
resolução destes conflitos se chama Direito Adjectivo ou Processual. Por outras palavras, o
Direito Processual é o sistema de normas jurídicas que regulam os actos e as formalidades
tendentes à determinação da regra do direito material a aplicar ao caso que tenha sido
submetido à apreciação do Tribunal. Por dizer respeito à forma (no sentido de processo), o
direito processual é, outrossim, designado direito formal.

Nota: O direito material pode ser público ou privado. O direito processual é todo ele
público. Isto resulta do princípio do monopólio estadual da função jurisdicional.

Enumeração (exemplificativa) dos ramos do direito adjectivo ou material:


Direito Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Processual Administrativo, o
Direito Processual Fiscal, etc.

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Relação entre o direito substantivo e o direito adjectivo:


O direito material e o direito adjectivo mantêm entre si uma relação estreita, que
reside no seguinte:
1º: O direito adjectivo não tem existência autónoma, na medida em que tem no direito
material a sua razão de ser, o seu fundamento e o seu sentido. O direito adjectivo
pressupõe e acompanha o direito substantivo, tanto do ponto de vista cronológico (as
normas do direito adjectivo são criadas depois do surgimento do respectivo direito
material) como do ponto de vista lógico.
2º: O direito processual é um direito instrumental, na medida em que existe para
realizar e está ao serviço do direito material, está ao serviço dos fins do Direito (garantia
da paz, da certeza e da segurança jurídicas), que ficariam gravemente comprometidos se
não existisse o direito adjectivo.
3º O direito substantivo não pode sobreviver sem o direito processual, porque este é o
meio necessário de realização daquele. “O melhor direito material não sobrevive sem o
direito instrumental” (HÖRSTER).
4º: Nem sempre a fronteira entre o direito material e o processual é nítida, uma vez
que as normas do direito material convivem com as do direito processual, e vice-versa.
Encontramos no direito material normas de natureza processual (por exemplo, no Código
Civil, que é direito material, encontramos normas de natureza processual, como as
referentes às provas (art. 349ss C. Civ.), as que estabelecem pressupostos para o exercício
de um direito, as normas relativas à legitimidade para o exercício de um direito (ex. art.
art. 125º, 138 e 287º C.Civ.), as que fixam prazos para o exercício de um direito (ex.: 416º e
1410 C.Civ.). No Código da Família, igualmente, existem normas de natureza processual,
como, por exemplo, as que estabelecem prazos, o processo e os formalismos da celebração
do casamento. Por outro lado, podem ser encontradas normas de natureza material no
direito processual.

5.3 Direito imperativo e direito dispositivo:


As normas jurídicas podem, ainda, ser agrupadas em duas classes: normas
imperativas, ou injuntivas, e normas dispositivas ou supletivas.
O direito imperativo (normas imperativas) é o conjunto de normas jurídicas que
obrigam absolutamente os particulares, independentemente da sua vontade, isto é, não
podem ser afastadas ou alteradas por vontade das partes. As normas imperativas, podem
ser preceptivas (as que impõem um determinado comportamento, uma obrigação de
fazer) ou proibitivas (que impõem uma obrigação de não fazer, uma abstenção).

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As normas imperativas têm justificação na existência de um interesse público, na


necessidade da protecção de um terceiro, na protecção da parte mais fraca ou na
necessidade da fundamentação de uma decisão (HORSTER).
O direito dispositivo (normas supletivas) é o conjunto das normas jurídicas que
podem ser afastadas ou alteradas pelas partes. Estas normas só valem em caso de não
existir uma vontade diversa das partes. Se as partes nada determinarem sobre um
determinado aspecto do negócio que celebram, rege o direito dispositivo, isto é,
produzem-se, de forma natural, os efeitos previstos na lei. Se as partes dispuserem de
forma diversa, rege a sua vontade. As normas dispositivas podem ser interpretativas
(aquelas que fixam o sentido de um conceito, limitando-o ou alargando-o) ou supletivas
da vontade (visam suprir a falta de manifestação da vontade das partes).

6. Direito Civil e Direito Privado


Tal como ficou exposto acima, o Direito Privado é entendido hoje como o conjunto de
normas e princípios jurídicos que disciplinam as relações dos particulares entre si e destes
com o Estado e com outros entes de direito público, quando intervenham nas vestes de
particulares (sem estarem munidos do seu poder de autoridade).
A expressão “direito civil” não é de hoje, remonta do Direito Romano (Ius Civile); mas o
seu sentido hodierno é fruto de uma evolução histórica social e económica, pelo que não
teve, ao longo dos tempos, o mesmo significado.
No Direito Romano, o Ius Civile contrapunha-se ao Ius Gentium. Para os romanos, o
Ius Civile designava as instituições próprias dos cidadãos romanos; era um direito de
aplicação exclusiva aos cidadãos (cives) romanos, o direito próprio dos cidadãos romanos
(ius proprium civum romanorum) ou o Direito dos Quirites (ius quiritium) isto é, dos
cidadãos, próprio da cidade. O Ius Gentium, direito das gentes, aplicava-se a todos os
povos, e portanto, também aos estrangeiros.
Na Idade Média, o Direito Civil chegou a designar o direito estadual (público e
privado), enquanto direito próprio de cada povo. É este é o entendimento que o cidadão
comum tem do direito civil. Num dado momento as expressões direito privado direito
civil e designavam a mesma coisa. Esta equivalência perdurou até à autonomização do
Direito Comercial. Em Portugal, tal autonomização se deu em 1833, com o surgimento do
Código de Ferreira Borges1. A partir de então, o direito civil passou a ser designado Direito

1
Ao Código de Ferreira Borges (1833), sucedeu o Código de Veiga Beirão (1888), assim conhecido por
ter sido promovido pelo então Ministro da Justiça de Portugal, Veiga Beirão. Este Código é de feição
objectivista, ao passo que o Código de 1833 é subjectivista. Esta caracterização tem que ver com a
concepção que se tinha ou se tem do objecto de regulação. Para os subjectivistas, a Lei comercial regula
os actos e as actividades dos comerciantes, ligadas ao seu comércio; para a concepção objectivista, a Lei
Comercial rege os actos de comércio independentemente da qualidade das pessoas que neles intervêm,
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Privado comum ou geral, por oposição ao Direito Privado especial ou aos direitos privados
especiais.
Ramos do Direito Privado Especial: Direito Comercial, Direito do Trabalho, Direito da
Família, Direitos de Autor, o Direito da Propriedade industrial, o Direito Agrário, o Direito
das Sociedades Comerciais, o Direito dos Seguros, o Direito Bancário, etc.
Ramos do Direito: Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, Direito das Sucessões e
a legislação Civil conexa.
O Direito Civil é chamado direito privado geral ou comum pelas seguintes
razões:
a) ele representa o núcleo de todo o Privado; constitui o depósito dos grandes
princípios gerais e dos conceitos mais importantes aplicáveis a todos os ramos do
Direito Privado e à generalidade das ralações jurídicas privadas, e não só);
b) porque se aplica aos indivíduo nas suas relações mais fundamentais, comuns, na
sua condição normal, diz respeito a todos seres humanos enquanto pessoas,
acompanha-os mais intensamente em toda a sua via, desde o nascimento até à morte; além
do mais, atribui direitos e impõe deveres sem ter em conta a sua categoria social,
profissional, os títulos culturais, nobiliárquicos, ou outros; é o direito de que todos
participam;
c) é do direito subsidiário dos outros ramos do direito privado: sempre que os
direitos privados especiais não possam resolver determinados problemas ou questões,
recorre-se às técnicas, princípios e conceitos do Direito Civil (verbi gratia, os conceitos de
personalidade jurídica, capacidade jurídica, nulidade, anulabilidade, inexistência, vícios
dos negócios jurídicos, os conceitos dos contratos, etc.).

7. As fontes do Direito Civil


7.1 As fontes históricas
7.1.1. As origens romanas
Importância do Direito Romano: resulta do facto de o nosso Direito Civil ser tributário do
Direito Romano, contido no Corpus Iuris Civilis, sobretudo do Digesto ou Pandectae
(colecção de extractos de textos de jurisconsultos romanos sobre o direito). O nosso Cód.
Civil herdou do Digesto a estrutura (uma parte geral e diversas partes especiais) e o
pensamento jurídico. Este último chegou-nos através de estudos científicos de estudiosos
da Pandectística Germânica, isto é, o conjunto dos cultores da ciência jurídica alemã do
séc. 18 e 19 que se dedicaram ao estudo do Direito Romano. São de destacar várias
escolas: a Escola Francesa (sec. 16-17), a Escola Prática Alemã (séc. 16 - 18), a Escola do
Direito Natural (séc. 17 - 18) e a Escola Histórica do Direito (séc. 19). Esta última tem
como seu expoente máximo o jurista Carl Von Savigny. Desempenhou também um papel
fundamental a Universidade de Bologna, Itália (entre 1150 e 1563) na divulgação do
pensamento jurídico romano, através dos glosadores e post glosadores (comentadores),
que adaptaram o Direito Romano ao direito italiano e ao Direito Canónico.

7.1.2 As Ordenações: TRABALHO DE CASA


- As Ordenações e a sua importância para a história do Direito Civil.

- A Lei da Boa Razão (LBR) e a sua importância para a história do Direito Civil.

isto é, para que um acto seja tido por comercial não é necessário que o seu agente seja comerciante. Basta
que a lei o qualifique como acto de comércio. O Código Comercial vigente em Angola é o Código de
1888, apesar de ter sofrido alterações pontuais através da Lei 06/03.

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- O Código Civil de 1867 (Código de Seabra) e o Código Civil Francês, de 1804: influências,
semelhanças e diferenças.

- Fontes Instrumentais do Direito Civil: a Lei (Constituição, Código Civil e legislação civil
conexa, costume, usos, doutrina, jurisprudência, assentos).

7.3 Os ramos do Direito Civil e a sistematização germânica

O Código Civil de 19662 adoptou o modelo do Código Civil Alemão, conhecido pela sigla
BGB, acrónimo de Burgerlisches Gesetzbuch (literalmente, livro das leis que dizem respeito
aos cidadãos), em vigor desde 1 de Janeiro de 1900. Por sua vez, o BGB, fruto do labor
científico da Pandectística Germânica3, segue, em linhas gerais, e de acordo com o Plano de

2
Conhecido como “Código de Varela”, pelo facto de a fase final da sua elaboração, principalmente a
revisão, ter sido dirigida pelo jurista João de Matos Antunes Varela que era, nessa altura, por sinal, o
Ministro da Justiça de Portugal de 1954 a 1967.

3
Designa os cultores da ciência jurídica alemã do século 18 e 19 que divulgaram e modernizaram o
Direito Romano, mormente as Pandectas ou o Digesto. Para entender o significado da expressão, é mister
recorrer à história do Direito Romano. O Direito Romano escrito teve um período de evolução longo, que
percorreu quatro etapas: até 510 a.C (o Reino); de 510 a 31 a.C (a República), de 31 a.C. até 300 d.C. (o
Período Imperial ou Alto Império, ou ainda o período Clássico do Direito Romano), criação que dura um
milénio, desde a época da república (510 – 31 a.C.), passando pelo período imperial (31 a.C – 300 d.C) e
de 300 a 536 d.C. Na primeira etapa, o Direito Romano era consuetudinário. Durante o período imperial,
também conhecido como o período clássico, encontramos eminentes jurisconsultos, tais como Gaius e
Ulpianus. A estes se devem as Institutiones, um compêndio e um manual de direito destinado ao ensino
do Direito. As Institutiones vieram a ser integradas no Corpus Iuris Civilis. Este era composto por partes:
Institutiones, Digesta ou Pandectae, o Codex e as Novellae. O Digesto (ou Digesta) ou Pandectas é uma
compilação ou conjunto de fragmentos e extractos de textos de direito de jurisconsultos sobre várias
matérias (Direito Privado, direito processual, direito administrativo e direito penal). A palavra “digesto”
vem do latim digerere =digerir, dissolver, pôr em ordem, organizar ou classificar. A palavra “pandectas”
é o nome grego correspondente à compilação. O conteúdo do Digesto é, portanto, o direito contido nas
obras dos jurisconsultos romanos. A comissão encarregue da compilação era presidida por Triboniano,
ministro da justiça do imperador Adriano. Triboniano era professor de direito da escola de Constantinopla
e jurisconsulto de grande mérito que, em 530 d. C., através de Constituição “Deo auctore de conceptione
Digestorum”, recebeu do Imperador Adriano, poderes e a tarefa de constituir uma comissão de 16
membros; comissão compulsou cerca de dois mil livros, compilou extractos de 39 jurisconsultos, sendo o
Digesto composto de 50 Livros, subdivididos em cerca de 1.500 títulos. O Digesto foi promulgado em
533 d. C. (Consultar a Enciclopédia virtual Wikipédia). O Codex era uma colectânea das Constitutiones
de todos os imperadores (do Imperador Adriano ao Imperador Justiniano). As Novellae continham apenas
as Constitutiones do Imperador Justiniano). Cada uma destas partes tinha um modo próprio de
organização. As Pandectas dividiam-se em 5 secções. A primeira secção continha os princípios gerais
sobre o direito e a jurisdição; a segunda secção dizia respeito à protecção jurídica da propriedade e dos
outros direitos reais; a terceira secção versava sobre as Obrigações e o Contratos; a 4ª Secção era relativa
à Obrigações e a Família; a 5ª Secção era sobre a herança, o legado, os fideicomissos. O Digesto tinha
ainda outras duas secções referentes a institutos diversos. O Corpus Iuris Civilis é o instrumento que está
na base do Direito Europeu Continental. Serviu como modelo de organização. O Direito Romano contido
no Corpus Iuris Civilis veio a ser recebido como direito vigente a partir do século 12 em vários países
europeus e serviu de objecto de estudo da ciência jurídica. Foi estudado e difundido na Idade Média sobre
tudo através da Universidade Bolonha (Itália) e mais tarde através do Direito Canónico. Destacaram-se no
seu estudo várias escolas: a Escola Francesa, que estudou o direito romano como ciência mundial, a
Escola Prática alemã (séc. 16-18), cujo objectivo era adaptar o Direito Romano às necessidades práticas
alemãs e combiná-lo com o direito germânico, a Escola do Direito Natural, (Séc. 17 e 18), que sublinha a
necessidade da conformidade do Direito Positivo ao Direito Natural, e a Escola Histórica do Direito (séc.
19) que procurava o conhecimento do Direito Romano puro do Corpus Iuris Civilis. Esta escola afastou o
11
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

Friedrich Carl Von SAVIGNY, jurista alemão, o sistema das Pandectas. O Código Civil
recebe, assim, uma influência do BGB. Esta influência pode ser vista, fundamentalmente,
em dois aspectos: um interno e outro externo.
Do ponto de vista interno, o Código Civil recebeu do BGB as seguintes notas
características:
a) a sua técnica legislativa usa normas gerais e abstractas;
b) uso de uma linguagem técnico-jurídica abstracta;
c) uma sistematização lógica e clara com uma conceitualização precisa;
d) uso de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais;
e) influência da moral na lei, ilustrado pela imposição de princípios como o da boa-fé e
do respeito pelos bons costumes; influenciado personalismo ético da filosofia kantiana.
Do ponto de vista externo, o Código Civil seguiu a mesma arrumação que o BGB,
embora não haja uma coincidência absoluta nos conteúdos. Assim, tal como o BGB, esta
arrumação traduz-se na repartição do Código Civil em cinco4 livros, dos quais o
primeiro é a uma parte geral, seguida de partes especiais. Esta forma de arrumação das
matérias é própria da Pandectística Germânica.

Quadro comparativo da estruturação do Digesto, do BGB e do Código Civil de 1966 5

Digesto BGB Código Civil de 1966


Secção 1ª Princípios Livro I Parte geral Livro Parte Geral
gerais sobre o I
Direito e a
jurisdição
Secção 2ª Da protecção Livro II Direito das Livro Direito das
jurídica da Obrigações II Obrigações
propriedade e

chamado “usus modernus pandectarum” (uso moderno das pandectas, tradução literal) que era o direito
comum vigente na Alemanha. O seu grande representante é o Jurista alemão Friedrich Carl von Savigny
(1779-1861), cuja obra principal se intitula Sistema do Direito Romano Hodierno (System des Heutigen
Romischen Rechts). Savigny foi um grande estudioso e professor do Direito Romano. Foi esta escola que
teve grande influência no BGB, porque o seu esquema de exposição das matérias obedece ao Plano de
Savigny, que por sua vez, adoptou o sistema das Pandectae, cuja característica principal é fazer preceder
as partes especiais de uma parte geral, à semelhança do Digesto. O Código Civil de França, por exemplo,
adoptou o sistema desenvolvido por Gaius, composto por Livros (1º Livro – pessoas; 2º- coisas,
propriedade, outros direitos reais e testamentos; 3º- Sucessão intestata, obrigações em geral, obrigações
contratuais; 4º- Obrigações delituais, acções (actiones) do processo civil e direito criminal.

4
O Código Civil contém quatro livros, em virtude de o Código da Família (antigamente Livro III) ter sido
retirado pela Lei 1/88, de 20 de Fevereiro.

5
Segundo HÖRSTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil, ci. , pág. 119.

12
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

outros direitos
reais
Secção 3ª Das obrigações Livro III Direito dos Bens Livro Direito das Coisas
e dos contratos III
Secção 4ª Obrigações e Livro IV Direito da Família Livro Direito da Família
família IV
Secção 5ª Herança, Livro V Direito das Livro Direito das
legados e Sucessões V Sucessões
fideicomissos
Mais Sobre diversos
duas institutos
secções heterogéneos

Conteúdo genérico dos livros do Código Civil


Livro I - Parte Geral:(art. 1º - art. 396º): contém as regras e os princípios de
aplicação comum a todos os ramos do Direito Civil.
- Livro II - Direito das Obrigações (art. 397º - 1250º): é o conjunto de normas e
princípios que regulam as relações de crédito, o vínculo jurídico estabelecido entre um
devedor e um credor, relações que têm por objecto a realização de uma prestação. Tais
relações resultam daquilo que se chama as fontes da obrigações (os negócios jurídicos em
geral, mormente os contratos, a responsabilidade civil - seja por factos lícitos seja por
factos ilícitos e da responsabilidade civil pelo risco – o enriquecimento sem causa, a gestão
de negócios).
A palavra “obrigação” possui vários sentidos, dos quais importa destacar dois. Em
sentido lato, a obrigação significa “qualquer dever jurídico deduzido do direito objectivo” 6.
Em sentido restrito ou técnico, a obrigação significa a “relação jurídica autónoma em
virtude da qual uma pessoa (o devedor) fica adstrita para com outra (o credor) a uma certa
prestação, positiva ou negativa. Este sentido técnico é o que está vertido no art. 397º do
Código Civil. A obrigação é, pois, um vínculo, um nexo que liga duas pessoas.
- Livro III - O Direito das Coisas (art. 1251º - art. 1575º): é o conjunto de regras e
princípios que “regulam o domínio dos bens em si mesmos, a directa e imediata relação com
as coisas” (MÁRIO REIS MARQUES)7. Os direitos reais resultam do vínculo jurídico

6
Numa perspectiva puramente filosófica, a relação entre obrigação e dever jurídico é muito estreita.
Immanel Kant vê na obrigação “a necessidade de uma acção livre sob um imperativo categórico da
razão. O imperativo categórico é uma prerrogativa prática mediante a qual se torna necessária uma
acção em si contingente…. O dever é á acção a que alguém está obrigado. É, pois a matéria da
obrigação, e pode ser o mesmo dever (segundo a acção), embora possamos a ele estar obrigados de
modos diversos”. Disto podemos inferir que a obrigação é algo mais amplo do que o dever; este é gerado
por aquele já que este é apenas o modo de realização da obrigação.

7
Este poder imediato sobre as coisas não pode ser concebido em termos literais; por isso, a noção do
direito real não é rigorosa, na medida em que, literalmente, não existe uma ligação imediata entre a
pessoa e a coisa. O direito não se liga imediatamente às coisas, mas sim às pessoas; de contrário, o direito
real significaria a obrigação de uma pessoa relativamente às coisas e vice-versa, o que é um absurdo.
Como diz I. KANT, “é…absurdo imaginar a obrigação de uma pessoa relativamente a coisas, e vice-
versa; de qualquer forma, é lícito, mediante tal imagem, tornar sensível a relação jurídica e assim se
13
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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directo adquirido sobre os bens e que confere ao seu titular uma supremacia sobre
todas as outras pessoas (erga omnes), no sentido de que gera um dever geral de
abstenção ou obrigação passiva universal sobre todas as pessoas. Por isso, soe dizer-
se, igualmente, que os direitos reais são absolutos. Quanto aos tipos de direitos reais, ver
adiante o capítulo relativo ao princípio da propriedade privada.
- Livro V - Direito das Sucessões ( art. 2024º - 2334º): trata-se do conjunto de
normas e princípios jurídicos que regulam a transmissão mortis causa (causada pela morte
de uma pessoa) da totalidade ou de parte do património (herança) que a ela pertencia aos
sucessores, designados por lei ou pelo de cujus8. Nos termos do artigo 2024º do Cód. Civil,
a sucessão é “o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas
patrimoniais de uma pessoa falecida e a devolução dos bens a ela pertencentes”. Diz-se “das
relações jurídicas patrimoniais”, porque, rigorosamente falando, o objecto da sucessão são
os direitos e as obrigações que incidem sobre os bens deixados por uma pessoa falecida.
Por isso, não se herdam apenas os bens (direitos), mas também as responsabilidades
assumidas sobre tais bens. Assim, o Direito Sucessório define as responsabilidades dos
herdeiros.

8. Objecto do Direito Civil


O direito civil regula as relações jurídicas privadas comuns de todas as pessoas
(relações obrigacionais ou de crédito, relações jurídicas reais, relações sucessórias e, em
sentido material, as relações familiares). Serve para orientar os particulares nas relações
entre si e entre estes e os entes públicos, quando actuam sem o ius imperii.

9. Objecto e pertinência da Teoria Geral do Direito Civil


Tudo quanto se disse acima tinha como fim levar-nos à determinação do objecto e do
âmbito da TGDC.
Antes de entrar directamente para o tema em questão, convém afastar, desde já,
alguns equívocos sobre o conteúdo inerente à designação da nossa disciplina.
Em primeiro lugar, é mister sublinhar que, embora a nossa disciplina, a Teoria Geral
do Direito Civil, não é um ramo do Direito, porque, contrariamente ao que acontece com
a maioria das disciplinas jurídicas, a TGDC não é um conjunto de normas e princípios
jurídicos que tenham por objecto a disciplina de determinado tipo de relações jurídicas.

expressar” (Metafísica dos Costumes, op. cit. Pág. 70). O direito real é o direito ao uso privado de uma
coisa e que me dá a faculdade de excluir qualquer outra pessoa, qualquer outro possuidor do uso privado
da coisa. O direito real não é mais do que o direito de uma pessoa perante outras, que se devem abster de
qualquer acção que ponha em causa o exercício do direito pelo seu titular.

8
Abreviação latina da alocução is de cuius hereditate agitur, que significa aquele de cuja herança se trata.

14
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

Advirta-se, outrossim, que não se trata de uma Teoria Geral do Direito. Esta é uma
designação própria de uma disciplina que estuda o Direito na perspectiva filosófica, que
não é a da TGDC.
É corrente dizer-se que a IED constitui a precedência da TGDC. A IED é uma introdução
ao Direito como um todo; a TGDC tem a missão e o condão de introduzir o estudante num
dos grandes ramos ou divisões do Direito, isto é, o Direito Privado, e, dentro deste, no
Direito Civil. Todavia, ao fazê-lo, a TGDC não estuda nenhum dos ramos do Direito Civil em
particular; dedica-se, apenas, ao estudo da Parte Geral do Código Civil. É nesta parte
que estão concentrados os princípios, as regras, noções e conceitos comuns a todos os
ramos do Direito Privado, e não só.
Deste modo, A TGDC não cuida de resolver problemas específicos do Direito Civil, mas
apenas “caracterizar figuras, equacionar problemas, formular soluções respeitantes a todo
domínio do Direito Civil… à generalidade das normas do Direito Civil ou à generalidade das
relações jurídico privadas9. A TGDC não visa estudar a relação jurídica obrigacional, real,
sucessória, em concreto, mas analisa, regula a relação jurídica em si, seja ela de natureza
obrigacional, real ou sucessória, ou ainda de algum ramo do Direito Privado especial ou
mesmo do Direito Público. Estuda as condições necessárias para que esta relação jurídica
se possa considerar constituída, válida e com os efeitos pretendidos. Estuda os elementos
constantes em todas situações jurídicas. É claro que nestes domínios, as relações jurídicas
ganharão contornos e variantes próprias, que constituirão desvios dos princípios contidos
no Direito Civil.
O Direito Civil é o núcleo de todo o Direito; os princípios do Direito Civil são
disponíveis para todos ramos do Direito, que se aplicam enquanto não forem afastados. E
porque estes princípios, conceitos e regras estão contidos na Parte Geral do Código Civil,
então a Teoria Geral do Direito Civil tem por objecto a Parte Geral do Código Civil.
O estudo da Teoria Geral do Direito Civil e a consagração de uma Parte Geral no Código
Civil não são isentas de críticas, na doutrina. Houve, na história da evolução do Direito e da
doutrina, quem questionasse a necessidade da existência tanto de uma disciplina com o
nome de Teoria Geral do Direito Civil, assim como de uma parte peral no próprio Código
Civil, alegando: a) que a Parte Geral é muito abstracta; b) que o estudo do Direito não pode
começar com teorizações, o que levaria os estudantes de Direito a formar uma visão
conceptualista doeste; e que c) os tais princípios da parte geral sofrem desvios
importantes nas partes especiais. Houve mesmo quem sugerisse distribuir tais regras
pelas partes especiais.

9
Carlos Alberto da C.A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Ed., pág. 17.

15
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

Embora tais críticas sejam pertinentes, elas não são de sobrevalorizar, porquanto: a)
as abstracções são próprias da ciência e são necessárias para dotar o estudante do poder
de profundidade de análise, do rigor técnico, facilitar a tarefa da compreensão e da
interpretação da lei – este é, aliás, o mérito e o objectivo da Teoria Geral do Direito Civil; b)
a existência de desvios não significa que não exista um fundo comum bastante apreciável,
constituído por um conjunto de denominadores comuns a todas as partes especiais. Aliás,
os desvios só confirmam os princípios, como diz o ditado popular, “a excepção confirma a
regra”; c) embora se trate de uma teoria geral, o estudo dos conceitos, dos princípios e das
regras gerais não se pode fazer senão ilustrando-os com as regras e os exemplos práticos
tirados das partes especiais.

PARTE II
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CIVIL

16
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

1. Considerações gerais
Para que um ramo de direito seja considerado como tal, é necessário que tenha
princípios próprios, além de uma legislação própria.
O Direito Civil, enquanto ramo de direito, não foge a esta regra. Aliás, o Direito Civil
é um conjunto de ramos de direito. Por isso, ele tem princípios próprios.

O que se entende por princípios fundamentais?


A palavra “princípio” pode ter vários significados. Ela pode significar “origem”,
“começo”, “o que vem antes”, “razão de ser” ou “fundamento”. O adjectivo “fundamental”
significa aquilo que é essencial, principal, aquilo de que não se pode prescindir, isto é, que
não pode ser posto de lado.
Os princípios jurídicos são padrões de conduta, ou critérios de acção, ou valores que
orientam e limitam o comportamento e a actuação das pessoas e das organizações nas
suas relações umas com outras, ou na actividade profissional, tendo em vista a realização
de determinados objectivos e interesses do Estado.
Os princípios fundamentais do Direito Civil são aqueles que constituem o
fundamento, a razão de ser, a explicação, a base das regras deste ramo de Direito. Num
outro sentido, esses princípios podem ser entendidos como aqueles que são os mais
importantes; podem existir outros, mas os princípios fundamentais são aqueles que não
podem ser dispensados, a fim de garantir os objectivos do Direito Civil.

Importância dos princípios:


Os princípios fundamentais do Direito Civil constituem o sistema interno das suas
normas, isto é, aquilo que está na base das normas jurídicas do Direito Civil. Determinam e
modelam o seu conteúdo e dão-lhes sentido.

Quais são os princípios fundamentais do Direito Civil?


São vários. Os autores não são unânimes, nem quanto à enumeração, nem quanto à
formulação. Refiramos apenas os mais conhecidos e mais importantes: o reconhecimento
da pessoa e dos direitos de personalidade, a igualdade ou paridade jurídica, a autonomia
privada, a responsabilidade civil, a boa fé, a concessão da personalidade jurídica às
pessoas colectivas, a propriedade privada, a relevância jurídica da família e o fenómeno
sucessório.

2. Princípio do reconhecimento da pessoa e dos direitos de personalidade. A


pessoa e o direito de personalidade. Os direitos de personalidade.

Objectivos específicos: no final da aula, o estudante deverá ser capaz de:


 Formular o princípio da personalidade jurídica
 Definir personalidade jurídica art. 66 e 67 C.C. (sentido histórico teatral do
Direito Romano, persona)
 Enumerar os requisitos de aquisição da personalidade jurídica
 Explicar os sentidos técnico e ético de pessoa (PERSONALISMO ÉTICO)
 Distinguir entre a personalidade jurídica singular e a personalidade
jurídica colectiva (monismo tradicional e formalismo positivista)
 Distinguir entre o conceito de pessoa e o de personalidade jurídica
 Diferencias entre personalidade e capacidade jurídica (art. 67)
 Apontar a razão da consagração do princípio da personalidade jurídica
17
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

 Interpretar correctamente os números 1 e 2 do art. 66 do C.C.: direitos que


a lei reconhece aos nascituros)
 Reflectir sobre a personalidade jurídica, o conceito de pessoal e a
problemática do aborto
 Definir o direito da personalidade (sentido objectivo e sentido subjectivo)
 Definir e enumerar os direitos de personalidade
 Apontar com clareza a características dos direitos de personalidade
 Distinguir entre direitos de personalidade e direitos fundamentais
 Apontar os requisitos de validade da limitação dos direitos de
personalidade
 Explicar o regime jurídico dos direitos de personalidade (art. 70-81)

Este princípio, também conhecido como princípio da personalidade, consiste no


reconhecimento da personalidade jurídica a todos os seres humanos, no momento do seu
nascimento completo e com vida (art. 66, nº 1).
A personalidade jurídica é definida, antes de tudo, como a qualidade de ser pessoa,
isto é, sujeito de direito (centro autónomo de direitos e obrigações); mas ela é entendida
também como a susceptibilidade, isto é, como a mera possibilidade abstracta, de ser titular
autónomo de quais quer relações jurídicas (de direitos e obrigações).
Com base no artigo 2º do Decreto-Lei nº 44.128, de 1961 10, a doutrina aponta
como requisitos da aquisição da personalidade jurídica os seguintes:
a) Facto do nascimento: o nascimento é a separação, por expulsão ou por
extracção, do feto do corpo da mãe. Para este efeito, não tem relevância o período
que dure a gravidez:
b) Nascimento completo: o nascimento completo dá-se quando o bebé se separa
inteiramente do corpo da mãe. A separação completa (inteira) não implica o corte
do cordão umbilical; é suficiente que o feto tenha saído completamente do ventre
materno, mesmo se a placenta ainda não foi retida, isto é, se o bebé ainda estiver
ligado ao corpo da mãe pelo cordão umbilical.
c) Nascimento com vida: com este requisito, exige-se que a criança tenha
sobrevivido à separação do corpo materno. Se ela morrer antes da separação
completa, não adquire personalidade. A criança nasce com vida quando, depois da
separação, ela respire ou manifeste outros sinais de vida (pulsações do coração ou
do cordão umbilical, ou contracção efectiva de qualquer músculo sujeito à acção da
vontade, mesmo antes do corte do cordão umbilical.

10
Este artigo reza o seguinte: “Considera-se nascimento de criança viva a expulsão ou extracção
completa, relativamente ao corpo materno e independentemente da duração da gravidez, do produto da
fecundação que, após esta separação, respire ou manifeste quaisquer sinais de vida, tais como pulsações
do coração ou do cordão umbilical ou contracção efectiva de qualquer músculo sujeito à acção da
vontade, quer o cordão umbilical tenha sido cortado, quer não, e quer a placenta esteja ou não retida”

18
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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Destes requisitos, podemos retirar as seguintes notas importantes:


1º: no nosso ordenamento jurídico angolano, não se exige que o nado vivo tenha
hipótese de sobrevivência ou viabilidade; adquire-se a personalidade jurídica mesmo
contra a previsibilidade da sua morte dentro de poucos instantes 11: “basta que a criança
tenha vivido um curtíssimo espaço de tempo” (HÖRSTER);
2º: Não se exige o nascimento com figura humana, pelo que facto de a criança ter
nascido com deformações não afecta a aquisição da personalidade jurídica. O legislador
traçou aqui um ponto de viragem em relação ao Código de Seabra (de 1867), que exigia, no
seu artigo 110º, nascimento com figura humana.
3º) A aquisição da personalidade jurídica, assim como a sua perda, para os seres
humanos, é um dado extra legal e extra jurídico: a personalidade jurídica é reconhecida
e não atribuída. Ao ordenamento jurídico não compete ajuizar da personalidade jurídica
das pessoas físicas; elas são pessoas por Direito Natural. A personalidade jurídica “é uma
qualidade que o Direito se limita a constatar e respeitar e que não pode ser ignorada ou
recusada”12. Neste contexto, o princípio da personalidade jurídica visou afastar ou excluir
as seguintes situações: a) a possibilidade da negação/recusa da qualidade de pessoa a
determinados seres humanos 13; b) possibilidade de se fazer depender a aquisição da
personalidade jurídica do mero livre arbítrio do legislador ou dos detentores do poder
político, ou ainda de qualquer outro facto; c) possibilidade da perda da personalidade
jurídica por outros factos que não a morte: tal como a personalidade jurídica se adquire
por um simples facto natural, também só se pode perder por um facto natural (art. 68º
C.C.).

11
França e Holanda (. 3º): é necessário que recém-nascido seja viável, isto é, apto para a vida; se nascer
com vida, a sua capacidade remontará à sua concepção.

Espanha, (Código Civil, art. 30): a) exige que o recém-nascido tenha forma humana e b) que tenha vivido
24 horas para que possa adquirir personalidade.

Argentina (art. 7º) e Hungria (art. 7º): a concepção já dá origem à personalidade.

O Código Civil Suíço (art. 31) e o italiano (art. 1º), brasileiro, português, angolano: a personalidade
jurídica inicia-se do nascimento com vida.

12
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do direito Civil, cit. Pág. 35

13
Lembre-se de que a palavra pessoa tem uma origem teatral: a personna ersignava a máscara que os
romanos punham nas representações teatrais. Daí terá evoluído para o sentido de actor da vida jurídica.

19
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

Nota bene: há que notar, entretanto, que não há coincidência entre este sentido
técnico-jurídico (formal) e o sentido ético de pessoa14.
Por um lado, o conceito jurídico de pessoa tem um alcance que vai para além das
pessoas humanas, abrange também as pessoas colectivas (também conhecidas como
pessoas morais ou jurídicas, por oposição às pessoas naturais, físicas ou singulares). As
pessoas colectivas são organizações de pessoas e complexos de bens, visando a
prossecução de uma certa finalidade económica (lucrativa ou não) ou meramente social
(egoísticas e filantrópicas), às quais o Direito reconhece a qualidade de sujeito de direito15.
Historicamente, este conceito nem sempre abrangeu todos os seres humanos (por
exemplo, os escravos, no Direito Romano, não eram considerados pessoas.
O sentido ético de pessoa tem um alcance maior do que o do sentido técnico,
abrange todos os seres humanos, desde a concepção até à morte.

Os direitos de personalidade:
A primeira consequência da personalidade é a titularidade de direitos de
personalidade (PAIS DE VASCONCELOS). Estabelecido o princípio do reconhecimento da
pessoa, impunha-se dotá-la dos meios convenientes e necessários à sua protecção. O
reconhecimento dos direitos de personalidade é, deste modo, um mecanismo técnico-
jurídico de tutela da personalidade, que se concretiza na imposição de deveres
universais de abstenção (ou obrigação passiva universal) e de sanções, geralmente de
carácter civil, mas algumas vezes do fórum criminal..
Enumeração (exemplificativa) dos direitos de personalidade: o direito ao
nome (art. 72-74 C.C.), o direito ao sigilo de correspondência (art. 75-78 C.C.; art. 34º
CRA), o direito à imagem (art. 78º C.C.), o direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada), o direito à vida (art. 495º C.C., art.30 CRA e art. 349 C. Penal, o direito à
integridade moral, intelectual e física (art.31º nº 1 CRA), o direito à identidade pessoal
(art.32º nº 1 CRA), o direito à honra, ao bom nome e à reputação (art. 79º nº 3 C.C.; 32º
CRA), o direito à liberdade e à segurança, (art. 36º nº 1 CRA) o direito a um ambiente sadio
(art. 39 CRA). Nos termos do nº 3 do art. 36 da Constituição da República de Angola, o
direito à liberdade física e à segurança individual abrange o direito a não ser sujeito a
quaisquer formas de violência, o direito a não ser torturado nem tratado ou punido de
maneira cruel, desumana ou degradante, o direito de usufruir plenamente da sua

14
A questão do momento em que se deve reconhecer a pessoa não se esgota no Direito, é uma questão
ética e filosófica. Sobre esta problemática, ver também Celestino Rafael (O humanismo personalista e o
personalismo cristão perante o aborto, Luanda, Janeiro de 2015).

15
C.A. MOTA PINTO, op. cit. pág. 98.

20
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integridade física e psíquica, o direito de não ser submetido a experiências médicas ou


científicas sem o consentimento prévio, informado e devidamente fundamentado.
Fala-se, assim, do Direito da Personalidade, que comporta um sentido objectivo
e outro subjectivo16.
Por direito objectivo da personalidade entende-se todo o conjunto de normas e
princípios jurídicos relativos à defesa da personalidade, consagradas seja no Direito
Internacional, quer no Direito interno, nomeadamente no Direito Constitucional, no
Direito Civil e nas demais leis ordinárias. O Direito Objectivo da personalidade funda-se
em razões de ordem pública e corresponde aos princípios e normas jurídicas injuntivas
sobre a tutela da personalidade que são indisponíveis, tais como a inviolabilidade da vida
humana, o princípio da dignidade humana, o direito à identidade. Na consideração de PAIS
DE VASCONCELOS, são normas que se impõem ao legislador, na medida em que não está
no poder do Estado legislar ou não nestas matérias, consagrar ou recusar o direito à vida e
à dignidade pessoal… o direito objectivo de personalidade impõe a todos um dever de
respeitar a dignidade de cada indivíduo, incluindo a sua própria pessoa. Tem como
conteúdo um dever, uma vinculação, cujo garante é o Estado, no exercício do seu poder -
dever de fazer respeitar a Lei e o Direito.
O Direito subjectivo da personalidade, integra os poderes que o seu titular pode
exercer directa e livremente, assim querendo, contra os particulares ou mesmo contra o
Estado, sem ficar à mercê da disponibilidade dos órgãos do Estado e da iniciativa destes, se
necessário for (PAIS DE VASCONCELOS). Há que notar, entretanto, no direito subjectivo da
personalidade, uma excepção à regra do exercício livre e da disponibilidade próprias dos
direitos subjectivos; é que existe no direito subjectivo da personalidade, ao lado de uma
zona livre em que a tutela de determinados direitos de personalidade é entregue à tutela
do seu titular, podendo dispor em certa medida do seu direito (ex. direito à honra, à
privacidade, à liberdade, à integridade física, em certos casos) uma zona em que
determinados direitos de personalidade não são disponíveis, no sentido de que o direito
não pode ser prescindido pelo seu titular (ex. o direito à vida, à dignidade humana).

2.2.Caracerísticas dos direitos de personalidade

São absolutos: esta característica significa que os seus titulares podem opô-los a
todas as outras pessoas e produzem efeitos contra todos (erga omnes), o que, todavia, não
corresponde a afirmar o seu exercício esteja isento de controlo ou que os direitos de
personalidade não sejam susceptíveis de limitações. Tais limitações são de duas ordens, a

16
Vide PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit. pág. 38.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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saber, limitações intrínsecas (resultantes do conteúdo que a lei lhes confere, isto é,
comportam sempre poderes e deveres) e limitações extrínsecas (que resultam da
necessidade da sua conjugação com outras situações protegidas); o exercício do direito de
personalidade nunca pode justificar o atropelamento dos direitos de personalidade das
outras pessoas; o seu uso abusivo constitui um ilícito, o abuso do direito (art. 334º C.C.).
c) São imprescritíveis: não se extinguem em consequência da sua omissão ou
do seu exercício pelo seu titular;
d) São não patrimoniais/pessoais: não são susceptíveis de avaliação em dinheiro,
embora a sua violação possa acarretar a reparação, ou melhor, uma compensação, de
conteúdo patrimonial. Diz-se, às vezes, que os direitos de personalidade são direitos
pessoais (não patrimoniais), por oposição aos direitos de índole patrimonial.
e) São indisponíveis: significa esta característica que a vontade dos seus titulares é
ineficaz em relação a eles para os extinguir; estão subtraídos à vontade dos seus titulares.
Da sua indisponibilidade decorrem, segundo José de Oliveira Ascensão, três aspectos: são
(a) intransmissíveis17: não podem ser objecto de sucessão, nem de cessão; são(b)
irrenunciáveis, isto é o titular pode renunciar ao exercício de um direito de personalidade,
mas não pode renunciar ao direito de personalidade em si;. c) são escassamente
restringíveis através de negócio jurídico art. 280, 81/1, 340 C.C. A doutrina consagra,
geralmente, uma atenção especial a este aspecto. Assim também faremos mais adiante.
f) São universais: os direitos de personalidade são universais no sentido de
que são inerentes a todas as pessoas.
g) São inatos: nascem com o homem; por isso se dizem originários e
primitivos, à diferença dos direitos adquiridos (adquiridos durante a existência do
indivíduo), pese embora o facto de alguns se poderem efectivar através de um direito
posterior, como é o caso do direito à criação pessoal.
h) Gozam de protecção penal: certa doutrina refere a protecção penal como
um dos atributos dos direitos de personalidade. Todavia, este predicado não diz respeito a
todos eles, sendo que, em regra, a violação dos direitos de personalidade apenas acarreta a
responsabilidade civil, mediante a obrigação de indemnizar). Aqueles cuja violação ganha
relevo social sim, gozam de protecção penal. Tais são os casos do homicídio (art. 349 C.
Penal) das ofensas Corporais (art. 359ss C. Penal), da difamação, da calúnia.
i) São atípicos: esta característica significa que o reconhecimento de um direito
como direito de personalidade não depende de qualquer consagração legal; o único
critério para a qualificação é a ligação estreita com a natureza e a dignidade da pessoa

17
De acordo com este autor, às vezes se fala de direitos personalíssimos como sinónimo de
intransmissíveis.

22
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

humana. A atipicidade dos direitos de personalidade não singifica, contudo, que não
existam direitos de personalidade tipificados; pelo contrário. A atipicidade dos direitos de
personalidade há-de entender-se no sentido de que são direitos de personalidade todos os
previstos como os não previstos na lei.

2.3. Direitos de personalidade e direitos fundamentais:


É importante cotejar os direitos de personalidade com os chamados direitos
fundamentais, para saber se se trata da mesma realidade ou não e qual a relação existente
entre eles. Quanto a isto, importa dizer, no essencial, o seguinte:
- 1º As duas expressões pertencem a dois domínios diferentes do Direito: a
expressão “direitos fundamentais” é própria do Direito Constitucional, enquanto a
expressão “direitos de personalidade” é do Direito Civil.
- 2º Embora, do ponto de vista formal, se utilizem expressões diferentes (direitos
fundamentais/direitos de personalidade), do ponto de vista material, há, parcialmente
(em determinados casos), um sentido de coincidência ou identidade do direito em
causa (verbi gratia, o direito à vida, à integridade física, à liberdade, à integridade pessoal,
à honra, etc, são direitos de personalidade/ fundamentais
- 3º Apesar desta identidade material parcial (do objecto), o assento e o tratamento
constitucional dos direitos de personalidade é feito sob um ângulo diferente do Direito
Privado. Na sequência e no âmbito do constitucionalismo moderno e do princípio da
separação de poderes, que visa limitar o poder do Estado em face do cidadão, a disciplina
jurídica constitucional daqueles direitos (sob a epígrafe “direitos, liberdades e garantias”) é
estabelecida a partir de um ângulo de visão próprio, com uma preocupação especial, a da
defesa do cidadão perante o Estado e perante os eventuais arbítrios do poder constituído
(relação cidadão-Estado), embora tal disciplina hoje se estenda a outros domínios18.
- 4º Embora os direitos de personalidade tenham assento constitucional, os
direitos fundamentais excedem em número aqueles, ou seja, há um incremento
incessante dos direitos fundamentais, há mais direitos fundamentais do que direitos de
personalidade (se quisermos, direitos humanos). Este incremento incessante resulta de as
constituições serem o reflexo de várias ideologias. Dito de outro modo, se os direitos de
personalidade têm hoje assento constitucional, nem todos os direitos fundamentais são
direitos de personalidade.
-5º Todos os direitos de personalidade são de primeira geração, são chamados
primitivos ou originários, porque decorrentes da natureza humana e umbilicalmente
ligados a ela, enquanto muitos dos direitos fundamentais são adquiridos durante a

18
José De Oliveira Ascensão, op. cit. pág. 76

23
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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existência da pessoa, não são, portanto, direitos originários, Pelo contrário, os direitos de
personalidade são anteriores a qualquer estruturação política da vida social, são
anteriores ao Estado e constituem emanações da personalidade humana em si, ou seja,
decorrem directamente da natureza humana. Por isso é são considerados, juridicamente,
mecanismos de tutela da personalidade, isto é, são verdadeiros modos de defesa da
personalidade humana.

2.4. A tutela jurídico-civil da personalidade:


2.4.1 O direito geral de personalidade: art. 70º.
A tutela civil da personalidade comporta um direito geral da personalidade e os
direitos especiais de personalidade.
Se o nº 1 do art. 66º do Código Civil consagra o princípio do reconhecimento da
personalidade jurídica, o artigo 67º a sua noção legal 19, o artigo 70º, consagra a tutela
geral da personalidade. José De Oliveira Ascensão fala do princípio da generalidade de
tutela da personalidade. Trata-se de um princípio geral, decorrente do princípio da
personalidade (art. 66). Este princípio é estabelecido da seguinte forma pelo artigo 70º
sob a epígrafe “Tutela geral da personalidade”: nº1: “A lei protege os indivíduos contra
qualquer ofensa à sua personalidade física ou moral”.
Nos termos fiéis ao preceito acabado de citar, a doutrina jurídica considera que a
generalidade e a força da tutela dos direitos de personalidade se manifesta, entre outros
aspectos:
a) No critério para se aferir do direito de personalidade. Trata-se de aspectos
físicos e morais da pessoa. Aqui reside o critério para se aferir de quando é que estamos
perante um direito de personalidade: é necessário que o direito incida sobre um bem da
personalidade estreitamente ligado à natureza humana e à dignidade humana;
b) Na atipicidade dos direitos de personalidade: “qualquer ofensa à sua
personalidade física ou moral”. A expressão parafraseada, e de acordo com a nota referida
em a), significa que os direitos de personalidade não estão todos previstos na lei 20, não

19
Uma noção que, como todas ou quase todas as noções legais, não é completa, nem rigorosa.

20
C.A. MOTA PINTO refere alguns desses direitos de personalidade inominados, tais como a identidade
genética (questão dos clones), a auto determinação informativa, isto é, o controlo sobre os dados pessoais,
o direito ao sono, cuja defesa se torna cada vez mais necessária em face da cada vez mais crescente
cultura do barulho, o direito à saúde, ao repouso, o direito ao ambiente saudável (Nota: tutelado pelo
Direito Constitucional); o direito ao ambiente inclui o direito ao ar puro. Vejamos a prática crescente de
as empresas de saneamento depositarem lixos junto de habitações); a LAGMA (Lei das Actividades
Geológicas e Mineiras) impõe às empresas exploradoras de diamantes e de petróleo a obrigação, não só
da reconstituição dos solos, mas também a de realizarem investimentos sociais em beneficio das
populações que vivem nas zonas de exploração mineira.

24
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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foram todos visualizados e expressamente consagrados pelo legislador civil; não


constituem um círculo fechado; pelo contrário, constituem um círculo que se vai alargando
de acordo com a evolução que a consciência ético-juridica (modo de pensar) da
comunidade vai registando. Na linguagem de José De Oliveira Ascensão, o artigo 70º tem
de ser considerado necessariamente uma “Janela aberta”, abrangendo, não apenas os
direitos estão previstos na lei (v.g. direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra,
ao nome, honra) como também aqueles que não estão expressamente consagrados (v.g. o
direito ao repouso e ao sono, à integridade e ao património genético, etc.). Disto resulta
que um direito de personalidade não precisa de ser nominado e típico para ser
considerado como tal. Repetimos, preciso é, e basta, que se trate de um aspecto
directamente ligado à natureza humana. Resumindo, a lei protege, por via do artigo 70º,
todos os direitos de personalidade, os previstos e os não previstos no direito positivado;
haverá todos os necessários à defesa da personalidade. Este afirma ainda ser a atipicidade,
em matéria dos direitos de personalidade, uma excepção à regra segundo a qual os
direitos absolutos são típicos e isto constitui uma singular manifestação da importância da
defesa da personalidade. Este carácter excepcional manifesta-se, inter alia:
c): na a-tipicidade dos meios de protecção: no Direito Privado, o meio normal
(típico) de protecção das pessoas contra os actos que violem os seus direitos é a
responsabilidade civil (art. 483º C.C.), que se traduz na obrigação de indemnizar o lesado.
Segundo HÖRSTER, a violação dos direitos de personalidade dá lugar, além das
providências adequadas, à “responsabilidade civil caso se verifiquem os pressupostos da
responsabilidade por factos ilícitos, designadamente a culpa e a existência de um dano
(art.70 nº2, em ligação com os arts. 483ss), ou os pressupostos da responsabilidade pelo
risco, ou seja, a concretização do risco e a existência de um dano (art.70º, nº2, em ligação
com os arts. 499ss)”.
Outro meio de manifestação desta importância é o facto de a atipicidade se
estender aos meios de protecção da personalidade. Além dos meios gerais ou comuns da
tutela de direitos no Direito Civil, o legislador permite que o juíz tome as providências
adequadas21 a fazer “reparar”os danos provenientes da violação do direito, a fazer cessar
uma ameaça actual ou impedir uma ofensa iminente, contra a regra segundo a qual o juiz
não pode criar meios jurídicos, mas sim limitar-se ao que está estabelecido na lei;
d) na disponibilidade de um processo especial constante dos artigos 1474º a 1475º
do Código de Processo Civil, integrando-se nos processos de jurisdição voluntária – art.

21
Conferindo assim ao aplicador da lei um poder discricionário para ajuizar dos meios adequados o fim
de reparar o direito violado; o poder discricionário do juiz está aqui doseado com o dever do respeito ao
princípio da proporcionalidade entre a gravidade da violação e os meios para a sua reparação.

25
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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1409ss CPC)22- que permitem ao juiz determinar tais providências)23; de acordo com o
artigo 1410º do CPC, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de
legalidade estrita24, devendo antes adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais
conveniente e oportuna. De notar ainda que, nos termos do artigo 1475º do CPC, o
legislador não condiciona a decisão do juiz à contestação pelo demandado, mas apenas à
produção das provas necessárias; esta é uma excepção à regra, consagrada no nº 1 (in
fine) e nº 2 do artigo 3º do CPC, segundo o qual “o tribunal não pode resolver o conflito de
interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a
outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”. No. 2: “Só em casos excepcionais
previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja
previamente ouvida”.
e) na irrenunciabilidade, intransmissibilidade e imprescritibilidade; 6º na
revogabilidade a todo o tempo das limitações voluntárias, entre outras coisas
f) no facto de os direitos de personalidade gozarem de protecção também
depois da morte do seu titular (art. 71º nº 1). Este número suscitou leituras diferentes
na doutrina. Segundo o professor C.A. MOTA PINTO, a formulação contida naquele número
é infeliz, uma vez que em consequência da cessação da personalidade jurídica com a morte
(art. 68 nº 1), com a qual se extinguem também os direitos de personalidade, a tutela
incide sobre os direitos e interesses da pessoas mencionadas no nº 2 do mesmo artigo.
Para José De Oliveira Ascensão, embora os direitos de personalidade se extingam
de facto com a morte, a sua tutela jurídica pode continuar mesmo depois dela. Por isso,
essa norma visa proteger não só os interesses e os direitos das pessoas indicadas no
número 495 e 496 do C. Civ., mas visa proteger também o princípio do respeito pela
memória das pessoas falecidas, que é um princípio imperante em todas as sociedade
civilizadas25.
Em caso de lesão de que provenha a morte, o direito passa para as pessoas
indicadas no art. 495 e 496, sendo que a indemnização deverá incluir os danos
patrimoniais e não patrimoniais.

22
Os processos de jurisdição voluntária caracterizam-se pelo facto de o seu objecto não ser um litígio,
como nos outros processos, por um lado e pelo facto de neles o tribunal poder investigar livremente os
factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher informações convenientes (art. 1409 nº 2).

23
O texto do autor deixa ver que não é por acaso que a lei não menciona as chamadas providências
cautelares.

24
Trata-se de uma excepção à regra

25
Vide, a este respeito, o capítulo referente ao termo da personalidade jurídica, designadamente sobre os
efeitos jurídicos da morte.

26
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2.4.2. Admissibilidade de restrições aos direitos de personalidade: regime


geral (Art. 340º, 81º e 280º C.C.)
Vimos que uma das características dos direitos de personalidade é a sua
indisponibilidade, isto é, os direitos de personalidade não estão à disposição, nem do seu
titular, tão pouco de outras pessoas. Todavia, a ordem jurídica prevê e admite situações
em que, em função das circunstâncias e dos interesses em jogo, se justifica a sua limitação.
Diga-se, de início que, em geral, as restrições aos direitos de personalidade podem
ser de ordem negocial ou legal, todavia, em condições muito apertadas, tanto num caso
como noutro.

As restrições negociais devem obedecer aos seguintes requisitos:


a) – O consentimento do lesado:
O regime jurídico geral relativo à limitação dos direitos está contido no Subtítulo IV
do Livro I do Código Civil, sob a epígrafe “Do exercício e da tutela dos direitos”. Esta parte,
dedicada à garantia da relação jurídica, estatui as excepções à regra do monopólio
estadual da função jurisdicional, ou seja, as situações em que se justifica o recurso à força
própria para limitar direito de outrem. Aqui a restrição de um direito só se justifica no
âmbito da garantia de um outro direito alegadamente violado ou na iminência de ser
violado, excepto quanto ao consentimento. São as chamadas causas de exclusão de ilicitude,
designadamente, a acção directa (art. 336º), a legítima defesa (art. 337º), o estado de
necessidade (art. 339º) e, por último, o consentimento do lesado (art. 340º).
O artigo 340º estabelece o regime geral do consentimento, em matéria de limitação
de direitos, ao passo que o artigo 81º regula, de forma especial, esta matéria, em sede dos
direitos de personalidade. De acordo com o nº 1 do artigo 340º, “o acto lesivo do direito de
outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”. Por sua vez, o nº 1 do artigo 81º
fala da limitação voluntária.
O consentimento é um acto jurídico voluntário, de natureza pessoal e
unilateral e, em princípio, revogável pelo qual um indivíduo aceita livre e
conscientemente submeter-se à limitação do seu direito (de personalidade), considerado
indisponível.
O consentimento deve ser consciente, esclarecido e informado (informed
consent).
O consentimento não se reduz ao simples voluntarismo, não é uma mera
manifestação da vontade do titular do direito ou de representante, nos casos em que se
permite a representação na limitação dos direitos de personalidade. O que está em causa é
27
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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o direito à liberdade, à auto determinação e a legitimidade do acto para dispor do direito


de outrem, que resulta da auto determinação daquele. Por isso, o consentimento é um
instrumento de validade ética e jurídica do acto limitador do seu exercício.
O consentimento esclarecido pode ser oral ou escrito, mas também pode ser
inferido de um comportamento. O consentimento pode ser expresso, tácito ou presumido.
Será expresso ou tácito consoante ele seja prestado directamente ou indirectamente.
Alerta-se, desde já, para perigo de se confundir consentimento expresso com o
consentimento escrito. O consentimento, tanto oral como escrito, pode ser expresso ou
tácito, consoante ele seja prestado de forma directa ou indirecta (Vide matéria sobre as
formas da declaração negocial). O consentimento expresso é aquele que é prestado de
forma directa; o consentimento tácito é manifestado de forma indirecta e resulta,
geralmente, de uma inferência do comportamento observado anteriormente.
O consentimento presumido supõe a impossibilidade de o titular do direito o
poder prestar directamente e resulta de uma conjectura (especulação), de se presumir ser
a vontade do titular do direito lesado - no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade
presumível (art. 340º nº 3).
Por via de regra, o consentimento deve ser expresso. Mas pode, em determinados
casos, ser prestado tacitamente 26. Em outros casos, é presumido. Note-se que só se pode
apelar ao consentimento presumido quando as circunstâncias objectivas não permitam o
consentimento expresso, como por exemplo, em caso de tratamento médico, em estado de
inconsciência, ou quando o diagnóstico seja tão sensível que o paciente possa ser
prejudicado pela informação relativa ao processo e ao risco do tratamento, casos em que

26
HÖRSTER refere, a este propósito, as seguintes situações em que o consentimento é tácito: “os
praticantes de um desporto perigoso consentem em lesões que possam acontecer, não obstante a
observação das respectivas regras; quem aceitar um transporte gratuito (“boleia”) consentirá em lesões
sofridas apesar de terem sido observadas as regras de trânsito…. por outro lado, quem pratica desportos
violentos ou quem aceitar um transporte gratuito, correndo riscos patentes (p. ex., o condutor está bêbado;
o meio de transporte não oferece condições de segurança, etc.), age por risco próprio, não se podendo
falar neste caso de consentimento…O tratamento médico carece de consentimento, regularmente,
expresso, da parte do paciente. O médico nunca pode pressupor consentimento tácito, se o tratamento
exceder aquilo que o doente, segundo a sua condição, é capaz de prever. Assim, o médico tem por
princípio esclarecer o doente…”. O artigo 31º do Código Deontológico e de Ética Médica reza o seguinte:

Art.31 (Respeito pelas crenças e interesse doente)

1. “O médico deve respeitar escrupulosamente as opções religiosas, filosóficas ou ideológicas e os


interesses legítimos do doente, não devendo exercer qualquer acto médico sem procurar o seu
consentimento.

2. O consentimento de crianças, menores ou incapacitados, é, em princípio, pedido aos pais, parentes


mais próximos ou representantes legais, salvo quando exista conflito entre os familiares e o médico
assistente, em situações graves e de emergência, para as quais deverá recorrer-se a decisão judicial,
suportada em legislação própria”.

28
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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o médico deverá sempre esclarecer, no lugar do paciente, os seus parentes mais próximos
e obter deles a autorização27. Há casos em que o consentimento deve ser prestado
expressamente, sendo, portanto, proibido o consentimento tácito e o presumido. Tal é o
caso do consentimento tendo em vista a participação em experiências terapêuticas.

Padrões ou critérios para se aferir do consentimento esclarecido, informado


ou consciente. Segundo FERNANDA SCHAEFER28, estes pressupostos são os seguintes:
1º: capacidade para consentir: trata-se da capacidade para “tomar decisões
independentes e racionais, podendo assumir as consequências e os efeitos que desse acto
possam advir, para que as suas decisões possam ser consideradas ética e juridicamente
válidas” (Fernanda Schafer), ou ainda, a capacidade de discernimento e de auto
determinação, necessária para o exercício da vida jurídica. A capacidade para consentir
requer capacidade jurídica de agir, isto é, de adquirir e assumir livremente e os próprios
direitos e obrigações. Presume-se que as pessoas com capacidade de agir têm capacidade
para consentir. Todavia, trata-se de uma presunção relativa. As pessoas consideradas
adultas (capazes juridicamente), devido a variadíssimas circunstâncias, podem estar total
ou parcialmente privadas desta capacidade de discernimento.
Em atenção ao que se acaba de dizer, costuma-se distinguir entre as pessoas
absolutamente capazes e as relativamente incapazes. Ao primeiro grupo pertencem os
menores29 e os interditos, ao segundo, os inabilitados, as pessoas em situação de
incapacidade acidental (os ébrios habituais ou toxicodependentes, os pródigos, as pessoas
que, por questões de saúde (em coma), não podem prestar o seu consentimento, etc.). Os
indivíduos absolutamente incapazes de prestar o consentimento, nos casos em que tal seja
permitido, deverão ser representados pelos familiares ou pelas pessoas que, os
representem legalmente, não sendo os pais) não o acto (o que só pode acontecer quando
esteja em causa o próprio bem do incapaz); quanto aos relativamente incapazes, há que
distinguir entre situações em que eles não podem prestar o consentimento, como por
exemplo, os enfermos, caso em que a autorização será dada pelos familiares, e os casos em
poderão, eles próprios, prestar o consentimento, todavia, o acto do consentimento estará

27
H. E. HÖRSTER, op. cit. Nº 441.

28
FERNANDA SCHAEFER, A Nova Concepção do Consentimento Esclarecido, http://www.idb-
fdul.com. Advertimos o leitor de que os pressupostos aqui reportados são referidos por Fernanda Shcaefer
ao consentimento aplicado à relação médico-paciente. Apesar disto, pensamos que os pressupostos são
aplicáveis à limitação dos direitos de personalidade em geral.
29
Segundo HÖRSTER (A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, nº 442),
a defesa da personalidade é tão forte que vai ao ponto de a doutrina considerar que “o consentimento na
lesão não exige capacidade negocial, pelo que também os menores podem consentir numa limitação
voluntária ao exercício dos seus direitos de personalidade quando possuírem, conforme a gravidade do
caso concreto, uma capacidade natural suficiente para entender plenamente o significado do seu acto
29
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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sujeito à autorização pelas pessoas indicadas. (Ver adiante sobre o conceito de assistência
e de representação).
2º: Voluntariedade: o consentimento deve ser livre de qualquer vício (ex.: erro,
dolo, simulação, coacção…).
3º: Informação prévia, clara, objectiva, i.e, aproximativa da realidade, honesta e
adequada à compreensão e ao estado emocional do interlocutor, mais próxima da verdade
sobre os objecivos, riscos, benefícios, probabilidades de sucesso, métodos, técnicas,
duração.
4º: Autorização (activa) ou consentimento: é a tomada da decisão propriamente
dita, podendo ser escrita ou oral. A forma juridicamente mais segura é a forma escrita.
5º: Termo do consentimento: trata-se da materialização do todo o processo de
informação.

b) A limitação dos direitos de personalidade, além de ser voluntária, deve ser


legal. Não basta que a lesão seja consentida; é necessário que ela se conforme com a
ordem pública. É o que resulta do nº 2 do art. 81º do Código Civil: “toda a limitação
voluntária ao exercício dos direitos de personalidade é nula, se for contrária aos princípios
da ordem pública” e do nº 2 do artigo 340º: O consentimento do lesado não exclui, porém, a
ilicitude do acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes”.
Assim, mesmo sendo livre e bem informado, o consentimento será irrelevante se o acto
lesivo contrariar os princípios da ordem pública30 e dos bons costumes. Tal é o caso da
eutanásia, da mutilação, e do auxílio ao suicídio. Quanto a esta, o artigo 354º do C. Penal
preceitua:”Será punido com a pena de prisão aquele que prestar ajuda a alguma pessoa para
se suicidar”.
Cabe dizer que o legislador usou cláusulas gerais (ordem pública/bons costumes)
em face da impossibilidade de se delimitar todas as situações em que se pode renunciar
aos direitos de personalidade31.
Estes requisitos (consentimento do lesado e não contrariedade com a ordem
pública) são cumulativos, e só com eles é que o consentimento será validamente prestado,
sendo que o limite último ao consentimento será sempre a ordem pública.
c) Revogabilidade do consentimento: de acordo com o nº 2 do artigo 82º do
Código Civil, a renúncia aos direitos de personalidade é sempre revogável. Parece ser um
contra-senso que o acto de limitação do direito de personalidade seja lícito, porque livre e

30
Uma referência ao artigo 280º nº 2.

31
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit. , Vol. I, pág. 93.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

consciente e porque não contrário à ordem pública, e que, ao mesmo tempo, ele possa ser
revogado. Seria mais lógico que as partes consentissem em distratar o negócio jurídico
celebrado. Mas a lógica que presidiu à consagração da revogabilidade do consentimento
(acto unilateral do titular do direito) obedeceu à necessidade do reforço da tutela do
direito de personalidade de reforçar o carácter indisponível dos direitos de personalidade.
De resto, trata-se de uma medida de prevenção contra a possibilidade do risco e das
consequências adversas que adviriam de uma possível vinculação definitiva do titular do
direito ao consentimento prestado relativo à limitação do exercício do seu direito: Evita-
se, deste modo, que a contraparte possa vir a invocar a prerrogativa de dispor do direito
de personalidade de outrem com base no consentimento por este prestado.
d) Indemnização da outra parte: o número 2 do artigo 81º do C.C. impõe ao
titular do direito de personalidade a obrigação de indemnizar. Parece existir aqui outro
contra-senso: se a revogação é, lícita, permitida pela ordem pública, porquê, então,
indemnizar? A resposta é que a declaração negocial do titular do direito de personalidade
pode ter gerado já expectativas legítimas e o não cumprimento do contrato pode causar
danos na esfera jurídica da outra pessoa. José de Oliveira Ascensão nota: “…a tutela da
personalidade leva a que sejam causados danos a quem nenhuma responsabilidade teve”
(pág. 94). Daqui se pode concluir que, se o declaratário tiver responsabilidade na emissão
da declaração, porque se portou de forma contrária aos padrões normais de conduta, não
terá direito à referida indemnização. Isto aplica-se a quem tenha usado de usura (art. 282
C.C.) ou de uma certa coação moral para obter a declaração negocial. Por outro lado,
embora não directamente, este preceito pode sustentar também a ideia da protecção da
personalidade, assente na lógica de que entre sujeitar-se à limitação do direito de
personalidade em virtude do consentimento prestado e indemnizar, é preferível
indemnizar.
Entretanto, apela o mesmo autor à necessidade de se não fazer uma leitura
meramente positivista ou literal do nº 2 do artigo 81º do Código Civil. Parece-nos ser de
concluir que o pensamento do autor vai no sentido de se poder afirmar que a
revogabilidade patente neste número não é absoluta32. Segundo ele, há que considerar nas
restrições negociais três situações diferentes: um núcleo duro, em que o direito não é
susceptível de limitação negocial (v.g. o direito à vida, à saúde, etc.); uma orla, em que os
direitos são limitáveis, mas a limitação é revogável e uma periferia em que os direitos são
limitáveis, sem se incorrer na revogabilidade estatuída no nº 2 do artigo 81º/2, sendo que,
neste último caso, o critério para se aferir da admissibilidade da revogação é o carácter
ético ou anti-ético da situação, ou seja, se, num caso concreto, se chega à conclusão de que

32
Uma leitura que não parece ser consentânea com a letra do nº 1 do artigo 81º do Código Civil.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

considerar o consentimento irrevogável é anti-ético, este será revogável; se, pelo


contrário, a consciência ético-jurídica não exige a revogabilidade do consentimento, então,
este é irrevogável. Cita como exemplos o direito à imagem e o direito à reserva sobre a
intimidade da vida privada33.
Fora destes parâmetros, qualquer acto lesivo de qualquer direito de personalidade
será ilícito. A ilicitude terá como consequência a nulidade nos casos de o acto ser contrário
à lei ou à moral (art. 340/2; 81/1; 280/1 e 2); a consequência será a anulabilidade quando
estejamos em presença de um vício da vontade (art. 246º; 287º C.C.).

2.4.3. Dos direitos de personalidade em especial: TRABALHOS EM GRUPOS

4. Princípio da igualdade:
Introdução
Existe uma igualdade natural entre os homens. Todos somos partícipes da
mesma natureza (humana), temos a mesma constituição, em termos biológicos e
químicos, temos a mesma origem e teremos o mesmo fim, inevitavelmente. Além e
acima de tudo, gozamos todos da mesma dignidade humana.
Mas também, há uma desigualdade natural entre os homens, que se concretiza
em vários factores: diferentes posições económicas, culturais, sociais. Mesmo do ponto
de vista jurídico, a desigualdade, em determinados sectores de relações jurídicas, é um
facto consumado. Por exemplo, na relação jurídica laboral, existe uma subordinação
jurídica do empregado ao empregador, uma vez que o primeiro presta o seu trabalho sob
a autoridade e a direcção do empregador (Cf. art. 1º da Lei 2/00, de 11 de Fevereiro –
Lei Geral do Trabalho). Na relação jurídica familiar de filiação, os filhos menores e os
não emancipados devem obediência aos pais, que exercem sobre eles o poder paternal
(art.124ºdo Cód. Civil e 137º do C.Fam.).
Formulação
O princípio da igualdade ou paridade jurídica está consagrado na CRA, que o
formula de duas formas, uma positiva e outra negativa, sendo que esta não é nada mais
do que a explicitação daquela. O artigo 23º da CRA determina:
nº 1 – “todos são iguais perante a lei”;

33
Vide op. cit. nº 49-III

32
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

nº 2 – “ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito


ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor,
deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas,
ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou
profissão”.
Significado do princípio
O princípio da igualdade jurídica significa, portanto, a ausência de quaisquer
privilégios e discriminações fundados em diferenças de qualquer tipo (ascendência,
sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções
políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social
ou profissão) entre os particulares. A igualdade jurídica não significa a anulação das
diferenças acima aludidas, nem a simples consideração dos factores naturais comuns aos
homens, porque o contrário resultaria em um absurdo e em injustiças. Significa, isto
sim, que a lei trata a todos como iguais, independentemente das suas diferenças; o
Direito, em geral, e o Direito Privado, em especial, assegura às pessoas uma posição
paritária nos mais variados domínios das relações jurídicas privadas: na negociação e na
celebração dos negócios jurídicos, no desenvolvimento da relação contratual; no domínio
do Direito da Família, tal igualdade é atestada pela igualdade entre os cônjuges no
casamento, pela igualdade dos filhos; no Direito Societário a igualdade concretiza-se na
não discriminação dos sócios, etc. Este princípio encontrará no Direito Civil a sua
máxima expressão no princípio da autonomia privada e na liberdade contratual (art.
405º C.C.), que analisaremos no momento devido.
Fundamento(s)
Este princípio resulta do princípio da personalidade jurídica, que tem inerente a
capacidade jurídica (art. 66/1 e 67º do C.C.), e, por conseguinte, no facto de que todas
as pessoas possuem as mesmas virtualidades e, por isso, são susceptíveis de serem
sujeitos de quaisquer direitos e obrigações e de quaisquer relações jurídicas do direito
privado34 e tem como pano de fundo o personalismo ético e o princípio da dignidade
humana.
Medidas cautelares
Entretanto, sabe-se que, às vezes, as desigualdades naturais ou disparidades reais
acabam por desequilibrar a igualdade (formal), fazendo com que a parte mais forte na
relação jurídica, mormente nos contratos, acabe por se impor à parte mais fraca (porque

34
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. pág. 52.

33
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

menos atenta, menos preparada ou com menos condições económicas, culturalmente


inferior em virtude da iliteracia, ou porque necessitada, ou porque sofre de uma outra
inferioridade circunstancial), obtendo dela vantagens à custa de restrições, despesas,
encargos ou prejuízos não razoáveis e são prejudicais.
O legislador, ao regular cada um dos variados tipos contratuais, esteve atento a
este perigo e, por isso, instituiu um regime jurídico de protecção da parte mais fraca a
vários níveis. Assim, por exemplo, a ideia da protecção da parte mais fraca concretiza-
se na protecção do arrendatário, no contrato de arrendamento para habitação, do
trabalhador, no contrato de trabalho, do cliente e do consumidor, nos contratos com
cláusulas contratuais gerais, em geral, por via de regras imperativas.
No âmbito da protecção da parte mais fraca no contexto dos contratos, merece
especial atenção a Lei 4/03, de 18 de Fevereiro, Lei sobre as Cláusulas Gerais dos
Contratos, que visa disciplinar os contratos por adesão, ou contratos standard, e todas as
cláusulas contratuais gerais (ou cláusulas gerais dos contratos), isto é, os contratos que
carecem de prévia negociação individual, os quais se limitam a subscrevê-los (contratos
por adesão). Esta lei impõe determinados deveres e princípios a serem observados pelo,
para garantir a liberdade e a autonomia da decisão do aderente. Tais deveres e princípios
são: o dever comunicação e de informação clara, atempada, íntegra e adequada das
cláusulas contratuais gerais, bem como da explicação, dos aspectos relevantes, e de
prestar todos os esclarecimentos solicitados (art. 3º), o princípio da boa fé na elaboração
dos contratos (art. 227º C.c.), a prevalência das cláusulas sobre as quais tenha havido
acordo sobre as cláusulas contratuais gerais (art. 4º), a proibição absoluta e relativa de
determinadas cláusulas (art. 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, a nulidade das cláusulas violadoras
das proibições nelas aludidas (art. 15º) a imposição de uma sanção pecuniária
compulsória para a entidade que infrinja a obrigação de se abster de uma cláusula
proibida (art. 26º).

4. Princípio da protecção dos mais fracos:


A igualdade jurídica é meramente formal, isto é, a lei trata a todos de forma igual
(“todos são iguais perante a lei”), a despeito das diferenças materiais que existem,
naturalmente, entre as pessoas. Por outras palavras, os particulares são materialmente
desiguais, mas, para a lei, essas diferenças não contam.
Ora, o desequilíbrio natural pode, às vezes, ser aproveitado pela parte mais forte,
para explorar a parte mais fraca, impondo a esta a aceitação de cláusulas que lhe sejam
economicamente desfavoráveis e perniciosas. Como se pode, facilmente, compreender,

34
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

isto levaria à “eliminação” dos mais fracos e à supressão da sua autonomia, além de
propiciar injustiças.
Para prevenir tais situações, o direito objectivo consagra mecanismos adequados
para a correcção das desvantagens decorrentes do eventual uso abusivo da desigualdade
material e para a realização de uma certa justiça material35. Sendo difícil determinar
casuisticamente quem é o mais fraco, o legislador escolhe algumas situações socialmente
típicas ou recorrentes nas relações jurídicas privadas, e não só, e introduziu normas
imperativas no respectivo regime jurídico (v.g., contrato de trabalho, relações jurídicas
jurídicas familiares, sucessórias, relação consumidor-fornecedor de bens e serviços), ou
então, concedendo à parte que tenha sido vítima de exploração a possibilidade de anular o
negócio realizado (v.g., a usura, o erro, o dolo, os negócios realizados por um menor, etc.).
O princípio da protecção dos mais fracos, também designado como o princípio da
protecção social (HÖRSTER), visa, portanto, assegurar o equilíbrio jurídico entre os
particulares no trato entre si e com os entes públicos, nas vestes de particulares.

5. Princípio da autonomia privada


Importância
O princípio da autonomia afigura-se de importância capital para o Direito Civil.
Esta importância traduz-se no seguinte:
a) A autonomia é um factor necessário para o desenvolvimento da personalidade
humana e, por essa razão, ela é o pressuposto e o fundamento das normas do Direito
Privado.
b) O princípio da autonomia privada está subjacente à distinção entre o Direito
Público e o Direito Privado, na medida em que as relações jurídicas do Direito Privado não
são estabelecidas segundo uma estrutura de dominação e de obediência, mas sim da
autonomia e da paridade jurídica.
c) Na celebração dos negócios jurídicos, a absoluta ausência da vontade de uma das
partes no negócio jurídico é causa da inexistência material do negócio jurídico, nos termos
do artigo 246º do Código Civil. Por outro lado, uma vontade viciada (por erro, dolo,
incapacidade acidental, etc.) é causa de invalidade do negócio jurídico.

Noção

35
H. E. HÖRSTER sustenta a tese de que o grau de protecção dos mais fracos é uma bitola para medir o
valor ético de uma ordem jurídica. (Vide a obra em referência, nº ???)

35
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

A autonomia privada pode ser definida como o poder reconhecido aos particulares
de auto regulamentação dos seus interesses, de auto governo da sua esfera jurídica (C.A.
MOTA PINTO). Entende-se por esfera jurídica o conjunto das relações jurídicas,
patrimoniais e não patrimoniais, de que uma pessoa é titular num determinado momento.
A autonomia privada assenta na ideia de que, nas relações entre os particulares, estes
agem de acordo com a sua vontade, são livres de estabelecer ou não relações jurídicas, de
as estabelecerem com quem quiserem, de adquirir direitos, assumir obrigações e de
fazerem o que bem entenderem dos seus interesses, dentro dos limites da lei36.

Autonomia privada e ordem jurídica


É importante não esquecer, entretanto, que a autonomia privada não pode ser
entendida fora da ordem jurídica. Em primeiro lugar, a ordem jurídica é o espaço de
realização e fornece os instrumentos ou modelos para o exercício da autonomia privada.
Tais modelos são, nomeadamente, os modelos ou tipos negociais previstos na lei (tipos
negociais, v.g, compra e venda, mútuo, depósito, etc.), alguns rígidos, outros elásticos,
como ser verá, a seu tempo. Além dos negócios jurídicos, a autonomia é exercida, na
ordem jurídica, através da soberania do querer, que se exerce mormente através do direito
subjectivo.
Além de fornecer aos indivíduos os instrumentos de realização da sua autonomia
(privada), a ordem jurídica fixa os limites necessários a este exercício, de modo a
assegurar, não o interesse o interesse público, os direitos da outra parte na relação
negocial e a defesa dos mais fracos. As normas jurídicas do Direito Privado são ricas de
exemplos de limitações à autonomia privada.
Nos vários ramos do Direito Privado, as restrições à autonomia privada são
maiores ou menores, consoante a natureza da relação jurídica e do negócio jurídico em
causa. Assim, as restrições maiores nos domínios do Direito da Família, no Direito
Sucessório e no Direito do Trabalho, pelas razões sobejamente explicadas supra, e nos
Direitos Reais. Os particulares gozam de maior autonomia no Direito das Obrigações e
nos ramos do privado especial que constituem uma adaptação do Direito das
Obrigações. Por outro lado, há menos restrições nas relações jurídicas patrimoniais do
que nas relações jurídicas de natureza pessoal.

5.1 Liberdade contratual


Origem e formulação (art. 405º C.C.)

36
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. pág. 52.

36
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

Fala-se da liberdade contratual nos negócios jurídicos bilaterais, que são sempre
contratos, de onde a expressão “liberdade contratual”.
O princípio da liberdade contratual está consagrado no artigo 405º do Código Civil,
que estabelece, sob a epígrafe “liberdade contratual”:
nº1- “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos
contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as
cláusulas que lhes aprouver”;
nº 2- “as partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total
ou parcialmente regulados na lei”.

Noção e conteúdo
O princípio da liberdade contratual encerra dois aspectos, a saber: a) a liberdade
de celebração, ou liberdade de conclusão de contratos; b) a liberdade de modelação,
também conhecida como liberdade de fixação ou estipulação.
 A Liberdade de celebração define-se como a faculdade de livremente celebrar ou
recusar-se a celebrar contratos. A liberdade, em si, significa ausência de coação. A
liberdade contratual significa, por isso, que, em princípio, ninguém está obrigado a
concluir contrato algum. Mas também significa que ninguém deve ser impedido ou
proibido de celebrar os contratos. Além disso, ninguém deve ser sancionado ou
repreendido pelo facto de concluir determinado contrato.
Note-se que o nº 1 do artigo 405º do C.C., que fundamenta a liberdade de
celebração, não a refere de modo expresso; referência explícita é feita à liberdade de
fixação (“…as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar
contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes
aprouver). A liberdade de celebração resulta é o pressuposto da liberdade de modelação,
sendo este, portanto, consequência lógica daquela. As partes não teriam a faculdade de
fixar livremente o conteúdo dos contratos e de celebrar contratos diferentes dos previstos
na lei, se antes não tivessem a faculdade de celebrar ou não tais negócios jurídicos.
A liberdade de modelação é a faculdade que assiste aos particulares de: a) celebrar
contratos típicos (previstos na lei) ou atípicos (não previstos na lei); b) fixar livremente o
conteúdo dos contratos que queiram celebrar; c) incluir nos contratos que celebrem
(típicos ou atípicos) as cláusulas que lhes aprouver, isto é, que julgarem mais convenientes
à realização dos seus interesses; d) integrar, num mesmo contrato (contrato misto), regras
de dois ou mais contratos (típicos ou atípicos).

5.3. Restrições à autonomia privada:

37
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

A autonomia privada manifesta, principalmente, através do direito subjectivo e da


realização dos negócios jurídicos. Assim sendo, as restrições à autonomia privada devem
ser vistas tanto quanto ao direito subjectivo quanto aos negócios jurídicos.

5.3.1. Restrições ao direito subjectivo: o abuso do direito


A figura jurídica do abuso do direito está prevista no artigo 334º do Código Civil.
Nos termos deste artigo, há abuso do direito sempre que o titular de um direito exceda,
manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e o fim social e
económico do direito, circunstâncias que tornam ilegítimo o exercício do mesmo. Em
outras palavras, o abuso do direito consiste nu exercício do direito contrário à boa-fé, aos
bons costumes e no desrespeito do fim social económico e social do direito.
Pedro Pais de Vasconcelos ajuda-nos a perceber o conteúdo do excesso destes
limites37.

i) A não contrariedade à boa-fé: o dever de agir de boa-fé impõe-se sempre


que o exercício do direito subjectivo implique o contacto social e traduz-se na necessidade
da observância dos antigos mandamentos do agir honestamente (honeste agere), do dever
de não causar danos a outrem (alterum non laedere) e da proscrição de comportamentos
contraditórios (venire contra factum proprium).
O agir honestamente é exercer o seu direito como pessoa de bem e implica a
proibição de qualquer tipo de exercício do direito inaceitavelmente contrário aos padrões
da honestidade que devem reger as relações entre pessoas de bem.
A fórmula latina alterum non laedere impõe o dever de, no exercício do direito
subjectivo, não causar danos a outrem, ou de, sendo impossível evitá-los, causar o mínimo
possível de danos (princípio do mínimo dano).
O venire contra factum proprium (trad. lit. ir contra um facto próprio) é uma
fórmula tradicional usada contra quem apresente um comportamento (activo ou
omissivo) contraditório que seja susceptível de malograr as expectativas que,
legitimamente, criou em outrem.
Em geral, sempre que alguém se ache ofendido com fundamento na violação do
dever de agir honestamente, pode usar do expediente consagrado tradicionalmente pela
doutrina e pela jurisprudência e traduzido na fórmula latina “exceptio doli”38 (excepção de

37
Op. cit. pág. 265 ss

38
Vem do Direito Romano. Traduzia-se, na invocação, pelo demandado, de um comportamento
fraudulento do titular de um direito, indicando, assim, que o último não agiu honestamente.

38
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

dolo), usada contra todos os tipos de condutas, activas ou omissivas, que assentem na
violação da boa-fé, do dever agir honestamente, de agir como pessoa de bem, honesta.
Constitui violação mandamento de não prejudicar os outros (alterum non laedere
ou do princípio do mínimo dano) (vide supra) o exercício do direito em desequilíbrio, o
qual pode ser: a) emulativo (quando o titular do direito é movido pela intenção exclusiva
de prejudicar ou causar um mal a outrem), b) inútil ou injustificado (quando o exercício
não represente qualquer vantagem para o seu titular e resulta para outrem um sacrifício
injusto); c) a exigência de algo que deve ser imediatamente restituído (fundamento da
compensação); d) a desproporção no exercício (quando a vantagem resultante do exercício
do direito é inferior, mínima ou desproporcional ao sacrifício causado a outrem.

ii) A não contrariedade aos bons costumes: os bons costumes opõem-se aos
maus costumes (uma distinção moral). De acordo com Pais de Vasconcelos, os maus
costumes traduzem-se, geralmente, nas práticas que violem a boa-fé objectiva, embora a
imoralidade vá além da boa-fé. A normatividade assente nos bons costumes é aquela que é
imanente na sociedade, que muitas vezes não se encontra nas palavras da lei 39. Há, pois,
formas de exercício de direitos que são moralmente inaceitáveis; exercer o direito de
forma imoral constitui abuso do direito.

iii) Desvio do fim social ou económico do direito: O exercício de um direito é


abusivo quando contrário ao fim que a ordem jurídica lhe atribui. Por exemplo, os direitos
sobre as coisas têm um conteúdo, constituído pelos poderes que a ordem jurídica confere
ao seu titular e devem ser exercidos respeitando tais fins. Por exemplo, um arrendatário
que tenha sobre um determinado imóvel o direito de uso e habitação, não o pode usar para
fins incompatíveis com aquele poder; de contrário, estará a desviar-se do fim social e
económico para o qual o direito de uso e habitação foi constituído e pode responder
civilmente pelos danos que causar ao proprietário do imóvel.

iv) Consequências do abuso do direito:


O abuso do direito não tem consequências específicas. A lei limita-se a qualificar de
ilegítimo o abuso do direito (art. 334º C.C.). Em alguns casos, a consequência será a
invalidade do acto (anulabilidade, v.g. deliberações abusivas, no Direito das Sociedades
Comerciais), a ineficácia do acto, a responsabilidade civil (no caso de se verificarem os
seus pressupostos) ou outras consequências adequadas, cabendo ao tribunal determiná-
las.

39
Idem, pág. 270.

39
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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O abuso do direito é do conhecimento oficioso, isto é, pode ser decretado pelo


Tribunal mesmo que não tenha sido alegado pelas partes.

b) Restrições à autonomia privada na celebração dos negócios jurídicos


(bilaterais)
Os limites à autonomia privada na realização dos negócios jurídicos incidirão,
logicamente, sobre os aspectos da liberdade contratual (liberdade de celebração e
liberdade de fixação)
i) Restrições à liberdade de celebração:
A faculdade de celebrar ou não celebrar contratos não é absoluta. A lei, de forma
excepcional e em determinados casos, impõe aos particulares ou a obrigação ou a
proibição de celebrar contratos.
Dever jurídico de celebrar contratos:
Pode dizer-se, em geral, que o dever jurídico de contratar40 impõe-se sempre que
certos ou serviços básicos não possam ser obtidos senão mediante a conclusão do
respectivo contrato e a pessoa interessada preencha os requisitos necessários ao acesso
àqueles serviços/bens. A obrigação de celebração só existirá em caso de disponibilidade
do bem ou serviço. São casos do dever jurídico de contratar: os serviços de saúde, de
abastecimento de água, de energia eléctrica, de combustíveis, transportes colectivos,
comunicações, o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Este seguro tem
uma finalidade própria: prevenir determinados riscos decorrentes da falta de capacidade
financeira, em geral, para os cobrir a reparação dos danos que podem resultar da
sinistralidade rodoviária.
É de admitir, igualmente, por uma questão de ordem pública, o dever jurídico, e até
moral, antes de tudo, de prestar assistência médica (médicos e estabelecimentos de saúde)
em casos de urgência. A prestação de assistência médica, em casos de urgência, é mesmo
uma questão humanitária, antes de jurídica41.

40
Segundo HÖRSTER, este dever jurídico abrange também a liberdade de fixação para evitar que o
obrigado a contratar contorne este dever, fixando exigências tão exorbitantes relativamente ao conteúdo
do contrato, que a obrigação acabe por não ter efeitos, porque a outra parte nunca estaria em condições de
satisfazer as obrigações contratuais, nomeadamente em relação ao preço. Nota o mesmo autor que a
obrigação de contratar não se pode reconduzir à figura da sujeição, própria dos direitos potestativos,
porque, contrariamente aos direitos potestativos, a parte obrigada a contratar pode violar esta obrigação
(A Parte Geral do Código Civil Português, cit. op. Cit. nº 62).

41
Nesta matéria, é mister transcrever aqui os preceitos relevantes do Código Deontológico e de Ética
Médica, que reza o seguinte:

Art. 6º (Deveres Deontológicos e Estatutários dos Médicos):

1- São deveres gerais dos médicos em relação à Deontologia Médica os seguintes:


40
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

No domínio do Direito das Obrigações, o senhorio está vinculado à renovação do


contrato de arrendamento, se não denunciar o contrato dentro do prazo contratual ou
legal (art. 1095º e 1055º C. Civ.). Trata-se, rigorosamente falando, de um dever jurídico de
manutenção do contrato já celebrado. No Direito do Trabalho, existe também o dever
jurídico da manutenção do contrato de trabalho, de reintegração do trabalhador, quando o
despedimento é feito sem justa causa (art. 229º nº 1 da LGT). Vários outros exemplos
podem ser encontrados no Direito Civil reflectindo a obrigação de contratar ou de celebrar
contratos.
Proibição de contratar:
Por outro lado, há casos em que pesa sobre os particulares a proibição legal de
celebrarem determinados negócios jurídicos. Como exemplos, a proibição 42 do negócio
consigo mesmo, prevista no art. 261º C.Civ.), da cessão de um direito litigioso (art. 579 e
876 C.Civ), da venda a filhos ou netos (art. 877º C.Civ), as chamadas indisponibilidades
relativas (art. 953º e 2192º a 2198º C.Civ), a sujeição da conclusão de negócios jurídicos ao
consentimento de determinada pessoa – por exemplo, certos actos dos inabilitados só
podem realizados com a autorização do curador (art. 153º C. Civ.) ou do representante
legal, em alguns casos; a disposição sobre certos bens43 dos cônjuges só pode ser feita com
o consentimento do outro cônjuge (art. 61ss C. Fam.).

ii) Restrições à liberdade de fixação:

a) “O Exercício da arte médica é uma missão eminentemente humanitária. O médico zela em todas as
circunstâncias pela saúde das pessoas e da colectividade. Para cumprir com esta missão o médico presta
toda a atenção à arte médica que pratica, estando sempre e plenamente preparado de forma a respeitar a
pessoa humana.

d) Todos os médicos devem prestar tratamento de urgência a pessoas que se encontrem em perigo
imediato, independentemente da sua função específica ou especialidade;

e)O médico deve exercer todos os actos médicos benéficos para o doente, segundo o consenso actual da
comunidade médica, mesmo que eles sejam contrários às suas convicções ideológicas, religiosas ou
políticas.

g) O médico deve ter consciência dos seus deveres para com a colectividade”.

42
Rigorosamente falando, só se pode falar da proibição de contratar quando não verificados os requisitos
da sua admissibilidade. Nas condições em que ele é admitido, ele representa apenas um perigo fundado na
possibilidade do conflito de interesses (VER INFRA, o fenómeno da representação).

43
Daqueles bens importantes para a vida económica familiar.

41
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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As restrições que este princípio comporta traduzem-se:


 na necessidade de o conteúdo dos contratos não contrariar a lei, a ordem pública e
os bons costumes (art. 280 C.C.);
 na proibição dos negócios jurídicos usurários (art. 282 C.C.). A usura consiste
numa grande desproporção entre a prestação efectuada (ou prometida) por um
dos contraentes e a contraprestação de outro, resultante da intenção do primeiro,
nos contratos comutativos44;
 na necessidade do respeito pelo princípio da boa-fé. A boa-fé de uma pessoa
traduz-se na sua rectidão, honradez, confiabilidade. A boa-fé objectiva, enquanto
padrão de conduta, impõe-se para proteger a confiança do outro contraente, que
tem fé, que se entrega confiadamente à conduta leal da outra: art. 227, 612 nº 2,
762 nº 2 C.C. (Vide notas sobre o abuso do direito);
 na existência de normas imperativas: as normas imperativas têm em vista: a)
assegurar um interesse público, b) proteger legítimos interesses de terceiros e d)
proteger a parte mais fraca e 45., especialmente na legislação laboral 46, nas
convenções colectivas de trabalho, imperatividade das normas ou cláusulas dos
contratos normativos;
 normas imperativas que ditam o conteúdo obrigatório de determinados contratos
(no contrato de trabalho, no contrato de arrendamento)47 em relação ao conteúdo
ou cláusulas dos contratos individuais de trabalho;
 na obrigatoriedade de se não ultrapassarem as taxas máximas de juros (art. 1146º
C.Civ.);
 nas cláusulas contratuais gerais ou contratos standard: são “…contratos
uniformizados...em que as condições para o negócio já se encontram pré-
estabalecidas por uma das partes, com vista a um número indeterminado de

44
Espécie dos contratos onerosos. São Contratos em que as atribuições patrimoniais das partes são certas
(Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, 1979, III-746) no sentido de que são conhecidas no momento
da celebração do contrato.

45
H. E. HÖRSTER op. cit pág. nº 67.

46
No Direito do Trabalho ao lado do princípio da protecção do mais fraco, que é transversal a toda a sua
regulamentação, vigora um princípio importante, que é o princípio do tratamento igual. O nº 1 do artigo
164 da Lei Geral do Trabalho reza, a este propósito: “O empregador é obrigado a assegurar para um
mesmo trabalhado ou para um trabalho de valor igual, em função das condições de prestação da
qualificação e do rendimento, a igualdade de remuneração entre os trabalhadores sem qualquer
descriminação com respeito pelas disposições”.

47
Em Angola, ainda não temos diplomas legislativos reguladores do regime de preços, sobretudo para
determinadas mercadorias, ou as margens de comercialização de determinados produtos. Mas é possível
encontrar uma legislação abundante em outras ordens jurídicas mais desenvolvidas economicamente.

42
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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contratos iguais a concluir no futuro com parceiros diferentes, restando a estes


apenas a aceitação das cláusulas fixadas, normalmente sem hipótese de alteração
(ou de alteração essencial)” ou, simplesmente, as cláusulas “elaboradas de antemão
por uma das partes e destinadas a serem aceites, sem mais, pela outra (HÖRSTER).
Nos contratos por adesão, a parte que formula as cláusulas é designada
predisponente ou contratante determinado, ou ainda oferente, por oposição à parte
que se limita aceitar, o aderente.
A existência de contratos por adesão justifica-se por três razões: a primeira razão é
de ordem dogmático-legal: os contratos por adesão resultam das normas jurídicas
dispositivas. Estas normas, por serem gerais, não conseguem comportar ou
contemplar os interesses e os condicionalismos próprios de determinadas áreas
contratuais. A segunda razão é de ordem técnica e reside no facto de os contratos
standard versarem, geralmente, sobre matérias jurídica e tecnicamente complexas
e sofisticadas, o que torna impossível a sua negociação com a generalidade dos
destinatários das cláusulas contratuais gerais. A terceira razão é de ordem prática,
e prende-se com o facto de ser praticamente impossível, no mundo actual, a
negociação individual e pontual das cláusulas dos contratos por adesão.

6. Princípio da responsabilidade civil

Sentido comum ou vulgar


Em sentido comum, a responsabilidade corresponde à necessidade ou
obrigatoriedade de alguém responder pelos actos praticados por si ou pelas pessoas que
estejam a seu cargo e, por conseguinte, pelas respectivas consequências, sejam elas
positivas ou negativas.

Conceito legal
O conceito legal da responsabilidade civil está contido no nº 1 do artigo 483º e no
artigo 562 do Código Civil. O artigo 483º determina, no seu nº 14: “aquele que, com dolo ou
mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a
proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da
violação”. O artigo 562º, por seu turno, estabelece: “Quem estiver obrigado a reparar um
dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que
obriga à reparação”.

43
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

Conceito doutrinal
Com fundamento no supracitado artigo, a responsabilidade civil é costuma ser
definida pela doutrina como:
 a obrigação imposta por lei ao autor de certos factos ou ao beneficiário de
certa actividade de reparar os danos causados a terceiros por tais factos ou
actividade, ou ainda, a necessidade imposta pela lei a quem cause prejuízos
a outrem de colocar o lesado na situação em que estaria sem a infracção
(C.A. MOTA PINTO), ou ainda,
 a “obrigação de ressarcir os danos causados a outrem em decorrência da
violação de direitos” (NÉLIA DANIEL DIAS);
 a obrigação imposta a uma pessoa de reparar os danos causados pelo seu
comportamento, positivo ou negativo.

Responsabilidade e autonomia, duas âncoras do agir humano


A responsabilidade pressupõe autonomia. Não há responsabilidade sem
autonomia. Só pode ser responsabilizado quem tem o conhecimento, o discernimento e a
auto determinação (liberdade) suficientes para que os seus actos possam ser considerados
como seus e para que ela deva responder por eles. A verificação destes pressupostos é
muitas vezes, um processo complexo.
A liberdade é um atributo da pessoa humana; trata-se da capacidade ou faculdade
de escolher e tomar decisões racionais48 sobre os dos actos a praticar e praticá-los sem
coação externa. A liberdade é exercida através dos actos concretos de escolha, mas não se
confunde com eles.
Por outro lado, não há autonomia sem responsabilidade. O homem só é autónomo
porque tem capacidade para responder pelas consequências dos seus actos e omissões.

Responsabilidade civil e responsabilidade jurídica


A responsabilidade jurídica não se esgota nem se confunde com a responsabilidade
civil. Disto resulta a necessidade de, em primeiro lugar, termos uma noção da
responsabilidade jurídica e, em segundo lugar, distinguí-la da responsabilidade civil.

48
Para Immanuel KANT (Metafísica dos Costumes, cit., pág. 31-32), uma decisão racional nunca pode
significar que a pessoa possa escolher contra aquilo que é racional. Por isso, este filósofo questionava a
concepção da liberdade como a faculdade de escolher a favor ou contra a lei, de decidir entre o bem e o
mal. Isto corresponde ao exercício da liberdade, e não se pode confundir com ela. A liberdade é, antes de
tudo, “uma propriedade negativa, a saber, a propriedade de não sermos forçados a agir por nenhum
fundamento sensível de determinação… a Liberdade jamais pode consistir em que o sujeito racional
possa escolher também contra a sua razão (legisladora)”.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

A responsabilidade jurídica pressupõe a prática de um facto ilícito, isto é, contrário


à ordem jurídica estabelecida, independentemente da produção de um dano. Podem ser
apontados, fundamentalmente, quatro tipos de responsabilidade jurídica: a
responsabilidade disciplinar, a responsabilidade decorrente das transgressões
administrativas, a responsabilidade civil e a responsabilidade penal.
A responsabilidade disciplinar decorre da violação de normas jurídicas que
regulam a organização e o funcionamento das instituições (públicas e privadas). A
responsabilidade no âmbito das contra ordenações resulta da prática de um facto que
constitui uma transgressão administrativa (venda ambulante não autorizada, venda de
bens em locais proibidos).

Responsabilidade Civil e responsabilidade penal:


a) Natureza da norma violada: a responsabilidade civil pressupõe a violação de
uma norma do Direito Civil; decorre, portanto, da prática de um ilícito civil; a
responsabilidade penal decorre da prática de um ilícito penal (violação de uma
norma do Direito Penal). Os ilícitos penais são típicos, isto é, só constitui crime
um facto considerado como tal por uma lei anterior à prática do facto
(Princípio da tipicidade) – a qualificação de uma conduta como criminosa exige
que seja individualizada a norma penal violada que estabelece o respectivo
tipo (legal) de crime. Pelo contrário, os ilícitos civis não carecem de uma
qualificação expressa pela lei; tal é o caso da ilicitude da violação de um direito
de personalidade; a ilicitude pode estar prevista numa norma geral que proteja
algum direito ou interesse inter privado (art. 70º, nº 1 C.C.).
Nota bene: em determinados casos, um comportamento constitui, ao mesmo
tempo, um ilícito civil e penal e, às vezes, também disciplinar.

b) Gravidade da sanção: as sanções do Direito Civil são menos gravosas do que


as do Direito Penal. A sanção típica do Direito Civil é a obrigação de
indemnização; existem outras, tais como a obrigação de juros, a cláusula penal,
etc. A responsabilidade penal comporta sanções mais gravosas (privação da
liberdade, multa, medidas de segurança…).

c) Natureza do interesse violado/protegido: a responsabilidade civil


pressupõe a violação do interesse de um particular (interesse entre privados);
a responsabilidade penal pressupõe a violação de direitos que correspondem a
um interesse fundamental do Estado (interesse público), aos bens jurídicos da
colectividade, necessários à existência e à sobrevivência da colectividade.
45
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

d) Impulso processual: o titular da acção cível é o particular cujo interesse tenha


sido violado, ou das pessoas com legitimidade para agir no seu lugar
(representantes); dele depende, exclusivamente, tanto o interesse como o
início e o andamento do procedimento processual. O titular da acção penal é,
em princípio, o Ministério Público, em representação do Estado, exceptuando
os casos de crimes privados e dos semi-públicos, que dependem de
participação ou de queixa do ofendido.

e) Finalidade da responsabilidade: a responsabilidade civil tem uma finalidade


essencialmente reparatória, isto é, visa a reparação dos danos causados ao
particular, a reposição da situação que existia antes da ofensa, ou que existiria
sem a ofensa. A responsabilidade penal visa uma finalidade diversa: reeducar,
ressocializar, recuperar o agente do crime (prevenção especial positiva) e
inibi-lo de praticar actos semelhantes no futuro (prevenção especial negativa)
visa, ainda, inibir os outros membros da colectividade da prática de actos
criminais (prevenção geral negativa) e restabelecer a confiança da
comunidade no sistema de justiça penal (prevenção geral positiva).

Responsabilidade civil
Noção (remissão)
A responsabilidade civil pressupõe, como se disse, um facto danoso, em princípio
ilícito, mas, às vezes, excepcionalmente, também de um facto lícito. Seja num caso seja
noutro, não há responsabilidade civil sem dano.

Modalidades da responsabilidade civil:


A responsabilidade civil é comummente classificada segundo vários critérios, que não se
excluem, necessariamente.

Responsabilidade civil por factos ilícitos versus responsabilidade por factos lícitos
a) Por factos ilícitos (art. 483º a 498º; 798ss C.C.)
Constitui a regra. Verifica-se quando o dano a ressarcir resulta da prática de um facto
contrário à ordem jurídica, isto é, proibido pelo Direito (por exemplo, a resultante do
homicídio, do roubo, lesão ao bom nome, ao crédito de outrem, à privacidade, etc.);

b) Responsabilidade civil por factos lícitos (excepção regra).

46
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

A responsabilidade por factos lícitos tem lugar quando a lei impõe a obrigação de
indemnizar, apesar de o facto danoso ser permitido pela ordem jurídica. Constituem casos
de responsabilidade por factos lícitos os seguintes: responsabilidade resultante da
revogação do consentimento, em matéria dos direitos de personalidade (art. 81º, nº 2
C.C.), responsabilidade decorrente da prática de um facto no âmbito do estado de
necessidade (art. 339º, nº 2 C.C.), indemnização por danos causados por escavações ou
abertura de minas e poços em prédios (art. 1348º) ou por danos causados pela apanha de
frutos (art. 1349º), igualmente a responsabilidade prevista no artigo 1367º, e
responsabilidade decorrente da revogação do mandato (art. 1172º);

O C.C. não consagra uma secção específica à responsabilidade por factos lícitos; encontra-
se espalhada, esporadicamente, ao longo do C.C.

Responsabilidade civil extra contratual versus responsabilidade contratual


O critério de classificação é, aqui, a fonte da obrigação de indemnizar.
c) Responsabilidade civil contratual (art. 798º e ss C.C.)
Diz-se contratual a responsabilidade civil decorrente da violação de uma obrigação
contratual, ou simplesmente, de um negócio jurídico (ex.: responsabilidade do depositário
pelos danos causados à coisa depositada, responsabilidade do vendedor pelos danos ou
defeitos da coisa vendida, nos casos em que a lei o permita – art. 914ss C.C.,
responsabilidade do locatário pelos danos causados à coisa locada).

d) Responsabilidade civil extra contratual (regra) – art. 483º, nº 1 C.C.


A responsabilidade civil diz-se extra contratual quando a obrigação de indemnizar não
resulta da violação de uma obrigação imposta por um negócio jurídico/contrato. Por
outras palavras, a responsabilidade civil extra contratual pressupõe e existência, não de
uma relação contratual, mas sim de uma relação jurídica genérica e, portanto, a violação
de direitos subjectivos absolutos (por exemplo, a responsabilidade decorrente de um
acidente de viação), que, como sabemos, impõem uma obrigação passiva universal ou
dever geral de abstenção
A responsabilidade civil extra contratual abrange:
i) a responsabilidade civil por factos ilícitos (responsabilidade civil subjectiva =
fundada na culpa)
ii) a responsabilidade civil por factos lícitos e (tendencialmente independente de
culpa)
47
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

iii) a responsabilidade civil pelo risco (independente de culpa)

e) Responsabilidade civil pelo risco/objectiva (art. 510s C.C.)


Pré-compreensão da responsabilidade civil objectiva: o princípio do primado
da culpa.
A regra, em Direito Civil, é o princípio da culpa ou do primado da culpa, isto é, a lei
civil parte do princípio de que as pessoas só podem responder por comportamentos
culposos. É este o princípio está subjacente ao nº 1 do artigo 483º do Código Civil.
Entende-se por culpa a censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter adoptado uma
conduta reprovável e contrária à ordem jurídica e a consequente imputação do facto
danoso (art. 487º nº 2).
Poderia colocar-se a questão de saber por que razão o legislador não optou pela
imposição da responsabilidade civil independente de culpa como regra. C.A. MOTA
PINTO49 pronuncia-se no sentido de que o primado da culpa é um apelo à
responsabilidade moral da pessoa e mostra que a responsabilidade jurídica tem um
fundamento ético. Responsabilizar o homem, mesmo sem culpa, e fazer disso uma regra,
seria retirar aquele fundamento e negar a liberdade do homem e sujeitá-lo a
arbitrariedades. “O arbítrio é incompatível com a dignidade” (PAIS DE VASCONCELOS).
Outros autores defendem a ideia de que o primado da culpa não se funda em
motivos éticos, mas sim económicos, isto é, na sua origem está a preocupação de preservar
a liberdade de actuar e o entusiasmo empresarial (J. ESSER)50

Fundamentação racional da responsabilidade pelo risco: “ubi commoda ibi


incommoda”
Há situações em que, objectivamente, se chega à conclusão de que o próprio
lesante não teve culpa nenhuma. Em tais casos, numa lógica cega, não seriam ressarcidos
os danos causados sem culpa, ficando os mesmos a cargo do lesado, ou, pelo menos,
suportados pela colectividade (socialização dos riscos). Ora, isto seria uma injustiça
bárbara e insustentável. Seria o caso dos danos causados à saúde humana por uma fábrica.
Por isso, ao lado da responsabilidade civil subjectiva (fundada na culpa), e dentro da
responsabilidade extracontratual, foi concebida a responsabilidade pelo risco, regulada
nos artigos 499º a 510º do Código Civil.

49
C.A. C.A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit. Nº 28-II.

50
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit., nº 119.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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O fundamento da responsabilidade civil pelo risco não reside na culpa do agente,


nem na ilicitude da sua actividade (porque esta é lícita), mas sim no princípio de que,
sendo ele quem tira vantagens de certa actividade (permitida e encorajada pelo Estado,
que, entretanto, não está interessado em vê-la proibida, por ser de reconhecida utilidade
social, mas cujos riscos também não quer assumir) que pode causar riscos, deve ser ele
também a arcar com os prejuízos (desvantagens) que tal actividade cause a terceiros (ubi
commoda ibi incommoda). Pode dizer-se que a responsabilidade civil pelo risco se baseia
no princípio da justiça; é justo que quem crie um risco arque com as consequências da sua
verificação.
A obrigação de indemnizar decorrente do risco implica, muitas vezes, custos
enormes, que podem ir para além das reais capacidades financeiras e económicas do
agente da actividade em causa. Para neutralizar o efeito penoso que disto resultaria, as
entidades responsáveis por tais actividades transferem o seu risco para as empresas
seguradoras, por via do contrato de seguro. Em determinados casos, o seguro é
obrigatório.
A actividade seguradora é tratada como uma verdadeira colectivização dos danos e
uma ilusão da responsabilidade civil51 (individual).

f) Responsabilidade civil subjectiva versus responsabilidade civil objectiva:


Art. 4836º C.C.:
Nº 1: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de
outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios
fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”;
Nº 2:

A lei distingue, portanto, entre os casos de responsabilidade fundada na culpa, ou


responsabilidade por factos ilícitos (art. 483º, nº 1) e os casos de responsabilidade
independente de culpa (art. 483º2). À responsabilidade fundada na culpa a doutrina
chama de responsabilidade subjectiva, enquanto a responsabilidade independente de
culpa é designada como responsabilidade objectiva.
A responsabilidade civil subjectiva é portanto, a responsabilidade fundada na culpa
e constitui a regra, enquanto a responsabilidade civil objectiva é a responsabilidade

51
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. nº 123.

49
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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independente de culpa, e constitui a excepção à regra e só se verifica nos casos previstos


na lei (art. 483º, nº 2 C.C.).
A responsabilidade civil subjectiva (fundada na culpa) abrange: a responsabilidade
civil extracontratual por factos ilícitos, alguns casos pontuais de responsabilidade por
factos lícitos (ex. estado de necessidade) e a responsabilidade civil contratual (aqui, a lei
presume a culpa do devedor - art. 798º C.C.). Casos de responsabilidade civil objectiva
(independente de culpa): responsabilidade civil por factos lícitos, em geral, e
responsabilidade civil pelo risco.
Às vezes, as expressões responsabilidade objectiva e responsabilidade pelo risco
são usadas como sinónimos. A responsabilidade civil objectiva é uma categoria mais
abrangente; nem todos os casos de responsabilidade civil objectiva correspondem à
responsabilidade civil pelo risco. Por exemplo, a obrigação de indemnizar decorrente da
revogação do consentimento (art. 81/2 C.C.) cabe na responsabilidade civil objectiva (é
independente de culpa), de igual modo, a responsabilidade decorrente da revogação do
mandato (art. 1172 C.C.), mas não é pelo risco. A responsabilidade pelo risco pressupõe a
existência de uma actividade ou facto que cria um risco para os direitos de outras pessoas
legalmente protegidos. A actividade é lícita, corresponde a um interesse do Estado.
Todavia, o Estado não assume as consequências decorrentes da verificação do risco.
Tendencialmente, a responsabilidade objectiva será pelo risco, mas nem todos os casos de
responsabilidade independente de culpa constituem responsabilidade pelo risco.

O ónus da prova da culpa (ónus probandi) e os casos de inversão do onus


Em Direito Civil, rege o princípio geral consagrado nº 1 do artigo 342º do C.C.
segundo o qual “àquele que invocar um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos
do direito alegado”, neste caso, o direito à indemnização. Em matéria de responsabilidade
civil propriamente dita, a regra do onus probandi está consignada no nº 1 do artigo 487º
do Código Civil que estabelece: “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da
lesão…”.

Inversão do ónus da prova da culpa (presunção legal de culpa) 52:


Em situações tabeladas, o legislador inverteu o ónus da prova da culpa, saindo,
desta forma, em defesa do lesado. Nos termos do nº 1 do artigo 350º C.C., “quem tem a seu
favor a presunção legal escusa de provar o facto que a ela conduz”. Cabe, então, em casos
52
As presunções são tecnicamente definidas como as ilações que a lei (presunções legais) ou o julgador
(presunções judiciais) tira de um facto conhecido (no caso a lesão) para afirmar um facto desconhecido
(omissão do dever de agir).

50
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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pontualmente determinados pela lei, ao autor da lesão desculpar-se, provando que tudo
fez para impedir a consumação dos danos ou que estes viriam a produzir-se
independentemente dos seus esforços para os evitar (invocação da causa virtual) 53. Nas
situações de inversão do onus probandi, vigora a regra da presunção legal de culpa do
lesante, prevista na parte final do nº 1 do supracitado artigo (“…salvo presunção legal de
culpa…”). A presunção legal de culpa só existe nos casos previstos na lei.
Segundo o nº 2 do artigo 344ºdo Código Civil, além dos casos previstos no nº 1 do
mesmo artigo, há também inversão do onus da prova quando a parte contrária tiver
culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei
de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.
Podemos identificar alguns casos de presunção legal de culpa.
a) De acordo com o artigo 491º do Código Civil, as pessoas obrigadas à vigilância
de outrem respondem pelos danos que a pessoa vigilada cause a terceiros, excepto se
provarem que cumpriram o seu dever de vigilância, ou que os danos se teriam produzido
ainda que o tivessem cumprido54;
b) O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir é
responsabilizado pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte
ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos (art. 492º nº 1);
c) A pessoa que, por negócio jurídico ou por lei, está obrigada a conservar o edifício
ou obra no lugar do proprietário, responde pelos danos, se os danos se deverem,
exclusivamente, a defeitos de conservação (art. 492º nº 2);
d) A responsabilidade pelos danos causados por coisas, animais ou actividades
recaem sobre as pessoas que têm o dever de os vigiar, salvo prova de ausência de culpa
dessas pessoas ou de que os danos se teriam verificado mesmo sem culpa (art. 493 nº 1.);
e) Os que exercem uma actividade, em relação aos danos que esta instale na esfera
jurídica de outras pessoas (art. 493 nº 2);
f) Nos termos do nº 3 do artigo 503º: “aquele que conduzir o veículo por conta de
outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte”.

Pressupostos da responsabilidade civil subjectiva:


Para que se possa despoletar o fenómeno da responsabilidade civil subjectiva, é
necessário que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
1º: o facto voluntário do agente:

53
Ver infra, nexo de causalidade.

54
A presunção legal de culpa reside, neste caso, no raciocínio de que o facto danoso resultou da omissão
do dever de vigiar (culpa in vigilando).

51
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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O facto voluntário do agente é o “motor de arranque” da responsabilidade civil


subjectiva. É necessário, em primeiro lugar, que o facto seja materialmente imputado ao
agente, porque, por via de regra, cada um responde por actos próprios e não de outras
pessoas. Todavia, a simples imputação material não é suficiente; em certos casos, nem é
necessária (v.g. a responsabilidade do vigilante pelos factos da pessoa cuja vigilância lhe
foi confiada, em que o facto foi materialmente cometido por uma pessoa diferente daquela
que deve por eles responder).
O facto do agente tem de ser voluntário, isto é, imputado ou imputável à sua
vontade. A voluntariedade não significa que os factos tenham de ser produzidos
intencionalmente; basta que sejam domináveis pela vontade, embora esta não os tenha
controlado. O facto voluntário abrange as acções e as omissões.
Nota: as omissões só podem fazer surgir a responsabilidade civil quando exista um
dever jurídico de agir, isto é, um dever de praticar um acto jurídico que teria impedido a
consumação do dano. Este dever pode tanto resultar de um negócio jurídico como da lei
(art. 486º C.C.). Tal é o caso da responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de
outras (art. 491º C.C.). Há aqui uma presunção legal de culpa contra o vigilante. Trata-se,
todavia, de uma presunção relativa, podendo, ser afastada pelo vigilante, provando que fez
tudo o que estava ao seu alcance ou que o dano se teria produzido em qualquer caso.
Costuma-se dizer que o vigilante responde por um facto próprio, isto é, a omissão do dever
de agir.

2º: A ilicitude do facto (art. 483º/1 C.C.)


Está subjacente ao nº 1 do artigo 483º do C.C. (“aquele que, com dolo ou mera culpa,
violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger
interesses alheios…”).
É necessário que o facto do agente seja ilícito. A ilicitude consiste na contrariedade
à ordem jurídica e pode traduzir-se tanto na violação de um direito de outrem, como na de
uma norma jurídica destinada a proteger interesses de terceiros (art. 483º, nº 1 C.C.).
Todavia, neste último caso, só há obrigação de indemnizar só existirá se a mesma norma
que tutela o interesse de terceiro conferir a este o respectivo subjectivo correspondente à
sua tutela (ANTUNES VARELLA).
Há violações de direitos que são, excepcionalmente, toleradas pela ordem jurídica,
situações em que esta justifica a violação de direitos, ou, por outras palavras, em que o
facto lesivo se justifica. São as chamadas causas de exclusão de ilicitude. São tais: o estado
de necessidade (art. 339º), a legítima defesa (ar. 337º) e a acção directa (art. 333º C.C.) e o
consentimento do lesado (art. 340º C.c.).

52
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3º: O nexo de causalidade:


O nexo de causalidade está patente tanto no nº 1 do artigo 483º (aquele que, com
dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos
resultantes dessa violação”), como no artigo 563º (“a obrigação de indemnizar só existe em
relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não sofresse a lesão”).
Exige-se, portanto, a existência de uma relação de causa e efeito entre o facto ilícito
do agente e o dano. Considera-se como causa aquela condição que, pela sua natureza e em
face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada, apta, adequada e idónea para
gerar o dano
A causa do dano pode consistir numa acção ou numa omissão. A omissão só
poderá ser considerada causa quando haja um dever jurídico de agir (decorrente da lei ou
de negócio jurídico) e se prove que dano não se teria produzido se se tivesse cumprido
como o respectivo dever (art. 486º C.C.).
Entretanto, pode acontecer que um facto que seja naturalmente apto a produzir
determinado dano não tenha produzido, seja porque houve, entre o facto idóneo (causa
virtual ou hipotética) e a produção do dano um outro acontecimento que o veio a produzir
efectivamente (causa operante), interrompendo-se, desta forma, a causalidade. Neste caso,
o dano será imputado à causa operante, desde que esta tenha um carácter independente
em relação à causa adequada.
Em outros casos, pode ocorrer que “o prejuízo derivado de certo evento, seria
verificado posteriormente, como consequência de outro facto”. Chama-se isto causalidade
antecipada ou precipitada (NÉLIA DANIEL DIAS).
Tanto num caso como noutro, a causa virtual é o evento que, embora apto a
produzir o dano em causa, não o chegou a produzir, seja porque um outro evento posterior
quebrou a causalidade (causalidade interrompida), seja porque outro acontecimento a
antecipou (causalidade antecipada).
Em Direito Civil, a causa virtual, tanto na causalidade interrompida como a
causalidade antecipada ou prematura, é relevante, na medida em que pode afastar a
obrigação de indemnizar (art. 491º, 492º, 493º, 503º, nº 3); na responsabilidade penal,
pelo contrário, a casa virtual não é irrelevante, ou seja, o agente do crime é sempre punido

4º: A culpa (dolo e mera culpa)


Consagração legal: art. 483º, nº 1 e 488
Consagração legal

53
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O comportamento do agente, além de ser ilícito e a causa do dano, deve ser


também culposo. O fundamento legal da culpa como pressuposto da responsabilidade civil
subjectiva encontra-se no nº1 do 483º (“aquele que, com dolo ou mera culpa violar
ilicitamente o direito de outrem …) e no nº 1 do artigo 488º (“não responde pelas
consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por
qualquer causa, incapacitado de entender ou querer…”.

Noção:
A culpa consiste no juízo de censurabilidade pessoal do comportamento do agente
(NÉLIA DANIEL DIAS), um juízo de censura ético-jurídica dirigido ao agente, por ter
adoptado uma postura reprovável.

Pressupostos da culpa:
Para haver culpa, é necessário que haja um comportamento voluntário (liberdade),
no sentido de este ser dominado ou dominável pela vontade e, além disso, a capacidade
do agente de entender, isto é, avaliar o resultado, as dimensões e o alcance do seu agir
(acção ou omissão) e capacidade de querer (liberdade). A culpa pressupõe, portanto,
vontade e esclarecimento. Estes pressupostos estão referidos no nº 1 do artigo 488, que
estabelece: “não responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o
facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer…”.

Modalidades da culpa
A culpa pode apresentar sob a forma de dolo ou de negligência. Às vezes, o dolo é
referido como má fé e a mera culpa, como negligência. O dolo é a forma mais intensa da
culpa; a negligência, a sua forma menos intensa.

- O dolo:
O dolo é o querer de um resultado contrário ao Direito, de se violar o direito de
outrem e de causar-lhe um prejuízo ou com a consciência ou intenção de infringir um
dever jurídico (ENNECCERUS-NIPPERDEY)55. No dolo, o agente tem, portanto, a
representação do efeito danoso do acto praticado, a intenção maléfica e a aceitação, em
termos reflexivos, desse resultado.
i) Tipos de dolo: dolo

55
NÉLIA DANIEL DIAS, A Responsabilidade Civil subjectiva, cit., pág. 73.

54
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- Dolo directo: no dolo directo, o agente representa ou prefigura, no seu espírito,


certo efeito do seu comportamento e pretende directamente esse efeito como fim da sua
conduta, não obstante ter conhecimento de que o facto é ilícito.
-Dolo necessário ou indirecto: o agente, apesar de não pretender praticar
directamente o facto ilícito, o prevê, como consequência necessária do seu
comportamento. E conforma-se com o resultado. O dolo indirecto ou necessário é, na
doutrina e na lei, equiparado ao dolo directo
-Dolo eventual: o agente lesante previu a produção do facto ilícito como efeito
provável ou possível do seu comportamento e, ainda, assim, o realizou. O dolo eventual
está mais próximo da negligência (negligência consciente). É difícil distinguir entre um e
outro.
Refira-se que é possível afastar-se o dolo, provando-se que houve uma suposição
errónea de que o facto constitui causa de justificação. Mas aqui, teria de se tratar de um
erro invencível (art. 338º C.C.).

ii) A apreciação da culpa (art. 483º, nº 1; 487º, nº 1, 494º , 570º e 799º, nº 2


CC):
No Código Civil, a apreciação da culpa faz-se em dois sentidos: um abstracto e
outro concreto.
O nº 1 do artigo 487º do C.C. estabelece: “a culpa é apreciada, na falta de outro
critério legal, pela diligência de um bom pai de família…”.
Quando a lei não estabeleça um critério, a apreciação da culpa em sentido
abstracto faz-se, colocando a figura abstracta de um “bónus pater familias”, isto é, de uma
pessoa diligente, no lugar do agente do facto lesivo (artigo 487º, nº 1 C.C.). A fórmula
latina “bonus pater famílias” é um conceito vago e indeterminado, cujo significado só pode
ser aferido, analisando o comportamento da pessoa nas circunstâncias concretas. Esta
figura jurídica traduz-se na ideia de uma pessoa normal, bastante cuidadosa, diligente,
prudente no seu agir. Considera-se que há culpa quando se julgue que uma pessoa
prudente, no lugar do autor do facto ilícito danoso, teria adoptado uma postura diferente e
aceitável, de acordo com os padrões da boa conduta.
Da leitura do nº 1 do artigo 487 do C.C., resulta que o recurso à figura do bonus
pater familias tem carácter subsidiário, só terá lugar quando a lei não tenha estabelecido o
critério de apreciação a seguir.

Em concreto, a culpa é apreciada pelo comportamento que se esperava do agente


do facto ilícito em concreto, isto é, “em face das circunstâncias de cada caso”. A culpa,

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apreciada in concreto, “encontra-se numa razão directa com a diligência que este costuma
seguir no âmbito da sua actividade” (NÉLIA DANIEL DIAS).

Apreciação da culpa como dolo ou mera culpa


Embora o nº 2 do artigo 487º, relativo à apreciação da culpa, não o refira
claramente, decorre do nº 1 do artigo 483º que a apreciação da culpa envolve a questão de
saber se o autor do facto ilícito agiu com dolo ou com mera culpa. A relevância desta
análise da culpa é atestada pelo artigo 494º, na medida em que permite delimitar a
obrigação da indemnização. Dir-se-á que o montante da indemnização pode ser
considerado proporcional à intensidade ou gravidade da culpa, isto é, quanto mais intensa
a culpa (dolo), mais alto o valor da indemnização e vice-versa. Assim, quando há dolo, o
valor da indemnização deverá corresponder ao valor total dos danos, pelo que o julgador
não pode, em sede da responsabilidade civil subjectiva, fixar um valor inferior ao dos
danos a reparar, em caso de dolo. Havendo mera culpa, o valor pode ser reduzido; o
julgador poderá recorrer, então, a critérios de equidade na sua fixação. O artigo 494º deve
ser combinado com o artigo 570º, relativo à culpa do lesado. Se este tiver concorrido para
a produção ou agravamento dos danos, o Tribunal poderá determinar, com base na
gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultarem, se a
indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou excluída (art. 570 nº 1). Além
disso, nos termos do nº 2 deste mesmo artigo, se a responsabilidade se basear numa
simples presunção de culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui-se o
dever de indemnizar.
Além de tudo isto, o legislador manda atender ao critério da equidade, na fixação
do valor de indemnização, nomeadamente a equidade. É preciso atender à situação
económica tanto do lesante como do lesado (art. Xxx C.C.).

iii) A prova da culpa:


Na responsabilidade civil extracontratual, cabe ao lesado e ao credor provar a
culpa (art. 487/1), a menos que haja alguma presunção a seu favor. Quem invoca um
direito deve provar a existência do mesmo (art. 342/1 CC). Podemos concluir que a regra
na responsabilidade civil extracontratual é não haver presunção de culpa.
Constituem excepção à regra os casos de presunção de culpa: art. 343º, 344º nº 1,
491º, 492º, 493º, 503nº 3.
Na responsabilidade civil contratual, há inversão do onus de prova, cabe ao autor
da lesão ou causador dos danos (devedor) provar que não teve culpa (art. 799º, nº 1e 2, e
art. 798º CC).

56
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

Pode haver culpa por imperícia, quando o agente lesante descurou o dever de
actualizar a técnica e os conhecimentos necessários para cumprir de forma cabal a sua
profissão. Fala-se, neste caso, de indiligência e de imprudência56.

5º: o dano
A relevância do dano não se cinge ao facto de ele constituir um (dos)
pressuposto(s) da responsabilidade civil subjectiva; o dano condiciona e determina, antes
de mais, a existência da própria responsabilidade civil, seja ela subjectiva ou objectiva.
Com efeito, em Direito Civil, não há obrigação de indemnizar se não houver danos.
Ninguém pode ser indemnizado por danos inexistentes ou que não tenha sofrido.
O dano é segundo a qual o dano é o prejuízo que o lesado sofreu in natura, em
forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem, corpóreo ou ideal
(MANUEL DE ANDRADE57), ou toda e qualquer ofensa aos bens ou interesses alheios
protegidos pela ordem jurídica (ALMEIDA COSTA)58. O dano pode ser visto, ainda, como
uma desvantagem ou perda que se verifique nos bens jurídicos de uma pessoa, ou
simplesmente como a perda sofrida pelo lesado em decorrência de um evento.
Para efeitos de responsabilidade civil, são de excluir do conceito de dano os que o
próprio titular do direito cause a si mesmo, porque estes danos não são ressarcíveis.

i) Tipos de dano (art. 564):


Os danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais (morais), consoante sejam
ou não susceptíveis de quantificação ou avaliação em dinheiro, conforme incidam ou não
sobre interesses, bens ou direitos de natureza económica (ex. direito a um crédito, ao
pagamento de uma renda, ao pagamento de um bem ou serviço) ou espiritual (danos
causados à saúde, ao bem-estar, à beleza, à honra, ao bom nome, à alegria de viver, ao
equilíbrio anímico, etc.).
Segundo o artigo 564º do Código Civil, a categoria danos patrimoniais abrange59: a)
o dano emergente (nº 1)60, isto é, a diminuição efectiva no património do lesado; e b) o

56
NÉLIA DANIEL DIAS, A Responsabilidade Civil Subjectiva, cit., pág. 86.

57
In Teoria Geral das Obrigações (citado por NÉLIA DANIEL DIAS, in Responsabilidade Civil
Subjectiva, cit., pág. 90).

58
NÉLIA DANIEL DIAS, A Responsabilidade Civil Subjectiva, op. cit, pág. 91.

59
Quanto aos danos patrimoniais, costuma falar-se da perda da capacidade de ganho.

60
Segundo Antunes Varela, o dano emergente pode configurar tanto a diminuição do activo como no
aumento do passivo
57
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

lucro cessante (art. 564º nº 1CC), ou seja, os benefícios económicos que o lesado deixa de
perceber, como consequência da lesão.
Nos termos do nº 2 do mesmo artigo, os danos podem ser presentes ou futuros,
sendo que os últimos (danos futuros) só serão atendíveis quando previsíveis.
Uma orientação doutrinária fala ainda em dano real, isto é, todo o prejuízo que o
lesado sofreu em termos naturalísticos, ou a lesão efectivamente suportada.
Fala-se também da classificação dos danos em directos e indirectos. Os primeiros
são os prejuízos imediatos do facto lesante ou a perda directa causada nos bens ou valores
juridicamente tutelados. Os danos indirectos são os efeitos remotos ou mediatos do dano
directo.
Preenchidos que estejam os pressupostos que acabamos de descrever
sumariamente, determina-se, então, a obrigação de indemnizar o lesado. Tal determinação
é feita em conformidade com os artigos 563º e seguintes do Código Civil, sendo relevante
frisar que o momento da aferição ou determinação do quantitativo da obrigação de
indemnizar é o da pronúncia da sentença condenatória, ou seja, é neste momento que são
computados os danos em que o autor da lesão será condenado. Todavia, pode haver lugar
à condenação provisória sempre que não seja possível apurar já o valor definitivo dos
danos (art. 565º e 569º do C.C.).

7. Princípio do respeito pela propriedade privada


7.1 O sentido geral da propriedade no Direito Civil
Ao longo da sua existência, as pessoas vão adquirindo bens e direitos sobre bens.
Deste fenómeno natural decorre, logicamente, o princípio da propriedade privada.
Deve-se notar, antes de mais, que a propriedade tem aqui um sentido amplo, e não
técnico61. Em sentido técnico ou restrito, a propriedade designa, apenas, um dos tipos dos
direitos reais, o direito de propriedade. Em sentido amplo, vertido aqui, a propriedade
corresponde a todo o conjunto de direitos sobre os bens, ou conjunto de direitos de
carácter patrimonial.

Importância da propriedade (autonomia patrimoial Versus desenvolvimento


da personalidade) e da sua protecção jurídica (constitucional e civil)

61
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., vol. I, nº 12-III.

58
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

A propriedade é considerada como uma incontornável faceta da autonomia


privada, enquanto sinal e instrumento de realização da autonomia patrimonial62
necessária para a realização da dignidade da pessoa humana, para o desenvolvimento
da sua personalidade e é necessária para a sua sobrevivência. JOSÉ DE OLIVEIRA
ASCENSÃO63 considera que “o exercício da autonomia patrimonial acarreta
necessariamente direitos sobre os bens”. Por sua vez, C.A. MOTA PINTO64 afirma: “a
autonomia privada… encontra, pois, os veículos da sua realização nos direitos subjectivos e
na possibilidade de celebração de negócios jurídicos”. Quanto aos primeiros, direitos
subjectivos, é importante lembrar que é através da soberania do querer que as pessoas
decidem o que fazer dos seus bens. Relativamente aos negócios jurídicos, é ponto assente
que a propriedade se adquire, mormente, através deles. Por isso, conviremos em afirmar
que a autonomia da pessoa se realiza, necessariamente, através da autonomia patrimonial;
esta, por sua vez, não tem lugar sem direitos sobre bens.
A relevância da propriedade que se deixou expressa justifica o princípio do
respeito e da protecção da propriedade. A propriedade é um dos direitos fundamentais
dos cidadãos e é, portanto, objecto de protecção constitucional. O direito à propriedade é
assegurado pela Constituição da República de Angola65, que estabelece, nos nºs 1 e 2
do artigo 37º, respectivamente: “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à
sua transmissão…”; “o Estado protege a propriedade e demais direitos reais das pessoas
singulares, colectivas e das comunidades locais”.
Em face da ideia de que da soberania do querer, enquanto corolário da autonomia
privada, decorre a liberdade de o homem perseguir com os seus bens os fins que escolher,
sem necessidade de dar razões das suas opções, embora dentro dos limites que a ordem
jurídica fixa para este exercício, justifica-se a necessidade de uma fundamentação
racional da regulação do domínio sobre as coisas (direitos reais). Doutrinariamente,
valemo-nos, uma vez mais, das lições dos insignes mestres que acabámos de citar para

62
A esfera jurídica da pessoa comporta duas sub-esferas: a esfera jurídica pessoal (conjunto de relações
jurídicas pessoais ou não patrimoniais) e a esfera jurídica patrimonial (conjunto de relações jurídicas de
carácter patrimonial).

63
Op. Cit. , I Vol. Nº 9-I.

64
Op. Cit. Nº 21-III.

65
Diga-se de passagem que a Constituição da República de Angola reconhece três sectores de
propriedade: sector público (Estado e outras entidades públicas), privado (pessoas singulares e
colectivas), e cooperativo e os direitos reais das pessoas singulares, colectivas e das comunidades locais
(Cf. art. 37/14 e art. 92 C.RA. Remete-se o estudo desta matéria para a disciplina própria.

59
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

expor a razão que se impõe. Lendo as lições dos professores OLIVEIRA ASCENSÃO66 e C.A.
MOTA PINTO67, chegaremos à conclusão de que a regulação da propriedade encontra a sua
razão de ser na necessidade da prevenção de conflitos e, por conseguinte, na garantia
da paz, e na sociabilidade humana e na regra da solidariedade social que
consubstanciam a função social da propriedade68. A falta da disciplina jurídica do poder
do homem sobre as coisas, além de levar ao desrespeito das outras pessoas, tornaria os
próprios direitos sobre as coisas inseguros, expostos a agressões (eventualmente
resultantes tanto da escassez de bens como da ambição humana – situação que levaria à
luta pela apropriação dos bens); isto daria azo a que o titular precário dos bens os
defendesse por meios igualmente agressivos e por recurso à justiça privada (vindicta
privata).
Como foi referido acima, o sentido em que se abordou a propriedade até aqui não é
o técnico, mas sim lato, aquele que é extensivo a todos os direitos patrimoniais. Não sendo
correcto, nem desejável, que o estudante de Teoria Geral do Direito Civil fique com um
conhecimento difuso sobre a propriedade, é mister ver, ainda que sumariamente, como o
Código Civil trata os direitos sobre as coisas (direitos reais) e, neste âmbito, distinguir a
propriedade, enquanto direito real, dos outros tipos de direitos reais. O estudo mais
aprofundado e desenvolvido desta matéria pertence e é remetido à competente disciplina
de Direitos Reais, do 4º ano do Curso de Direito.

7.2 Os vários tipos de direitos reais:

66
Diz o autor: “Mas o direito exerce-se em sociedade. As posições dos vários intervenientes têm também
de ser conjugadas, para evitar conflitos e organizar a colaboração. A tendência deste século foi a de
assegurar progressivamente a solidariedade neste domínio, afastando-se o modelo da propriedade
absoluta romana. A lei tece cada vez mais vínculos de colaboração entre os intervenientes derivada de
um simples facto: o homem vive em sociedade e, para evitar conflitos, necessário se torna regular o
exercício dos direitos reais, tendo em conta as outras situações juridicamente protegidas, porque
autonomia não é sinónimo de individualismo...a pessoa deve agir, não apenas com os outros, mas os
outros. Em toda a sociedade deve haver uma solidariedade que implique que a actuação de todos tenha
reflexos positivos na ordem global. Pressupõe-se que cada um, no uso da sua autonomia, beneficie o
conjunto” (Direito Civil, Teoria Geral, cit. Nº 32-II).

67
Op. Cit. Nº 9 – II e III.

68
Neste sentido, há que pensar além do Direito Privado, porque para realizar a função social da
propriedade, o Direito, como ordem global, serve-se das normas jurídicas que ultrapassam o âmbito
privado; estabelecerá uma relação jurídica do Direito Público, como é a relação jurídica do imposto,
disciplinada pelo Direito Fiscal. Embora isto pareça criar uma certa tensão entre a privacidade e a
intervenção pública, esta é necessária em certos domínios, desde que se salvaguarde um espaço de
liberdade que não ponha em causa a liberdade das pessoas como princípio. O Direito Fiscal é, talvez, a
área mais exuberante de ilustrações de como o exercício do direito da propriedade privada beneficia a
colectividade. O imposto é, sem dúvidas, um mecanismo de obrigar as pessoas à solidariedade. Esta ideia
está patente no artigo 101 da Constituição de Angola que estabelece que o sistema fiscal visa a
redistribuição da riqueza nacional e a solidariedade

60
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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7.2.1 O direito de propriedade – noção.


ANTUNES VARELA e GALVÃO TELLES partilham a noção segundo a qual a
propriedade é o vínculo jurídico que sujeita uma coisa do mundo exterior (res corporalis)
ao pleno (real ou potencial) e exclusivo poder de soberania de uma pessoa, que fica tendo o
poder de usar (ius utendi), fruir (ius fruendi) e dispor (ius abutendi) dela, dentro dos
limites da lei69. Por sua vez, MENEZES CORDEIRO define o direito de propriedade como a
afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea, em termos plenos e exclusivos, aos fins
de pessoas individualmente consideradas, ou a permissão normativa, plena e exclusiva de
aproveitamento de uma coisa corpórea 70.
Ao lado do direito de propriedade, existem outros direitos reais, aos quais,
brevemente, lançaremos um olhar. Por ora, cabe referir que, na esteira de uma antiga
tradição jurídica, que acolheu as chamadas teorias do domínio71, tornou-se vulgar afirmar-
se que a propriedade se distingue dos outros tipos de direitos reais por se apresentar
como o direito real mais extenso imaginável, ou o direito que confere a mais ampla
senhoria sobre uma coisa determinada, ou ainda, no seguimento de uma outra teoria
muito próxima da primeira72, que a propriedade é o direito que outorga a universalidade
dos poderes que à coisa se podem referir – o direito à fruição da coisa (ius fruendi), ao seu
uso (ius utendi) e a dispor da coisa (ius abutedi)73. É corrente, neste sentido, dizer-se que o
direito de propriedade é o “direito real máximo” ou o “direito real pleno”.

a) Modalidades do direito de propriedade:


Dentro do direito de propriedade, cabe distinguir entre a propriedade singular e a
propriedade plural. A propriedade singular corresponde à titularidade do direito de
propriedade por uma única pessoa. A propriedade plural ocorre quando duas ou mais
pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre uma mesma coisa.

69
MELO FRANCO, João, e ANTUNES MARTINS, António Herlânder, in Dicionário de Conceitos e
Princípios Jurídicos, opus citatus, pág. 705.

70
Idem, pág. 706.

71
Ao lado desta teoria, existiu a teoria da pertença, que centra a distinção entre os direitos reais na
pertença ou na intensidade da ligação que une a coisa ao titular do direito, e uma terceira teoria, muito
próxima da teoria do domínio (OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Direitos reais, 4ª Ed..- 381, citado
por João MELO FRANCO e António Herlânder ANTUNES MARTINS, in Dicionário de Conceitos e
Princípios Jurídicos, pág. 705-706).

72
Ibidem.

73
O direito a dispor da coisa é a faculdade que o titular tem de alienar a coisa, isto é, de transferir a
titularidade dos poderes que sobre ele incidem para outra pessoa.

61
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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Na propriedade plural, cabem três modalidades: propriedade horizontal, a


compropriedade e a propriedade colectiva.

Propriedade horizontal:
Está regulada nos artigos 1414º a 1438º do Código Civil. De acordo com o artigo
1414º, a propriedade horizontal consiste numa situação em que duas ou mais pessoas se
tornam proprietários de fracções autónomas integradas no mesmo edifício de cujas partes
comuns eles são co-proprietários (também designados consortes ou condóminos (art.
1417º, nº 2 e 1420º C.C.). Pode ser definida como a propriedade exclusiva de uma
habitação integrada num edifício comum, ou a pertença a proprietários diversos de várias
fracções de um edifício que constituem unidades independentes.
O esquema fundamental da propriedade horizontal é o da interdependência
estrutural ou dependência funcional entre as várias partes integradas no todo e a
independência das várias unidades que integram o edifício. Nesta lógica, e de acordo o nº 1
do artigo 1420º do Código Civil, cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que
lhe pertence e co-proprietário das partes comuns do prédio. Segundo o nº 2 do mesmo
artigo, o conjunto destes direitos (propriedade exclusiva sobre a fracção autónoma e
compropriedade em relação às partes comuns) é incindível, isto é inseparável; disto
resulta que nenhum destes direitos pode ser alienado separadamente e não é lícito
renunciar à parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas
necessárias à sua conservação ou fruição.
O artigo 1421º do Código Civil determina quais as partes comuns do prédio.
Segundo o nº 1, são categoricamente comuns todas as partes que constituem a estrutura
do prédio (o solo, os alicerces, os pilares, as paredes mestras), o telhado ou terraços de
cobertura, ainda que destinados ao uso do último pavimento, as entradas, os vestíbulos, as
escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos, e as
instalações gerais de água, electricidade, aquecimento e ar condicionado. O nº 2 estabelece
as partes que se presumem comuns: os pátios e jardins anexos ao edifício, os ascensores,
as dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro, as garagens e as coisas que
estejam afectadas ao uso exclusivo dos condóminos. É importante ressaltar algumas
limitações que a lei impõe aos condóminos. Nos termos do nº 2 do artigo 1422º do Código
Civil, aos condóminos é especialmente vedado prejudicar, quer com obras novas, quer por
falta de reparação, a segurança, a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício,
destinar a sua fracção a usos ofensivos dos bons costumes, dar-lhe uso diverso do fim a
que se destina e praticar quais actos ou actividades que tenham sido proibidos no título
constitutivo ou, posteriormente, por acordo de todos os condóminos; os condóminos não
gozam do direito de preferência na alienação de fracções – o que resulta obviamente da
62
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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independência e do carácter autónomo das fracções nem do direito de pedir divisão das
partes comuns (art. 1423) – corolário da compropriedade dos condóminos sobre estas
partes. Os encargos de conservação e fruição, bem como os encargos com as inovações são
suportados pelos condóminos na proporção do valor das suas fracções (art. 1424º, nº 1 e
1426º C.C.). É importante sublinhar igualmente a obrigatoriedade do seguro do edifício
contra o risco de incêndio, sendo que qualquer dos condóminos pode efectuar o seguro
quando o administrador do condomínio não tenha feito, com direito de regresso sobre os
demais consortes (art. 1429, nº 1 e 2).

- Compropriedade (art. 1403º a 1413º Cód. Civil):


A compropriedade, ou propriedade em comum, existe quando duas ou mais
pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa,
sendo que os direitos dos comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente
iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes. São qualitativamente iguais na
medida em que os comproprietários exercem em conjunto todos os direitos que
pertencem ao comproprietário singular (art. 1403º, nº 1, 1ª parte) e cada um deles pode
reivindicar de terceiro a coisa comum, sendo vedado a este último opor-se à reivindicação
com fundamento na não pertença por inteiro (nº 2). “Quantitativamente diferentes”
significa que os comproprietários participam separadamente (na proporção das
respectivas quotas) nas vantagens e nos encargos da coisa (nº 1, 2ª parte).
A cada uma das partes cabe uma parte ideal (quota); as quotas presumem-se
iguais, salvo indicação contrária constante do título de constituição da compropriedade
(art. 1403 nº 1 e 2).
O que caracteriza a compropriedade é, além das quotas, a sua divisibilidade isto é,
nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão (comunhão divisível),
salvo convenção em contrário (art. 1412º nº 1), pelo que o comproprietário pode dispor
de toda a sua quota ou de parte dela (1408º), salvaguardado o direito de preferência dos
outros consortes (art. 1409 nº 1 e 1410º).

- Propriedade colectiva ou comunhão de mão comum:


Nesta modalidade, à semelhança da compropriedade, há contitularidade de duas
ou mais pessoas num único direito de propriedade (que abrange todo o património), mas
há um direito uno e indivisível. Na compropriedade, há um aglomerado de quotas dos
vários comproprietários; na propriedade colectiva não existem quotas, pela razão de se
tratar de uma comunhão indivisível. Na compropriedade há duas ou mais pessoas, mas o
direito não é uno, a cada contitular pertence uma quota de que pode dispor quando lhe
aprouver, embora não lhe seja permitido vendê-la ou dá-la em cumprimento a estranhos,
63
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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se os demais consortes quiserem preferir na alienação (art. 1409 C.C.). A propriedade


colectiva, sendo indivisa, não permite tal divisão; ela só cessa com a cessação do facto
jurídico que lhe deu origem.
A partir da leitura das lições de MANUEL de ANDRADE e C.A. MOTA PINTO,
podemos apontar, de forma resumida, como notas características do património colectivo
as seguintes74: a) o património colectivo pressupõe uma relação, um vínculo pessoal, em
regra de ordem familiar. Essa relação ou vínculo tem causas de extinção próprias e, depois
de extinta ela, é que cessa a propriedade colectiva; b) o património colectivo pertence em
globo ao conjunto de pessoas, cabe ao grupo no seu conjunto; c) não há quotas ideais,
como existe na compropriedade, (nenhum dos contitulares tem qualquer fracção de
direito que lhe corresponda individualmente e de que possa dispor); d) em consequência
disto, nenhum membro do grupo pode alienar uma parte ou quota do património, nem
requerer a divisão enquanto não cessa a causa da comunhão; e) gerando-se um passivo,
por este responde o património; no caso de este ser insuficiente, os membros respondem
solidariamente com os seus bens pessoais (art. 61/2 e 63/1 C. Fam.), porque devedores
são todos os membros do grupo; f) os credores pessoais dos membros não se podem fazer
pagar com os bens do património, mas apenas com a parte que couber a eles depois de
dissolvido o vínculo colectivístico.
Um exemplo da propriedade colectiva é comunhão conjugal.

Quadro comparativo da compropriedade e da propriedade colectiva


Item de Compropriedade Propriedade colectiva
comparação
Nº de titulares Dois ou mais Dois ou mais
Vínculo entre os Pessoal ou outro Pessoal (geralmente familiar)
consortes
Tipo de comunhão Divisível (art. 1408º e Indivisível (v.g. comunhão
1412) conjugal – art.
Exercício de Qualitativamente igual, Qualitativa e
direitos quantitativamente quantitativamente igual
separado (solidariedade)
Cessação da Não tem causas específicas Tem causas próprias: só cessa
comunhão depois de extinto o vínculo
que lhe deu origem

74
Estas características podem ser o pomo de distinção entre a propriedade colectiva e a compropriedade.

64
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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Quotas Sim Não


Responsabilidade Conjunta (na proporção Solidária (os membros podem
pelas das quotas) responder com os seus bens
dívidas/vantagens pessoais)
Responsabilidade Sim Não. Moratória
do património
perante os
credores pessoais

7.2.2 Os direitos reais limitados:


Como já foi referido, ao lado do direito de propriedade, enquanto direito real pleno
ou máximo, existem outros direitos reais, os direitos reais limitados, assim designados por
não conferirem a plenitude dos poderes próprios do direito de propriedade, mas apenas a
possibilidade de exercer certos poderes sobre uma coisa. Tradicionalmente, são
designados como direitos sobre coisas que pertencem, em termos de propriedade, a uma
outra pessoa (iura in re aliena – direitos sobre coisa alheia).
Existem três categorias de direitos reais limitados: direitos reais de gozo, direitos
reais de garantia e direitos reais de aquisição.

i) Direitos reais de gozo: conferem apenas um poder de utilização total ou


parcial de uma coisa e de apropriação dos frutos que a coisa produza. São eles:
a) o Usufruto (1439º-1483º C.C.). É direito que confere ao seu titular o poder de
gozar, temporária e plenamente, uma coisa ou direito alheio e de utilizar ou
apropriar-se dos seus frutos sem, contudo, alterar a sua forma, substância ou
destino económico (art. 1446º).
b) o Uso – art. 1484 C.C. – consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e
haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular quer da
sua família. O direito de uso apenas confere ao seu titular o poder de usar a coisa. A
diferença entre o direito de uso e o direito de usufruto reside, fundamentalmente,
na amplitude dos poderes que o titular do direito tem sobre a utilização dos frutos.
Enquanto o usufrutuário pode utilizar ou apropriar-se de todos os frutos, estando
apenas limitado pela necessidade de alterar a forma, a substância ou o destino
económico da coisa, o titular do direito de uso só pode utilizar os frutos dentro das
suas necessidades e da sua família. Portanto, não pode utilizar todos os fruto.
c) O Direito de habitação – art., 1484º/2: é uma espécie do direito de uso; designa
o direito de uso quando este incide sobre uma habitação.

65
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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d) O Direito de superfície (art. 1524º): consiste na faculdade de construir ou


manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele
fazer ou manter plantações.
e) As Servidões Prediais – art. 1543º C.C. - define-se a servidão predial como um
encargo imposto a um prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a
dono diferente; diz serviente o prédio sujeito à servidão, e dominante o que dela
beneficia.

ii) Direitos reais de garantia: são direitos que conferem ao credor o poder de
obter, com preferência sobre os demais credores, o pagamento da dívida sobre o
valor de uma coisa ou dos seus rendimentos. Servem para garantir o crédito ou o
pagamento de uma dívida. São eles: a)o penhor (art. 666º C.C.), a hipoteca (art.
686º C.C.), os privilégios creditórios (art. 733ºss CC), o direito de retenção (art.
754ºC.C.) e a consignação de rendimentos (art. 656º C.C. e 879º CPC). Consiste esta
última na aplicação dos rendimentos de certos bens imóveis ou móveis sujeitos a
registo à garantia do cumprimento de uma obrigação – ainda que condicional ou
futura – ou do pagamento dos respectivos juros, se devidos, ou tão só do
cumprimento da obrigação75, ou ainda, na atribuição feita pelo Tribunal dos
rendimentos dos bens penhorados durante o tempo necessário ao pagamento do
crédito76.

iii) Direitos reais de aquisição: conferem a um determinado indivíduo a


possibilidade de se apropriar de uma coisa, de a adquirir. São eles: a) o direito de
real de preferência (art. 413º C.C.), que existe quando há promessa de alienação
ou oneração de bens imóveis ou móveis equiparados aos imóveis, desde que tal
promessa conste de escritura pública e desde que a escritura pública seja registada
na conservatória de registo competente; b) o direito de preferência dos
proprietários de prédios confinantes (art. 1380 e 1409 C.C.) c) o direito de
preferência do comproprietário (respectiva acção de preferência - art. 1410); d)
o direito de preferência do titular do direito de superfície (art. 1535); e) o
direito de preferência do proprietário do prédio onerado; art. 1555.

75
Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed. – 647 (Citado por João MELO FRANCO e António
Herlânder ANTUNES MARTINS, Op. Cit. P. 222)

76
Galvão Telles, Direito das Obrigações (citado por João Melo Franco e António Herlânder Antunes
Martins, Op. cit. ibidem).

66
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7.3 Características dos direitos reais.


a) Características privativas do direito de propriedade:
1. O direito de propriedade é um direito pleno, quer dizer, o proprietário goza, de
modo pleno e exclusivo, dos mais amplos poderes: direitos de uso, fruição e de
disposição ((ius utendi, ius fruendi e ius abutendi) das coisas que lhe pertencem (art. 1305º,
nº 1, C.C.), dentro dos limites da lei, nomeadamente a expropriação por utilidade pública
ou particular (art. 1308º e 1310º. C.C.), a requisição administrativa (art. 1308º C.C.). Um
outro limite de carácter genérico é o que é imposto pela cláusula geral da proibição do
abuso do direito (art. 334º), de resto já contido, embora parcialmente, no nº 1 do artigo
1305º (respeitar o destino económico do bem).
2. O direito de propriedade é perpétuo (art. 1307º, nº 2). Em regra, o direito de
propriedade é constituído ou transmitido por tempo indeterminado. Todavia, nos casos
previstos na lei, e só nestes, a propriedade pode ser constituída sob condição ou
temporariamente (art. 1307º, nº 2). É exemplo disto a propriedade resolúvel e temporária,
prevista no nº 1 deste artigo. A propriedade resolúvel é aquela que se pode transmitir sob
condição ou aquela em que as partes podem prever casos de resolução.
É ainda digna de menção, no contexto da constituição temporária da propriedade,
a propriedade dos bens entregues aos herdeiros, no âmbito do processo de ausência 77.
Se uma pessoa desaparece sem notícias e sem a possibilidade de a contactar e essa
ausência se prolonga de tal modo que se justifique pensar ter ela falecido, justificada a
ausência, o Tribunal declara a morte presumida dessa pessoa e entrega os respectivos
bens aos seus herdeiros. Todavia, trata-se de uma presunção relativa, porque pode
acontecer que o ausente regresse ou dê notícias da sua existência. Se regressar, o
património que, entretanto, fora entregue aos herdeiros, ser-lhe-á devolvido, no estado em
que ele se encontrar (art. 119º C.C.).
No Direito Sucessório, encontramos também exemplos do direito de propriedade
constituído temporariamente. Nos termos do artigo 2229º C.C., o testador pode sujeitar a
instituição de herdeiro ou a nomeação de legatários a condição suspensiva ou resolutiva,
desde que tal condição não seja contrária à lei. Neste contexto, o artigo 2286º do Código
Civil prevê a figura jurídica da substituição fideicomissária ou fideicomisso, isto é, a
disposição pela qual o testador impõe ao herdeiro instituído o encargo 78 de conservar a
herança, para que ela reverta, por sua morte, a favor de outrem. Há, portanto, herdeiros ou

77
Note-se que estamos apenas diante de uma excepção à regra, porque os bens não são entregues com a
ideia de que eles deverão ser devolvidos passado algum tempo; a devolução resulta apenas de uma
condição resolutiva (o regresso do ausente) e, portanto, presume-se que este já não regressará. Todavia,
trata-se de uma presunção iuris tantum.

78
Sobre a noção do encargo, consultar o capítulo relativo ao conteúdo dos negócios jurídicos.

67
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

legatários sucessivos, sendo que o primeiro, agravado com o encargo, se chama


fiduciário79, e o beneficiário da substituição, o fideicomissário. Esta disposição deve ser
combinada com o artigo 2288º que estabelece o limite de validade do fideicomisso.
3. O direito de propriedade é elástico. O proprietário goza de todos os poderes
inerentes ao seu direito. Mas este pode ser limitado por um outro direito real limitado, de
gozo (direito uso e habitação, usufruto) ou de garantia (hipoteca, penhor, retenção), de tal
modo que, enquanto existir o direito real de gozo ou de garantia, o direito de propriedade
fica onerado, comprimido, não se podendo mover livremente na “órbita” jurídica. Assim,
por exemplo, a hipoteca constituída sobre determinado, a hipoteca limita a movimentação
jurídica desse bem, isto é, enquanto durar a hipoteca, o bem não poderá ser alienado sem a
hipoteca. Com o fim da hipoteca, deixa de existir o ónus que sobre ele pesava, o direito de
propriedade ganha de novo toda a sua extensão originária e o seu titular readquire a
plenitude dos poderes que ele comporta80.
b) Características comuns a todos os direitos reais:
1. Os direitos reais são típicos (princípio da tipicidade dos direitos reais). Este
princípio significa que só são direitos reais os que estão previstos na lei e só esta
determina o conteúdo daqueles 81. Remissão.
2. Os direitos reais são absolutos. Os direitos reais podem ser opostos a todas as
pessoas. Assim, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou
detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente
restituição do que lhe pertence (art. 1311º, nº 1 C.C.). É admitida a defesa da propriedade
por meio de acção directa, nos termos do artigo 336º. O mesmo se aplica à posse. Nos
termos do artigo 1277º do Cód. Civil, se o proprietário de um bem é esbulhado, pode
restituir-se por sua própria força e autoridade nos termos do artigo 336º, ou recorrer ao
Tribunal, para que este lhe restitua a posse. Remissão.
3. Os direitos reais gozam do direito de sequela. Decorre do carácter absoluto dos
direitos reais que o titular de um direito real (de propriedade, ou outro) que seja
esbulhado ou destituído da coisa e do seu direito pode reivindicá-lo e exigir a entrega da
coisa contra objecto do direito contra quem quer que a detenha (acção de revindicação).
Se A é titular do direito de uso e habitação (direito real de gozo - art. 1484º) sobre o imóvel

79
Do Latim, fiducia, que significa confiança.

80
Gama Prazeres falava de propriedade imperfeita, isto é, “a que consiste na fruição de parte dos direitos
contidos no direito de propriedade” (in Dos Incidentes da Instância no Actual C.P. Civil, pág. 62, citado
por João Melo Franco e António Herlânder Antunes Martins na Ob. Cit, pag. 706). É uma ideia que se
pode enquadrar nesta característica como também nos direitos reais limitados.

81
Remissão para o ponto 3.2 d) deste capítulo.

68
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

x, pertencente a B, e B vende o imóvel a C na vigência do contrato de arrendamento, A


pode exigir a restituição do seu direito, inclusive pela via judicial, isto é, pedindo que o
Tribunal reconheça o seu direito e e para que o seu direito lhe seja restituído. Se A vende a
C, e este a D, um imóvel hipotecado (direito real de garantia - art. 686º) num contrato de
mútuo entre A e B, B pode (judicialmente) exigir a apreensão da casa (penhora) com vista
à sua venda e fazer-se pagar com o seu produto, porque a hipoteca acompanha o imóvel
enquanto vigorar o crédito.
4. Os direitos reais gozam de preferência. Significa esta característica que o direito
real constituído em primeiro lugar no tempo prevalece sobre os direitos constituídos
posteriormente sobre a mesma coisa (prius in tempore fortior in iure)82. Como regra, se
forem constituídos sucessivamente direitos reais antagónicos ou incompatíveis sobre a
mesma coisa, prevalece o mais antigo. Assim, se A vende a B o seu imóvel y e, logo a seguir,
vende o mesmo imóvel a C, O Imóvel pertence a B.
Entretanto, esta característica comporta algumas excepções. Uma delas é o registo,
isto é, se dois direitos incompatíveis (ex. dois direitos de propriedade) incidirem sobre a
mesma coisa, prevalece o direito que tiver sido registado83, mesmo que tenha sido
constituído em último lugar. Gozando ambos de registo, prevalece aquele registado em
primeiro lugar. Assim, se A vende a B o seu imóvel y e, a seguir, vende o mesmo imóvel a C,
sendo que B não regista a aquisição, mas C a regista, imóvel pertence a C (porque
registou), apesar de B ter sido o primeiro a comprar. Se, eventualmente, as duas
aquisições (de B e de C) estiverem registadas, prevalecerá o primeiro registo.
Outra excepção à regra “prius in tempore…” são os chamados privilégios
creditórios. Nos termos do artigo 733º do Código Civil, o privilégio creditório é a
faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores,
independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros. O privilégio
creditório, como vimos, é um direito real de garantia que prevalece sobre o registo. Assim,
sendo, o privilégio creditório prevalece sobre qualquer outro direito real de garantia,
mesmo que registado antes. Vejamos algumas hipóteses práticas:

82
O primeiro no tempo é o mais forte no Direito.

83
O fundamento desta excepção reside em que o registo tem como fim dar publicidade aos direitos
inerentes às coisas, neste caso, às coisas imóveis (art. 1º do Decreto Lei nº 47 611, de 28 de Março de
1967 – Código do Registo Predial). O nº1 do artigo 2º deste diploma legal enumera os factos jurídicos
sujeitos ao registo, entre os quais, os que importem o reconhecimento, aquisição ou divisão do direito de
propriedade, do direito de usufruto, uso e habitação, a promessa de oneração de bens e os pactos de
preferência se as partes tiverem convencionado atribuir-lhes eficácia real, sempre que respeitem a coisas
imóveis, e as convenções de reserva de propriedade e de venda a retro estipuladas em contratos de
alienação, entre outros. O registo visa igualmente conservar o direito na titularidade da pessoa em cujo
nome está registado.

69
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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1. A beneficia de um crédito bancário junto do Banco BAA; para garantir o


crédito, hipotecou o seu imóvel y . A arrenda o imóvel y a C. O imóvel y é
penhorado numa acção executiva movida pelo BAA (dívida no valor de 5
000 000 Kz). No momento da penhora, A tem uma dívida fiscal (2 500 000
Kz) resultante do não pagamento do Imposto Predial Urbano (privilégio
creditório, art. 733º e 744º,nº1, C.C.). Solução: paga-se, em primeiro lugar, a
dívida fiscal (2 500 000 Kz) e, em segundo lugar, a dívida ao BAA (2 500
000 Kz).
2. António faleceu, deixando uma dívida para com Bento no valor de 800
000 Kz, resultante de um contrato de mútuo celebrado entre António e
Bento. No momento da celebração do contrato, António deu como garantia,
devidamente registada, (art. 687 e 688º/1/f), a sua viatura, avaliada,
actualmente, em 750 000 de Kz (hipoteca art. 686º nº 1 C.C. = direito real de
garantia). Para ocorrer aos encargos com o funeral, os familiares de
António foram forçados a recorrer a um empréstimo de Jeneroso no valor
de 350 000 Kz (privilégio creditório = direito real de garantia – art.737º, al.
a, C.C.), uma vez que António não deixou outros bens penhoráveis. Solução:
1º paga-se a dívida a Jeneroso (privilégio creditório mobiliário geral= 350
000); 2º paga-se a dívida Bento (400 000 Kz).

Havendo concurso de créditos privilegiados, são aplicáveis as regras estabelecidas


nos artigos 745º e seguintes do Código Civil.

8. Princípio da boa fé
Formulação
O princípio da boa fé é aquele segundo o qual cada um deve comportar-se como se
espera de uma pessoa honrada, como uma pessoa de bem. Trata-se de um apelo à regra
moral básica “fazer o bem e evitar o mal”. A boa fé traduz-se nos mandamentos
tradicionalmente conhecidos pelas expressões latinas honeste vivere (viver
honestamente), neminem laedere (não prejudicar ninguém) e na proibição dos
comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium).

Importância

70
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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A boa fé desempenha um papel imprescindível no trato social. As relações


humanas e, por conseguinte, as relações jurídicas, não seriam possíveis sem um mínimo
de confiança na boa fé das pessoas com que lidamos.
O princípio da boa fé encontra, no Código Civil, inúmeras expressões e
referências (v.g. artigos 227º, 612º, 1260º, etc.), o que ilustra bem a sua relevância para
as relações jurídicas e para a ordem jurídica. O Estado tem um interesse fundamental em
que os seus cidadãos tenham uma consciência moral bem formada, porque a
sobrevivência e o desenvolvimento das sociedades depende também da moralidade dos
seus cidadãos.
A consagração legal do princípio da boa fé manifesta, também, a relevância da
Moral para o Direito e estreita ligação existente entre estas duas ordens normativas.

Vertentes
O princípio da boa fé é visto, na doutrina jurídica, em duas vertentes: uma
objectiva (sentido objectivo) e outra subjectiva (sentido subjectivo).
Em sentido objectivo, a boa fé é vista como padrão de conduta, como critério do
agir correcto; é a boa fé como dever jurídico. As pessoas devem agir segundo os padrões
de uma acção eticamente decente. É este o sentido imanente no artigo 227º do código civil,
que estabelece, no nº 1: “quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve,
tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob
pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra”.
Em sentido subjectivo, a boa fé (boa fé subjectiva) corresponde à situação
psicológica do agente que, ao adquirir um direito, ignorava a circunstância de estar a lesar
o direito de outrem. Este sentido é o que está patente nos artigos 612º ( e 1260º (a posse
diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem),
no artigo 243º (a boa fé consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram
constituídos os respectivos direitos).

Relevância da boa fé subjectiva


A apreciação da conduta de uma pessoa não se cinge ao aspecto objectivo da boa fé; é
necessário ver também o lado subjectivo do agir humano. O Direito não é insensível às
motivações interiores do agir humano; o aspecto interno da acção é importante para a sua
valoração jurídica. Assim, de acordo com a lei, a boa fé subjectiva é importante porque
pode ser um factor de estabilização de situações jurídicas que, teoricamente, poderiam
ser postas em causa, isto é, em determinadas situações, a lei protege o adquirente de boa
fé, mesmo que ele não tenha adquirido o direito de alguém sem legitimidade para o alienar
(Cf. Art. 291º, 243º, 892º C.C.).
71
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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Em segundo lugar, a boa fé das partes num litígio é e deve ser tida em conta pelo
juiz na decisão de uma causa.

Boa fé ética ou normativa:


A boa fé normativa é uma categoria doutrinal que designa as situações em que a lei
exige das pessoas que queiram fazer valer um direito seu, apelando à sua boa fé, o
cumprimento da diligência de um bonus pater familias. Em tais casos, a lei não se contenta
com o simples desconhecimento (boa fé psicológica) do sujeito, mas exige que ele não
tenha culpa na sua própria ignorância de facto, que o sujeito tenha esgotado os deveres
conducentes ao apuramento da verdade relativa ao direito em causa, de tal modo que, só
depois de terem sido cumpridos tais deveres é que se pode considerar de boa fé o sujeito
que desconhecia que estava a lesar o direito de outrem. Resumindo, só está de boa fé quem
desconheça sem culpa.
Exemplos da lei:
a) art. 291º, nº 3, do C.C.; “é considerado de boa fé o terceiro adquirente que, no
momento da aquisição, desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.

b)- art. 914º e 915º do C.C. – remissão para o art.. 906º C.C: é obrigado a
eparar/substituir a coisa quem a alienou com um defeito que ele desconhecia por
sua própria culpa. Note-se, todavia, que o comprador não pode pretender reparar
um defeito notório, isto é, que uma pessoa de diligência normal (um bonus pater
famílias) teria notado. Excepção a esta nota encontra-se no Direito do Consumidor,
onde os defeitos notórios dão lugar à responsabilidade civil do fornecedor do bem
ou serviço.

Conhecimento normativo
Um outro conceito jurídico usado pela doutrina, no âmbito do princípio da boa fé, é
o do conhecimento normativo. Este conceito designa as situações em que a lei, partindo do
dever imposto à generalidade das pessoas, presume (presunção absoluta) que
determinada pessoa conhece determinada situação, apesar de isto poder não
corresponder à realidade dos factos, isto é, o sujeito pode não saber, efectivamente, de
uma determinada situação, mas a lei presume que ele a conhece, ou devia conhecer, pelo
que não pode ser desculpado (a lei equipara o dever conhecer ao conhecimento). O artigo
6º do C.C. ilustra bem o conhecimento normativo: “a ignorância ou má interpretação da lei
não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela
estabelecidas”. Nestes casos, alegar o desconhecimento de facto pode ser indício de má fé e
é irrelevante para impedir a produção de um determinado efeito jurídico. Tal é o caso da
72
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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declaração negocial que só por culpa do destinatário não chegou a ser dele conhecida (art.
224º, nº2, C.C.). Neste caso, o sujeito pode fazer tudo para impedir o conhecimento da
declaração.

Presunção de má fé/boa fé
Em determinados casos, a lei vai além e considera de má fé ou boa fé quem se encontra
numa determinada situação.
Um exemplo paradigmático da presunção de má fé está no art.. 243º, nº 3, do C.C.,
segundo o qual “considera-se sempre de má fé o terceiro que adquiriu o direito
posteriormente ao registo da acção de simulação…”. Presume-se, assim, que o terceiro
adquirente conhece a simulação, porque o registo da acção tornou-a pública; se o terceiro
adquirente não sabe, o problema é dele; por isso, ele não pode alegar a ignorância do
registo da acção de simulação. Outro caso de presunção de má fé é relatado pelo art. 1046º
do C.C: “fora dos casos previstos no art. 1036, e salvo estipulação em contrário, o locatário é
equiparado ao possuidor de má fé quanto a benfeitorias que haja feito na coisa locada”. O
artigo 1036º autoriza o locatário a realizar benfeitorias necessárias que se compadeçam
com a delonga do processo judicial. A contrariu, nos termos do artigo 1046º, todas as
outras benfeitorias carecem do conhecimento do locador, pelo que não podem ser
realizadas sem o conhecimento deste.
No artigo 1260 do Código Civil, temos exemplos de presunção de boa fé e de má fé no
que diz respeito à posse: “ a posse titulada presume-se de boa fé, e não titulada, de má fé”(nº
2); “a posse adquirida por violência é sempre de má fé, mesmo quando seja titulada” (nº 3).

A presunção de boa ou de má fé é relevante para efeitos de indemnização do


possuidor, em caso de ele ter realizado benfeitorias, isto é, ter realizado despesas (gasto
dinheiro), seja para conservar a coisa (evitar a sua deterioração), seja para lhe aumentar
apenas o valor e a utilidade (benfeitorias úteis), ou ainda para simples recreio do
benfeitorizante (Cf. artigos. 1273º a 1275º do C.C.). Quanto ao conceito legal das
benfeitorias, confira-se o artigo 216º do C.C.

Consequências da violação do princípio da boa fé:


Da violação do princípio da boa fé podem resultar consequências de vária ordem,
desde a responsabilidade civil à responsabilidade criminal.
Ao nível do Direito Civil, a violação do princípio da boa fé pode levar, entre outros,
a) à obrigação de indemnizar pelos danos causados culposamente (art. 227º, nº 1,
C.C.);

73
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b) ao não reconhecimento de um direito adquirido de má fé (art. 291º); à negação,


pelo Tribunal, de uma simples pretensão (v.g., o adquirente de má fé perde a coisa
em caso de declaração de nulidade ou de anulação do negócio (art. 291º C.C., a
contrariu sensu); o vendedor ou o doador de uma coisa alheia não pode opor a
nulidade da venda ou da doação ao terceiro de boa fé (art. 892º e 956º, nº 1 C.C.);
os simuladores não podem invocar a simulação contra o terceiro de boa fé (art.
243º, nº 1, C.C.); o possuidor de má fé não tem direito à indemnização nem ao
levantamento das benfeitorias, tratando-se de benfeitorias voluptuárias (art.
1275º, nº 2, C.C.).
c) Outras vezes, a má fé de uma pessoa se revela num comportamento
contraditório, tem como efeito a vinculação aos efeitos do negócio formalmente
inválido (v.g., se um dos contraentes provocou o vício do negócio ou participou
num negócio que ele sabe ser inválido, não pode vir pretender do Tribunal fazer-se
valer da ineficácia do negócio; por razões de justiça, poderá ser condenado a
cumprir o negócio por ele celebrado). No mesmo sentido, se o destinatário de uma
declaração negocial impede a sua recepção, ou se, por culpa exclusiva sua, a
declaração não chega a ser conhecida por ele, alegar o desconhecimento da
declaração é sinal de má fé. Para estas situações, a lei recusa-se a reconhecer a
desculpa do destinatário e reconhece a eficácia (vinculatividade) da declaração
negocial (art. 224º, nº 2, C.C.).
d) Em determinados casos, a violação do princípio da boa fé dá lugar à
responsabilidade criminal (v.g., crime de burla por defraudação, abuso de
confiança, peculato).

9. Princípio da confiança e da aparência


Importância da confiança nas relações humanas e jurídicas
As pessoas entram nas relações humanas porque depositam confiança na
boa fé da outra parte, confiança na sua seriedade, sinceridade, na verdade das
promessas e na palavra dada (peccatum est transgressio promissionis), nas
qualidades e poderes aparentes, na estabilidades das situações estabelecidas, na
titularidade aparente dos bens e direitos, sustentada pela posse ou pelo registo. É
imperioso respeitar a confiança; e o Direito não podia estar indiferente a esta base
ética das relações jurídicas.
Posições doutrinárias
A doutrina portuguesa apresenta posições divergentes quanto ao
reconhecimento deste princípio. Há autores que rejeitam a confiança como princípio; de
74
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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entre eles, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO84, para quem, a elevação da confiança à


categoria de princípio é oriunda da doutrina e da ordem jurídica alemã. Embora reconheça
o papel e o significado importante que a confiança desempenha e tem na ordem jurídica, já
pelo facto de ela ser um factor pré-legislativo, na medida em que há regras que visam criar
um ambiente de confiança (confiança como realidade abstracta), embora reconheça
também o facto de a confiança ser objecto de tutela jurídica em vários casos 85, a confiança
interessa apenas como “realidade pessoal e subjectiva”, e o seu carácter subjectivo traduz
a sua própria fraqueza, porque exige a demonstração de um estado de espírito para que
dele tirem consequências favoráveis. Para o autor, “o mero facto de alguém ter confiado é
insuficiente para que dele se tirem consequências favoráveis. É necessário saber o que
funda essa confiança”. Afirma ainda que “a ratio não pode ser só proteger os
ingénuos”86. Além disso, ela “só releva quando a lei para ela apelar numa situação
típica”87.
De entre os autores que alinham na sua defesa, avultam as figuras de BATIASTA
MACHADO, CARNEIRO DA FRADA e PAIS DE VASCONCELOS.
BATISTA MACADO88 considera a confiança como princípio ético-jurídico
fundamentalíssimo e que a ordem que jurídica não pode deixar de tutelar a confiança
legítima baseada na conduta de outrem.
CARNEIRO DA FRADA89 fala do princípio da protecção das expectativas. Este
princípio, segundo ele, “se ergue com autonomia e especificidade onde os efeitos jurídicos
de uma conduta não possam ser atribuídos ao exercício da liberdade de autodeterminação
da pessoa mediante a conformação de consequências jurídicas”.
Por sua vez, PAIS DE VASCONCELOS90 escreveu: “as relações entre as pessoas
pressupõem um mínimo de confiança sem a qual não seriam possíveis…”. Sem a
confiança, “…haveria uma tal insegurança na vida jurídica que necessariamente a

84
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, II, cit. II, pág. 395-399; 446-448. Na mesma
linha, MÁRIO BESSONE (Rapporto precontrattuale e doveri di corretteza, 1022) e BENATTI
(Responsabilita, 147)

85
Ex., confiança justificada do terceiro na legitimidade do agente que age sem poderes de representação

86
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., II, pág. 396

87
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., II, pág. 448

88
BAPTISTA MACHADO, Tutela da confiança e “Venire contra factum proprium”, in Obra Dispersa, I,
pág. 352.

89
CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e da Responsabilidade Civil, Lisboa, 2001, pág. 50.

90
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pág. 20 e ss

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viria a paralisar ou a dificultar extremamente. Seria necessário desconfiar de todas


as aparências e investigar e comprovar exaustivamente todas as circunstâncias
envolventes…”. A falta de confiança gera insegurança e instabilidade jurídica,
provocando, assim a paralisação da vida jurídica. A má fé é contrária à ordem jurídica;
por isso, esta não pode estar indiferente à frustração da boa fé de quem,
honestamente, confiou na seriedade de outrem. Isto impõe o dever de as pessoas, no
seu agir, terem em devida atenção as expectativas que, com a sua conduta, por acção
ou por omissão, fundadamente criam nas outras pessoas e os danos que o seu
comportamento pode gerar para os outros, porque “o Direito não tolera que alguém
construa expectativas e venha depois actuar em sentido contrário e beneficiar dessa
actuação contraditória” (PAIS DE VASCONCELOS).
A ordem jurídica não tutela, todavia, a confiança ingénua, a dos incautos (ex. dolo
bom), mas apenas aquela que é objectivamente fundada.
A confiança funda regimes jurídicos, ou seja, há regimes jurídicos fundados na
protecção da confiança. No Direito Comercial, a confiança suporta o regime jurídico dos
títulos de crédito. Em Direito Civil, são inúmeros os exemplos em que o legislador sai em
defesa da boa fé de uma pessoa (ex. o simulador não pode invocar a simulação contra
terceiro de boa fé; a inoponibilidade da anulabilidade ou da nulidade contra o terceiro de
boa fé – art. 291º; a anulabilidade resultante de dolo (art. 253º e 254º C.C.),
responsabilidade civil resultante da violação do princípio da voa fé (art.227º C.C.); a
declaração não séria emitida em condições que levem o declaratário a estar convencido da
sua veracidade pode dar lugar à responsabilidade civil (art. 245º, nº 2, C.C.); a reserva
mental não prejudica a validade da declaração negocial (art. 244º, nº 2,C.C.).
OLIVEIRA ASCENSÃO nega à confiança qualquer carácter autónomo, ela
tem um carácter subordinado, porque “resultará de uma situação criada por outra pessoa”,
isto é, da violação do princípio da boa fé, embora não tenha com esta uma ligação
definida91.
Conclusão/resumo:

91
Eis as palavras do próprio autor: “Mas como a tutela de quem confiou tem como reverso a desprotecção
do outro sujeito, diremos que a tutela da confiança se traduz, ou tende a traduzir-se, em reprovação do
outro sujeito, pelo menos, que poderia provocar a aquela reacção. A ser assim, o efeito jurídico que se
possa extrair resulta, antes de antes de mais, da conduta inadequada doutro sujeito, que induziu o terceiro
àquele “investimento de confiança”. A inadequação da conduta, por sua vez, resultará de uma valoração
de boa fé, porque é esta que funciona em conjunturas de relação… Daqui resulta que a confiança só vem
a funcionar como manifestação subalterna: quando alguma regra jurídica previr, para além da violação de
regras de condutas segundo a boa fé, a formação da confiança por parte do destinatário”. E mais adiante:
“Pensamos por isso, que as indicações que se lucram, pelo apelo à noção de confiança, são tão ténues que
mais vale dispensar essa noção. Basta-nos o comando geral da boa fé e os deveres específicos em que este
se traduz”.

76
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A confiança, enquanto princípio, traduz-se: a) na existência de regimes


jurídicos fundados na protecção da confiança – presunção da boa fé dos
intervenientes no tráfego jurídico (ex. Direito Comercial); b) na tutela, pela
lei, de quem actuou de boa fé (ex. art. 227º, 291º, 243º/1, 892º, C.C.); e c) na
punição de quem actuou de má fé ou de forma contraditória, isto é, construiu
expectativas legítimas/fundadas e vem a actuar em sentido contrário e
beneficiar da sua actuação contraditória).

10. O princípio do respeito pela família:


O princípio do respeito pela família pode ser abordado em três
perspectivas:
1º: Por ser o núcleo fundamental da sociedade, a família deve merecer a
protecção e a atenção especial do Estado e das outras organizações da sociedade, públicas
e privadas, independentemente de ela ter origem no casamento ou na união de facto
(princípio da protecção da família) (Cf. artigo 1º, nº 1, do C. Fam. e artigo 35º, nº 1, da
CRA.). O legislador angolano dotou as relações jurídicas familiares de uma disciplina legal
autónoma, o Código da Família (Lei 1/88, de 20 de Fevereiro).
O princípio da protecção da família anda estreitamente ligado a outro princípio, o
da estabilidade da família, segundo o qual, em todos os momentos, sobretudo nos mais
difíceis, deve-se procurar a manutenção da família, e não a sua separação ou desintegração,
contribuindo para a sua união e encorajando os seus membros a prestarem ajuda uns aos outros,
tanto moral como materialmente, a se manterem unidos na educação e formação dos filhos e na
protecção dos seus membros mais vulneráveis, sobretudo das crianças, dos idosos e dos
portadores de deficiências. Um exemplo claro deste princípio no Direito da Família reside
no seguinte: o divórcio não pode ser pedido por ou ambos os cônjuges antes de 3 anos
após o casamento, nem antes de completar cada um 21 anos de idade (art. 83º do C.
Fam.); além disso, depois de ser requerido o divórcio, o Tribunal ou a Conservatória,
conforme o caso, notificará os cônjuges para a conferência de cônjuges. Nessa
conferência, o Tribunal ou a Conservatória do Registo Civil deve promover a
conciliação dos cônjuges, procurando convencê-los para desistirem do propósito do
divórcio. Se os cônjuges não desistirem do seu pedido, então o Tribunal ou a
Conservatória do Registo Civil declarará posteriormente o divórcio provisório. Depois
da declaração do divórcio provisório, os cônjuges ainda têm 90 dias para desistirem do
pedido. Só no caso de eles não desistirem passado este prazo é que será decretado o
divórcio definitivo (art. 91º, 93º e 95º do C. Fam.).

77
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

2º: Na família, enquanto célula fundamental da sociedade, desenvolvem-se


relações interpessoais privilegiadas, diferentes e mais fortes do que as que se estabelecem
entre as pessoas em geral, relações que seguem regras próprias de afectividade e de amor,
de solidariedade e autoridade. Afirma-se, por isso, que a família se rege por regras
próprias (internas). A este respeito, PAIS DE VASCONCELOS92 escreveu: “não se pode,
porém, perder de vista a realidade da família, como instituição que tem regras próprias,
sobre as quais o poder do Legislador e da Lei são ínfimos e que não devem, em princípio,
ser perturbadas. Só quando a própria família se encontra tão doente que se não consegue
já reger pelas suas próprias regras é que a Lei tem legitimidade para intervir. Na
construção da Lei positiva, o Legislador tem geralmente dificuldade em resistir à tentação
de reformar a sociedade e de imprimir ao Direito da Família a sua própria concepção do
modo como a Família deveria ser… a Família tem evoluído, nas suas regras internas, não
por imposição da Lei, mas sim de acordo com a evolução das concepções éticas, culturais
e sociais dominantes – entia moralia- que fazem parte da Lei Natural, da Natureza das
coisas. Na legislação e na aplicação do Direito Civil da Família deve haver um
particular cuidado em não ofender as regras institucionais que lhe são próprias e
uma consciência clara do papel institucionalmente subsidiário da Lei neste domínio”.
3º Afirma-se, na doutrina, que o Direito da Família é um direito institucional, tal
como o Direito Sucessório. As regras do Direito Familiar (e as do Direito das Sucessões)
não são adaptáveis, à diferença, por exemplo, do Direito das Obrigações. Não existe família
especial, relações jurídicas familiares de carácter especial, como também não existe
sucessão especial.

11. Princípio do aproveitamento ou conservação dos negócios jurídicos:


favor negotii
O princípio da conservação dos negócios jurídicos (ou princípio favor negotii) tem
a sua consagração legal expressa nos artigos 292º e 293º do C.C. Trata-se do princípio
segundo o qual, se algum negócio padecer de algum vício, deve-se aproveitar o negócio,
sempre que o vício de que enferma possa ser superado. Nesta conformidade, sempre que
for possível, deve o intérprete e o aplicador do Direito tentar encontrar processos e
soluções que evitem a invalidade. ”… “A invalidade é, pois, o último recurso, a última
solução, que só deverá admitir-se depois de esgotadas todas as soluções que a evitem”
(OLIVEIRA ASCENSÃO).

92
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pág. 29.

78
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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O princípio da conservação… é tributário da autonomia privada e visa fazê-la


prevalecer.
Este princípio manifesta-se, entre outros, nos seguintes casos:
a) Convalidação dos negócios anuláveis pelo decurso do prazo: enquanto não
é anulado, o negócio jurídico anulável produz efeitos. Se não é anulado dentro do prazo
estabelecido e pela pessoa com legitimidade (art. 287º, nº 1, C.C.), o negócio convalesce,
isto é, torna-se válido e já não pode ser impugnado (art. 288º C.C.).
Na usura, a contraparte a quem assiste o direito de anulação do negócio, pode
oferecer tanto a redução como a modificação do negócio (art. 283º, nº 1, C.C.)
b) Ratificação: no domínio da representação sem poderes, o (falso) representado
pode ratificar o negócio (art. 268º, nº 1, C.C.), isto é, o vício sana-se mediante
ratificação).

c) Confirmação de actos anuláveis: a confirmação do negócio anulável torna-o


válido (ex.: confirmação dos actos do menor – art. 125, nº 2, C.C.). A confirmação
pode ser tácita ou expressa (art. 288º C.C.).
d) Redução: havendo nulidade ou anulação parcial, o negócio considera-se válido
relativamente às cláusulas válidas, a não ser que se mostre que, sem as cláusulas viciadas,
o negócio não teria sido celebrado (art. 292º C.C.). A redução pode ser potestativa ou
voluntária (art. 292º), automática ou legal (v.g. os juros acima do limite legal são reduzidos
automaticamente para o limite legal - art. 1146º, nº 3, C.C.). Outros casos de redução: art.
884º, 902º, 911º e 981º C.C.
f) Conversão: há conversão quando a lei permite que determinado negócio nulo
por inobservância da forma legal se converta em outro negócio cuja forma legal
tenha sido observada no negócio nulo (v.g., contrato nulo por falta de forma
pode converter-se em contrato-promessa correspondente – art. 1143º;);
g) Convalidação do negócio pelo preenchimento ou regularização posterior do
requisito em falta (ex. prática de um acto posterior) ou pela sanação do
elemento defeituoso (revalidação) pela ocorrência de circunstâncias
extrínsecas por determinação da lei (consolidação do contrato de compra e
venda de um bem alheio com a aquisição posterior do direito vendido pelo
vendedor - art. 895º C.C.);

12. Princípio do respeito pela sucessão por morte.


O fenómeno sucessório está regulado no Direito das Sucessões (art. 2024º - 2334º do
C.C.). Trata-se do conjunto de normas e princípios jurídicos que regulam a transmissão
79
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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mortis causa (causada pela morte de uma pessoa) da totalidade ou de parte do património
(herança) que a ela pertencia aos sucessores, designados por lei ou pelo de cujus93.

Noção e objecto da sucessão


Nos termos do artigo 2024º do Cód. Civil, a sucessão é “o chamamento de uma ou mais
pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a
devolução dos bens a ela pertencentes”. Diz-se “das relações jurídicas patrimoniais”, porque,
rigorosamente falando, o objecto da sucessão são os direitos e as obrigações que incidem
sobre os bens deixados por uma pessoa falecida. Por isso, é correcto dizer que o objecto da
sucessão são as relações jurídicas (patrimoniais), isto é, os direitos e as obrigações de uma
pessoa falecida; não se herdam apenas os bens (direitos), mas também as
responsabilidades assumidas sobre tais bens. Assim, o Direito Sucessório define as
responsabilidades dos herdeiros.
Abertura da sucessão
Em que momento se dá aquisição pelo sucessor dos direitos e obrigações? É no
instante designado “articulo mortis”, isto é, o instante em que o de cujus deixa de existir
(art. 2031º C.C.).

Quem pode suceder?


O Direito Sucessório contém aspectos interessantes. Uma delas é a de saber quem
pode suceder, isto é, a quem são atribuídos os bens deixados pelo de cuius. A resposta a
esta questão variou no tempo, de acordo com as concepções políticas e as relativas à
família e à propriedade.
Na época clássica do Direito Romano (31 a.C - 300 d.C., Época Imperial), inicialmente, a
visão que os romanos tinham sobre a propriedade não justificava e existência da sucessão,
porque existia a (com)propriedade solidária, um consórcio familiar, em que a figura de
destaque era o pater famílias, que tinha um poder absoluto sobre os bens e os heredes sui,
isto é os filhos, as filhas (e os respectivos descendentes), e a mulher (uxor in manu). A
morte do paterfamilias exigia que alguém tomasse o seu lugar. Essa pessoa tinha um
direito latente, que passava a exercer com a morte do paterfamilias94.
Numa fase posterior, dá-se proeminência à vontade do de cuius (dispositio ultimae
voluntatis) ou seja, ele podia determinar o destino dos bens, indicando um sucessor, que,
em princípio, recaía sobre o primogénito ou outra pessoa (sucessão voluntária). Mais

93
Abreviação latina da alocução is de cuius hereditate agitur, que significa aquele de cuja herança se
trata.

94
M. REIS MARQUES, Introdução ao Direito, op. cit. pág.337ss

80
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

tarde ainda, passou a impender sobre o paterfamilias um dever de deixar uma porção dos
bens às pessoas mais próximas; tratava-se de um verdadeiro dever moral de piedade
(officium pietatis), cuja violação dava lugar à declaração de inoficiosidade do testamento.
Nisto reside a origem da actual figura da legítima e da sucessão legitimária. A este
respeito, é mister invocar um texto de MÁRIO REIS MARQUES: “Durante muito tempo, na
Europa ocidental, o direito sucessório propôs-se conservar o património da família,
privilegiando a linha masculina. Frequentemente, com o objectivo de se garantir a unidade
do património, dava-se preferência ao primogénito. Pelo contrário, o Côde Civil procurou
conscientemente fraccionar e difundir as riquezas familiares… Actualmente, o direito de
sucessão tem por fundamento a vontade presumida pela lei, ou estabelecida no seu
testamento…”95.

Tipos de sucessão
Disto decorrem os dois grandes tipos de sucessão: a legal e a voluntária. Com efeito,
estabelece o artigo 2026º do Código Civil: “a sucessão é deferida pela lei, testamento ou
contrato”, o que denota haver de facto uma repartição de poderes entre a lei e o testador
na destinação dos bens.
A sucessão voluntária é a que é regulada pela vontade do de cuius através do
testamento (successio testata) ou de um contrato. A sucessão contratual é um tipo de
sucessão praticamente inexistente no ordenamento jurídico angolano, apesar de o C.c.
determinar que ela é admitida apenas nos cados previstos na lei (art. 2028º, nº 2, C.C.).
A sucessão legal (successio intestata ou ab intestato) é regulada por lei. Pode ser
legítima ou legitimária. O critério para distinguir entre uma e outra está contido no artigo
2027º do Código Civil: “conforme possa ou não ser afastada pela vontade do de cuius”. A
sucessão legitimaria é imposta por lei e opera mesmo contra a expressa vontade do de
cuius. Isto é o reflexo claro e vivo do antigo officium pietatis do Direito Romano, que
obrigava o paterfamilias a deixar intacta uma porção dos bens destinada aos mais
próximos, os herdeiros legitimários. No nosso ordenamento jurídico, são herdeiros
legitimários os descendentes e os ascendentes (art. 2133º C.C.). A porção dos bens de que
o testador não pode dispor chama-se quota indisponível ou legítima. Não havendo
herdeiros legitimários, o testador pode dispor de todos os bens.
A sucessão legítima só pode incidir sobre a quota disponível, isto é, sobre a
porção dos bens de que o de cuius pode dispor, e opera na falta de manifestação válida e

95
Op. Cit. pág. 339.

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eficaz da vontade do de cuius, caso em que são chamados os herdeiros legítimos 96, as
pessoas mencionadas no artigo 2131º do Código Civil, na ordem em que o são (ordem de
preferência). Trata-se de uma lista preferencial de herdeiros estabelecida pela lei. A
adjectivação da sucessão como “legítima” reside no facto de ser conforme à lei, mas, mais
do que isto, porque fundada no direito, na justiça e na razão; “funda-se numa probabilidade
de maior afecto do defunto, ou, talvez melhor, sobre considerações de solidariedade e dever
de família”97.

13. Princípio o da equivalência


Este princípio significa que as relações entre as pessoas são regidas pela procura
de equilíbrio entre as prestações que se contrapõem (PAIS DE VASCONCELOS). Por
exemplo, no contrato de compra e venda (art. 874º C.c.), o preço deve ser igual ao valor da
coisa. Na interpretação dos negócios jurídicos, deve prevalecer o sentido que conduza a
um maior equilíbrio das prestações (art. 237º C.C.).
As excepções a este princípio devem resultar da autonomia privada. Tal é o que
acontece quando alguém venda uma coisa por um preço inferior ao valor da coisa,
aceitando fazer um desconto, ou quando alguém faz uma doação remuneratória.
Sempre que haja desequilíbrio entre as prestações por exploração de uma das
partes na relação contratual, a ordem jurídica protege a parte que tiver sido vítima,
conferindo-lhe a possibilidade de anular o negócio (ex. usura, art. 282 e 283 do C.C.).

PARTE III
RELAÇÃO JURÍDICA

TÍTULO I
GENERALIDADES
1. Importância, conceito e sentidos da relação jurídica
A relação jurídica é um dos principais instrumentos do Direito Privado,
destacando-se nele o direito subjectivo e o negócio jurídico (PAIS DE VASCONCELOS). Por
isso, ela merece o tratamento amplo e profundo que a sua importância exige. Esta

96
Breve referência ao facto de o Código Civil Angolano considerar o cônjuge apenas na 4ª linha; em
termos de Direito Comparado, em Portugal, o cônjuge é herdeiro legitimário e aparece na primeira linha,
juntamente com os descendentes e ascendentes.

97
MÁRIO REIS MARQUES, Introdução ao Direito, opus cit. pág. 342

82
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importância transcende o âmbito do Direito Privado, porquanto qualquer ramo do Direito


mais não é senão do que a disciplina ou regulamentação jurídica de relações jurídicas de
determinada natureza.
A expressão “relação jurídica” pode ser percebida em vários sentidos. Num sentido
amplo, ela designa toda e qualquer relação da vida social juridicamente relevante, de tal
modo que seja disciplinada pelo Direito (v. g. relação entre pais e filhos, entre os cônjuges,
entre credor e devedor, entre comprador e vendedor, etc. …).
Nem todas as relações sociais são jurídicas; há espaços das relações inter humanas
que não são ou não podem ser objecto de regulamentação jurídica, seja porque não
apresentam nenhum interesse de tal modo relevante que justifique a sua juridificação ou
regulamentação jurídica, seja porque, devido à sua natureza pessoal, postulam a
necessidade de se salvaguardar a liberdade, a espontaneidade e a intimidade das relações
estritamente pessoais98. Cabe, neste ponto, notar que a fronteira entre as relações jurídicas
e não jurídicas não é sempre fácil de se fazer, porquanto, em determinados casos, nem
todos os aspectos de algumas relações jurídicas são juridificados e juridificáveis,
sobretudo os mais pessoais. Por exemplo, o Direito Matrimonial não disciplina todos os
aspectos da relação entre os cônjuges; não regula os aspectos mais íntimos da vida
conjugal; só regula os aspectos mais relevantes para o Direito; da mesma forma, o Direito
Laboral não regula todos os pormenores da relação que deve existir entre os colegas de
trabalho. Entre os exemplos de relações sociais não jurídicas podem ser cotados: o
namoro, a amizade, as relações de cortesia, o aconselhamento99.
Em sentido restrito, a relação jurídica não é apresentada da mesma forma pelos
doutrinantes. HÖRSTER100, por exemplo, ensina a doutrina que entende a relação jurídica
em sentido restrito como aquela relação da vida social disciplinada pelo Direito, mas só
quando ela é apresentada como um tipo ou modelo legal de ralação social, um esquema
legal a que corresponde um conjunto de regras, ganhando assim uma fisionomia típica.
Acrescenta ainda que ao sentido restrito corresponde também a relação jurídica em

98
Isto não quer dizer que tais relações não tenham absolutamente nenhuma relevância jurídica. Assim, de
acordo com as regras do Direito Processual (Vide artigos 104º, 105º e 106º do C.P.P e artigos 122 1 127º
C.P.C), o facto de uma pessoa ser amiga de outra que seja parte processual deve ser tido em conta pelo
tribunal; se aquela tiver de prestar declarações; um juiz que tenha com uma das partes processuais uma
relação que possa prejudicar o equilíbrio e a imparcialidade que se espera de um juiz (relação de
parentesco, afinidade, de amizade ou mesmo de inimizade) deverá ser afastado da apreciação da causa por
via do incidente de impedimento ou de suspeição (Ver CPP); na falta de parentes, os vogais do Conselho
de Família (órgão consultivo do tribunal nas causas de natureza familiar) podem ser escolhidos entre os
amigos (a lei usa a expressão “… entre as pessoas que convivem com as partes” – art. 17º C.Fam).

99
Quando não corresponda a um dever jurídico decorrente da lei ou de negócio jurídico.

100
Op. cit. nº 252.

83
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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sentido abstracto. Fazendo eco de uma outra perspectiva doutrinária, C.A. MOTA PINTO101
entende como relação jurídica em sentido restrito “a relação da vida social disciplinada
pelo direito mediante a atribuição a uma pessoa de um direito subjectivo e a imposição a
outra de um dever jurídico ou de uma sujeição”. Estas duas formas de ver não são
necessariamente antagónicas, se entendermos que os esquemas legais de relações
jurídicas estabelecem sempre os direitos e as vinculações das partes, devido à sua função
cautelar ou de prevenção de conflitos.
Uma outra classificação doutrinal distingue entre a relação jurídica em sentido
abstracto e em sentido concreto. O critério de diferenciação reside em saber se a relação
jurídica em questão está determinada ou não. Assim, enquanto a relação jurídica abstracta
é uma relação virtual, não determinada, que corresponde apenas a um tipo negocial legal,
a relação jurídica concreta é uma relação determinada, real e efectivamente constituída,
com os seus elementos perfeitamente determinados: é uma relação entre sujeitos
determinados (por ex. António e Bernardo), originada num facto jurídico concreto (ex.,
compra e venda), incidindo sobre um objecto concreto (ex., um imóvel), com direitos e
obrigações para as partes e com as garantias que a lei confere ao comprador e ao
vendedor. Numa linguagem filosófica, poderíamos dizer que a relação jurídica abstracta é
uma relação jurídica em potência, enquanto a relação jurídica concreta é uma relação em
acto.
Sob o ângulo de uma outra classificação doutrinária, não muito corrente, a relação
jurídica pode ser simples (una) ou complexa (múltipla). É una ou simples quando
comporta um único direito subjectivo atribuído a uma pessoa e a correspondente
obrigação/dever jurídico ou sujeição imposta a outra pessoa. Por exemplo, o comodato,
previsto no artigo 1129º do Código Civil, comporta apenas uma prestação (restituição da
coisa); de igual forma o mútuo civil (regular) só comporta o direito à percepção do capital
e o correspondente dever de devolução do capital mutuado ao devedor 102.
A relação jurídica complexa ou múltipla comporta uma pluralidade de direitos e de
obrigações (por exemplo, o mútuo oneroso, que comporta duas prestações, a saber a
restituição da quantia mutuada e a obrigação de juros).

101
C.A. C.A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., Nº 40-I.

102
Neste sentido, o mútuo é tradicional e tipicamente um contrato unilateral, isto é, origina apenas
direitos ou obrigações para uma das partes. Nos direitos privados especiais, este esquema nem sempre
funciona; o mútuo pode ser bilateral. No âmbito da autonomia privada, as partes podem muito bem, como
muitas vezes acontece no mútuo bancário, celebrar o contrato sem a entrega do valor mutuante, sendo
esta uma obrigação decorrente do contrato.

84
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

2. A estrutura da relação jurídica: direito subjectivo e dever jurídico:

De forma bastante sugestiva, MANUEL ANDRADE representa graficamente a


relação jurídica por uma linha recta, em cujos terminais estão os sujeitos entre os quais se
estabelece o vínculo jurídico; a relação incide sobre um objecto, deriva de uma causa
(facto jurídico) e a ordem jurídica dota-a de um conjunto de meios coercivos (garantia)
tendentes à garantia da efectivação do direito subjectivo.
Tradicionalmente, quando se fala da estrutura da relação jurídica, refere-se esta
apenas ao vínculo existente entre os seus sujeitos, cujo conteúdo é determinado pelo(s)
direito(s) do titular activo e pelo(s) correspondente(s) dever(es) jurídico(s), e considera-
se que os elementos que se encontram na periferia do vínculo não fazem parte da
estrutura relacional. Parece, entretanto, mais consistente a posição que considera na
relação jurídica uma estrutura externa e outra interna. Tal é a posição defendida por H.E.
HÖRSTER.
Fazem parte da estrutura externa da relação jurídica os elementos que, embora
necessários à sua existência, constituem apenas a sua face externa. São eles: os sujeitos, o
objecto, o facto jurídico e a garantia.
A estrutura interna da relação jurídica é definida pelo seu conteúdo ou núcleo, ou
ainda, o vínculo ou nexo que se estabelece entre os sujeitos. Qual é, então, o núcleo ou
conteúdo da relação jurídica? Os autores são concordes em considerar que a estrutura
(interna) da relação jurídica é integrada, essencialmente, por dois aspectos: o direito
subjectivo, por um lado, e o dever jurídico lato sensu (dever jurídico e sujeição), por outro.

2.1 O direito subjectivo:


Foi afirmado, no início deste capítulo, que o direito subjectivo é um dos conceitos
mais importantes do Direito Privado103.
Não obstante a dificuldade de se encontrar uma definição universalmente aceite,
tornou-se clássica, porque corre fluentemente entre os manuais de Direito, a definição
concebida por MANUEL ANDRADE104, segundo a qual o direito subjectivo é “a faculdade ou

103
Segundo HÖRSTER (A Parte Geral do Código Civil Português, cit., nº 374-375), o conteúdo do
direito subjectivo varia de época para época. O sentido hodierno deste conceito é uma aquisição do
Século XIX, que marcou uma viragem na História, deixando para trás a ordem corporativa e feudal e
operou a emancipação mental, política e económica do indivíduo e contribuiu para a sua consideração
como personalidade autónoma, garantindo o seu livre desenvolvimento dentro da sociedade. Disto
resultou a colocação do indivíduo como sujeito de direito no topo do Sistema do Direito Privado,
atribuindo-lhe direitos subjectivos. O direito subjectivo destina-se, assim, principalmente, à
autodeterminação do indivíduo livre.

104
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit., vol. Nº I - 2.
Reveste-se de interesse teórico trazer aqui outras visões doutrinárias sobre o conceito do direito
85
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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o poder atribuído pela ordem jurídica a uma pessoa de exigir ou pretender de outra um
determinado comportamento positivo (fazer) ou negativo (não fazer) ou de, por um acto de
sua vontade – com ou sem formalidades – só de per si ou integrado depois por um acto de
autoridade pública (decisão judicial,) produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem
inevitavelmente a outra pessoa (adversário ou contraparte) ”.
Analisemos os termos mais expressivos desta definição.

a) O direito subjectivo como poder ou faculdade.


O direito subjectivo é, por definição, uma faculdade ou poder. Trata-se da
faculdade atribuída ao titular activo da relação jurídica e que determina o conteúdo do
direito em causa.
São exemplos do direito subjectivo o direito que o credor tem de exigir o
cumprimento da obrigação (art. 762 nº 2), de requerer a entrega da coisa ou a prestação
do facto (art. 827 e 828), a execução específica; o direito que assiste a cada um dos
cônjuges de acrescentar ao seu apelido o do outro cônjuge (art. 36º C. Fam); igualmente, o
direito de qualquer dos cônjuges de requerer o divórcio (art. 78 C.Fam); o direito do
locador de exigir o pagamento da renda e de exigir que o locatário lhe faculte o exame da
coisa locada (art. 1038); o direito que assiste ao proprietário de usar, fruir e dispor da
coisa que lhe pertence (art. 1305).
Há casos em que o direito subjectivo comporta, necessariamente, deveres. Assim,
os pais têm o direito de decidir sobre a educação religiosa dos seus filhos e de exigir destes
obediência (art. 137 C.Fam). Fala-se de poderes-deveres ou direitos-deveres. Nestes casos,
há um interesse de outrem que interfere no direito subjectivo, no caso do exercício do
poder paternal, o interesse do filho e da comunidade. Isto justifica que sempre que o
poder-dever não seja exercido ou seja exercido de forma inadequada e inaceitável, sendo
que, neste último caso, há verdadeiramente abuso do poder (art. 334 C.C.), as autoridades
intervenham, ou para se substituir ao titular do poder (art. 140 C. Fam), ou para lhes
retirar legitimidade para o exercício do direito (art. 152 a 155 C. Fam). Devido ao carácter
imperioso do exercício do direito, neste caso do poder paternal, não se pode falar
propriamente de um direito subjectivo, porque o exercício deste é livre e o direito
subjectivo é tipicamente uma faculdade.

subjectivo. Para SAVIGNY e para PUCHTA, o direito subjectivo consistia numa garantia jurídica do
poder de vontade atribuído pela ordem jurídica. JHERING, por sua vez, considerava-o como um interesse
juridicamente protegido. ENNECCERUS-NIPPERDEY e, posteriormente, RUTHER, falavam de uma
relação de poder estável, atribuída à pessoa. LÉON DIGUIT não via no direito subjectivo nada mais do
que tudo quanto fosse necessário para o cumprimento da função social do que cabe ao indivíduo, de modo
que tudo quanto é realizado no cumprimento daquela função é protegido pela sociedade (Cf. HÖRSTER,
A Parte Geral do Código Civil Português, cit. Nºs 376 ss).

86
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
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Por se tratar de um poder ou faculdade, o exercício do direito subjectivo está na


inteira dependência da vontade do seu titular, porque é dele que deve partir o impulso
virado para a sua defesa. O comando normativo que visa efectivar o direito do titular
activo da relação jurídica, assim como o aparelho sancionatório estadual que o pode
caucionar, não podem intervir sem o impulso inicial do seu titular activo.
Devido ao facto de o direito subjectivo se traduzir numa faculdade, certa doutrina,
que teve como corifeu o jurista alemão JHERING, ligou o direito subjectivo à ideia de
interesse e definiu-o como o interesse juridicamente protegido105. E de facto, como diz C.A.
MOTA PINTO106, o direito subjectivo anda ligado essencialmente à ideia de liberdade de
actuação e de soberania do querer.
Todavia, embora o interesse constitua a causa-função pela qual o direito subjectivo
foi instituído, com ele não se confunde. Não há equivalência entre o direito subjectivo e o
interesse, pelas razões seguintes: em primeiro lugar, a existência de um interesse
juridicamente tutelado nem sempre implica a existência do respectivo direito
subjectivo107, embora a inversa seja, obviamente, verdadeira. Com efeito, há normas,
mormente do Direito Público, que visam, em primeira linha, proteger interesses da
colectividade e, ao mesmo tempo, interesses particulares, de forma indirecta; todavia a
mera violação dessas normas não dá lugar à obrigação de indemnizar os titulares dos
direitos a cuja defesa elas se destinam. Se o houver, este resultará directamente da
violação dos seus direitos subjectivos (absolutos) e não, simplesmente, da norma. Para
ilustrar esta ideia, sirvam como exemplo as regras do Código de Estrada, as regras que
proíbem a poluição ambiental, ou que obriguem à vacinação obrigatória.
Em segundo lugar, o direito subjectivo não está confinado ao interesse que a lei, no
caso concreto, pode tutelar, isto é, o âmbito do direito subjectivo é mais amplo do que o do
mero interesse do seu titular. Este pode exercê-lo para realizar fins diferentes daquele que
foi visado, desde que se respeitem os limites impostos pela lei, nos termos do artigo 334º
(cláusula da proibição do abuso do direito) e do artigo 280º do Código Civil. Nas palavras
de HÖRSTER108, o interesse é “uma razão em virtude da qual a lei atribui esse poder”. Na
visão deste autor, não existe uma identidade entre o direito e o interesse, e justifica esta

105
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit., vol.I, 3-B-I-1

106
Teoria Geral do Direito Civil, 42-I

107
Segundo MANUEL DE ANDRADE, a realização do interesse defendido é deferida pela lei a uma
entidade pública.

108
Op. cit. 370-371.

87
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

afirmação nos seguintes termos: “o interesse constitui o móbil do direito subjectivo, mas não
faz parte dele. Não diz respeito à sua estrutura, apenas se refere à sua função…De resto, a lei
ao reconhecer um poder jurídico a uma pessoa para o prosseguimento de um determinado
interesse, não vincula necessariamente para exercer o poder conferido apenas na estrita
medida deste interesse. O titular pode ficar aquém do interesse, mas também não está de
todo inibido de utilizar o direito para um fim diverso. Além de não coincidirem, interesse e
direito subjectivo também não existem necessariamente ao mesmo tempo ou na mesma
pessoa ou só nesta. P. Ex. o exercício dos direitos-deveres não é feito no interesse do seu
titular, mas no interesse de outrem”.

2.1.1 Direito subjectivo em sentido restrito e em sentido amplo.


É corrente distinguir-se entre o sentido amplo e o sentido restrito do direito
subjectivo. O primeiro, também designado direito subjectivo propriamente dito, consiste no
poder de exigir ou pretender de outrem um comportamento positivo ou negativo…. A este
poder corresponde, por parte do sujeito passivo, o dever jurídico. Dito de outro modo, isto
significa que, quando o direito subjectivo consistir neste poder de pretender ou exigir de
outrem um determinado comportamento (positivo ou omissivo), a situação da pessoa
contra quem se dirige o direito subjectivo é o dever jurídico ou obrigação em sentido
amplo.
O direito subjectivo propriamente dito (poder de exigir ou pretender)109 tem um
conteúdo que deve merecer a nossa atenção. O “exigir” serve para as situações em que o
credor, no caso de o devedor não observar tempestivamente o dever jurídico, pode
realizar o seu direito por recurso aos tribunais, que poderão adoptar as providências
adequadas a proporcionar-lhe a coisa ou o comportamento devido, de uma forma ou de
outra. Portanto, o titular activo da relação jurídica pode sempre obter a efectivação do seu
direito, exigindo judicialmente (execução específica ou de outros bens existentes no
património do devedor (art. 601º C.C.) o seu cumprimento. Diz-se que, neste caso, o dever
jurídico recebe o nome de obrigação civil (HÖRSTER).

109
Na literatura jurídica, estes dois verbos são, às vezes, usados indistintamente e no mesmo sentido.
Assim, por exemplo, HÖRSTER (a Parte Geral do Código Civil, cit., nº 251), por exemplo, considera que
o direito subjectivo dá origem a diversas pretensões. Estas podem ser: contratuais (primárias – art. 879º/1
e 2; secundárias – art. 914º, 1ª parte), baseadas em negócios jurídicos unilaterais (art. 459º), pretensões
quase contratuais (art. 227º), pretensões resultantes da lei (art. 526º), pretensões reais e possessórias (art.
1311, 1315 e 1276ss), pretensões baseadas na gestão de negócios (art. 466º), pretensões resultantes da
responsabilidade civil (art. 483ss) e pretensões baseadas no enriquecimento sem causa (art. 476ss).
Segundo o mesmo autor, diante de determinada pretensão, há que perguntar se o direito subjectivo
invocado foi constituído validamente, se não deixou de existir, em virtude do cumprimento ou prescrição,
e se não existe alguma situação de oponibilidade ao mesmo.

88
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Por sua vez, o verbo “pretender”, no contexto do direito subjectivo, é adequado


para designar as situações em que o titular activo da ralação jurídica não dispõe, de acordo
com a ordem jurídica, de qualquer meio coercitivo de efectivar o seu direito. Se o devedor
chegar a cumprir o dever a que está adstrito, a lei vê isto como um puro dever de ordem
moral ou social (obrigação natural). Não o tendo cumprido, o credor não pode exigir
judicialmente o cumprimento ou a execução do património daquele (art. 402º C.C.). Assim,
por exemplo, quem tiver vendido um imóvel a um menor, não poderá, judicialmente, exigir
do mesmo o preço devido, dado que o menor não se pode obrigar (carece de capacidade
exercício de direitos – Cf. art. 123º e 764º nº 1), o que dará lugar à sua absolvição da
instância por falta de capacidade judiciária110, excepto se a falta de capacidade for suprida
nos termos do nº 2 do artigo 9º do CPC. Igualmente, a prescrição torna a obrigação não
exigível judicialmente. É também não judicialmente exigível a obrigação resultante do jogo
e da aposta, nos termos do art. 1245º do Código Civil. Nestes e noutros casos, a situação do
credor é de mera expectativa jurídica.
Em sentido amplo, o direito subjectivo abarca o direito subjectivo propriamente
dito e o direito potestativo. O direito potestativo está vertido na última parte de definição
do direito subjectivo (poder de “…por um acto de sua vontade – com ou sem formalidades –
só de per si ou integrado depois por um acto de autoridade pública (decisão judicial)
produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inevitavelmente a outra pessoa… ”)),
ou seja, a ordem jurídica atribui um poder de produzir efeitos jurídicos mediante uma
simples declaração de vontade do titular activo da relação jurídica. É um direito que tem
um poder conformativo; e corresponde-lhe o estado de sujeição ou sujeição do sujeito
passivo, que não terá, assim, nenhuma alternativa para escapar aos efeitos decorrentes do
exercício daquele direito.
O direito potestativo pode ser constitutivo, modificativo ou extintivo, conforme
crie, modifique ou extinga uma relação jurídica. Como exemplos de direitos potestativos,
podem ser citados os vários tipos de servidões legais (ex. servidão legal de passagem (art.
1550º e seguintes), o direito de preferência ou preempção dos proprietários de prédios
confinantes (art. 1380º C.C.), dos comproprietários (art. 1409 C.C.), o direito de
preferência do proprietário do prédio encravado na venda do prédio dominante (art.
1547, nº 2; 1550 C.C.). A constituição da servidão de passagem pode implicar o pagamento
de uma indemnização pelos prejuízos que a servidão possa, eventualmente, causar, sendo

110
Entende-se por capacidade judiciária a susceptibilidade de estar, por si só, em juízo. Ver, as este
respeito, NÉLIA DANIEL DIAS, Lições de Processo Civil I, Edição da União dos Escritores Angolanos,
Luanda, 2010, pág. 59.

89
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que o montante da indemnização pode ser acordado pelas partes ou, na falta de acordo,
ser fixado pelo tribunal (art. 1554).
Os direitos potestativos modificativos apenas modificam uma relação jurídica já
existente. Por exemplo, a mudança da servidão de passagem para outro sítio (art. 1568º
C.C.). A separação de facto é, no nosso ordenamento jurídico, um direito potestativo
modificativo, não extingue a relação matrimonial111.
O direito potestativo extintivo põe fim a uma situação ou relação jurídica. Sãos dele
exemplos: a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio por falta de
cumprimento por parte do locatário (art. 1.047º C.C.), a denúncia do arrendamento (art.
1055º C.C.), a revogação da procuração do mandato (art. 265º, nº2, e 1172º C.c.), o direito
de obter divórcio por qualquer dos cônjuges (art. 95º e 97º C. Fam.), a resolução do
contrato de trabalho por justa causa (art. 229 LGT), a revogação do consentimento (art.
81º, nº 2, C.C.).
Podemos resumir a estrutura da relação jurídica no seguinte quadro:
Direito Correspondente
Direito subjectivo ^^ Dever jurídico (obrigação, lato sensu)
Poder de exigir ^^ obrigação civil (exigível judicialmente)
Poder de pretender ^^ obrigação natural (não exigível judicialmente)
Direito potestativo ^^ sujeição (fatalidade)

c) Classificação dos direitos subjectivos. Remissão.


2.1.1.2. Direitos potestativos, poderes ou faculdades e legitimidade:
Os direitos potestativos são verdadeiras faculdades ou poderes, mas são poderes especiais
na medida em que só competem a pessoas que se encontrem em situações particulares,
porquanto pressupõem uma relação jurídica pré existente, surgindo no desenvolvimento
dessa relação

2.2. O dever jurídico: sentido amplo e sentido restrito.


O dever jurídico e a sujeição correspondem à noção de obrigação em sentido
amplo112. Em sentido técnico, a obrigação consiste no vínculo jurídico entre pessoas
determinadas, por virtude do qual uma delas deve realizar uma dada prestação, positiva
(fazer) ou negativa (não fazer), em beneficio de outra (art. 397º C.C. ).

111
À luz do Direito vigente em Angola, o casamento só se extingue por duas vias: o divórcio e a morte. O
Código de Família Angolano não prevê a separação judicial.

112
Vide supra, no Capítulo II, no item relativo ao Livro II do Código Civil.

90
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No entanto, no âmbito da estrutura da relação jurídica, impõe-se distinguirmos


entre dever jurídico e sujeição. Esta destrinça pode ser feita nos seguintes moldes: i) o
dever jurídico é o pólo oposto ao direito subjectivo propriamente dito (poder de exigir ou
pretender), a sujeição, ao direito potestativo; ii) o sujeito do dever jurídico tem a
possibilidade de não cumprir o dever, sendo que, neste caso, ele se expõe a sanções de
vária ordem previstas pelo ordenamento jurídico, ao passo que, no estado de sujeição, há
uma necessidade113 imposta pela ordem jurídica de ter de suportar os efeitos decorrentes
do exercício do direito potestativo, os quais se produzem, independentemente da vontade
do sujeito passivo. Por isso, a sujeição não pode ser infringida.
O ónus visa simplesmente impôr ao titular de um direito subjectivo certos deveres
ou incumbências para consigo próprio, para que ele vele pelos seus próprios interesses. Se
o titular do direito não cumpre o ónus, não há nenhuma infracção, ele não se torna
devedor de ninguém; ninguém terá o direito de exigir dele o cumprimento do ónus, nem
uma indemnização pelo seu não cumprimento. O que ocorre é simplesmente o facto de que
com o não cumprimento do ónus, a pessoa coloca-se numa situação de desvantagem
devido à sua displicência que, por sua vez, o leva a causar prejuízos a si próprio. Por
exemplo, o não registo da aquisição de um imóvel é um ónus. O tratamento da
documentação necessária para se obter determinada licença é um ónus.

2.2.1 Dever jurídico, sujeição e ónus

3. Relação jurídica e instituto jurídico.


Na linguagem comum, estas duas expressões são, amiúde, confundidas e usadas de
forma promíscua. Todavia, elas não se identificam.
O instituto jurídico corresponde a um conjunto ou complexo de normas jurídicas
que contêm a disciplina jurídica de um determinado tipo de relações jurídicas, de uma
relação jurídica em sentido abstracto. Como exemplos de institutos jurídicos temos o poder
paternal, o casamento, a compra e venda, o arrendamento, a curatela, a propriedade, a
sucessão, etc.
Como se pode facilmente notar, estas duas figuras mantêm entre si uma relação
estreita, apesar da distinção que se impõe fazer do ponto de vista dos conceitos. A relação
jurídica é a matéria, o objecto de regulação do instituto jurídico. O instituto jurídico é a
própria regulamentação. Instituto jurídico e relação jurídica são, por isso mesmo, dois
aspectos da mesma realidade (MANUEL DE ANDRADE).

113
No sentido filosófico, a que corresponde uma verdadeira fatalidade; necessário é o que não pode não
ser.

91
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Os diversos institutos jurídicos se encontram, e devem estar, de tal modo


interligados que manifestem, e não ponham em causa, a unidade do ordenamento ou
sistema jurídico. Esta unidade é garantida pela Constituição da República, que estabelece
os princípios estruturantes do Ordenamento Jurídico por via do princípio da conformidade
constitucional.

4. Elementos da relação jurídica


Os elementos da relação jurídica são aqueles necessários para que ela se constitua
e possa existir, embora não integrem a sua estrutura interna. São eles: os sujeitos, o
objecto, o facto jurídico e a garantia.
Por ora, por esta ser apenas de uma parte de carácter geral, o tratamento mais
intenso dos três primeiros elementos mencionados será dado na parte que se segue, já à
luz do esquema e do articulado do Subtítulo I do Título I da Parte Geral do Código Civil,
cuja sistematização foi feita com base na relação jurídica.114

4.1 Sujeitos
A relação jurídica só pode ser estabelecida entre pessoas, mas só entre pessoas em
sentido jurídico ou técnico115, isto é, entre entidades dotadas de personalidade jurídica
(sujeitos de direitos e obrigações).
Ao sentido técnico-jurídico de pessoa contrapõe-se o sentido ético, que
corresponde aos seres humanos, incluído os seres humanos em formação. O sentido
técnico de pessoa abarca tanto as pessoas singulares, igualmente designadas pessoas ou
físicas116, como as pessoas colectivas. As pessoas colectivas são organizações de pessoas
(sociedades, associações) ou conjuntos de bens (fundações, institutos), estruturados e
organizados em função de um fim comum (que regularmente transcende as
potencialidades individuais), e às quais a ordem jurídica atribuiu personalidade jurídica 117.
O regime jurídico das pessoas singulares está previsto nos artigos 66º a 156º, enquanto o
das pessoas colectivas está vertido nos artigos 157º a 194º do Código Civil.

114
De facto, é claramente visível esta lógica na arrumação externa do Título II, sob a epígrafe “Das
Relações Jurídicas. Assim, temos: Subtítulo I – Das Pessoas (art. 66-201); Subtítulo II – Das Coisas (art.
202-2169; Subtítulo III – Dos Factos jurídicos (art. 217-295); subtítulo IV – Do exercício e da tutela dos
direitos. Os artigos 296 a 333 são dedicados ao tempo e à sua repercussão nas relações jurídicas

115

116
Individualidades físico-químicas capazes de vontade e acção próprias.

117
H.E.HÖRSTER, op. cit. nº 264.

92
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Do que se acaba de dizer decorre que o conceito de personalidade jurídica é uma


categoria meramente formal, na medida em que dela participam entidades destituídas de
substrato ético, as pessoas colectivas118.
Note-se, entretanto, que nem todas as formações colectivas são dotadas de
personalidade jurídica. No Código Civil, são contemplados como tais as associações sem
personalidade jurídica e comissões especiais. O seu regime jurídico corresponde aos
artigos 195º a 201º do Código Civil. No Direito Comercial, existem também entidades sem
personalidade jurídica, como, por exemplo, o consórcio119, as sociedades irregulares 120 e as
associações em participação121. Não têm personalidade jurídica, mas mantêm com as
pessoas colectivas certas afinidades. como não são centros autónomos de imputação de
direitos e obrigações, pelas obrigações assumidas em nome delas são responsáveis, em
princípio, os seus membros.

118
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., Vol. I, pág. 52).

119
O consórcio é uma associação de empresas ou companhias, sob o mesmo controle ou não, que se
juntam para desenvolver um empreendimento, geralmente de grande dimensão, e cuja execução exige
conhecimentos especializados, e para obter uma finalidade comum. Em sentido técnico, a palavra
consórcio designa o contrato mediante o qual se dá a associação. Trata-se do contrato pelo qual duas ou
mais pessoas singulares ou colectivas, que exerçam uma actividade económica, se obrigam entre si a, de
forma concertada, realizar certa actividade ou efetuar certa contribuição com o fim de prosseguir um
determinado escopo ou objecto. O consórcio tem uma estreita ligação com a joint venture, mas não se
pode confundir com ela. A joint venture pode ter um sentido mais amplo. As empresas que se associam
são independentes juridicamente, mas pode optar por constituir um ente juridicamente independente, que
responde juridicamente pelos direitos e obrigações contraídas em seu nome, ou manter-se num simples
consórcio, sendo que neste caso, são as associadas que respondem pelos direitos e obrigações. Tanto num
caso como noutro, temos uma joint venture.

120
São sociedades em via de formação, estão num processo de aquisição da personalidade jurídica, para a
qual lhes faltam alguns requisitos.

121
A associação em participação é um contrato através do qual uma pessoa se associa à actividade
económica exercida por outra pessoa, ficando a primeira a participar nos lucros ou nos lucros e nas perdas
que desse exercício resultarem para a segunda. Esta figura implica, assim, pelo menos, dois sujeitos: um
deles, normalmente (mas não necessariamente) um comerciante, que obtém o financiamento e mantém o
exclusivo controlo da sua actividade, sendo o único a surgir nas relações externas (o associante) e um
outro (associado), que não tem de, necessariamente, exercer uma actividade comercial, e que realiza um
investimento remunerado na actividade do associante. Note-se ainda, como nota fundamental desta figura,
que a associação em participação não tem personalidade jurídica. Perante terceiros, o associante surge
como o único titular e dono do negócio − só ele intervém no tráfego jurídico e, portanto, só em relação a
ele se constituem direitos e obrigações perante terceiros. A sua relação com o(s) associado(s) é uma
relação meramente obrigacional, não sendo contitulares de qualquer património comum (ALEXANDRE
C.A. MOTA PINTO e JOANA TORRES EREIO, Sumários Desenvolvidos, Contratos Civis e
Comerciais, Ano Letivo De 2011/2012, Faculdade de Direito da Universidade de Nova Lisboa, in
http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/AMP_MA_15386.pdf)

93
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Como já foi adiantado, as pessoas singulares têm personalidade jurídica por direito
natural, isto é, pelo simples fato de nascerem, nos termos do artigo (art. 66º nº 1 C.C.) 122. A
personalidade jurídica das pessoas é um dado extra-legal e extra jurídico. Já a
personalidade jurídica das pessoas colectivas depende da Lei, pois as pessoas colectivas
são uma criação do Direito; daí que alguma doutrina as considere como pessoas fictícias.
Mas a partir do momento em que adquiram a personalidade jurídica, as pessoas colectivas
são autónomas e juridicamente independentes, isto é, são centros autónomos de direitos e
obrigações, porque juridicamente distintas dos seus membros (pessoas físicas) 123.
A relação jurídica constitui-se entre sujeitos (activo e passivo), os quais são os seus
pontos terminais. O sujeito activo é o titular de poderes (direito subjectivo/direito
potestativo), enquanto o sujeito passivo é o titular de vinculações (dever
jurídico/sujeição).
A relação jurídica pode constituir-se entre pessoas singulares, ou entre pessoas
colectivas, ou entre uma pessoa colectiva e outra singular. Além disso, há que notar ainda
que os sujeitos da relação jurídica podem ser mais de dois, embora, na maioria dos casos,
haja apenas dois sujeitos, um activo e outro passivo.
Os sujeitos da relação jurídica ocupam posições jurídicas. O mais normal é um dos
sujeitos ocupar a posição activa e o outro a posição passiva. Mas há tipos negociais em que
cada um dos sujeitos ocupa, simultaneamente, uma posição activa (ter direitos sobre o
outro sujeito), em determinado(s) aspecto(s) da relação jurídica, uma posição passiva em

122
Trata-se de um entendimento conquistado com o jusnaturalismo iluminista. O Jusnaturalismo em si é
caracterizado pela defesa da existência de um direito supra legal – o direito natural - que é imutável no
que diz respeito a determinados valores fundamentais como a justiça e que devem ser respeitados pelo
Direito Positivo. Historicamente, o Jusnaturanismo não se concentra numa única época. Assim, fala-se do
jusnaturalismo da antiguidade (de Hesíodo até Séneca e Marco Aurélio), que parte da existência de uma
ordem natural, o jusnaturalismo cristão (de Santo Agostinho a Tomás de Aquino e Francisco Suarez –
caracterizado pelo pensamento teológico), o Iluminismo (de Grotius até Rousseau e Immanuel Kant); este
último, o Iluminismo, coloca a razão e/ou a natureza do homem no centro da reflexão (para mais detalhes,
Ver. H. E. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. Nº 15 e 263).

123
PAIS DE VASCONCELOS (Teoria Geral do Direito Civil, cit., cit. nº 4: I a IV) faz uma abordagem
bastante interessante a este respeito, colocando uma pergunta: se é por se ser sujeito de direitos e
obrigações que se é pessoa ou se é por se ser pessoa que se é sujeito de direitos e obrigações. Segundo ele,
tradicionalmente, tem-se partido da susceptibilidade de direitos e obrigações para a qualificação de certo
ente como pessoa, e é este caminho que possibilita a criação de outras pessoas jurídicas (pessoas
colectivas), para além das pessoas humanas. Aqui a pessoa é algo construído pelo Direito. Todavia, este
caminho tem o risco de se conferir ao Direito e à Lei o poder da atribuição da personalidade jurídica,
abrindo-se, assim, caminho para construções jurídicas que não respeitem a dignidade e a centralidade da
pessoa em todo o Direito; é esta via que levou à exclusão de determinados seres humanos do conceito de
pessoa, com base em critérios de raça ou religiosos. Se se parte da personalidade entendida como
qualidade de ser pessoa para a atribuição de direitos e obrigações, então a titularidade de direitos e
obrigações é apenas consequência de um facto e não a sua causa. A personalidade das pessoas humanas
não é, neste sentido, algo que possa ser atribuído ou recusado pelo Direito, é algo que fica fora do alcance
do poder de conformação do legislador. É este o entendimento hoje patente no nº 1 do artigo 66º do
Código Civil.

94
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outro aspecto da relação (ter obrigações) e vice-versa. Por isso se fala de direitos e
obrigações das partes.

4.2 Objecto
O objecto da relação jurídica é aquilo (quid) sobre o qual incide o direito subjectivo
(os poderes conferidos pela ordem jurídica ao titular activo da relação jurídica). Este quid
pode consistir numa coisa em sentido jurídico; mas pode ser uma prestação. O estudo
pormenorizado é reservado para o capítulo apropriado.

4.3 Facto jurídico


É facto jurídico todo e qualquer acto humano ou acontecimento natural
juridicamente relevante, na medida em que produz efeitos jurídicos (MANUEL DE
ANDRADE). Os efeitos jurídicos traduzem-se na constituição, modificação e extinção de
relações jurídicas, isto é, dos direitos e das obrigações correspondentes. Por isso se fala de
factos jurídicos constitutivos, modificativos e extintivos.
Os factos jurídicos mais significativos no Direito Privado são os negócios jurídicos.

4.4 A garantia da relação jurídica:


O Direito não seria eficaz se se limitasse às imposições ou e proibições. Torna-se
necessário que haja meios coercivos para que aquelas injunções se tornem efectivas. Tais
meios recebem genericamente a designação de garantias da relação jurídica, que
compreendem todo o conjunto de providências sancionatórias externas que importam, em
última instância, o emprego da força (coação), atribuído a órgãos competentes, e que
destinadas a assegurar o respeito e a efectivação do direito subjectivo.
Desta feita, a garantia da relação jurídica pode ser desenhada como o conjunto de
meios que permitem ao titular activo da relação jurídica obter a realização efectiva e fazer
valer o seu direito, sempre que o obrigado negligente ou relutante não cumpra
tempestivamente, e sempre que, fundadamente, o titular do direito receie estar na
iminência de ver o seu direito violado 124.
São inúmeras as garantias da relação jurídica. Podem ser descortinadas à medida
que se estudam os vários tipos de relações jurídicas. Podemos apontar, de forma
exemplificativa, algumas, distinguindo entre aquelas que se consideram normais, ou mais

124
Segundo HÖRSTER, a garantia jurídica visa proteger a confiança do credor. Com efeito, diz ele:
“embora a ordem jurídica conte, em princípio, com o cumprimento espontâneo das obrigações
resultantes de uma relação jurídica, ela não pode limitar-se a esta posição de confiança. É preciso
colocar meios adequados à disposição do titular do direito subjectivo para aqueles casos em que a
confiança é desiludida porque o direito subjectivo foi violado, ou corre o risco, mais ou menos iminente,
de vir a ser violado, ou é contestado ao seu titular”.

95
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frequentes, e as garantias excepcionais. Entre as primeiras, encontramos: a execução dos


bens do devedor (art. 601º C.C), a execução específica (art. 827º, 830º, nº1), a obrigação de
indemnizar (art. 483º e 562º C.C.), a obrigação de juros (art. 559º C.C.), a cláusula penal
(art. 830º nº 2 C.C), a excepção de não cumprimento (art. 428º C.C.) e as garantias, reais e
pessoais, das obrigações.
Estas garantias têm vários níveis. Se o direito subjectivo confere ao seu titular o
poder de exigir, o titular dispõe da garantia da acção judicial. Se lhe confere apenas o
poder de pretender, a garantia é mais fraca, já que o cumprimento não pode ser exigido
judicialmente. Todavia, se o devedor cumprir espontaneamente a obrigação, não tem
direito à repetição (devolução) da coisa prestada (art. 403); o devedor não por exigir, nem
judicialmente, a repetição do indevido. Se o direito subjectivo confere um direito
potestativo, a garantia é mais forte, porque o devedor não se pode furtar ao cumprimento
(estado de sujeição).
Existem, além das que acabamos de mencionar, as que põem ser chamadas de
garantias excepcionais125: a acção directa (art. 336º C.C.), a legítima defesa (art. 337º C.C.)
e o estado de necessidade (art.339º C.C.).
A acção directa (art. 336 e 338) permite que o titular do direito recorra à força, isto
é, confere-lhe autorização para se apropriar, destruir ou deteriorar uma coisa ou eliminar a
resistência física irregularmente oposta ao exercício do direito por parte do titular, ou
praticar outro acto análogo126 para realizar ou assegurar o seu direito, desde que se
verifiquem os seguintes pressupostos: a) que a acção seja indispensável (não haja outro
meio para assegurar o direito); b) que seja impossível recorrer em tempo útil aos meios
coercivos normais; c) que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.
A lei exige, portanto, que se observe o princípio da proporcionalidade. Segundo HÖRSTER,
a acção directa não pode ser aplicada aos direitos de pretender, isto é, quando se trate de
uma obrigação natural127. Nos termos do artigo 338º do Código Civil, se o titular do direito

125
Esta designação resulta do que dispõe o artigo 1º do Código de Processo Civil: “A ninguém é lícito o
recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites
declarados na lei. Os direitos são garantidos, em princípio, pela via judicial. Isto é atestado pela
Constituição que estabelece no nº1 do artigo 29º, sob a epígrafe “Acesso ao direito e tutela jurisdicional
efectiva”: “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência dos meios
económicos”.

126
HÖRSTER, op. cit. Nº 358

127
Ibidem

96
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agir na suposição errónea de se verificarem os pressupostos da acção directa, é obrigado a


indemnizar o prejuízo causado, excepto se o erro for desculpável 128.
A legítima defesa (art. 337): traduz-se na justificação do acto destinado a afastar
qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou o património do agente ou de
terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e desde que o prejuízo
causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da lesão. A
legítima defesa difere da acção directa no aspecto de que pressupõe e destina-se a afastar
uma agressão actual e contrária á lei, contra a pessoa ou o património do titular ou de
terceiro (a acção directa destina-se a assegurar ou realizar o próprio direito), postula os
seguintes pressupostos: a) que exista uma agressão humana actual; b) a sua contrariedade
à lei; c) necessidade da defesa; d) Impossibilidade do recurso aos meios normais;
proporcionalidade da defesa.
Nos termos do artigo 339º, o estado de necessidade129 verifica-se sempre que
alguém destrua ou danifique coisa alheia com o fim de remover o perigo actual de um
dano manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro. Segundo HÖRSTER, o
estado de necessidade pode existir em duas situações: numa primeira situação, destrói-se
uma coisa alheia que representa um perigo, seja para o agente seja para terceiro
(defensiver Notstand). Pode existir também quando o perigo não parta da coisa a destruir
ou a danificar, mas se serve desta para remover o perigo actual de um dano
manifestamente superior que parte de outra fonte (Agressiver Notstand) 130. O estado de
necessidade importa a obrigação de indemnizar quando o perigo tenha sido provocado
pelo agente. Entretanto a obrigação de indemnizar pode recair, além do agente, também
aos que tiraram proveito do acto (art. 339 nº 2).
As garantias podem ser preventivas ou repressivas. Talvez conviesse dizer que
todas estas garantias têm uma função preventiva e outra repressiva. Cumprem a primeira
função, na medida em que a sua existência legal visa prevenir a violação de direitos;
repressivas, porque serão accionadas sempre que sejam invocadas pelo titular do direito
violado para que o mesmo seja reposto. Deve-se notar que as garantias não funcionam de

128
HÖRSTER considera tal solução pouco feliz. Nas suas próprias palavras, “Quem recorre à acção
directa assume um risco especial onde todos os cuidados são poucos e devia estar obrigado a indemnizar
sempre que os pressupostos não existem, independentemente da desculpabilidade do erro. Com a solução
adoptada a lei não contribui para a paz social, uma vez que não distribui da melhor maneira o risco entre
os intervenientes, fazendo arcar com ele a vítima de uma actuação não justificada e cujos interesses nem
sequer são afectados”.

129
Alimenta a curiosidade saber que a palavra alemã que traduz o estado de necessidade (notstand)
exprime a ideia de emergência.

130
Op. cit. Nº 361.

97
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2019.
Elaboração de Celestino Rafael

modo automático, são verdadeiras faculdades, de que o sujeito activo pode lançar mão e,
por isso, só operam por iniciativa do titular do direito subjectivo.

98

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