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RIO DE JANEIRO, N.

54 - ISSN 0103-4383 - MARÇO 2016

Saúde e infância:
a EBBS e
a construção
da PNAISC
- conceitos
e experiências nos
territórios
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE
(CEBES) A revista Divulgação em Saúde para Debate é uma publicação
do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

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Criança / National Policy for Comprehensive Child Health Care Tel.: (21) 3882–9140 | 3882–9141 Fax.: (21) 2260-3782

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Debate é associada à Associação
Brasileira de Editores Científicos

Ministério
da Saúde
NÚMERO 54 - ISSN 0103-4383 - RIO DE JANEIRO, MARÇO 2016
NÚMERO 54
ISSN 0103-4383
RIO DE JANEIRO, MARÇO 2016

4 EDITORIAL | EDITORIAL RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY

10 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 43 Maternidade não é lugar para morrer:


relato de um modo de fazer que
fortalece os coletivos nos espaços de
POESIA | POETRY nascimento
Motherhood is no place to die: report of a
way of doing that strengthens the collectives
14 Vivências E B B S in birth spaces
E B B S experiences Paulo Germano de Frias, Selma Eschenazi do
Fátima Cardoso Cruz Scarcelli Rosario, Carmen Viana Ramos, Janaina
Japiassu Pereira Veras, Karla Simone Lisboa
Maia Damião, Maria Raimunda Gomes Lima,
ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE Tereza Odete de Vasconcelos Corrêa Martins,
Vilma Costa de Macedo

15 Para compreender o conceito de


57 O desafio da mudança do modelo
ambiente facilitador e o seu uso na
assistencial ao parto e nascimento nas
construção de políticas públicas
Maternidades Prioritárias do estado do
facilitadoras à plenitude da vida
Rio de Janeiro
To understand the concept of facilitating
The challenge of changing the care model of
environment and its use in the construction
labor and birth in the Priority Maternity
of public policies facilitating to the plenitude Hospitals in the state of Rio de Janeiro
of life
Rosane Siqueira Vasconcellos Pereira, Amanda
Selma Eschenazi do Rosario, Liliane Mendes Almeida Mudjalieb
Penello

64 Atenção ao vínculo e comunicação


26 Amamentação: primeira experiência de de notícias difíceis em maternidades
comunicação prioritárias brasileiras
Breastfeeding: first experience of Attention to bond and communication of bad
communication news in Brazilian priority maternity hospitals
Selma Eschenazi do Rosario, Luciana Bettini Carlos Lugarinho, Maria de Lourdes Feriotti,
Pitombo, Jane Gonçalves Pessanha Nogueira Priscila Magalhães, Suely Marinho

35 Crianças brincam! Considerações sobre ENSAIO | ESSAY


o desenvolvimento emocional infantil e
a linguagem lúdica
Children play! Considerations about the 77 Um sentido para a paternidade
child’s emotional development and playful A meaning for paternity
language Carlos Lugarinho, Liliana Maria Planel
Marisa Schargel Maia Lugarinho, Liliane Mendes Penello
SUMÁRIO | CONTENTS

RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis


to state consultants of child health of the
Ministry of Health
84 Processo de formação de consultores Marisa Schargel Maia, Ariane Tiago Bernardo
estaduais: reflexão conceitual e prática de Matos, Helga Muller Mengel, Hermila
sobre a experiência vivida Tavares Vilar Guedes, Maria José Guardia
Training process of state consultants: Mattar, Ricardo César Caraffa, Rosimeire da
conceptual and practical reflections about Mota Barros Aires, Sebastião Leite Pinto
the experience lived
Evanguelia Kotzias Atherino dos Santos, Jane
Gonçalves Pessanha Nogueira 111 Desafios que vêm do Norte: descobrindo
e criando espaços como consultor da
saúde da criança
ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE Challenges from the North: discovering and
creating spaces as a child health consultant
Luciana Bettini Pitombo, Zeni Carvalho Lamy,
94 O que move o nosso trabalho? A Altamiro Vianna e Vilhena de Carvalho, Ana
experiência do consultor da saúde da Lúcia Nunes, Maribel Nazaré dos Santos Smith
criança e aleitamento materno em Neves
apoiar as ações nos territórios
What moves our work? The experience of
child health consultant and breastfeeding 121 Construção da grupalidade como
support actions in the region fator de crescimento e qualificação de
Wanêssa Lacerda Poton, Sonia consultores da saúde da criança
IsoyamaVenâncio, Rosane Siqueira Groupality construction as a growth and
Vasconcellos Pereira, Daniel Pires de Carvalho, qualification factor for child health
Sílvia Helena de Araújo Carneiro, Vânia Maria consultants
Andrade da Rocha, Elizabeth Cruz Müller Hermila Tavares Vilar Guedes, Ariane Tiago
Bernardo de Matos, Helga Muller Mengel,
Maria José Guardia Mattar, Rosimeire da Mota
RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY Barros Aires, Sebastião Leite Pinto, Ricardo
César Caraffa, Luciana Bettini Pitombo, Marisa
Schargel Maia
101 Construção de confiança e
reconhecimento no processo de
formação ministrado pela Estratégia POESIA | POETRY
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis
aos consultores estaduais da saúde da
criança do Ministério da Saúde 130 Encantos da Roda
Trust building and recognition in the training Charms of the Circle
process lectured by the Estratégia Fátima Cardoso Cruz Scarcelli
4 EDITORIAL | EDITORIAL

Editorial

ESTE NÚMERO DA ‘Divulgação em Saúde para Debate’ é o segundo número dedicado à Estratégia
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS). Esta estratégia é uma:

[…] Estratégia integrada de Promoção e Atenção no campo materno-infantil (especialmente pop.


de 0 a 6 anos) para garantir a todos os brasileiros, qualidade de vida desde seus primórdios, estimu-
lando suas competências e habilidades físicas, emocionais, cognitivas e sociais, através de novas
ofertas de cuidados aliadas às tradicionais dirigidas a mulheres e crianças com a perspectiva de
além da sobrevivência, trabalhar pelo crescimento e desenvolvimento integral da criança. (BRASIL,
2016).

A infância tem a peculiaridade de representar o futuro, e é por isso que preservar e cuidar
dela hoje deve fazer parte do projeto de desenvolvimento de uma nação. Entretanto, é opor-
tuno perguntar: o que se entende por preservar e cuidar? Isoladamente, a saúde tem baixa
potência para melhorar as oportunidades da infância. O que propicia o bem-estar das crianças
e lhes garante o crescimento como cidadãos plenos de potencialidades e de direitos é um con-
junto de ações, programas e políticas que dizem respeito à moradia, segurança alimentar, edu-
cação, lazer, segurança, transporte e saúde e que constituem necessidades humanas básicas.
O sucesso das políticas públicas de redução de miséria e pobreza, aliado à expansão da
Rede de Atenção Básica, tem contribuído à melhoria das condições de saúde das crianças. Se
o número de óbitos infantis de menores de 1 ano, por mil nascidos vivos, era 47,1 em 1990, ano
do início da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS); em 2011, já havia decrescido para
15,3, e atualmente se situa abaixo de 15. Trata-se de uma redução bem mais acelerada do que
a prevista. O Objetivo do Desenvolvimento do Milênio número 4 previa o número de 17,9 por
mil até 2015, mas esta meta já foi alcançada em 2010, quando se registrou uma taxa de 17,22.
Contudo, persistem grandes desigualdades entre regiões, e crianças pobres correm mais risco
de morrer, assim como as nascidas de mães quilombolas e indígenas, que apresentam taxa de
mortalidade bem maior do que as crianças nascidas em populações não tradicionais.
Essa situação aponta para a necessidade de promover o desenvolvimento acoplado a po-
líticas públicas que favoreçam a redistribuição de renda e que diminuam as grandes desi-
gualdades sociais. Ao mesmo tempo, acusa também as condições heterogêneas em que ainda
se encontra o SUS: grandes avanços ao lado de uma persistente precariedade das Redes de
Atenção à Saúde, o que prejudica principalmente os segmentos mais vulneráveis da popula-
ção. Assim, o tema da XV Conferência Nacional de Saúde, ‘Saúde pública de qualidade para
cuidar bem das pessoas: direito do povo brasileiro’, foi altamente oportuno.
A situação heterogênea e aparentemente contraditória do SUS não decorre da falta de
vontade política do setor da saúde pública, pois há evidentes esforços do Ministério da Saúde,
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de
Saúde e setores da sociedade civil para avançar e dar concretude aos princípios do SUS. Um
dos tantos exemplos é a iniciativa conjunta do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo
Cruz, quando decidem, em 2007, trabalhar uma estratégia — posteriormente denominada
Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) — com o objetivo maior de con-
tribuir para a formulação e para a implantação de uma política de cobertura nacional voltada

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EDITORIAL | EDITORIAL 5

à atenção integral à saúde da criança, considerando fundamentalmente o artigo 227 da


Constituição Federal, que dedica à criança brasileira prioridade em todas as ações de cuidado.
Contudo, a despeito do empenho de muitas pessoas e entidades na construção do SUS, há
vários fatores que obstaculizam gravemente o seu avanço, entre eles: a ausência de uma ampla
base política em suporte ao sistema de saúde, a resistência das elites e segmentos da classe
média a políticas universais e igualitárias, a preferência de trabalhadores por planos de saúde
corporativos mantidos por empresas que, por sua vez, os utilizam como ‘benefícios’ para
seus empregados. Todos estes fatores concorrem para o ‘subfinanciamento’ do SUS, trazendo
graves constrangimentos para a sua consolidação.
O ‘subfinanciamento’ é agravado pela atual crise econômica que afeta as receitas tanto do
governo federal como dos governos estadual e municipal. Porém, uma ameaça maior talvez
seja a crise política que se sobrepõe a crise econômica. Essa é sustentada pela grande mídia
que se comporta como se fosse representante do capital financeiro e das elites econômicas
brasileiras e que dá voz ao discurso neoliberal. Nesse contexto, cresce a pressão para a privati-
zação de serviços públicos e para a redução de gastos com políticas públicas.
Entretanto, a crise tem também um outro lado. O crescimento do desemprego e a redução
da renda familiar fazem com que amplie o número de pessoas que recorrem a serviços de
saúde do SUS em substituição aos serviços privados. E se, de acordo com a mídia, a maior
procura do SUS tornaria pior o que já é ruim, na realidade tende a emergir pressão maior para
a efetivação do direito à saúde e à melhoria do sistema de saúde. Essa pressão poderá fortale-
cer a persistente luta dos movimentos sociais em defesa da manutenção dos direitos sociais
consagrados pela Constituição Federal e em favor da democracia.
Considerando o cenário acima descrito, balizados por marcos referenciais nacionais e in-
ternacionais que apontam para a construção democrática de uma consciência em saúde como
fundamental para sua produção e entendendo que os padrões saudáveis para a vida são cons-
truídos desde os seus primórdios, com uma primeira infância favorecedora do desenvolvi-
mento infantil pleno, caminhamos decididamente, por meio da EBBS, com a construção da
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC).
É fundamental destacar nesta iniciativa exitosa entre a Coordenação-Geral de Saúde da
Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Saúde da
Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF) da Fiocruz um aspecto ousado
e inovador não só na formulação da política, na metodologia participativa de sua construção,
pautada no respeito ao coletivo de agentes que com ela se relacionam, fortalecendo o pacto in-
terfederativo para sua consolidação, como também no seu conteúdo, permeado por princípios
humanizadores notáveis, entre eles o do ambiente facilitador à vida, criado e desenvolvido
com tanta expectativa pela EBBS.
Aos leitores, sugerimos apreciá-lo em cada um dos artigos aqui apresentados como uma
inovação relacional de cunho transformador presente tanto nas ações de formação quanto
naquelas de atenção e gestão, embebendo esta política social da generosidade e do cuidado
fundamentais à produção de saúde com cidadania plena.
Uma construção que almeja uma sociedade saudável, um mundo saudável, que o terceiro
milênio traz como desafio para tornarmos encarnado o cuidado essencial entre os habitantes
deste planeta. Queremos, assim, estimular a curiosidade dos leitores a buscar um exercício
de aproximação entre esta iniciativa — seus conteúdos teóricos e conceituais, seu modo de
fazer e os resultados já obtidos, além daqueles que se queira projetar — e o recente docu-
mento divulgado pelas Nações Unidas, com a Agenda 2030. Esta apresenta os Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS) voltados para as crianças e suas redes de cuidadores,

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6 EDITORIAL | EDITORIAL

incluindo os adolescentes, não contemplados nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio


(ODM), analisando o que será preciso para que os países e, claro, o nosso Brasil possam
alcançá-los.

Cornelis Johannes van Stralen


Presidente do Cebes

Liliane Mendes Penello


Coordenadora da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis

Referência

BRASIL. Ministério da Saúde. Brasileirinhos e brasileirinhas saudáveis, primeiros passos para o desenvolvimento
nacional. [Internet]. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/palestras/humanizacao/brasileirinhos_
apresentacao_dra_liliane.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2016.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 4-9, MAR 2016
EDITORIAL 7

Editorial

THIS ISSUE THE ‘Divulgação em Saúde para Debate’ is the second one dedicated to the
Estratégia Brasleirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS). Such Strategy is:

[…] an integrated strategy of Care and Promotion in the maternal and child field (especially the
population from 0-6 years) to ensure all Brazilians quality of life since its beginnings, stimulating
their physical, emotional, cognitive, and social skills and abilities through new offerings of care
combined with the traditional ones aimed at children and women with the perspective of beyond
surviving, working for the growth and the full development of the child. (BRAZIL, 2016).

Childhood has the peculiarity of representing the future nowadays, and that is why pre-
serving and caring for children should be part of a nation’s development project. However,
it is appropriate to ask: what is meant by preserving and caring? In isolation, health does
not have much power to improve childhood opportunities. What promotes the welfare of
children and assures their growth as citizens full of potential and rights is a set of actions,
programs, and policies regarding housing, food safety, education, leisure, security, transpor-
tation, and health, which constitute basic human needs.
The success of public policies for the reduction of misery and poverty, coupled with the
expansion of the Primary Care Network, has been contributing to the improvement of the
health of children. If the number of infant deaths under 1 year of age per thousand live births
was 47.1 in 1990, year of the beginning of the implementation of the SUS; in 2011, it had
already decreased to 15.3, and is currently below 15. This is a much more accelerated reduc-
tion than expected. The Millennium Development Goal number 4 predicted the number of
17.9 per thousand by 2015, but that goal had already been achieved in 2010, when it recorded
a 17.22 rate. However, there remain large inequalities between regions, and poor children are
more at risk of dying, as well as those who are born to quilombola mothers and indigenous
peoples, who have a higher mortality rate than children born to non-traditional populations.
That situation points to the need to promote development coupled with public policies
that favor the redistribution of income and reduce the great social inequalities. At the same
time, it also accuses the conditions under which the SUS still is: great advances alongsi-
de a persistent precariousness of Health Care Networks, which damages primarily the
most vulnerable segments of the population. Thus, the theme of the 15th National Health
Conference, ‘Quality public health to take good care of the people: a right of the Brazilian
people’, was highly appropriate.
The heterogeneous and apparently contradictory situation of the SUS does not derive
from a lack of political will from the public health sector, as there are obvious efforts from the
Ministry of Health, State and Municipal Health Secretariats, Municipal, State, and National
Health Councils, and civil society sectors to advance and give concreteness to the princi-
ples the SUS. One of the many examples is the joint initiative of the Ministry of Health and
the Oswaldo Cruz Foundation when deciding, in 2007, to work a strategy — later renamed
Estratégia Brasileirinhos e Brasileirinhas Saudáveis (EBBS) — with the ultimate goal of con-
tributing to the formulation and the implementation of a national coverage policy aimed at

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 4-9, MAR 2016
8 EDITORIAL | EDITORIAL

the comprehensive health care of children, mainly considering Article 227 of the Federal
Constitution, which dedicates to Brazilian children priority in all care actions.
However, despite the effort of many people and entities in the construction of the SUS,
there are several factors that gravely hamper its advancement, among which: the lack of a
broad political base supporting the health system, the resistance from the elites and segments
of the middle class to universal and egalitarian policies, the preference for corporate health
from workers maintained by the companies, which, in turn, use them as ‘benefits’ for their
employees. All those factors concur to the ‘underfunding’ of the SUS, bringing great cons-
traints to its consolidation.
The ‘underfunding’ is aggravated by the current economic crisis which affects the revenue
of both the federal as the state and municipal governments. However, an even greater threat
might be political crisis that overlaps the economical one. That one is sustained by the mains-
tream media, which behaves as if it were the representative of the financial capital and the
Brazilian economic elites and gives voice to the neoliberal discourse. In that context, the pres-
sure for the privatization of public services grows, as well as for the reduction of spending on
public policies.
However, the crisis also has another side. The rise in unemployment and the reduction of
the household income causes the growth of the number of people that recur to health ser-
vices from the SUS in substitution to private ones. And if, according to media, the increased
demand for the SUS would worsen that which is already bad, in reality it tends to emerge
a greater pressure for the effectiveness of the right to health and to the betterment of the
health system. That pressure could strengthen the persistent struggle of social movements in
defense of maintaining the social rights guaranteed by the Federal Constitution and in favor
of the democracy.
Given the aforementioned scenario, based by national and international benchmarks that
point to the democratic construction of a health consciousness as critical to its production,
and understanding that healthy patterns for life are built since their inceptions, with an early
childhood favoring full child development, we resolutely walk, through the EBBS, along with
the construction of the National Policy for Comprehensive Child Health Care (PNAISC).
It is essential to highlight in this successful initiative between the General Coordination
of Child Health and Breastfeeding of the Ministry of Health and the National Institute of
Women, Children and Adolescents’ Health Fernandes Figueira (IFF) of the Fiocruz a bold and
innovative aspect not only in the formulation of politics, in the participatory methodology of
its construction, based on respect for the collective of agents with which it relates, strengthe-
ning the inter-federative pact for its consolidation, but also its content, permeated by notable
humanizing principles, including the life facilitating environment, created and developed
with so much expectation by the EBBS.
To the readers, we suggest appreciating it in each one of the articles presented here as
a relational innovation of transformative nature present both in the training actions and in
those of care and management, soaking this social policy in generosity and in care, which are
so fundamental to the production of health with full citizenship.
A construction that targets a healthy society, a healthy world, that the third millennium
brings as a challenge to incarnate the essential care among the inhabitants of this planet. We
want, thus, to stimulate the curiosity of the readers to seek an approach exercise between this
initiative — its theoretical and conceptual contents, its way of doing, and the results already
obtained, in addition to those which we want to project — and the recent document released
by the United Nations, with the 2030 Agenda. It presents the Sustainable Development Goals

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EDITORIAL | EDITORIAL 9

(SDGs) aimed at children and their caregiver networks, including teenagers who were not
included in the Millennium Development Goals (MDGs), analyzing what it will take so that
countries and, of course, our Brazil can reach them.

Cornelis Johannes van Stralen


President of Cebes

Liliane Mendes Penello


Coordinator of the Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis

Reference

BRASIL. Ministério da Saúde. Brasileirinhos e brasileirinhas saudáveis, primeiros passos para o desenvolvimento
nacional. [Internet]. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/palestras/humanizacao/brasileirinhos_
apresentacao_dra_liliane.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2016.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 4-9, MAR 2016
10 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

Apresentação

O BRASIL TEM APRESENTADO muitos avanços nos indicadores de saúde da criança nas últimas
quatro décadas e, em particular, após a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) como
política de estado. Em relação aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), por
exemplo, o País, em 2013, foi reconhecido internacionalmente pela conquista antecipada — e
com folgas — do ODM 4, de redução da mortalidade na infância, e, em 2016, teve suas políticas
públicas de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno destacadas, por sua abran-
gência e resultados, em um artigo publicado pela revista ‘The Lancet’, analisando dados sobre
o aleitamento em 153 países.
Entretanto, mostrou-se necessária a consolidação de uma Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Crainça (PNAISC), com o objetivo de apontar estratégias para univer-
salizar esses avanços para grupos de maior vulnerabilidade, como indígenas, quilombolas,
crianças com deficiências etc., bem como garantir não apenas a sobrevivência, mas também o
desenvolvimento integral dessas crianças, condição para o exercício da cidadania e a garantia
da soberania nacional.
A elaboração de uma PNAISC também veio ao encontro do pleito de entidades da socieda-
de civil militantes da causa dos direitos da criança e do adolescente, como a Rede Nacional
da Primeira Infância, a Pastoral da Criança, além de organismos como o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef ) e Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
Para tal, foi publicada a Portaria GM-MS nº 1.130, de 2015, que cria a Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Criança. O objetivo é promover a saúde da criança e o aleitamento
materno, a partir da gestação até os 9 anos de vida, com especial atenção à primeira infância
(0 a 5 anos) e àquelas populações de maior vulnerabilidade. A Política sintetiza de maneira
simples e clara para os gestores estaduais, municipais e profissionais de saúde os grandes
eixos de ações que compõem uma atenção integral à saúde da criança e aponta estratégias
e dispositivos para a articulação das ações e da rede de serviços de saúde nos municípios e
regiões de saúde.
A elaboração da Política foi fruto de um amplo processo de construção coletiva, capita-
neado pela Coordenação-Geral de Saúde da Criança e Aleitmaneto Materno (CGSCAM) do
Ministério da Saúde, com apoio conceitual e metodológico da Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do
Adolescente Fernandes Figueira (IFF), da Fiocruz.
Participaram de sua confecção especialistas, Coordenações de Saúde da Criança das
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde das capitais, o Conselho Nacional dos Secretários
de Saúde (Conass) dos estados, o Conselho Nacional dos Secretarias Municipais de Saúde
(Conasems), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o
Conselho Nacional de Saúde (CNS); bem como a sociedade civil por intermédio da Pastoral da
Criança e da Rede Nacional Primeira Infância.
Também foram essenciais nesse processo os consultores de saúde da criança do Ministério
da Saúde para os estados e seus supervisores, os Consultores Nacionais (CN). Tais atores

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 10-13, MAR 2016
APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 11

foram criados a partir da parceria CGSCAM-EBBS para desempenhar o papel de apoio insti-
tucional aos gestores e profissionais de saúde envolvidos com o tema da saúde da criança nos
estados, capilarizando as ações e programas propostos pelo Ministério da Saúde e fazendo
feedback dos territórios para o nível federal.
Nesta obra, será visto um verdadeiro caleidoscópio de experiências desenvolvidas nos ter-
ritórios por esses atores, nesse efervescente período de formulação e implantação da PNAISC.
Assim, vários capítulos se referem às vivências desses profissionais nesta difìcil arena do
apoio institucional. Um locus frequente em que isso se deu foi o das maternidades do País ade-
ridas à Rede Cegonha, onde desenvolveram trabalho de fomento das boas práticas obstétricas
e neonatais, um processo de verdadeira mudança cultural no sentido da humanização e do res-
peito às evidências científicas. Além da formulação da PNAISC, as ações de implantação dessa
rede tematica, com objetivo de redução da mortalidade materna e neonatal, constituíram as
principais missões dos Consultores nos Estados (CE), ocupando seus corações e mentes.
Nesse delicado trabalho, foram apoiados virtual e presencialmente pelos CN, principalmen-
te do ponto de vista da supervisão/suporte ao trabalho de apoio à gestão, e pelos tutores da
EBBS, com formação no campo ‘psi’, em especial quanto a sua formação em apoio institucional.
Dois capítulos se debruçam sobre o inovador processo de formação que lhes foi ofertado,
por meio de encontros presenciais e no cotidiano via uma plataforma virtual, em que cada
dupla composta por um dos CN e uma das tutoras provia apoio virtual a um subgrupo de 5 ou
6 CE.
Falando ainda das maternidades apoiadas no bojo da Rede Cegonha, a obra descreve como,
em 13 delas, a parceria CGSCAM-EBBS viabilizou mais uma experiência altamente original
e exitosa de capacitação e apoio às equipes de UTIs neonatais e obstétricas (por meio da me-
todologia de Grupos Balint-Paidéia) para lidar com a transmissão de notícias difíceis em seu
trabalho.
Finalmente, a equipe da EBBS ainda nos brinda com seu conhecimento no campo da psi-
cologia, em particular usando do pensamento de Winnicott, sobre temas tão relevantes para
a saúde e o pleno desenvolvimento infantil quanto o ‘ambiente facilitador’, a ‘amamentação’,
o ‘brincar’ e a ‘paternidade’, todos conceitos de essencial compreensão para o entendimento
da dimensão emocional da criança, aspecto este primordial de ser protegido e cuidado pelos
gestores públicos responsáveis pela implementação das políticas públicas dentro da PNAISC.
Apesar da vastidão de conhecimento e inovação que o leitor acessará nesta publicação, o
principal a ser observado, além deste conteúdo, é ‘como’ tudo isso foi feito, a metodologia
participativa que esta maravilhosa equipe da EBBS nos presenteou na formulação da PNAISC
e em cada ação analisada nesta leitura. A ela, a gratidão de Brasilerinhas e Brasileirinhos!

Boa leitura!

Paulo Vicente Bonilha Almeida


Médico pediatra e de saúde pública da Prefeitura Municipal de Campinas – Campinas (SP), Brasil.
Ex-Coordenador Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 10-13, MAR 2016
12 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

Presentation

BRAZIL HAS INTRODUCED MANY advances in child health indicators in the last four decades,
particularly after the implementation of the Unified Health System (SUS) as a state policy.
In relation to the Millennium Development Goals (MDGs), for example, the country was, in
2013, recognized internationally for the early — and handily — achievement of the MDG 4,
of child mortality reduction, and in 2016 had its public policies concerning the promotion,
protection and support of breastfeeding highlighted, for their comprehensiveness and results,
in an article published in the journal ‘The Lancet’, analyzing data on breastfeeding in 153
countries.
However, it proved to be necessary to consolidate a National Policy for Comprehensive
Child Health Care (PNAISC), in order to point out strategies to universalize those advances
for the most vulnerable groups, such as indigenous people, quilombolas, children with disa-
bilities etc., as well as to ensure not only the survival but also the integral development of
those children, the condition for the full exercise of citizenship, and the guarantee of national
sovereignty.
The development of a PNAISC also came to meet the plea of civil society activists of the
cause of children’s and adolescents’ rights, such as the National Network of Early Childhood,
the Pastoral of the Child, as well as organizations such as the United Nations Children’s
Emergency Fund (Unicef ) and the Pan American Health Organization (Paho).
To this end, the Ordinance GM-MS no 1,130 from 2015 was published, establishing the
National Policy for Comprehensive Child Health Care. The aim is to promote child health and
breastfeeding, from gestation to 9 years of life, with special attention to early childhood (0-5
years) and to those populations most vulnerable. The Policy summarizes simply and clearly
to state managers, municipal managers, and health professionals the fundamentals of actions
that make up a comprehensive health care of the child and shows strategies and devices for
the articulation of actions and of the health services network in health municipalities and
regions.
The drafting of that Policy was the result of an extensive process of collective construction,
led by the General Coordination of Child Health and Breastfeeding (CGSCAM) of the Ministry
of Health, with conceptual and methodological support of the Estratégia Brasileirinhas
e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) from the National Institute of Women, Children and
Adolescents Health Fernandes Figueira (IFF), of Fiocruz.
Participants of its manufacturing were specialists, Child Health Coordinations of the State
and Municipal Secretaries of Health of the capitals, the National Council of Health Secretaries
(Conass) of the states, the National Council of Municipal Health Secretaries (Conasems), the
National Council for the Rights of the Child and the Adolescent (Conanda), and the National
Health Council (CNS); as well as the civil society through the Pastoral of the Child and the
National Network of Early Childhood.
Also essential in that process were the child health consultants of the Ministry of Health
for the states and their supervisors, the National Consultants (NC). Such agents were created
from the CGSCAM-EBBS partnership to play the role of institutional support to health

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 10-13, MAR 2016
APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 13

managers and workers involved with the issue of child health in the states, better distribu-
ting the actions and programs proposed by the Ministry of Health and doing feedback from
the territories to the federal level.
In this work, what will be seen is a real kaleidoscope of experiences developed in the ter-
ritories by those agents, in this effervescent period of formulation and implementation of the
PNAISC.
Thus, several chapters refer to the experiences of those professionals in this difficult arena
of institutional support. A frequent locus in which this happened was the country’s maternity
hospitals attached to the Stork Network, where they developed a work of fomentation of good
obstetric and neonatal practices, a process of real cultural change towards the humanization
and the respect for scientific evidence. In addition to the formulation of PNAISC, the actions
of implementation of this thematic network, which aimed to reduce maternal and neonatal
mortality, constituted the main tasks of the State Consultants (CE), occupying their hearts
and minds.
In this delicate work, they were virtually and physically supported by the CNs, mainly from
the perspective of supervision/support to the work of management support, and by the tutors
of the EBBS, with training in the ‘psi’ field, especially regarding their training in institutional
support.
Two chapters have addressed the innovative training process which was offered to them,
through direct meetings and in daily life via a virtual platform, in which each pair consisting
of one of the CNs and one of the tutors provided virtual support to a subset of 5 or 6 CEs.
Still on the maternity hospitals supported in the midst of the Stork Network, the work des-
cribes how, in 13 of them, the CGSCAM-EBBS partnership enabled yet another highly original
and successful experience of training and support to teams of neonatal and obstetric ICUs
(through the Balint-Paidéia Group methodology) to deal with the transmission of difficult
news in their work.
Finally, the EBBS team still gifts us with its knowledge in the field of psychology, parti-
cularly employing the thoughts of Donald Winnicott, on topics that are so relevant to the
health and the full development of the child such as ‘enabling environment’, ‘breastfeeding’,
‘playing,’ and ‘paternity’, all concepts of essential comprehension for the understanding of the
emotional dimension of the child, a primordial aspect to be protected and cared by the public
managers responsible for the implementation of public policies within the PNAISC.
Despite the vastness of knowledge and innovation that the reader will access in this publi-
cation, the main thing to be observed, in addition to that content, is ‘how’ all this was done,
the participatory methodology that this wonderful EBBS team has offered us with in the for-
mulation of the PNAISC and in each and every action analyzed in this reading. To them, the
gratitude of Brasilerinhas and Brasileirinhos!

Have a good reading!!

Paulo Vicente Bonilha Almeida


Pediatrician and public health doctor of the City Hall of Campinas – Campinas (SP), Brazil. Former
General Coordinator of Child Health and Breastfeeding of the Ministry of Health

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 10-13, MAR 2016
14 POESIA | POETRY

Vivências E B B S
E B B S experiences

Fátima Cardoso Cruz Scarcelli1

E na contextualização do desenvolvimento infantil


no reconhecimento dos determinantes sociais
num movimento de crítica e construção
que o enfrentamento desse jogo social se faz.
No sentir da inquietação que move
forças impulsionam novo caminhar
a partir dos desafios
nas Linhas de Cuidados que estão a se delinear.

Baseadas em evidências científicas


onde absolutamente nada é certo ou errado
mas que a partir de intenso movimento de ressignificação
as diferenças estão sendo priorizadas.
Para entendimento e maior compreensão
do cozer de uma história que se faz
a construção de uma política pública
para o desenvolvimento pleno da Criança brasileira assegurar.

Buscando nas experiências exitosas


em feitos e avanços contabilizados
numa mistura de tempos
a apropriação de novos espaços.
Nas barreiras rompidas e no incessante recriar
1 Assistente Social. guiados por afetos expressos, a arte do empoderar
Especialista em nesse contexto dialético, presente a grupalidade está
administração hospitalar
pela Faculdade São Camilo refletindo no compromisso com a sociedade
de Desenvolvimento todo empenho na construção desse novo olhar.
em Administração da
Saúde – São Paulo (SP),
Brasil. Consultora do Superação de limites e determinação
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e ruptura de paradigmas, rotinas ao trabalhar
Brasileirinhos Saudáveis na colheita desses frutos, o compartilhar
para formulação e
implantação de uma razão de ser do próprio ‘Cuidar’.
Política Nacional de Assim se concretiza
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no a proposta inicialmente pensada
estado de Mato Grosso com marco histórico
do Sul.
faticy@gmail.com da EBBS alicerçando essa jornada.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 14, MAR 2016
ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 15

Para compreender o conceito de ambiente


facilitador e o seu uso na construção de
políticas públicas facilitadoras à plenitude da
vida
To understand the concept of facilitating environment and its use in
the construction of public policies facilitating to the plenitude of life

Selma Eschenazi do Rosario1, Liliane Mendes Penello2

RESUMO Neste artigo, procurou-se apresentar de forma pormenorizada o conceito de ambiente


emocional facilitador do psicanalista Donald W. Winnicott, um autor que chamou a atenção
para a importância da provisão ambiental como fator preponderante para a formação da
personalidade da criança em seus primeiros anos de vida. Para melhor compreensão de suas
ideias, procurou-se apresentar também o que ele entende por saúde e doença, tendo em vista
que o caminho do desenvolvimento infantil com saúde e em plenitude se refere a esse ambiente
que é mais do que um espaço físico, é todo um clima, uma atmosfera que envolve a qualidade do
cuidado oferecido durante o período da primeira infância. Ao final do artigo, é feita a conexão
entre o conceito do autor e o seu uso estratégico, em sua passagem para a ideia de princípio
1 Psicóloga e psicanalista.
Mestre em psicologia orientador de ações pautadas por uma ética do cuidado. Ao se pensar sobre a importância da
pela Universidade defesa de políticas públicas cuidadoras, que incorporem no seu modo de fazer práticas alinhadas
Federal Fluminense
(UFF) – Rio de Janeiro a esse pensamento, chegou-se a uma definição possível do que passamos a chamar de ambiente
(RJ), Brasil. Consultora facilitador à vida: por sua garantia, em sua defesa, por sua intensidade criativa e plena.
para desenvolvimento
infantil e formação
de grupos e tutora do PALAVRAS-CHAVE Desenvolvimento infantil; Apego ao objeto; Políticas públicas de saúde;
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e Saúde da criança; Cuidado da criança.
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma ABSTRACT In this article, we sought to present in details the concept of facilitating emotional
Política Nacional de environment from psychoanalyst Donald W. Winnicott, who drew attention to the importance
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC). of environmental provision as a key factor to the formation of personality of the child in its first
selmarosario@hotmail.com years of life. In order to better understand his ideas, we sought to also present what he understands
2 Psiquiatra e for health and illness, given that the path of healthy and in plenitude child development refers to
psicoterapeuta de such environment which is more than a physical space, it is an entire atmosphere, which involves
grupos. Mestre em saúde
pública pela Fundação the quality of the care offered during the period of early childhood. At the end of the article, it
Oswaldo Cruz (Fiocruz) is made the connection between the author’s concept and its strategic use, in its passage to the
– Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. Coordenadora do idea of guiding principle of actions ruled by an ethics of care. Thinking about the importance of
projeto Contribuições da defending caring public policies, which incorporate in their way of doing practices aligned with
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis that thought, we came to a possible definition of what we then called life facilitating environment:
para formulação e for its assurance, in its defense, for its full and creative intensity.
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde KEYWORDS Child development; Object attachment; Public health policy; Child health; Child care.
da Criança (PNAISC).
lpenello@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
16 ROSARIO, S. E.; PENELLO, L. M.

Introdução emocional do bebê e a sua relação com o


que ele chamou de “ambiente emocional
Donald Woods Winnicott foi um médico facilitador” (WINNICOTT, 1979, P. 39).
pediatra e psicanalista que nasceu na
Inglaterra em 1896. Segundo os seus biógra-
fos, ele recebeu uma educação apoiada na Concepção de saúde e de
liberdade de expressão considerada avança- doença
da para os padrões da época. Isso parece ter
sido decisivo para a sua formação pessoal e Winnicott (1999B) defendia a ideia de que
profissional, tornando-o uma pessoa dotada nenhuma doença é determinada apenas
de pensamento crítico e criativo e também pelos aspectos físicos, sendo fundamental
avessa a dogmas. Após iniciar seus estudos a consideração do componente emocio-
em medicina, prestou serviço militar como nal, pois o psiquismo é, ao mesmo tempo,
residente em um navio de guerra durante a distinto e inseparável do ‘soma’. Para esse
primeira guerra mundial — o que lhe per- autor, o corpo, as emoções e os processos
mitiu lidar com uma diversidade de ques- de pensamento funcionam dinamicamente
tões humanas de ordem física e psíquica. integrados, e essa concepção é determinante
Posteriormente, fez residência médica em para a compreensão do que é saúde psíquica,
pediatria, tornou-se o primeiro psiquiatra não como sinônimo de normalidade e nem
infantil da Inglaterra e complementou a sua como uma vida sem conflitos. O que está em
formação como psicanalista de crianças e questão é o que ele chama de “psicossoma”
de adultos. (WINNICOTT, 2000C, P. 232), essa ligação inegável
O seu modo de ser e de pensar, marcado entre corpo, psiquismo e processos mentais.
pela expressão de uma linguagem própria Tal modo de pensar está em perfeita conso-
e em estilo simples e criativo, fica evi- nância com aquilo que apregoa, atualmente,
dente em todos os seus escritos nos quais a Organização Mundial de Saúde (OMS), que
procurou transmitir o conhecimento que entende saúde não como apenas ausência de
adquiriu com o atendimento de milhares doença e tem uma compreensão mais abran-
de bebês e suas respectivas famílias. Em gente que admite o estado saudável pela ha-
sua carreira, ocupou posições de destaque bilidade de poder lidar com as adversidades
e dirigiu importantes hospitais infantis da vida, com a preservação da capacidade de
londrinos, tendo também trabalhado para criar e de transformar os sonhos em projetos
o governo inglês como conselheiro e au- passíveis de realização. Para isso, é preciso
xiliado no acompanhamento de crianças que a vida, desde os primórdios, desenvolva-
que foram separadas de suas famílias, por -se em uma base de confiança em um am-
ocasião da segunda guerra mundial. Essa biente facilitador, aquele capaz de oferecer o
vivência o fez compreender a importância devido acolhimento e suporte a fim de que
do vínculo das crianças com seus familiares as adversidades sejam enfrentadas. Esse
e os efeitos desastrosos desse tipo de sepa- processo é da ordem dos afetos e está em
ração para o desenvolvimento afetivo de sintonia com a ideia de psicossoma já men-
crianças e adolescentes. Também foi esse cionada, pois esse ambiente cuidador
autor que chamou a atenção para a impor-
tância da provisão ambiental como fator [...] possibilita ao indivíduo a chance de cres-
preponderante para a formação da per- cer, frequentemente em direção à saúde, en-
sonalidade da criança em seus primeiros quanto que o ambiente que falha, principal-
anos de desenvolvimento. Ele vai chamar mente no início, mais provavelmente levará
atenção para o papel do desenvolvimento à instabilidade e à doença. (ABRAM, 2000, P. 25).

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
Para compreender o conceito de ambiente facilitador e o seu uso na construção de políticas públicas facilitadoras à plenitude da vida 17

Na concepção winnicottiana, saúde que é saúde considera que viver é mais do


psíquica envolve o desenvolvimento de que sobreviver. Se uma vida é predominan-
uma linha de continuidade da existência, temente pautada pela submissão a preceitos
cabendo, então, à mãe oferecer as condições e mandos ou por uma concepção predeter-
para que haja uma sequência de cuidados minada de mundo, isso seria apenas sobrevi-
que dê sustentação ao desenvolvimento da ver. O contraponto é a possibilidade do viver
criança, sem que essa linha sofra interrup- criativo que inclui a expressão de esponta-
ções bruscas1. As condições para a aquisição neidade, do desenvolvimento da capacida-
de saúde psíquica devem estar presentes de de confiar, da liberdade de expressão do
desde o início quando o bebê necessita de pensamento, do encanto pela descoberta do
alguém muito próximo, oferecendo a ele o mundo e de poder percebê-lo ao seu modo.
acolhimento devido e a proteção contra in- A visão winnicottiana de criatividade é de
trusões ambientais das quais ele ainda não que se trata de uma condição inerente a qual-
poderá lidar e nem se defender. quer ser humano, presente na vida cotidiana.
O ambiente físico é parte dessa composi- Quando o ambiente inicial é provedor, favo-
ção de mundo, e nesse início o bebê precisa rece essa expressão desde cedo. Conforme
ser protegido de excessos: barulho e lumi- ele mesmo diz, “viver criativamente consti-
nosidade demasiados, de mudanças bruscas tui um estado saudável e a submissão é uma
de temperatura, de incômodos por estar base doentia para a vida” (WINNICOTT, 1975, P. 95).
molhado, de sentir fome sem ser saciado, Essa reflexão é essencial quando se pensa
de não poder dormir. Todos os aspectos do na primeira infância como o período privi-
cuidado profilático também fazem parte do legiado da construção da subjetividade, um
que chamamos de entorno. Mas é importan- processo dinâmico e permanente que nos
te ressaltar que o diferencial na idéia de am- acompanhará por toda a existência.
biente facilitador é o gesto afetivo cuidadoso
e acolhedor, ambiente promotor de condi-
ções para que a criança se desenvolva favora- Ambiente emocional
velmente. Quando ela não pode ser protegida facilitador e a constituição
de algum tipo de excessos, irá reagir às falhas
ambientais que se não forem reparadas a
da subjetividade
tempo podem ser vivenciadas como experi-
ência traumática, ou seja, algo que está além Buscando melhor compreensão do seu pen-
do seu alcance de compreensão. A mãe é a samento e da sua importância, para o que
primeira pessoa que se adapta ativamente às trataremos mais adiante como ‘ambiente fa-
necessidades do bebê, e, nesse sentido, ela se cilitador à vida’, faz-se necessário discorrer
confunde com o que chamamos de ambiente sobre o conceito de “ambiente emocional
acolhedor. Em condições favoráveis, o am- facilitador” criado por Winnicott ao ob-
biente reveste-se de cuidado e ocorre em um servar a relação estabelecida entre a díade
“espaço de íntima intimidade” (MACEDO, 1999, mãe-bebê nos diversos casos que acompa-
P. 16) cultivado entre as figuras parentais e o nhou profissionalmente. De acordo com
bebê. Saúde psíquica supõe, portanto, a con- Dias (2003, P. 131),
tinuidade de si próprio, favorecendo gradati-
vamente a “integração entre o soma, a psique o conceito winnicottiano de ‘ambiente’ inicial
e os processos de pensamento” (MACEDO, 1999, deve ser entendido segundo seus dois aspec- 1 Essas interrupções
P. 16). O crescimento sendo assim uma tarefa tos iniciais: a) ele não é externo nem interno; bruscas é que podem
contínua de integração psicossomática b) ele é a instância que sustenta e responde caracterizar, em termos
psíquicos, a noção de
(PHILLIPS, 2006). Esse modo de compreender o à dependência: o bebê necessita totalmente trauma.

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18 ROSARIO, S. E.; PENELLO, L. M.

de um outro que ‘ainda não é um outro, se- a sua mínima elaboração (PHILLIPS, 2006).
parado’ ou externo a ele. Encontra-se, aqui,
embutida a idéia, cujo alcance psicológico
e filosófico está ainda por ser devidamente A díade mãe-bebê3
apreciado, de que a realidade do si-mesmo2
e a realidade do mundo são constituídas ao Quando Winnicott (1994) afirmou que um
longo do processo de amadurecimento, ‘no bebê sozinho não existe, mas sim um ‘bebê
interior da relação mãe-bebê’. A constituição e sua mãe’, procurou demonstrar que há
do eu, concomitantemente à construção da um processo relacional desde os primór-
realidade intrapsíquica e da realidade externa, dios, embora do ponto de vista do bebê essa
só se dá na relação com o outro. [...] O âm- ideia de relação ainda não exista, sendo a
bito onde se dá o amadurecimento não é um mãe (ou seu substituto) a pessoa que ins-
espaço intrapsíquico, mas inter-humano, um taura o começo de uma comunicação. Para
‘entre’ a mãe e o bebê. esse autor, “antes das relações ambientais,
a unidade não é o indivíduo, a unidade é
O desenvolvimento emocional acontece, uma organização meio-ambiente-indivíduo”
então, em uma interação entre as tendên- (WINNICOTT, 2000A, P. 166). Se desejamos ressal-
cias herdadas e os fatores ambientais. Para tar a singularidade que caracteriza cada
que essa ‘química’ funcione, a provisão am- ser humano, é preciso dizer que não é a
biental favorável ao desenvolvimento pleno unidade que precede a relação. É a relação
é aquela que fornece as condições adequa- com o outro que precede o sujeito, ou seja, é
das que facilitem o estabelecimento dos ali- a partir da relação estabelecida com o outro
cerces para a saúde biológica e psíquica do que surge a subjetividade do bebê. O sujeito,
infante. Assim, “prover para a criança é [...] portanto, nasce do múltiplo.
questão de prover o ambiente que facilite Nesse momento da vida, como já disse-
a saúde mental individual e o desenvolvi- mos, o ambiente coincide com os cuidados
mento emocional” (WINNICOTT, 1982C, P. 63). maternos. É a qualidade desse cuidado que
Isso significa que é a mãe, juntamente possibilita o desenvolvimento da potencia-
com a família, que, inicialmente, adapta-se lidade que o bebê traz consigo para que a
ativamente ao atendimento das necessida- subjetividade seja engendrada conforme
des do bebê. Sozinho ele não sobrevive, pois os cuidados que recebe. A ênfase recai nos
depende essencialmente do outro para de- encontros que vão se estabelecendo e ga-
2 Dias usa a expressão senvolver o que traz potencialmente em si. nhando consistência na medida em que a
‘si-mesmo’ como É bom enfatizar que, inicialmente, a adap- mãe interage com a criança, especialmente
correspondente ao termo
inglês ‘self’ que não tem tação precisa ser do ambiente à criança, quando isso é feito de modo consistente e
tradução para o português. pois nos casos em que ela é forçada a uma delicado. Nesse processo gradativo de in-
3 Sempre que falamos da adaptação precoce ao ambiente, o self em teração, o bebê vai tomando consciência
figura da mãe no exercício formação está ameaçado pela quebra na de que é alguém com corpo e psiquis-
da sua função materna,
temos que registrar que linha de continuidade da existência, e isso mo próprios, ou seja, vai percebendo seu
isso também se refere às para Winnicott (1999B) representa uma pos- corpo, seus gestos e começa a interagir de
figuras substitutas que
exercem também essa sibilidade de adoecimento. Para a criança, forma mais ativa4. A provisão ambiental
função cuidadora (o pai e o que é experiência traumática em termos é o cenário para que a maternagem acon-
familiares próximos são
exemplos disso). psíquicos é aquilo que ela não pode com- teça pelo manejo e sustentação da criança
preender, pois ainda não tem maturação (WINNICOTT, 2000C). Um ambiente provedor
4 Por exemplo, seu choro
e seu balbucio e gritinhos física e emocional para tal, ou seja, algo que traz a ideia de interação e de vivacidade,
ganham mais sentido, ele ela experimenta como um gesto invasivo, de troca ativa entre mãe e bebê, algo que
já sabe que são formas de
se comunicar. sem que já tenha adquirido maturação para vai se constituindo, ‘ganhando corpo’ pelos

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
Para compreender o conceito de ambiente facilitador e o seu uso na construção de políticas públicas facilitadoras à plenitude da vida 19

cuidados físicos adequados à sua sobrevi- preciso que a adaptação ambiental seja fa-
vência, pelas manifestações afetivas e pela vorável de modo que a mãe possa responder
manutenção de um entorno razoavelmente às necessidades do bebê como se fosse parte
estável e seguro. dele e, ao mesmo tempo, não abrir mão dos
Essa configuração ambiental modifica- seus próprios referenciais identificatórios.
-se à medida que a criança cresce e amplia, Nesse processo relacional, a mãe também
aos poucos, o campo de compreensão da está em permanente movimento de consti-
realidade que a cerca. Esse ambiente não tuição e enriquecimento dessa identidade
significa que deve haver uma atmosfera de materna, porque ela também está apren-
perfeição a ser mantida a todo o custo, pois dendo com o seu bebê a ser mãe. Mesmo
a vida não é assim. Aos poucos, a mãe ou que já tenha sido mãe, ela passará por um
quem a substitua vai condicionando o aten- processo de descoberta desse novo rebento
dimento das demandas da criança ao que é e o fará a partir de sua adaptação ao jeito da
possível atender, e a criança vai aprenden- criança.
do a esperar e a lidar com as exigências do Já depois do nascimento, o ato de ama-
mundo. mentar6 é o momento em que a mãe está em
Assim, o mundo é apresentado em ‘pe- pleno processo relacional com o lactente,
quenas doses’ (WINNICOTT, 1982A,) conforme a em que todos os sentidos corporais estão
capacidade de maturação do seu organis- a serviço, além da nutrição, da comunica-
mo5. Como esse processo precisa ocorrer ção entre ambos: a mutualidade do olhar,
paulatinamente, o que a criança experi- a textura, temperatura e sabor do leite, o
menta requer certa dose de repetição até toque mútuo da pele, a escuta dos ruídos e
que possa perceber que possui existência balbucios, as batidas do coração materno, o
distinta de sua mãe. Contudo para que essa ritmo que o bebê imprime ao sugar com as
vivência de separação possa ser inscrita devidas pausas para melhor respirar. A mãe
psiquicamente como uma conquista dela “organiza um cenário para que a amamen-
própria, insistimos, a provisão ambiental tação possa ocorrer” (WINNICOTT, 1982B, P. 49), e
deve oferecer essa base estável. É a partir esse gesto pode ser um exemplo de ambien-
dessa noção que podemos pensar em am- te facilitador. A comunicação que se estabe-
biente emocional facilitador. lece entre mãe e filho, nesses momentos é
promotora de subjetivação, sendo por meio
desse relacionamento dual que o bebê “vai
Processo de adaptação configurando o que será percebido, aos
ativa: a perspectiva materna poucos, como meio ambiente” (WINNICOTT,
1982B, P. 50). Essas descobertas são essenciais
Geralmente, ao final da gravidez, a mãe ex- não só para o seu desenvolvimento físico 5 Por exemplo, haverá
perimenta uma sensibilidade especial que como também para a organização do seu momentos de aquisição
parece suspender a sua atenção para outros psiquismo. maturacional que o deixará
apto a manter a cabeça
segmentos de sua vida, sendo o bebê o foco Entretanto, para que a mãe exerça os ereta, a poder se sustentar
do seu investimento afetivo. O nome dessa devidos cuidados, é preciso que também sentado, aprender a
andar, começar a falar e
condição peculiar de devoção é “preocu- esteja amparada por cuidados ambientais a elaborar os fonemas;
pação materna primária” (WINNICOTT, 2000E, que lhe propiciem cumprir a função que ou seja, a aquisição das
habilidades motoras,
P. 399). Trata-se de um estado de profunda dela se espera. Temos que ressaltar que não gestuais, fonéticas,
identificação da mãe com o seu bebê, desen- se trata de um ambiente perfeito e idealiza- intelectuais etc.

volvido gradualmente a partir da gestação do, mas que seja suficientemente facilitador 6Para aprofundamento,
e que perdura por algumas semanas após para que haja um fluxo contínuo de cuida- ver o artigo sobre
amamentação que consta
o parto. Para que isso ocorra a contento, é dos, tanto da mãe com o seu bebê quanto do nas páginas 26-34.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
20 ROSARIO, S. E.; PENELLO, L. M.

entorno para com a mãe. da linguagem, do pré-verbal ao verbal.


Uma imagem que favorece a compreen- Quando o bebê começa a se reconhecer
são do termo ambiente facilitador é o de uma como pessoa, na verdade, já experimen-
bolha inflada que precisa de uma pressão tou um complexo processo de diferencia-
interna em contraposição a outra externa ção no qual ele, que no início sequer tinha
para que a bolha se mantenha intumescida. condições de se reconhecer como um ser,
Winnicott diz: “se a pressão externa adapta- progressivamente vai construindo o seu
-se ativamente à pressão interna, o elemen- modo de lidar com a realidade externa,
to central da situação será a bolha, ou seja, agora de modo compartilhado. Todavia
o eu do bebê” (WINNICOTT, 2000D, P. 264). Quando esse é um processo que não termina, ou
o equilíbrio entre pressão interna e externa seja, nada fica pronto, pois a construção da
não existe, o que predomina é a força am- subjetividade é algo permanente e que nos
biental (externa) que, assim, impõe um acompanha para sempre. Um período im-
padrão dominante. Isso significa que o bebê portante é aquele em que a criança já se re-
precisará se adaptar reativamente ao que o conhece como alguém singular, quando ela
ambiente dita, e se essa situação se torna já pode usar o pronome ‘eu’, ao se referir
um padrão predominante, o bebê não pode a si mesma. Quem convive com crianças
criar a sua própria concepção de mundo e pequenas pode reparar que, nas primeiras
reconhecer a realidade que se apresenta ao manifestações verbais, ela costuma referir-
seu próprio modo, com seus limites e possi- -se a si própria, inicialmente, na terceira
bilidades; será preciso sempre contar com a pessoa. Somente depois de conseguir se
necessária mediação entre o percebido e o perceber como pessoa total e como alguém
que é vivido, para que ele possa conceber o separado de sua mãe é que começa a usar
seu modo pessoal de perceber o mundo e se o pronome ‘eu’. Nesse momento, a criança
expressar segundo a sua singularidade. atinge a condição do “eu sou”. Somente
Nesse processo de desenvolvimento, a depois disso poderá alcançar a condição do
ênfase é no vínculo que se estabelece entre “fazer”. Conforme diz Winnicott, inicial-
mãe e filho, algo essencial para a criação mente é o “eu sou”, ou seja, primeiro vem o
de bebês mais saudáveis, mais felizes e em ser e depois o “fazer” (1999C, P. 41).
melhores condições de interagir e contri- Quando a criança atinge esse estágio de
buir para produção e manutenção de um pessoa total, passa a se interessar pela am-
ambiente sustentável. A experiência de plitude ambiental. Surge o desejo de sair
aquisição de vínculo é de suma importância de uma espécie de redoma protetora re-
e se dá pelos laços estabelecidos e intensi- presentada pelo cercadinho onde costuma
ficados entre o bebê e a mãe, que vai, gra- ser posta para que possa brincar sob o
dativamente, oferecendo a possibilidade de olhar materno. Nessa aventura de saída do
alargamento desse universo perceptivo. cercado é como se as fendas passassem a se
alargar, e quando se percebe, a criança já
está do lado de fora. Entretanto essa saída
Sobre os caminhos do costuma ser oscilante pelo desejo de ousar
desenvolvimento infantil explorar o ambiente e a um só tempo re-
tornar ao colo acolhedor. Para quem cuida
Cada bebê é “uma organização em marcha” de crianças, esse é um movimento bem
(WINNICOTT, 1982A, P. 29), um caminho pautado perceptível e deve ser respeitado, a não ser
pela integração de suas primeiras expe- quando a criança está doente ou cansada,
riências, que vão adquirindo conotação sendo o caso em que o “o cercado é nova-
simbólica, intensificada pela aquisição mente fechado para seu próprio benefício”

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
Para compreender o conceito de ambiente facilitador e o seu uso na construção de políticas públicas facilitadoras à plenitude da vida 21

(WINNICOTT, 1993, P. 49). relações representaria o segundo círculo


A metáfora do cercado sendo expandi- com a inclusão dos familiares e pessoas que
do é interessante porque o autor parte do nesse momento têm maior proximidade da
primeiro elo, primordial, que são os braços mãe e do bebê. Com o decorrer do tempo e
maternos, envolvendo a criança e forne- com a entrada da criança na creche e/ou na
cendo-lhe segurança. Esse gesto se amplia escola, um terceiro círculo se delineia, re-
com a inclusão do pai, dos familiares mais presentado pelo próprio ambiente escolar,
próximos, do próprio ambiente físico do colegas, professores. O quarto círculo
lar, além dos arredores, a partir das pri- seria constituído pelo ambiente da rua da
meiras saídas desse ambiente doméstico e moradia e por todo o entorno que caracteri-
quase sempre protegido, tais como: idas ao za o bairro. Se ampliarmos essa cartografia
médico, banhos de sol, visita ao parquinho territorial — que na verdade trata-se de um
etc. Isso representa algo que se desenvol- processo que tem uma importante dimen-
veu naturalmente a partir do abraço da são afetiva, pois essa expansão depende de
mãe que envolvia o seu bebê até a saída do uma maturação biológica, mas principal-
cercado, estando pronto para vivenciar um mente da confiança que a criança tem na
novo grupo, um novo cercamento, ao menos sua retaguarda (pais) e que a incentiva para
durante algumas horas de cada dia. Depois ir adiante — encontraremos os quinto e
de um tempo e com a familiaridade dessa sexto círculos, representados pelas demais
rotina, a criança está em condições de ir à regiões que circundam o bairro e também
creche ou à escola (WINNICOTT, 1993). pela periferia da cidade. O sétimo círculo é
Essa concepção foi desenvolvida pelo o país onde se vive.
autor e por seus comentadores de forma
mais ampliada dando origem ao que se Cada círculo exerce uma pressão para não
chamou de teoria dos ‘círculos sociais’, des- ser ultrapassado. Se a pressão é muito inten-
crita nos seguintes termos: sa temos o círculo rígido e o indivíduo tende
a ficar em casa, a não sair, a não procurar
[...] a contribuição dos pais para a família amigos. Se o círculo é frouxo, dá-se uma
que eles estão construindo depende muito tendência centrifuga, a nunca estar em casa,
de sua relação geral com o círculo maior em ganhar a rua, à vadiagem. Os círculos repre-
volta deles, seu meio social mais próximo. sentam uma relação dialética entre o risco e
Pode-se pensar em círculos cada vez maio- a segurança. Ultrapassar cada círculo é um
res, cada grupo social dependendo, para o risco, um desafio à segurança. A tendência
que ele é interiormente, do seu relaciona- ao desenvolvimento gera os riscos e a ne-
mento com o grupo social externo. Natural- cessidade de segurança [...] gera prudên-
mente os círculos se sobrepõem. (WINNICOTT cia que, se exagerada, leva ao imobilismo.
APUD MELLO FILHO, 2004, P. 176-177). (MELLO FILHO, 2004, P. 176-177).

Mello se apoia também nas concepções Retomemos, então, as nossas ideias ini-
de Davis e Wallbrige (1982, P. 162) para des- ciais a fim de situarmos o que Winnicott
crever que a ideia dos círculos sociais tem nomeia como ambiente facilitador, uma vez
início desde o momento em que o pai, no que a sua teoria do desenvolvimento emo-
exercício do que chamamos de função cional enfatiza a importância do ambiente
paterna, pode oferecer desde o início a sobre a saúde emocional do bebê. Quando
proteção necessária à díade mãe-bebê, ele diz que existem dois modos básicos pelo
sendo esse gesto considerado como o pri- qual o ambiente se manifesta, nomeados
meiro elo desses círculos. A expansão das como ambiente não suficientemente bom —

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
22 ROSARIO, S. E.; PENELLO, L. M.

que distorce o desenvolvimento do bebê — em nosso corpo e em nossa memória in-


e como o ambiente suficientemente bom consciente. Todavia são experiências que
— que possibilita ao bebê alcançar, a cada poderão ser ‘acionadas’ como recurso de re-
etapa, as satisfações, ansiedades e conflitos petição de como cuidaremos de nossos des-
inatos e pertinentes (WINNICOTT, 2000E, P. 399) cendentes. As mães, em todo esse percurso
inicial, fazem uso das suas “memórias de
podemos deduzir que, na realidade, o autor maternagem” (WINNICOTT, 2000E, P. 401) ao cuida-
se refere a modos de expressão que vêm do rem dos seus bebês. Talvez possamos pensar
ambiente. Winnicott não está tratando aqui que isso possa valer também para os pais.
de atribuir valores universais ao ambiente, o
que incorreria em situar aquilo que ele pensa
a respeito desse cuidado ambiental, na cate- Do conceito de ambiente
goria de bem e mal, como se houvesse ver- emocional facilitador
dades preestabelecidas a esse respeito. No
nosso entendimento, o que ele está dizendo
ao princípio orientador
é que existem bons e maus encontros na de políticas públicas
relação bebê-mãe ou bebê-ambiente. Se a cuidadoras: o ambiente
parcela que é vivida como persecutória não facilitador à vida
for força dominante na relação, temos um
bom encontro, uma composição de forças, Discorrer sobre o ambiente facilitador ao
uma potência que se expressa pelos afetos pleno desenvolvimento das nossas crianças
engendrados por aquilo que se experiência. implica em percebermos a importância da
O caminho de seu desenvolvimento com mãe, inicialmente, e de quem a substitua
saúde e em plenitude refere-se a esse am- nos cuidados com seu bebê, para que, em
biente que é gradativamente apropriado de confiança, vá se desenrolando todo o pro-
modo a conduzi-lo na invenção (porque é cesso acima descrito. Os círculos sociais
mais do que uma descoberta) de sentidos que se ampliam para esse cuidado precisam
para o que reconhecerá doravante como rea- responder a questões tão fundamentais
lidade e que o situará em um posicionamen- quanto: e se (ou quando) a mãe/cuidador
to diante do mundo que permitirá que ele vive conflitos ou impactos ambientais que
venha a fazer uso dessa realidade de modo não permitem que exerça a provisão espe-
compartilhado. Caso o ambiente não fun- rada? Os motivos podem variar, mas o que
cione a contento, ou seja, com o predomínio está em jogo é a saúde ou, muitas vezes, a
de processos que não permitam que ele se vida da criança. Desde as doenças maternas,
defenda a não ser por sintomas patológicos, a ausência da figura paterna em sua concre-
a experiência é de adoecimento. tude ou função, a fragilidade dos vínculos
Para completar a compreensão do am- com a família e amigos, a inexistência de
biente facilitador, especialmente nos pri- redes de suporte alternativas providas pela
meiros anos do desenvolvimento infantil, é sociedade e/ou pelo estado, além de outros
preciso ressaltar que “[...] os estágios iniciais fatores que venham impactar direta ou in-
jamais serão verdadeiramente abandona- diretamente sobre o cuidador, devem ser
dos,” (WINNICOTT, 1990, P. 179). Ao estudarmos motivo de nossa atenção, ao nos disponibi-
um indivíduo de qualquer idade, poderemos lizarmos por uma oferta de atenção integral
encontrar todos os tipos de necessidades à criança.
ambientais, das mais primitivas às mais Quando Winnicott chama nossa atenção
tardias, ou seja, são experiências que farão para o valor incomensurável do “lar
parte de nossa herança psíquica, registradas comum” (1999A, P. 257), único contexto em

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
Para compreender o conceito de ambiente facilitador e o seu uso na construção de políticas públicas facilitadoras à plenitude da vida 23

que se pode criar o fator democrático inato defesa de políticas públicas cuidadoras, que
favorecendo a construção dos caminhos incorporem no seu texto princípios e modos
de cada ser humano rumo à sua indepen- de fazer, com práticas alinhadas a este
dência, ele nos alerta para esse papel da pensamento. Citamos a Política Nacional
construção de ambientes democráticos de de Atenção Integral à Saúde da Criança9,
suporte ao desenvolvimento, que em geral construída por iniciativa conjunta entre a
as famílias, em suas diversas configurações, Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos
podem oferecer, com espaço para criativi- Saudáveis (EBBS) do Instituto Nacional
dade de expressão de cada qual, favorecidos de Saúde da Mulher, da Criança e do
pelos principais cuidadores na produção de Adolescente Fernandes Figueira (IFF)
saúde e vida com qualidade. da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a
Nossa reflexão é de que, se estes cuida- Coordenação-Geral de Saúde da Criança
dores vivenciam, eles mesmos, momentos e Aleitamento Materno (CGSCAM) do
difíceis, gerados, por exemplo, pela falta de Ministério da Saúde, como um bom exemplo
emprego, condições inadequadas de habita- do que aqui se coloca. A Política apresenta
ção, ausência de lazer, não disponibilidade entre seus princípios a consideração ao
de creches ou escolas para suas crianças, Ambiente Facilitador à vida.
escassez de oferta de serviços de saúde e Com essa alusão, queremos destacar a
de assistência social, experimentando toda importância da consideração do ambiente
sorte de violências que a realidade tem emocional facilitador ao pleno desenvol-
nos mostrado, incluindo as domésticas, vimento infantil, criado e defendido por
estamos falando do impacto causado pelos Winnicott (2000E), como tivemos a opor-
Determinantes Sociais da Saúde (BUSS; tunidade de acompanhar nesta leitura, e
PELEGRINI, 2007, P. 77) sobre o bem-estar, a vida, a sua passagem a um princípio orientador
saúde deste(s) cuidador(es), e claro, direta de ações de cuidado, éticas e includentes,
ou indiretamente sobre a criança. trazendo para o cuidado a ser transmitido
Isso fala da importância de construir- às crianças e suas famílias a existência, os
mos e orientarmos nossas políticas públicas saberes, as experiências compartilháveis, e
voltadas para a Atenção Integral à Criança em interações virtuosas de seus cuidadores,
observando com seriedade o lugar aponta- incluindo-os no processo de cuidado. Esta
do por elas aos seus cuidadores. As ofertas uma definição possível do que passamos a
do Bolsa Família7 e do Plano Brasil Sem chamar de Ambiente Facilitador à Vida: por
Miséria com o Programa Brasil Carinhoso8, sua garantia, em sua defesa, por sua intensi-
iniciativas do Governo Federal, podem ser dade criativa e plena. Para todos. 7 Para saber mais detalhes,
consultar: <http://mds.
considerados nessa perspectiva. Entretanto gov.br/assuntos/bolsa-
é preciso ampliar o conceito de cuidado, familia/o-que-e>. Acesso
em: 6 fev. 2016.
conforme Boff (2012), para aquele ‘essencial’ Conclusão
que nos antecede a todos para a existência 8 Para maiores
informações, consultar:
como humanos, único a dar base verdadei- Pretendemos com este artigo trabalhar <http://mds.gov.br/
ramente sustentável à vida com qualidade. mais profundamente o conceito winnicot- assuntos/brasil-sem-
miseria>. Acesso em: 6
E isso deve incluir o cuidado com os cuida- tiano de ambiente emocional facilitador fev. 2016.
dores profissionais, que desconsiderados por acreditar que o sucesso de uma nova 9 Para maiores
em seu registro de pessoa total nos seus co- existência humana dele depende para se re- informações, consultar:
letivos de trabalho, dificilmente consegui- alizar. Ele nos oportuniza o destaque para <http://bvsms.
saude.gov.br/bvs/
rão transmitir em suas ações o acolhimento esses momentos iniciais da vida com a fun- saudelegis/gm/2015/
em sintonia com quem deles necessita. damentação de uma base sólida em termos prt1130_05_08_2015.
html>. Acesso em: 6 fev.
Assim, consideramos a importância da de saúde física e psíquica, e sua relação 2016 .

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
24 ROSARIO, S. E.; PENELLO, L. M.

com o mundo, o entorno, apresentado em Colaboradores


pequenas doses pela mãe ou alguém que
a substitua, de forma amorosa e desejan- Todos os autores foram responsáveis pela
te, expandindo-se por diferentes círculos concepção do artigo, busca bibliográfica e
sociais. A importância de continuar desde descrição das experiências em seus territó-
o ambiente emocional facilitador ao pleno rios. Selma Eschenazi do Rosario redigiu a
desenvolvimento infantil a uma função de- primeira versão, e Liliane Mendes Penello
mandada ao Estado pela oferta possível de contribuiu na versão submetida, aprovando
políticas públicas ‘cuidadoras’, no sentido a versão final.
de ofertar uma atenção integral à saúde
das crianças, pautada em princípios éticos
e humanizadores, fala de uma compreen- Financiamento
são da ampliação dos círculos sociais com
a presença indubitável do Estado provendo Os autores declaram que foram bolsistas
ações pautadas em princípios como o do do Projeto Formulação e Implementação
Ambiente Facilitador à Vida, apresentado da Política Nacional de Atenção Integral a
por Penello e Lugarinho (2013) criado e de- Saúde da Criança (PNAISC) do MS desen-
senvolvido pela Estratégia Brasileirinhas e volvendo ações em pelo menos um dos três
Brasileirinhos Saudáveis e que hoje permeia eixos de ação do projeto: gestão, formação
e enriquece a Política Nacional de Atenção ou pesquisa. O projeto foi financiado pelo
Integral à Saúde da Criança, tomada aqui Fundo Nacional de Saúde via Convênio com
como exemplo. o IFF/Fiocruz. s

Referências

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 15-25, MAR 2016
26 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Amamentação: primeira experiência de


comunicação
Breastfeeding: first experience of communication

Selma Eschenazi do Rosario1, Luciana Bettini Pitombo2, Jane Gonçalves Pessanha Nogueira3

1 Psicóloga e psicanalista.
Mestre em Psicologia
pela Universidade
Federal Fluminense
(UFF) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Consultora
para desenvolvimento
infantil e formação
de grupos e tutora do
projeto Contribuições da RESUMO Este artigo é a versão escrita das ideias trabalhadas na oficina ‘O desenvolvimento
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis emocional do bebê e sua relação com o processo de amamentação’ voltada para um grupo de
para formulação e profissionais da área de saúde. Nela, tomamos como premissa discorrer sobre a importância
implantação de uma
Política Nacional de da experiência de amamentação do ponto de vista do desenvolvimento emocional do
Atenção Integral à Saúde bebê, procurando demonstrar que esse momento vai além dos aspectos ligados à nutrição
da Criança (PNAISC).
selmarosario@hotmail.com e ao desenvolvimento fisiológico do infante. A constituição da subjetividade se funda
primordialmente em uma matriz relacional encarnada na díade mãe-bebê, e a amamentação
2 Psicóloga e psicanalista.
Mestre em Psicologia faz parte desse processo. A amamentação é um elemento essencial na composição do ambiente
pela Universidade favorável ao desenvolvimento saudável de uma criança.
Federal Fluminense
(UFF) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Consultora PALAVRAS-CHAVE Aleitamento materno; Desenvolvimento infantil; Promoção da saúde;
para desenvolvimento
infantil e formação Relação mãe-filho; Apego ao objeto.
de grupos e tutora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e ABSTRACT This article is the written version of the ideas developed in the workshop ‘O
Brasileirinhos Saudáveis desenvolvimento emocional do bebê e sua relação com o processo de amamentação’ focused
para formulação e
implantação de uma on a group of health professionals. In it, we take as a premise to discuss the importance of the
Política Nacional de experience of breastfeeding from the point of view of the emotional development of the baby,
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC). trying to demonstrate that such moment goes beyond the aspects concerning the nutrition and
lupitombo@yahoo.com.br physiological development of the infant. The constitution of subjectivity is based primarily on a
3 Psicóloga e Psicanalista. relational matrix embodied in the mother-infant dyad, and breastfeeding is a part of that process.
Mestranda em Breastfeeding is an essential element in the composition of the facilitating environment to the
perinatologia pela
Universidade Federal healthy development of a child.
do Rio de Janeiro
(UFRJ) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Consultora KEYWORDS Breast feeding; Child development; Health promotion; Mother-Child relation;
para desenvolvimento Object attachment.
infantil e formação
de grupos e tutora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
ebbs.jane@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 26-34, MAR 2016
Amamentação: primeira experiência de comunicação 27

Introdução criança.

Este manuscrito é a versão em texto das refle-


xões desenvolvidas na oficina ‘O desenvolvi- Momentos iniciais
mento emocional do bebê e sua relação como
processo de amamentação’. O evento foi Todos nós sabemos que quando um bebê vem
parte do processo de formação da Estratégia ao mundo, o que ele mais precisa é encontrar
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis um ambiente hospitaleiro. É preciso que essa
(EBBS) do Instituto Nacional de Saúde recepção ocorra sobre uma base segura, que
da Mulher, da Criança e do Adolescente pode ser descrita pelo modo como ele é ampa-
Fernandes Figueira (IFF) da Fundação rado e acolhido no próprio ato do nascimento.
Oswaldo Cruz (Fiocruz) voltado para os Segundo o pediatra e psicanalista D. W.
consultores estaduais da Coordenação-Geral Winnicott, a ideia de sustentação envolve o
de Saúde da Criança e Aleitamento Materno modo como o bebê é segurado, de maneira
do Ministério da Saúde (CGSCAM/MS) nos confiável e acolhedora, por quem o recebe
27 estados brasileiros e no Distrito Federal1. e dele cuida desde os primeiros minutos da
Nessa atividade, abordou-se a importância vida (WINNICOTT, 1996). Essas serão as primeiras
da experiência da amamentação do ponto de marcas, os primeiros registros de uma vida
vista do desenvolvimento emocional do bebê, psíquica que ora se inicia, já que o bebê é to-
procurando demonstrar que o momento da talmente dependente do outro para que o seu
amamentação vai além dos aspectos ligados à desenvolvimento ocorra de modo promissor.
nutrição e ao desenvolvimento fisiológico do Para o bebê, o ato do nascimento é impor-
infante. tante porque nesse momento ocorre uma
Compartilhar essa temática com profissio- mudança expressiva, uma experiência radical
nais ligados à gestão amplia a compreensão de passagem de um estado ambiental para
do que está em jogo quando o que se preten- outro. Até então, ele se desenvolveu e habitou
de é o desenvolvimento de boas práticas no o útero materno, vivia envolto pela placenta,
âmbito da amamentação e do cuidado com banhado pelo líquido amniótico, respiran-
a criança. Criar um ambiente favorável para do e se nutrindo através do cordão umbilical
esse momento implica acolher o bebê e sua que o ligava irremediavelmente à sua mãe. A
mãe, com todas as dificuldades e variações partir do seu nascimento, é necessário que se
surgidas durante o ato de amamentar. A sin- situe espacialmente, de um outro modo que se
gularidade e a imprevisibilidade inerentes a adapte a um ambiente diferente daquele em
qualquer encontro intersubjetivo precisam que estava envolto, precisando não só respirar
ser incluídas e acompanhadas, dialogando por ele mesmo como também se comunicar
com as eventuais prescrições instituídas em pelo choro, para demonstrar o seu incômodo
dado sistema ou serviço de saúde. Contar com e ser atendido em suas necessidades.
conhecimento oriundo do campo dos estudos Existem duas situações inéditas com as
sobre o desenvolvimento emocional infantil quais o recém-nascido tem que lidar logo
instrumentaliza as equipes para um manejo após o nascimento: o início da respiração e a
mais sensível desse processo. A constituição primeira experiência com a ação da gravida-
da subjetividade se funda primordialmente de que ainda não havia entrado em cena na
em uma matriz relacional encarnada na díade vida intrauterina. Dentro do útero materno,
mãe-bebê, e a amamentação faz parte desse o bebê estava habituado a ser contido em
processo. A amamentação é um elemento es- todo o seu redor, e após o nascimento a con- 1Esse evento foi realizado
sencial na composição de um ambiente que figuração ambiental é totalmente modificada. em Brasília em maio de
2013 (PITOMBO; MAIA;
favoreça o desenvolvimento saudável de uma Essa mudança relacionada à gravidade pode ROSARIO, 2014).

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 26-34, MAR 2016
28 ROSARIO, S. E.; PITOMBO, L. B.; NOGUEIRA, J. G. P.

interferir na sensação espacial que tem o bebê. materna primária” (2000B, P. 399) e perdura por
Por isso a importância decisiva do gesto de algum tempo após o nascimento do bebê.
sustentar o bebê, que Winnicott (1996) conside- Nesse estado, ela é capaz de compreender as
ra mais do que um mero gesto. Esse autor o necessidades de seu bebê sem que haja uma
define como uma função relevante ao desen- experiência prévia ou instrução de alguém.
volvimento afetivo. Trata-se da função holding, Essa condição faz com que a mãe esteja atenta
que ele descreve assim: segurar com os braços e sensível. Há uma especial disponibilida-
e envolvê-lo com o calor de seu corpo, por de que a habilita a dar a adequada resposta
todos os lados, de modo a aproximá-lo da si- às demandas que lhe são dirigidas. A mãe
tuação ambiental em que vivia anteriormen- fica em permanente estado de alerta, com
te. Do ponto de vista afetivo, isso significa os sentidos apurados que a fazem perceber
que: se antes o bebê era envolto em um tipo qualquer reação do bebê. Esse é um estado
de experiência em que era “amado [cuidado] passageiro de total devoção. Muitas mulhe-
por todos os lados”, a alteração dessa condi- res, por temerem não retornar à sua condição
ção passa a ser a de que “é amado [cuidado] de anterior, não conseguem experimentar essa
baixo para cima” (WINNICOTT, 1996, P. 53). Por essa intensa identificação com bebê, um processo
razão, o cuidado materno de segurar o bebê que tem como referencial as memórias de sua
fisicamente e acolhe-lo em seus braços é con- própria maternagem, quando ela nasceu (DAVIS;
siderável, e isso deveria valer também para os WALLBRIDGE, 1982). Quando acontece um impasse
profissionais que o recebem no momento do dessa natureza, isso exige especial cuidado e
parto. Vale ressaltar que essa sustentação não atenção dos familiares e profissionais que a
é apenas de caráter físico, tendo também uma acompanham, para que o sofrimento e os pos-
função constitutiva, ou seja contribui para a síveis danos, para ambos, sejam minimizados.
formação da subjetividade. Um acolhimento que se faz necessário para
Passar por uma mudança dessa natureza que a mãe possa exercer a função materna de
requer do bebê uma adaptação que está longe modo favorável ao vínculo em construção.
de ser trivial e de caráter apenas fisiológico. Quando essa recepção primeira se dá de
Há um grau de exigência para que ele proces- modo cuidadoso, o que o bebê experimenta
se essa adaptação, mas sozinho não consegui- é registrado como a continuidade do viver.
ria. Nesse momento, é absoluta a dependência Temos aqui a ideia de uma ‘linha de existência
da provisão ambiental, sendo necessário que da vida’ que se iniciou no espaço intrauterino
alguém se coloque à sua disposição. Ou seja, e que por ocasião do nascimento não sofreu
é o ambiente que precisa se adaptar ao bebê e, nenhuma interrupção brusca. É inevitável
na maioria das vezes, ele coincide com os cui- que alguma descontinuidade exista e que
dados maternos. O ambiente, nos primórdios, o bebê leve algum tempo para recuperar o
é a mãe. sentimento de continuidade, que só pode ser
resgatado desde que as condições de cuidado
favoreçam a esse processo. Isso pode ser feito,
A maternidade e o contexto por exemplo, pelo imediato contato pele a
ambiental pele logo após o parto, quando ele é colocado
sobre o corpo da mãe, próximo ao seio e sendo
A partir do final da gravidez, a gestante envolto pelos seus braços. Esse seria um modo
costuma desenvolver uma qualidade que a de promover a recuperação dessa continuida-
faz envolver-se intensamente com a questão de, levando o bebê a experimentar um estado
da maternidade, estando inteiramente de- de quietude, ficando ali, meio que embalado
dicada a essa experiência. Essa condição é pelo corpo materno para que tenha tempo de
chamada por Winnicott de “preocupação se recuperar e de se preparar para buscar o

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Amamentação: primeira experiência de comunicação 29

alimento (DIAS, 2003). o pronto atendimento às suas necessidades


A importância do contexto ambiental que (cuidados profiláticos). Isso envolve também
envolve a experiência do nascimento de uma o modo de se comunicar com ele através do
criança vai além da atenção e cuidado dos seus olhar, das entonações de voz, dos códigos de
pais e familiares, sendo relevante também que linguagem estabelecidos (‘manhês’2); dos
a equipe de profissionais envolvida nesse ins- seus gestos e do modo como brinca com ele.
tante crucial da vida seja consciente e sensível O que está em jogo é uma comunicação mais
quanto aos cuidados oferecidos, que devem sutil, que faz com que a mãe entre em sintonia
ser providos tanto quanto as competências com o seu bebê, adaptando-se a ele e levando
técnicas. O mundo é apresentado aos poucos em consideração os seus ritmos, grunhidos de
ao bebê pela sua mãe ou por alguém no exer- desconforto, primeiros sorrisos etc.
cício dessa função. Alguém que encarna o Vale reafirmar que o desenvolvimento psí-
ambiente, que pode ser ou não provedor. Se a quico do bebê é um fenômeno complexo que
provisão ambiental ocorre a contento, temos inclui o seu potencial (tendências herdadas) e
aí o que Winnicott chamou de “ambiente faci- mais o que ele recebe e experimenta da pro-
litador” (1979, P. 43). visão ambiental. O modo como ele processa
Este ambiente, que se institui em torno e elabora essa experiência importa porque se
do nascimento de um bebê, foi valorado por trata do uso que ele faz das vivências de trocas
Winnicott como um ambiente potencial- com a mãe, seu ambiente primordial. Desde o
mente facilitador. Para o bebê, no início o início, o aspecto relacional entra em cena, pois
ambiente é subjetivo, ou seja, não é exclusiva- se trata de alguém que ao oferecer suporte
mente externo ou interno, sendo um e outro físico e afetivo ao bebê, estabelece com ele
ao mesmo tempo. O sentido de externalidade uma comunicação a partir do próprio corpo,
ainda está por vir, e “só então o ambiente será especialmente durante a amamentação. Esse
visto como externo e, mesmo assim, não intei- é um tipo de cuidado que possibilita, minima-
ramente e nem sempre” (DIAS, 2003, P. 67). mente, manter o fluxo de continuidade de sua
existência para que ele possa “seguir sendo”,
sentir que existe (WINNICOTT, 1999, P. 41).
A base do relacionamento Nesse processo, o bebê vai alternando ex-
humano periências de atividade e repouso. Quando
acorda e tem fome, está mais excitado. Após
Segundo Winnicott, um recém-nascido nunca a amamentação, se está saciado, costuma
pode ser compreendido isoladamente porque aquietar-se e dormir. Conforme avança gra-
sempre se trata de um bebê e sua mãe. O seu dativamente em seu desenvolvimento, vai
nascimento psíquico é de cunho relacional, acumulando lembranças dessas experiências
sendo o contato com o ambiente algo sempre significativas e expandindo, pouco a pouco, a
da ordem do encontro (ROSARIO, 2007). Como o sua interação com a realidade que o cerca.
bebê em seus primeiros momentos de vida
extrauterina é muito suscetível aos estímulos
externos (condições de tato, temperatura, lu- Amamentação: experiência
minosidade etc.), é desse contato inicial que para o desenvolvimento
ele se ‘nutre’, por isso a necessidade do exer-
cício da função materna para que ele possa se
afetivo do bebê 2 'Manhês' é um termo
usado para descrever a
desenvolver de modo saudável. A construção conversa feita em código
entre uma mãe e seu
desse vínculo envolve a confiança que a mãe Ao abordar o tema da amamentação, bebê. Ela repete os sons
vai transmitindo ao filho pela interação que Winnicott é enfático quanto ao aspecto rela- feitos pelo bebê, como se
estivessem falando em um
estabelece com ele. O que entra em cena é cional lembrando que é uma experiência que dialeto peculiar aos dois.

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30 ROSARIO, S. E.; PITOMBO, L. B.; NOGUEIRA, J. G. P.

se aprimora a partir da primeira mamada, em de vínculo que vai sendo instituído e que
que o bebê vai aprendendo pelo acúmulo de vai abrindo caminho para o acúmulo de ex-
vivências que darão a ele uma memória dessas periências que podem ser bem ou malsuce-
experiências. No que tange o desenvolvimen- didas. A relação de interdependência entre
to emocional, a amamentação é a situação os fatores físicos e emocionais pode inter-
privilegiada em que começam a se estabelecer ferir na alimentação do bebê e também na
os primeiros relacionamentos com a realidade relação entre ambos que está em processo de
externa. O mais importante, aqui, é a qualida- construção.
de do contato humano que tem como matriz a Se as primeiras mamadas ocorrem com in-
comunicação peculiar entre mãe e bebê, que é centivos, respeitando-se os ritmos e tempos
um aprendizado de troca e mutualidade. próprios de cada dupla, a amamentação pode
O ato de amamentar é ao mesmo tempo ser vista como um momento de descoberta,
uma experiência bem simples e complexa, e de criação e, sem dúvida, de fortalecimento
embora possamos fazer considerações gené- de vínculo. A mãe que se adapta às necessida-
ricas a respeito de orientações que facilitam des do bebê pode compreender que às vezes
essa experiência, do ponto de vista afetivo, “é mais importante respeitar a recusa do bebe
temos que considerar: a singularidade de cada de mamar do que forçá-lo, por disciplina ou
caso, os costumes familiares, as crenças e fan- por temor da desnutrição” (DIAS, 2003, P. 182).
tasias, que interferem no modo como essa ex- Todos os sentidos corporais do bebê estão
periência acontece. ativados nesse momento: visão, audição,
Entretanto, a delicadeza desses primei- olfato, gustação e tato. A cada mamada, há
ros encontros nem sempre é compreendida. um mundo de sensações que ele experimenta
Muitos que estão ao redor, apesar das boas gradativamente, com certa constância. É isso
intenções, acabam agindo imperativamente que faz com que ele vá acumulando em sua
a favor de determinado padrão de funciona- memória afetiva o que experimentou. Nesse
mento, insistindo em uma aderência imediata momento, para ele, essa constância é valiosa,
aos ensinamentos protocolares. São pessoas porque são experiências constitutivas de sua
decididas a fazer o bebê mamar no peito subjetividade. Algo que se repete habitual-
a todo o custo e não se dão conta de que é mente e, embora muito parecidas, são sempre
preciso orientar, mas sem forçar. Por exemplo, diferentes, pois cada mamada é única.
“pegam o bebê embrulhado no cueiro, com as Quando dizemos que a amamentação é
mãos presas e empurram o seio materno boca marcada por um ritmo determinado, não se
adentro”, provocando, assim, a reatividade de trata do número de mamadas e do tempo de
ambos que pode levar à inibição, sem dar a intervalo entre elas, mas do modo como cada
chance à dupla mãe-bebê de encontrar o seu bebê imprime um ritmo, marcado pela sua
melhor modo de interagir. Na esfera do desen- frequência respiratória e também pela sua
volvimento emocional, isso significa impedir interação com o ambiente. Uma vivência que
que o bebê já participe ativamente desse pode ocorrer em clima de tranquilidade, de
momento para que seja, ele mesmo, o criador aceleração, de turbulência, de tristeza etc.
do objeto que precisa ser encontrado — o seio Há situações em que a experiência se dá de
(WINNICOTT APUD DIAS, 2003, P. 181). maneira muito complicada, pois temos que
considerar que estão aí envolvidas e ativadas
as marcas trazidas pela mãe de sua própria
A construção do vínculo e a vivência enquanto bebê. Tudo isso compõe
importância do ambiente um manancial de experiências que irão in-
fluenciar a constituição existencial no que
O processo da amamentação é uma questão refere tanto aos aspectos físicos quanto aos

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Amamentação: primeira experiência de comunicação 31

psíquicos. seu próprio humor e suas próprias defesas.


O bebê vem ao colo, a mãe o segura de Winnicott (1971, P. 154-155) diz que o olhar da
modo que ele e ela estejam em uma posição mãe, nesses momentos, reflete o bebê, a fim
de conforto. O bebê acha o mamilo, ele olha de que ele “se reconheça” nesse olhar. Se
para a mãe, coloca sua mãozinha no seio, o bebê não encontra a si mesmo no olhar
sente o cheiro do corpo da mãe, suga e sente materno, isso pode ter consequências que
o calor e o sabor do leite. Escuta os ruídos ao atrapalhem o seu desenvolvimento. Haverá
seu redor e também aqueles que ele produz dificuldade para que o bebê possa construir
com a sua sucção. Pelo fato de estar muito a imagem de si mesmo.
próximo ao corpo materno, escuta também A mãe é o ente primordial das ações de
os ruídos que dele emanam. Corpo que ele saúde (TEMPORÃO; PENELLO, 2010), por isso a im-
ainda não reconhece como totalmente se- portância de ela poder contar com um am-
parado do seu, ou seja, ainda o sente como biente acolhedor que lhe dê um suporte,
sendo a continuidade de seu próprio corpo. físico e emocional, para que possa comparti-
Em dados momentos, ele faz pequenas lhar não apenas as suas alegrias, mas também
pausas para respirar melhor e aproveita para seus medos, inseguranças e dúvidas. Se ela
examinar o rosto materno. Nesses momentos pode contar com esse tipo de provisão, terá
se reconhece no rosto da mãe, que funciona suficiente reserva afetiva para lidar com os
para ele como uma espécie de espelho. Por inesperados dessa relação. Poder ser assis-
isso a importância do bem-estar materno tida pelo seu companheiro e pai do bebê ou
nesse momento. Se a mãe está muito angus- algum familiar, enfim, alguém que cuide e
tiada, ela transmite essa angústia ao filho, lhe ofereça esse suporte, é algo valioso, pois,
mas se ela está experimentando uma relação sentindo-se amparada e acolhida, ela ficará
de mutualidade com seu filho, é capaz de disponível para dedicar-se ao bebê e também
estabelecer com ele uma parceria, mesmo descansar nos intervalos das mamadas, por
que de modo assimétrico. Essa assimetria exemplo, pois alguém em que ela confia
se dá porque o bebê ainda não tem uma ex- estará em seu lugar.
periência pregressa da qual ele possa lançar Durante a amamentação, quando mãe e
mão tal como a mãe, que já foi bebê algum filho “chegam a um acordo na situação de
dia e por isso mesmo traz uma bagagem re- alimentação, estão lançadas as bases de um
gistrada em sua memória afetiva, ainda que relacionamento humano” (WINNICOTT, 1996, P. 55).
inconscientemente. É a partir disso que se estabelece o padrão de
Nem sempre essa experiência tem a ga- capacidade da criança de relacionar-se com
rantia de acerto. Uma mãe muito ansiosa, os objetos e com o mundo. Isso só aconte-
por exemplo, pode até, involuntariamente, cerá posteriormente quando o bebê estiver
parar de produzir o leite se o bebê demonstra em condições de se reconhecer como uma
dificuldades para ‘pegar o peito’ por algum pessoa inteira, pois o relacionamento inter-
motivo (quando sente cólica ou respira mal pessoal sugere que seja entre pessoas que já
por conta de uma gripe, por exemplo), a se percebem como unitárias.
mãe pode fantasiar a respeito dessa recusa, O trabalho dos cuidadores nesse momento
sentindo-se incapaz de lidar com a questão e é de extrema importância, por valorizar a
até mesmo achar que não consegue produzir delicadeza dessa experiência. Não é inter-
um leite de qualidade e em quantidade sufi- ferir naquilo que a mãe sabe fazer melhor
ciente para alimentar o seu filho. do que ninguém, ainda que fragilizada,
Quando a mãe não pode experimentar pois, mesmo necessitando de apoio, é dela a
esse estado de entrega, o que ela reflete é o tarefa de iniciar a relação com o seu bebê. O

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32 ROSARIO, S. E.; PITOMBO, L. B.; NOGUEIRA, J. G. P.

profissional cuidadoso não criará expecta- com a realidade e o desenvolvimento da lin-


tivas imperativas de sucessos e nem temerá guagem ajudam a ação do desmame, sendo
fracassos (DIAS, 2003), ele saberá aguardar, o seio “substituído pela voz, pela palavra e
estando mais em posição de presença reser- pelo olhar” (QUEIROZ, 2013).
vada, no aguardo de solicitação de auxílio. Além disso, em decorrência de um proces-
so de maturação, a criança vai conquistando
uma postura mais ereta, sustenta sozinha a
Da amamentação ao cabeça no tronco, inicia-se a dentição e com
desmame isso há a introdução de outro tipo de alimen-
tação. Essas mudanças costumam coincidir
Quando a amamentação se inicia, já há uma com o início da verbalização, feita ainda por
semente para a experiência do desmame que ‘balbucios e grunhidos’, mas já surgindo os
ocorrerá oportunamente. Do mesmo modo primeiros fonemas. A comunicação que era
que a amamentação favorece a criação de não verbal avança para a aquisição da lingua-
vínculo devido à adaptação inicial da mãe gem, e isso favorece a expansão do contato
às necessidades do bebê, gradativamente com a ambiência externa que vai sendo
um processo de desmame irá acontecendo apreendida pelo bebê. Com essa evolução,
simultaneamente. A mãe é aquela que insti- há uma gradativa conquista do sentido uni-
tui o primeiro relacionamento significativo tário de ser, pois ele começa a perceber que é
para o filho, mas também é a pessoa que irá alguém distinto de sua mãe, embora perma-
possibilitar a expansão do contato e da expe- neça ligado a ela por estreitos laços afetivos.
riência do bebê com o ambiente que o cerca. Existe um percurso pela frente até que
O vínculo com a mãe permanece, mas é ela chegue o momento em que ele poderá se re-
que estimula a entrada de terceiros nesse conhecer como alguém separado de sua mãe.
relacionamento, a começar pelo pai. Mesmo O bebê começa a experimentar um processo
que o pai esteja presente desde o início e já de diferenciação e vai integrando aquilo que
participando dos cuidados, nesse momento vivencia. Segundo Winnicott, essa integra-
a função materna ainda predomina. Aos ção acontece assim:
poucos o cenário começa a mudar, e a pre-
sença do pai e de familiares próximos vai pedaços da técnica do cuidar, de rostos vistos
sendo percebida pela criança que começa a e sons ouvidos e cheiros cheirados são ape-
ampliar o seu campo relacional. nas gradualmente reunidos e transformados
A base para o desmame é uma boa expe- num único ser que será chamado mãe. (2000A,
riência de amamentação (WINNICOTT, 1996), e P. 224).
quando é o próprio bebê que promove o au-
todesmame, esse gesto deve ser aceito como Esse processo faz com que o bebê, a partir
ganho de autonomia. Geralmente, o desejo de dado momento, reconheça-se como um
de desmamar acaba partindo da mãe, que vai sujeito distinto da figura materna, com uma
promovendo o espaçamento das mamadas imagem corporal própria. Isso fica muito
e permitindo apenas a mamada noturna, claro quando a criança já pode se referir,
após um dia inteiro de desmame. Com o seu ao falar de si mesma, pela palavra ‘eu’ e não
olhar apurado, a mãe percebe que a criança mais como ‘ele(a)’. Esse momento costuma
já pode suportar um tempo cada vez maior coincidir com um avanço no processo de
sem a alimentação desse tipo, e então vai es- interação dela com o mundo que a cerca.
timulando o processo de mudança alimentar. A comunicação com os demais seres que a
Pode-se dizer que a ampliação do contato cercam se expande.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 26-34, MAR 2016
Amamentação: primeira experiência de comunicação 33

O tempo adequado ao desmame é sub- que a mãe esteja dedicada a interagir com
jetivo, pois depende muito da relação esta- seu filho, envolvida e oferecendo-lhe as me-
belecida entre a mãe e o bebê, mas também lhores condições para que ele possa armaze-
de fatores externos que podem interferir nar essas vivências em sua memória afetiva.
ocasionando o desmame, às vezes precoce- São experiências que irão influenciar o seu
mente, ou se estendendo em demasia. Por modo de ser ao longo da vida e na interação
exemplo, uma mãe que adoece ou engravida com o outro. Da mesma forma, é importante
e precisa ou resolve suspender a amamenta- que aqueles que se dedicam aos cuidados da
ção. A própria criança também pode adoecer dupla mãe-bebê — pai, familiares e profissio-
e pode recusar a alimentação. Se for possível nais de saúde — estejam atentos aos aspectos
evitar, é importante que esse momento do afetivos presentes na comunicação da mãe
desmame não coincida com alguma inter- com seu bebê, durante a amamentação, para
corrência ou com um afastamento materno que possam oferecer o devido cuidado e aco-
de fato, tal como o retorno da mãe ao traba- lhimento quando necessário.
lho ou a ida da criança para a escola. Geralmente, os protocolos voltados para a
De modo geral, a criança sinaliza que já amamentação enfatizam os aspectos físicos
está apta a lidar com a situação de desmame, e técnicos aí implicados, que são extrema-
e a sensibilidade materna percebe qual é a mente importantes, mas não suficientes.
melhor hora para que isso aconteça. Para Nesse contexto, qual seria a relevância das
Winnicott (1982), um sinalizador de que a reflexões desenvolvidas até aqui para os
criança está pronta para esse desapego é gestores da área de saúde? Ao incluir no
quando começa a brincar de deixar cair processo de formação dos consultores de
os objetos e esperar que retornem. Nesse saúde da criança o tema da amamentação
momento, ela está fazendo uso da sua capaci- e sua importância para os aspectos afetivos
dade de ‘livrar-se das coisas’, ou seja, apren- implicados na constituição da subjetividade,
dendo a elaborar ludicamente o processo de o objetivo foi ampliar a compreensão sobre
afastamento temporário de sua mãe. a riqueza do ato de amamentar, que envolve
Em suma, a linguagem se desenvolve, o encontro inicial do bebê com o mundo.
a criança passa a se interessar por outros Como já foi dito, isso se dá na relação com
alimentos, por outras pessoas, por outros sua mãe, uma relação que não vem pronta e
objetos. Já está, então, em condições de in- que vai sendo construída gradativamente.
teragir com o mundo como alguém que se Esse é o alicerce do relacionamento
reconhece como sujeito interdependente. humano que, ao ser iniciado em ambiente
facilitador, possivelmente conduzirá à for-
mação de um ser humano em condições mais
Sobre a importância do favoráveis para lidar com a vida de modo
tema resoluto, ao mesmo tempo em que valoriza
a convivência com os demais. Estaremos
A amamentação é um acontecimento diante de alguém que recebeu amor, foi
crucial na vida de todos, e a relevância desse cuidado e nutrido não apenas para atender
momento vai muito além do seu caráter bio- às suas necessidades iniciais para sua sobre-
lógico, com todas as implicações nutricionais vivência, mas também para interagir com
determinantes para o bom crescimento da o mundo com autonomia e criatividade.
criança. Tudo o que ocorre nessa experiência Como vimos, a arte de bem amamentar pode
representa ‘material’ para a construção da contribuir significativamente não só para a
personalidade. Por esse motivo, é importante formação de um ser humano mais amoroso

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34 ROSARIO, S. E.; PITOMBO, L. B.; NOGUEIRA, J. G. P.

como também para construção da cidadania. concepção do artigo, pela busca biblio-
gráfica e pela descrição das experiências
em seus territórios. Selma Eschenazi do
Colaboradores Rosario redigiu a primeira versão, e todos os
autores contribuíram na versão submetida,
Todos os autores foram responsáveis pela aprovando a versão final. s

Referências

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 26-34, MAR 2016
ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 35

Crianças brincam! Considerações sobre


o desenvolvimento emocional infantil e a
linguagem lúdica
Children play! Considerations about the child’s emotional
development and playful language

Marisa Schargel Maia1

RESUMO A partir da teoria de Donald Winnicott, traça-se uma descrição sucinta de aspectos
essenciais do desenvolvimento emocional infantil. Confere-se à linguagem lúdica da criança
um papel nuclear para o desenvolvimento emocional saudável.

PALAVRAS-CHAVE Desenvolvimento infantil; Saúde mental; Linguagem infantil.

ABSTRACT From Donald Winnicott’s theory, we draw up a brief description of essential aspects
of the child’s emotional development. It is given to the playful language of the child a central role
for the healthy emotional development.

KEYWORDS Child development; Mental health; Child language.

1 Psicanalista. Doutora
em saúde coletiva pela
Universidade Estadual
do Rio de Janeiro
(Uerj) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Consultora
para desenvolvimento
infantil, formação de
grupos e tutora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
msmaia@centroin.com.br

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 35-42, MAR 2016
36 MAIA, M. S.

Quando se inicia o desenvolvimento emo- os aspectos objetivos, como a satisfação das


cional infantil (DEI)? Difícil precisar. necessidades fisiológicas do bebê, quanto
Talvez nasça no desejo dos pais em ter um subjetivos, como a ambiência afetiva, a
bebê, talvez comece nas brincadeiras de princípio, criada pela mãe, mas que toca seu
criança nas quais se fantasia e se projeta um entorno, sendo experimentada por todos
filho para o futuro. Com certeza, o desejo aqueles envolvidos no convívio de cuidado.
dos pais e como projetam e imaginam um Para caracterizar-se como facilitador, esse
mundo futuro, e possível, para seus filhos é ambiente deve conferir sustentação (pro-
uma semente fundamental para o desenvol- mover holding) e responder à dependência
vimento emocional saudável (DES). Ter o inicial do bebê (WINNICOTT, 1983). A sustenta-
sentimento de que se foi, ou se é, bem rece- ção (holding) se dá pelo amparo, tanto nos
bido no mundo faz toda diferença na forma cuidados físicos quanto nos cuidados emo-
de ser e estar no mundo. Crianças são como cionais conferidos ao bebê pela mãe e seus
esponjas, absorvem tudo ao seu redor. Nesse próximos.
sentido, o ambiente que as rodeia é res- Para esse pensador do DEI, a saúde do
ponsável por uma provisão afetiva que lhes ser humano adulto, da ‘pessoa total’, está
serve de alimento emocional. intimamente vinculada à qualidade dos cui-
Os primeiros anos de vida constituem um dados recebidos na primeira infância, cujas
período de extrema importância no que diz repercussões são significativas para toda a
respeito ao desenvolvimento dos aspectos vida. Esse cuidado, que a princípio diz res-
emocionais, psicomotores e cognitivos do peito à mãe com seu bebê, vai se ampliando
ser humano. Hoje se sabe que inúmeras pa- ao longo da infância, estendendo-se para os
tologias e psicopatologias têm suas raízes na outros próximos, como, por exemplo, para
primeira infância. Esse desenvolvimento, a escola, para o posto de saúde, para a co-
porém, não se dá isoladamente da relação munidade que se reúne em clubes, praças,
de cuidados em que o bebê está inserido. quintais, igrejas etc. É um tipo específico de
Donald Winnicott chama a atenção para o cuidado que se diz da convivência entre as
caráter relacional da estruturação psíquica pessoas. Aqui, não percebemos que estamos
do bebê ao afirmar que este não pode ser sendo cuidados, mas sentimos uma sensa-
entendido ou estudado à parte da díade pri- ção de que aquele ambiente nos instiga ao
mária (mãe/bebê) na qual e a partir da qual convívio, nos afeta provocando a expressão,
ele se desenvolve. O autor entende o DEI possibilitando o sentimento, tão caro, de que
como uma tendência inata do homem, mas a vida vale a pena ser vivida. Encontra-se,
para desenvolver-se e alcançar seu potencial aqui, a semente do ‘poder confiar’ — como
inato, precisará de condições ambientais sou bem acolhido e reconhecido em minhas
favoráveis. necessidades, vinculo-me e confio naqueles
Winnicott define esse processo de aco- que de mim cuidam (MAIA, 2010)1.
lhimento do pequeno recém-chegado como O autor toma como foco do desenvolvi-
‘ambiente facilitador’, este é dinâmico e mento emocional primitivo a díade mãe-
processual, transubjetivo por assim dizer, -bebê, em que, segundo sua perspectiva, a
permeia as relações: da mãe e do pai com mãe seria particularmente qualificada para
1Não aprofundaremos seu bebê; do casal; do casal com o bebê; da assumir a posição de cuidadora do filho. Por
esse aspecto, mas é
importante demarcar família com o casal; da mãe com sua filha; meio da atenção materna primária (WINNICOTT,
que outras nuances de dos avós com seu neto etc., ou seja, envolve 1983), ela seria capaz de colocar-se em sinto-
personalidade, como o
pessimismo ou o otimismo, todos os implicados nessa tarefa ímpar de nia com seu bebê de tal forma a ‘adivinhar’
também são delineadas criação do humano em uma coletividade as necessidades dele, temporariamente a
nesses processos de
maturação. de humanos. Esse ambiente abrange tanto mãe abre mão de ser ela própria, com seus

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Crianças brincam! Considerações sobre o desenvolvimento emocional infantil e a linguagem lúdica 37

interesses e vontades pessoais, passando para se assegurar do mundo. Seus gostares já


a ‘ser’ dois — ou a unidade ‘mãe-bebê’ —, se dirigem para outros cuidadores.
‘emprestando’ a si mesma até que seu filho Nesse período, a criança, antes mesmo de
construa condições psíquicas para suportar completar 1 ano de idade, começa a aceitar
suas pequenas faltas, fazendo a transição os enquadres ambientais (na rotina caseira)
de uma dependência absoluta para uma de- que lhe são propostos para melhor fluir com
pendência relativa (WINNICOTT, 1983). Digamos aqueles que lhe são caros. Mesmo que haja
que nos primeiros momentos, dias, a mãe momentos de chateação e conflitos no dia a
faz a função de ‘cordão umbilical’ para que dia, há uma cooperação entre ela e aqueles
seu filho possa fazer a transição do mundo que dela cuidam para que o desenvolvimen-
aquático para o terrestre. De alguma forma, to emocional rumo ao amadurecimento se
ela sabe o quanto esse momento é difícil dê. O bebê está em franca expansão, e seu
para o bebê. Por exemplo, é nos primeiros mundo interno, assim como sua relação com
dias após o nascimento que ele terá que lidar o mundo externo, crescem em afetos, pos-
com a falta de movimento. Na barriga de sibilidades expressivas e comunicativas. Ao
sua mãe, ele se movimentava todo o tempo, final do primeiro ano, a pequena criança, já
agora precisa lidar com o silêncio e com a ensaia o andar e o falar. Imaginem quanto o
ausência de movimento. Intuitivamente, a corpo e o psiquismo se esforçaram para essa
mãe compreende esse processo e canta para empreitada.
ele, embalando-o sempre que precisar: qual- Nesse processo de expansão e ampliação
quer mãe sabe como os bebês adoram ‘colo dos vínculos, conquista a capacidade de se
em pé’. preocupar — concern —, chegando ao ‘estágio
Em torno dos 3 meses, o dia a dia do bebê de preocupação’. O bebê 'sabe', agora, que
já está mais regrado. Em processo de adap- onerou afetivamente seus pais nesse primei-
tação, a família começa a adquirir hábitos, ro ano de vida. Exigiu muito deles porque
sendo um marco importante para o bebê o precisava de alívio para suas tensões e an-
sentimento que existe uma ‘mãe ambiente’, gústias internas (WINNICOTT, 1983). É como se
uma atmosfera mãe que em muitos mo- soubesse que os amou e os odiou com todas
mentos lhe propicia bem-estar: o ambiente as suas forças, e tudo isso ao mesmo tempo,
que, inicialmente, coincidia com os cuida- uma espécie de ‘ambivalência afetiva’ que
dos maternos vai aos poucos se ampliando só vivemos nas relações em que o vínculo é
(WINNICOTT, 1983). profundo. Mesmo nós, adultos, compreen-
Entre os 6 e 8 meses de idade, o bebê demos que, apesar de vivermos momentos
começa a perceber que é um ser separado conflituosos e de raiva nas relações afetivas,
de sua mãe, mas depende dela para suas também amamos profundamente aqueles
necessidades psíquicas, físicas e afetivas. que, por um motivo ou outro, acabamos de
Nesse período, o bebê pode apresentar uma dizer que odiávamos e, assim sendo, sen-
certa ‘tristeza’, equivalente a uma ‘desilu- timos remorso e ficamos preocupados em
são’ porque percebe que sua mãe não ‘é’ ‘garantir’ o amor daqueles que acabamos de
ele e que ele precisa fazer coisas, coisas do agredir. O humano é assim, complexo, misto
mundo, para alcançar um estágio de matura- de muitos afetos, incluindo o amor e a raiva
ção emocional em que possa crescer e cada (FREUD, 1976C).
vez mais poder compartilhar o mundo dos Nos momentos iniciais de sua vida, o bebê
humanos. No entanto, embora seja um pro- não tinha posse desse saber, mas quando
cesso difícil para o bebê, há um ganho em consegue se perceber como sendo ‘um’ e sua
seu desenvolvimento emocional: ele começa mãe ‘outro’, o eu e o não eu, começa a sentir
a poder contar com um ambiente ampliado preocupação com o bem-estar daqueles que

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 35-42, MAR 2016
38 MAIA, M. S.

dele cuidam. Desde Winnicott, sabemos que na infância terão seus destinos determina-
o estágio do DEI que diz respeito à preo- dos pela psicopatologia.
cupação, ao cuidado com o outro, depende A vida não é assim, ela é rica em possibili-
de etapas anteriores do desenvolvimento. dades, e cada um traz consigo instrumentos
A ascensão a essa configuração subjetiva de resiliência para lidar com suas adversi-
depende de condições anteriores de mater- dades. Resiliência é aquela capacidade que
nagem bem definidas. É a partir do estágio todo ser humano tem para se adaptar e se
da preocupação (WINNICOTT, 1983) que se inau- restaurar das catástrofes e traumas que por-
guram alguns sentimentos caros à civiliza- ventura possam ocorrer no percurso de uma
ção: compaixão, solidariedade, espírito de vida. Sublinha-se, porém, que é fundamen-
colaboração e o embrião para a aquisição da tal a presença de ‘tutores de resiliência’ para
moralidade. cuidar, no sentido de estar com o resiliente,
Esse é um marco civilizatório funda- favorecendo seus processos de recuperação
mental porque, para Winnicott, o ensino (CYRULNIK, 2004, 2006). O profissional de saúde
da moralidade de uma cultura só exerce é um bom exemplo de ‘tutor de resiliência’.
efeito sobre o sujeito se este quando criança Ao profissional de saúde cabe o papel fun-
tiver desenvolvido o sentimento interno de damental de acolher, escutar, ser empático
preocupação. Ou seja, na raiz de qualquer e respeitoso com aquele que o procura, pre-
sentimento moral e ético do adulto existe a cisando do cuidado. Desse modo, de forma
estruturação psíquica primária infantil do invisível, o profissional estará ocupando o
concern (WINNICOTT, 1983). Enfim, o processo lugar de ‘tutor de resiliência’, facilitando e
de vida fundamental para que haja o apren- contribuindo para a recuperação física e psi-
dizado da preocupação ou da atitude de cológica daquele que procura a assistência,
cuidar é que o bebê tenha podido encontrar promovendo saúde emocional.
um ambiente ‘suficientemente bom’, delimi- Retornando ao nosso tema nuclear,
tado, em um primeiro momento, por alguém pode-se notar a complexidade dos processos
que o deseje e que dele possa se ocupar e, humanizantes que ocorrem nesse primeiro
posteriormente, pelo social e suas institui- ano de vida que se prolonga pelo segundo
ções. Um ambiente que lhe tenha possibili- ano, expandindo-se sem cessar ao longo de
tado o sentimento e o prazer ilusório de criar toda a infância. Importante: são matrizes do
o mundo e fruir o afeto de ternura que lhe é desenvolvimento emocional que ocorrem
dedicado. Essa experimentação de mundo na primeira infância, mas que se manterão
possibilitará ao futuro adulto uma vida in- atuantes durante toda a vida.
ternamente integrada, promovendo assim Nossa criança cresce, suas habilidades se
sua fluidez e espontaneidade com o ambien- desenvolvem e seus ambientes se ampliam,
te seja ele familiar, social ou de trabalho. se tudo correu ‘suficientemente bem’ nesses
Um parêntese: deve-se compreender primórdios de seu desenvolvimento emo-
esses processos de maneira não determinis- cional, ela poderá conquistar os marcos do
ta porque adversidades acontecem na vida e desenvolvimento infantil, contando com
não determinam de forma absoluta o futuro uma boa provisão interna de confiança, es-
de ninguém. A síntese que acabo de apre- pontaneidade e criatividade, recursos que a
sentar diz respeito a uma sistematização de acompanharão ao longo de toda a sua expe-
alguns marcos do desenvolvimento emo- riência vital.
cional infantil. É importante sublinhar esse Para finalizar, daremos um destaque de
ponto para não correr o risco de mal-enten- análise à linguagem lúdica infantil. Entende-
didos e achar-se que todos as pessoas que se que o DEI se apoia nas brincadeiras in-
tiverem uma provisão ambiental deficitária fantis para alavancar seus processos de

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 35-42, MAR 2016
Crianças brincam! Considerações sobre o desenvolvimento emocional infantil e a linguagem lúdica 39

maturação. tristes (FERENCZI, 1992B). Quando uma criança


se entristece, é preciso que se curve sobre
ela para compreender seus motivos, reco-
A linguagem lúdica: eixo nhecê-los e acolhê-los, buscando soluções
nuclear dos processos para seu sofrimento. O mundo adulto deve
estar atento à experiência infantil em qual-
de desenvolvimento quer ambiente, seja ele familiar, social ou
emocional infantil institucional.
Sem que lhes peçam ou ensinem, é comum
Crianças brincam! Ninguém duvida dessa que as mães, ou substitutos, utilizem uma
frase. Todos sorriem, todos se lembram. linguagem diferenciada quando se dirigem
Crianças brincam sozinhas ou acompanha- aos bebês e crianças. Com bebês, essa lin-
das; animam objetos e imitam sons; são he- guagem é chamada, no campo da saúde, de
roínas, choram e riem — amam e odeiam em ‘manhês’; posteriormente essa se traduz por
suas brincadeiras. E como estão brincando, uma certa ternura no tom de voz quando
protegidas pelo círculo mágico do jogo, ou se mantém um diálogo com a criança. A
do ambiente lúdico, podem amar e odiar ‘linguagem da ternura’ é própria ao mundo
livremente. infantil, e embora adultos muitas vezes
Por que brincam as crianças? Porque os percam essa dimensão da infância, deveriam
adultos lhes permitem a brincadeira desde sempre ser lembrados disso: a criança tem
sempre? Crianças brincam no exercício direito a uma infância terna, em que haja o
de seus corpos, de sua vitalidade, de suas reconhecimento de seu jeito de lidar com o
emoções, de suas vidas criativas. Como diz mundo, uma forma de ser e estar lúdica por
Donald Winnicott, “o brincar é universal e excelência (FERENCZI, 1992A). A seguir, traremos
faz parte da saúde” (WINNICOTT, 1975, P. 41). três exemplos de marcos lúdicos, próprios a
Johan Huizinga (1980) afirma que o jogo fases diferentes do DEI que são indicativos
é universal porque os animais não espera- importantes de saúde emocional.
ram os homens para se lançarem no mundo
da brincadeira — os animais filhotes também Primeira brincadeira
brincam. Costuma-se ouvir que as crianças
brincam na infância, mas seria mais preciso Desde sempre, as mães brincam com seus
dizer que as crianças têm a infância para bebês. Com 3, 4 meses colocam um paninho
brincar. Ofertemos à criança um pedaço de em seus rostos, cobrindo seus olhos e per-
pau, plástico ou papel e logo teremos um guntam: cadê o bebê? Retirando-os ra-
maravilhoso mundo imaginativo pronto pidamente dizem: ‘achoooo!!’ O bebê se
para colocar-se em cena. Em ‘O pequeno delicia com o reencontro com a mãe e nesse
príncipe’, de Antoine de Saint-Exupéry momento consigo. Aqui, estimulado por
(2015), o menino, em meio ao deserto humano, sua mãe, experimenta pela primeira vez
pedia que lhe desenhassem um carneiro; do a linguagem lúdica, e logo, ainda com 5, 6
desenho rabiscado de uma caixa, surge um meses, assumirá o comando, entrará no jogo
carneiro que, mesmo sem ser visto, pode ser e repetirá essa brincadeira sempre em que
imaginado para ser cuidado e alimentado estiver de posse de um pano ou coisa pa-
com zelo pela criança. recida. Cobrirá os olhos na expectativa do
Deve-se ficar muito preocupado quando reencontro: como que pela primeira vez, ela
se observa uma criança que não brinca. puxará e repetirá a palavra mágica: achooo!!
Esse é um sinal de que algo não está bem! Essa brincadeira segue evoluindo ao longo
Crianças não vieram ao mundo para serem da infância.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 35-42, MAR 2016
40 MAIA, M. S.

Com 1, 2 anos a criança esconde o rosto elaboração no objeto lúdico. Freud diz:
com as mãos e continuará pedindo que a
procurem. Aos 3, 4, anos se esconderá atrás acaso não poderíamos dizer que ao brincar
de uma cortina e novamente pedirá que a toda criança se comporta como um escritor
procurem. Aos 5, 6 anos brincará de esconde- criativo, pois cria um mundo próprio, ou me-
-esconde com seus amigos. Nesse jogo de lhor, reajusta os elementos de seu mundo de
existo e não existo, de me escondo e sou en- uma nova forma que lhe agrade? (1976B, P. 149).
contrado, a criança, a cada vez, reinaugura
sua existência e valor: triste da criança que se Para Freud, a brincadeira do menino com
esconde e não é procurada. O lúdico é desde o carretel denotava seu ingresso na ordem da
sempre uma forma de comunicação entre o cultura, pois elaborava por meio da brinca-
eu e o mundo. deira seu mal-estar interno vivido a partir da
separação da mãe. Nesse momento, a criança
Segunda brincadeira já está a caminho do mundo simbólico.
Encontra-se aqui emergente no jogo o lugar
Uma criança com 18 meses brinca com um e função da linguagem.
carretel amarrado a um barbante: joga o
carretel, que desaparece atrás de um móvel, Terceira brincadeira
puxa o fio e ele reaparece. Nesse movimento,
a criança com apenas um ano e meio repete As brincadeiras de faz de conta acompanham
as palavras ‘fora’, quando lança o carretel, e o desenvolvimento emocional da criança dos
‘aqui’, quando o traz para junto de si, sendo 3 aos 7 anos aproximadamente. As teorias do
que o movimento de trazer o carretel provo- desenvolvimento cognitivo destacam a sua
cava na criança um imenso prazer: desapa- importância como comunicação integrada,
recer e retornar. A interpretação de Freud, ou seja, o faz de conta é uma atividade com-
enquanto observava essa brincadeira de seu plexa e constituinte do sujeito, diferentemen-
neto, foi que se tratava de um processo de te das que caracterizam o cotidiano da vida
elaboração psíquica, no qual a criança con- real, que já aparece nos jogos de esconde-
trolava por meio da brincadeira o desprazer -esconde que ela tem com os adultos quando
vivido pelo afastamento da mãe e prazer aprende que desaparecer no jogo não é algo
de seu retorno após o dia de trabalho. Para real, mas inventado para se brincar com as
Sigmund Freud, as crianças repetem em suas coisas sérias da vida. Para outro pensador,
brincadeiras todas as experiências que lhes Piaget (1975), a brincadeira de faz de conta
foram impactantes na vida real. Tornando- também está intimamente ligada ao mundo
se, por meio da repetição, donas da situação, simbólico. Por intermédio dela, a criança
as crianças dominam as intensidades das representa ações, pessoas ou objetos, experi-
2 Para Vygotsky, “zona de experiências vividas e as remodelam ao seu mentando no território lúdico a vida vivida e
desenvolvimento proximal prazer. Freud sublinha que a natureza desa- observada de seu cotidiano (familiar, escolar
é a distância entre o nível
de desenvolvimento gradável de uma experiência nem sempre a e outros). Faz ainda uma diferenciação entre
real, que se costuma torna inapropriada para a brincadeira (FREUD, essa brincadeira, que envolve o cotidiano das
determinar através da
solução independente de 1976A). crianças, e aquelas que lidam com assuntos
problemas, e o nível de Ao brincar, a criança se desloca de um fictícios, contos de fadas ou personagens de
desenvolvimento potencial,
determinado através da posicionamento passivo na experiência para histórias e desenhos de televisão. Já para
solução de problemas um ativo, delegando, muitas vezes, a um com- Vygotsky (1984), a brincadeira de faz de conta
sob a orientação de um
adulto ou em colaboração panheiro o lugar de passividade na brinca- propicia um incremento da ‘zona de desen-
com companheiros mais deira. Dessa forma, a criança toma posse de volvimento proximal’2, pois no momento que
capazes” (VYGOTSKY,
1998, P. 112). um conflito, expressando-o e buscando sua a criança representa um objeto por outro, ela

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 35-42, MAR 2016
Crianças brincam! Considerações sobre o desenvolvimento emocional infantil e a linguagem lúdica 41

passa a se relacionar com o significado que sentido; pode-se dizer, então, que o mundo
lhe atribui, deixando de interagir com a coisa lúdico é o primeiro movimento da criança
em si para tomar posse do mundo simbóli- em direção ao seu potencial criador. Por mais
co. A atividade lúdica é o eixo do desenvol- que achemos que o jogo não é coisa séria, que
vimento emocional, pois ajuda a criança no é um passatempo, como se fosse algo de uma
laborioso trabalho interno de entender a co- infância distante, compreendemos por meio
munidade de humanos e, simultaneamente, de uma sensação de familiaridade e empatia
nela ingressar: brinca-se com o cotidiano da o quão sério pode se tornar uma simples brin-
vida dos adultos. cadeira de mímica ou um divertido jogo de
faz de conta, sem mencionar os jogos adultos
de azar, competição etc.
Notas finais Desde a infância, compreende-se que,
quando se brinca, a consciência de que se
O lúdico é fator constituinte da vida. Antes trata apenas de um jogo sofre um rebaixa-
mesmo de se constituir um homo sapiens, o mento, e assim podemos viver a experimentar
eu já se reconhece como homo ludens. É no o mundo e seus afetos protegidos pelo ciclo
e a partir do fenômeno lúdico que a criança mágico do lúdico. A partir de tudo que vimos,
se constitui como sujeito. Nos primórdios de pode-se concluir que é no brincar infantil
sua existência, o eu, em um processo criador que reside a saúde da infância. Deixemos a
de interpretação do mundo, criou um terri- criança brincar e brinquemos com ela. Assim,
tório interno para sua realidade psíquica. estaremos colaborando para o seu pleno de-
Interpretar o mundo é ‘inventar’ e lhe dar um senvolvimento emocional. s

Referências

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Fontes, 2004. 1976b. p. 163-174. (Edição standard brasileira das obras
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Martins Fontes, 2006. ______. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: ______.
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FERENCZI, S. Análise de crianças com adultos. In: ______. metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
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______. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992b. HUIZINGA J. Homo ludens: o jogo como elemento da
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FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: ______. MAIA, M. S. Crianças do Porão: descuido, violência
Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros psíquica e cuidado. In: MAIA, M. S. et al. (Org.). Por
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976a. v. 18. p. 13-169. uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas 185-207.
completas de Sigmund Freud, 18).
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança: imitação,
______. Escritores criativos e devaneio. In: ______. Gradiva jogo e sonho, imagem e representação. 2. ed. Rio de

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 35-42, MAR 2016
42 MAIA, M. S.

Janeiro: Zahar, 1975. WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de


maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento
SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. Curitiba: Agir, emocional. Porto Alegre: ArtMed, 1983.
2015.
______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago,
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Livraria Martins Fontes, 1984.
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______. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: ______. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria
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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 35-42, MAR 2016
RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY 43

Pediatra e
Maternidade não é lugar para morrer:
1

epidemiologista. Doutor
em saúde da criança
e do adolescente pela
Universidade Federal
relato de um modo de fazer que fortalece os
de Pernambuco (UFPE)
– Recife (PE), Brasil. coletivos nos espaços de nascimento
Instituto de Medicina
Integral Prof. Fernando
Figueira. Consultor
Motherhood is no place to die: report of a way of doing that
nacional da CGSCAM/
MS e colaborador do
strengthens the collectives in birth spaces
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis Paulo Germano de Frias1, Selma Eschenazi do Rosario2, Carmen Viana Ramos3, Janaina Japiassu
para formulação e Pereira Veras4, Karla Simone Lisboa Maia Damião5, Maria Raimunda Gomes Lima6, Tereza Odete
implantação de uma
Política Nacional de de Vasconcelos Corrêa Martins7, Vilma Costa de Macedo8
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
pfrias@imip.org.br

2 Psicóloga e psicanalista.
Mestre em psicologia
pela Universidade
Federal Fluminense RESUMO O manuscrito relata a experiência vivenciada por consultores de saúde da criança no
(UFF) – Rio de Janeiro apoio à formulação e implementação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da
(RJ), Brasil. Consultora
para desenvolvimento Criança no âmbito de seis estados do Nordeste no período de 2012 a 2015. As vivências foram
infantil e formação catalisadas a partir de um processo formativo com ênfase em um modo de fazer, centrado
de grupos e tutora do
projeto Contribuições da na construção e valorização dos múltiplos saberes envolvidos na produção de saúde, no
Estratégia Brasileirinhas e fortalecimento de vínculos afetivos, constituição de cartografias nos territórios, de sentidos
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e de grupalidade solidária e melhor compreensão sobre ética do cuidado. Relatos ilustrativos
implantação de uma dos territórios foram apresentados como expressão das dificuldades e potencialidades que se
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde descortinam e como o manejo de situações difíceis pode ser propulsor do fortalecimento de
da Criança (PNAISC). coletivos.
selmarosario@hotmail.com

3 Nutricionista e PALAVRAS-CHAVE Apoio matricial; Apoio institucional; Saúde da criança; Cuidado da criança;
sanitarista. Doutora em
saúde da criança e da Serviço de saúde.
mulher pela Fundação
Osvaldo Cruz (Fiocruz)
– Rio de Janeiro (RJ), ABSTRACT The study reports the experience lived by child health consultants in the support to
Brasil. Consultora the formulation and implementation of a National Policy for Comprehensive Child Health Care
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do within six northeastern states in the period from 2012 to 2014. The experiences were catalyzed
projeto Contribuições da from a formative process with emphasis on a way of doing, focused on the construction and
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis valorization of the multiple knowledges involved in the production of health, in the strengthening
para formulação e of affective bonds, cartography constitution in the territories, of senses of sympathetic groupality
implantação de uma
Política Nacional de and better understanding of the ethics of care. Illustrative reports of the territories were presented
Atenção Integral à Saúde as an expression of the difficulties and potentials that are revealed and how the handling of
da Criança (PNAISC) no
estado do Piauí. difficult situations may be the engine of the strengthening of collectives.
nutricarmen2@yahoo.com.br

4 Nutricionista. Especialista KEYWORDS Matrix support; Institutional support; Child health; Child care; Health service.
em gestão de políticas
de alimentação pela
Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 43-56, MAR 2016
44 FRIAS, P. G.; ROSARIO, S. E.; RAMOS, C. V.; VERAS, J. J. P.; DAMIÃO, K. S. L. M.; LIMA, M. R. G.; MARTINS, T. O. V. C.; MACEDO, V. C.

Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e Introdução A elaboração da PNAISC, com foco no
implantação de uma empoderamento dos envolvidos na ação, re-
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde Caminhante, não há caminho, o caminho se quereu uma formação específica que foi de-
da Criança (PNAISC) no faz ao caminhar. senvolvida pela equipe da EBBS, tendo como
estado da Paraíba.
janainajapiassu@yahoo. (MACHADO, A.) base metodológica a articulação de três eixos
com.br conceituais: a premissa de um olhar profissio-
5Odontóloga e especialista Apesar da existência das inúmeras interven- nal que considere o cuidado do ponto de vista
em atenção básica. Mestre ções públicas direcionadas à melhoria da as- ético (AYRES, 2004; MAIA, 2009); o uso de cartogra-
em saúde pública baseada
em evidências pela sistência à criança brasileira, o País ainda não fias dinâmicas valorizando os ‘fixos e fluxos’
Universidade Federal de dispunha, até 2014, de uma Política Nacional de cada território (BARROS; KASTRUP, 2010; ROLNIK,
Pelotas (UFPel) – Pelotas
(RS), Brasil. Consultora de Saúde direcionada a esse público que 2006; MERHY; FRANCO, 2012) e o hábito de trabalhar
estadual da CGSCAM/ explicitasse as diretrizes, princípios e atri- em grupos para a busca de soluções coletivas,
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da buições dos entes federados aprovados pela conforme um modelo que favorece a capaci-
Estratégia Brasileirinhas e Comissão Intergestora Tripartite (CIT) (FRIAS; dade de análise e de intervenção buscando
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e MULLACHERY; GIUGLIANI, 2009). um clima de ‘grupalidade solidária’ (CUNHA;
implantação de uma Considerando a importância dos inves- DANTAS, 2008). Imprescindível nesse processo
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde timentos dessa natureza para a geração de foi o estímulo ao desenvolvimento de ‘tec-
da Criança (PNAISC) no crianças saudáveis ao desenvolvimento da nologias leves’ voltadas para as habilidades
estado do Rio Grande do
Norte. nação, a partir de junho de 2011, iniciou-se relacionais e que favorecem o manejo de si-
kdamiao@gmail.com uma parceria entre a Coordenação-Geral de tuações envolvendo distintos perfis de atores
6 Assistente social. Saúde da Criança e Aleitamento Materno envolvidos com determinada questão, além
Especialista em (CGSCAM) do Ministério da Saúde (MS) e do contexto local (MERHY; FRANCO, 2003).
administração pública em
saúde pela Universidade a Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Para iniciar o processo de formação, os
de Ribeirão Preto (Unaerp) Saudáveis (EBBS)1, com o objetivo de for- consultores de saúde da criança foram prio-
– São Paulo (SP), Brasil.
Especialista em auditoria mular e implementar tal política pública em rizados para a indução de mudanças de prá-
em sistemas de saúde prol do cuidado integral à criança brasileira ticas, especialmente naquelas situações de
pelo Instituto Brasileiro de
Pós-Graduação e Extensão (PENELLO; LUGARINHO, 2013). Como base de susten- estagnação e impasse, na busca de um tra-
(IBPEX) – Curitiba tação para a construção da Política Nacional balho pautado em processos cogestivos que
(PR), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/ de Atenção Integral à Saúde da Criança favorecessem o protagonismo dos sujeitos,
MS e colaboradora do (PNAISC), foi desenvolvida uma experiência nas diversas regiões de saúde do País (ABRAHÃO;
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e para sistematização integrada do trabalho MERHY, 2014). Na sequência, coordenadores da
Brasileirinhos Saudáveis realizado na área de atenção à criança, reu- área técnica de saúde da criança de estados
para formulação e
implantação de uma nindo os coordenadores estaduais, das capi- e capitais foram envolvidos no processo
Política Nacional de tais e do Distrito Federal, em uma articulação formativo.
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no interfederativa que considerasse os contex- O processo de construção da PNAISC con-
estado de Alagoas. tos regionais. Para tanto, constituiu-se uma cluiu a 1ª etapa de desenvolvimento com a
agenciaz@uol.com.br
equipe composta por trabalhadores da área sua apresentação nos Fóruns Interfederativos
7 Nutricionista. de saúde residentes nos estados, para fazer de Coordenadores de Saúde da Criança,
Especialista em saúde
da família e comunidade, a interlocução entre as instâncias federal, Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da
e em epidemiologia e estadual e municipal. Foram selecionados 27 Criança (Conanda), entre outros colegiados,
vigilância à saúde pela
Universidade Estadual do profissionais de diversas especialidades, de- culminando na aprovação da Política na CIT
Ceará (Uece) – Fortaleza nominados consultores estaduais de saúde da em dezembro de 2014.
(CE), Brasil. Especialista
em administração dos criança, para realizar a função de apoiadores No caminho para a implementação da
serviços de saúde pela e articuladores das experiências vividas nos PNAISC, estruturaram-se estratégias vol-
Universidade de Ribeirão
Preto (Unaerp) – São Paulo respectivos territórios, de modo a propor- tadas para a atenção primária, secundária
(SP), Brasil. Consultora cionar a sintonia das ações desenvolvidas na e terciária, pautadas no fortalecimento das
estadual da CGSCAM/MS
e colaboradora do projeto construção dessa Política. redes de atenção à saúde para superação de

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 43-56, MAR 2016
Maternidade não é lugar para morrer: relato de um modo de fazer que fortalece os coletivos nos espaços de nascimento 45

Contribuições da
velhos e novos desafios no campo da saúde de cenários locais adversos. Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
materno e infantil, com destaque para a para formulação e
redução da mortalidade materna, fetal e in- implantação de uma

fantil. As maternidades com maior número de A formação dos consultores Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
mortes maternas e de recém-nascidos do País estaduais para apoiar da Criança (PNAISC) no
estado do Ceará.
foram selecionadas como lócus privilegiado
para melhorar as intervenções direcionadas
as redes de atenção nos terezaodete@yahoo.com.br

às mulheres no pré-parto, parto e puerpério territórios: etapa reflexiva 8 Enfermeira e sanitarista.


Doutora em saúde da
imediato e no nascimento e acompanhamen- sobre o processo de criança e do adolescente
pela Universidade
to de recém-nascidos. trabalho e o modo de fazer Federal de Pernambuco
O trabalho nessas maternidades buscou (UFPE) – Recife (PE),

o desenvolvimento e consolidação de inter-


valorizando a realidade local Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/
venções baseadas nas melhores evidências MS e colaboradora do
projeto Contribuições da
científicas e nas boas práticas obstétricas e Antes do relato da experiência dos consulto- Estratégia Brasileirinhas e
neonatais a partir da implicação dos inte- res de saúde da criança da região Nordeste Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
ressados, na constituição de um sentido de nas maternidades, consideramos imprescin- implantação de uma
grupalidade, no envolvimento de todos nas dível explicitar a sua trilha formativa, os ins- Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
decisões/ações e na indução para criação de trumentos e técnicas utilizadas para melhor da Criança (PNAISC) no
colegiados de cogestão com a participação de compreensão da construção de uma identida- estado de Pernambuco.
vilmacmacedo@hotmail.com
gestores e trabalhadores corresponsáveis pelo de de grupo e de um modo de fazer inclusivo
serviço. Os espaços colegiados das mater- (BARROS; BARROS, 2007) caracterizado pela flexibi-
NOTAS EXPLICATIVAS:
nidades, além dos Comitês de Prevenção do lidade, abertura ao novo, mas com claro dire- 1 A EBBS é um projeto
Óbito Materno-Infantil e Fóruns Perinatais, cionamento focado nos processos de trabalho do Instituto Nacional
em vários âmbitos, ao incluir usuários e so- sem perder de vista o pragmatismo sobre a de Saúde da Mulher, da
Criança e do Adolescente
ciedade civil, foram importantes instâncias necessidade de resultados de curto e longo Fernandes Figueira,
para reflexão sobre a situação dos serviços prazo. da Fundação Oswaldo
Cruz (IFF/Fiocruz),
e proposição de intervenções para melhoria A estrutura formativa desenvolvida para o que tem entre seus
da atenção à mulher e à criança (BRASIL, 2009). conjunto dos consultores levou em conside- objetivos contribuir para
a construção de uma
Tais fatos foram observados no conjunto dos ração o diálogo permanente entre todos os política pública capaz de
estados envolvidos com a ação, ainda que com envolvidos nesse processo, a partir de discus- agregar todas as iniciativas
existentes, tendo como
intensidades de adesão diferenciadas. sões em torno de questões didáticas, de con- base a articulação entre o
O objetivo deste artigo é descrever algumas teúdo e de visão de mundo dos partícipes. As desenvolvimento integral
da criança, considerado
vivências dos consultores de seis estados nor- reflexões dialógicas sobre os brasileirinhos e em seus aspectos
destinos2 na construção de estratégias de in- brasileirinhas como sujeitos de direitos a um fisiológicos e afetivos, com
os determinantes sociais
tervenção, considerando as repercussões do desenvolvimento pleno de acordo com suas de saúde. Trata-se de
seu trabalho de apoio em saúde da criança, potencialidades — a partir da promoção de uma “proposta de caráter
transversal e intersetorial
articulado com outros apoiadores nas mater- ‘um ambiente facilitador à vida’ como princí- visando à redução das
nidades, apontando o sofrimento dos profis- pio orientador de políticas públicas saudáveis desigualdades, promoção
de saúde, cidadania e
sionais diante da morte de mulheres e bebês. (PENELLO, 2013) — constituíram-se em instrumen- democracia desde as
O título do artigo, ‘Maternidade não é lugar tal argumentativo para fazer frente a práticas etapas mais precoces
da vida” (TEMPORÃO;
para morrer: relato de um modo de fazer instituídas no sistema de saúde cuja preocu- PENELLO, 2010, P. 188).
que fortalece os coletivos nos espaços de pação central era promover a construção de Essa iniciativa resultou
na elaboração de uma
nascimento’, é uma expressão do sentimento um ambiente provedor de cuidados, não só pesquisa-intervenção
desses profissionais de saúde dos serviços e para garantir a sobrevivência das crianças piloto realizada de 2010 a
2011 em cinco municípios
dos apoiadores temáticos e matriciais diante como também para propiciar espaços de tra- brasileiros, constituindo-se
da situação vivenciada e a reflexão quanto à balho com maior qualidade (PENELLO ET AL., 2011). uma experiência exitosa
(BRASIL, 2010; MENDES,
potência dos coletivos para o enfrentamento As abordagens didáticas foram diversificadas, 2012).

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incluindo leituras dirigidas de texto, rodas de gestão e os de campo disponíveis na platafor-


conversa e estudos de caso de difícil manejo, ma em que os diálogos virtuais ocorriam: o
sempre articulando os referenciais teóricos ‘fórum’ especifico para cada grupo regional e
com a prática no cotidiano dos serviços e o ‘ponto de encontro’, que envolvia a conver-
territórios, de modo a favorecer a mudança sa com todos. Adicionalmente, foram ana-
efetiva de práticas. lisados os relatos e sínteses das oficinas de
As dimensões relacionadas com o con- formação dos consultores além das sistema-
teúdo e com a didática articuladas a uma tizações realizadas no grupo de consultores
‘imagem objetivo’ (TEIXEIRA; PAIM, 2000) alme- do Nordeste em que os textos teóricos utili-
jada para os brasileirinhos e brasileirinhas, zados na formação foram problematizados a
com uma visão de mundo inclusiva, foram partir das vivências no processo de trabalho
fortalecidas pelo uso de tecnologias relacio- no território. No caso do ‘grupo quatro’, a
nais e da informação. Esta última potencia- participação era intensa e produtiva, sempre
lizada pela plataforma de ensino a distância a partir dos livres relatos de situações para
(UniverSUS) que viabilizou a continuidade melhor compreensão do tema em discussão.
do processo formativo durante os interva- Esses relatos de experiência dizem res-
los entre os encontros presenciais ao longo peito a um período de três anos de trabalho
do ano. O uso desse instrumento se revelou desenvolvido em conjunto e em cooperação
potente devido ao grau de integração obtida mútua não só entre os componentes desse
nos encontros presenciais e sustentou esse grupo, mas também com os demais atores
processo a distância. Associado ao trabalho que compunham o projeto de construção da
virtual, os encontros presenciais realizados PNAISC. A identificação das peculiaridades
durante as Oficinas de Formação e Fórum inerentes aos territórios com as suas carac-
de Coordenadores alimentaram as reflexões terísticas, dificuldades e potencialidades
sobre as situações disparadoras de análises, foram trabalhadas nessa parceria grupal.
sinalizando as fragilidades e fortalezas de É sobre a especificidade dessa trajetória,
cada ferramenta adotada com vistas à im- banhada pelos laços de confiança estabe-
plementação da PNAISC, considerando o lecidos, pelo cuidado dispensado ao outro,
contexto social, político e organizacional de pelas conquistas alcançadas e pelos desafios
cada território. a serem vencidos, que relatamos algumas
No caminhar formativo, a diretriz primor- vivências. Foi a constituição de um sentido
dial foi habilitar os envolvidos para intervir de grupalidade que permitiu a integração
nas múltiplas configurações territoriais e ar- total da equipe, ainda que cada profissional
2 O Grupo 4 é composto
pelos consultores ranjos institucionais (MERHY, 2005) vislumbran- estivesse lotado, fisicamente, em diferentes e
estaduais da saúde da do a inseparabilidade da gestão e da clínica distantes pontos do País.
criança: Carmen Viana
Ramos – Piauí; Janaina com ênfase no cuidado com as crianças, mu- Para ilustrar as vivências dos consultores
Japiassu Pereira Veras lheres, suas famílias e profissionais envolvi- estaduais, utilizou-se exemplificações em
– Paraíba; Karla Simone
Lisboa Maia Damião – dos nas ações. boxes contendo a descrição de ‘casos ilustra-
Rio Grande do Norte; tivos’ sobre situações críticas e/ou comple-
Maria Raimunda Gomes
Lima – Alagoas; Tereza xas vivenciadas em cada estado e o respectivo
Odete de Vasconcelos
Corrêa Martins – Ceará;
O percurso metodológico manejo do caso. Partiu-se de um modo de
Vilma Costa de Macedo
– Pernambuco. Assistidos
para o relato da experiência fazer que procura identificar, na prática viva
dos territórios e serviços, o campo favorável
pelo consultor nacional
Paulo Germano de Frias Para o alcance do objetivo deste manuscrito, para o exercício da pertinência dos referen-
– Pernambuco – e pela foram consultados dados secundários refe- ciais teóricos que compõem o processo de
consultora/tutora da
EBBS Selma Eschenazi do rentes aos documentos iniciais do projeto, formação. Vale lembrar, um modo de fazer
Rosario – Rio de Janeiro. relatórios da pesquisa, relatórios mensais da ancorado na ética do cuidado, na construção

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Maternidade não é lugar para morrer: relato de um modo de fazer que fortalece os coletivos nos espaços de nascimento 47

de cartografias, sobretudo afetivas e na pro- ou infantis ou ainda sua superlotação. Em


moção de grupalidade solidária. Um pro- geral, foram unidades que detinham elevado
cesso que foi todo o tempo partilhado com número de partos, que acolhiam mulheres
o grupo de consultores nacionais, estaduais com gestações de maior risco, que eram
e técnicos da CGSCAM além da equipe da de referência estadual, que dispunham de
EBBS. maior densidade tecnológica e, frequen-
temente, Unidades de Terapia Intensiva
materna e neonatal e que atendem usuários
As maternidades do SUS. Algumas funcionavam como polo
prioritárias receptor de partos de algumas regiões de
estados vizinhos.
Das 32 maternidades elencadas como prio- Espera-se que a leitura retrospectiva e
ritárias, 8 estão localizadas nos estados do crítica das vivências dos consultores estadu-
Nordeste, e todas as unidades prioritárias ais em seus territórios, e em particular nas
vivenciaram situações complexas. O critério maternidades apoiadas, possa contribuir
de seleção definido pelo MS para a escolha com reflexões sobre a importância da forma-
das maternidades que deveriam receber o ção na constituição de grupalidade, no em-
apoio institucional foi baseado no número poderamento dos trabalhadores e gestores
de mortes maternas em um triênio, aspecto protagonistas da melhoria do cuidado ofer-
que gerou sentimentos ambíguos entre os tado às mulheres e bebês, no acolhimento
profissionais e gerentes das unidades. De um ao sentimento de impotência diante das si-
lado a satisfação diante da possibilidade de tuações difíceis enfrentadas cotidianamente
receber uma atenção diferenciada, especial- e a sua influência em múltiplos desfechos
mente aquelas que tiveram uma experiência observados referente à implementação da
positiva com o Programa de Melhoria da PNAISC.
Qualidade nas Maternidades (PQM) institu-
ído entre os anos de 2010 a 2012 e que seria
mantido. Por outro lado, o desconforto diante Relato sobre uma
da exposição pública e do reconhecimen- maternidade de referência
to da situação da mortalidade institucional
como um problema com repercussões sobre
em estado do Nordeste com
a mortalidade materna e infantil do muni- elevado número de óbitos
cípio e do estado. Apesar do desconforto, maternos
houve consenso quanto ao aspecto positivo
dessa exposição, considerando a necessida-
de de dar visibilidade a esse triste quadro na UMA MATERNIDADE QUE SE RENO-
busca de sua reversão. VA E SE SUPERA A CADA DIA
Naqueles estados em que as maternida-
des prioritárias vivenciaram períodos de
suposta elevação do número de óbitos, com A divulgação dos dados de uma das maternida-
ampla divulgação na mídia, o tensionamento des prioritárias como a de maior número de óbi-
nas relações entre gerentes e profissionais tos maternos, entre as maternidades do Brasil em
e destes com as usuárias foi intensificado. 2012, repercutiu negativamente na instituição e
Ao longo do período do trabalho de campo, nas Secretarias Estadual e Municipal de Saúde
em cada estado, pelo menos uma unidade (SMS) da capital. O incômodo inicial favoreceu
foi fortemente questionada em decorrência a parceria entre a SMS e a maternidade priori-
do número absoluto de óbitos maternos e/ tária, induzida pelos apoiadores e consultores,

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promovendo mudanças substanciais na assistên- conformadas paralelamente ao fortaleci-


cia à mulher no pré-natal e no momento do par- mento da Rede Cegonha nos territórios,
to resultando em uma redução da mortalidade ainda que o seu plano de trabalho fosse subs-
materna institucional de 41,4% em 2014. Entre- tancialmente mais amplo envolvendo outras
tanto, o mesmo não ocorreu com a mortalidade redes assistenciais nas diversas regiões de
neonatal institucional que permanece elevada saúde dos estados.
(27/1000nv). Diante do cenário, novas estra- A tessitura de redes como passou a ser
tégias foram pactuadas entre as Secretarias, a compreendida pelos consultores estaduais
maternidade e o MS com vistas a redução das envolveu uma articulação de diversos atores
mortes. Algumas ações merecem destaque como sociais em uma trama relacional de diver-
a atuação do Núcleo Hospitalar de Epidemiolo- sos coletivos envolvendo profissionais de
gia da maternidade, recém-criado, que além de saúde, usuários e organizações (TÜRCK, 2001).
investigar todos os óbitos ocorridos passou a di- A construção de cartografias dinâmicas
vulgar os resultados e discutir estratégias para a com explicitações dos equipamentos sociais
redução dos óbitos em todos os espaços coletivos disponíveis e o seu entrelaçamento com os
possíveis: colegiado gestor das maternidades, múltiplos saberes e fazeres de atores (BARROS;
grupo condutor da Rede Cegonha (RC), Fórum KASTRUP, 2010) com motivações diversas em
Perinatal, treinamentos da atenção básica, entre busca de um objetivo comum, a melhoria da
outros. assistência às crianças, foram essenciais para
o avanço das propostas relacionadas com a
PNAISC.
A construção de grupalidade solidária
As vivências de consultores em cada maternidade prioritária implicou
estaduais no apoio às processos de negociação/renegociação de
acordos, um agir comunicativo baseado no
maternidades prioritárias: respeito às diferenças e no compromisso
a constituição de múltiplos com a articulação e integração dos sujeitos,
arranjos para o adequado além de nivelamento valorativo dos seus
cuidado diante de situações integrantes considerando seus campos e
núcleos de saberes (BARROS, 1997; CAMPOS, 2007).
difíceis e complexas Além disso, a articulação dos serviços com
as áreas técnicas responsáveis pela saúde da
“O nosso olhar vai mudando à medida que ca- mulher e da criança nos âmbitos de gestão
minhamos, conforme o nosso percurso. Vamos municipal e estadual agregou potencialida-
abrindo os olhos, enxergando coisa que não des nas intervenções, entretanto permeado
víamos antes”. de desafios relacionados com a partilha de
Os consultores estaduais de saúde da poderes instituídos técnicos e organizacio-
criança durante a construção do seu modo nais e a constituição/consolidação de redes.
de operar na produção de saúde, nos diver-
sos pontos assistenciais da linha de cuidado
materno-infantil, buscaram contribuir para Relato sobre espaços de
romper com racionalidades gerenciais bu- cogestão do trabalho em
rocratizadas que não consideram usuários,
trabalhadores e gerentes como sujeitos
maternidades
promotores e beneficiários de cuidado. A
constituição e consolidação do trabalho COLEGIADOS SETORIAIS NAS MA-
do consultor em saúde da criança foram TERNIDADES COMO DISPOSITIVO

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Maternidade não é lugar para morrer: relato de um modo de fazer que fortalece os coletivos nos espaços de nascimento 49

CATALIZADOR DE REFLEXÕES SO- integração entre os entes federados e os serviços


BRE O PROCESSO DE TRABALHO tem sido catalisado através do estreitamento de
vínculo entre consultor, gestor e profissionais privi-
legiando o cuidado, acolhimento das necessidades
A existência de colegiados setoriais em algumas e busca um modo de fazer com o outro na gestão e
maternidades é uma prática vivenciada, sobretudo organização dos processos de trabalho. O sentido
após a implantação do PQM. Entretanto, adver- de grupalidade solidária nas equipes das Secreta-
sidades sistêmicas relacionadas à superlotação, rias vem se consolidando no caminhar e na parti-
estruturas precárias, sobrecarga de trabalho e au- lha diante dos êxitos e desafios que se descortinam
sência de coordenações gerou desmobilização, de- cotidianamente.
sarticulação e desmotivação dos coletivos. Diante
de um processo formativo para promover o apoio Sem dúvida, a constituição dessas redes
institucional, pautado em projetos políticos institu- territoriais e de serviços foi fortemente favo-
cionais focando na ética do cuidado se favoreceu o recida e influenciada pelo processo formati-
empoderamento e a autonomia dos sujeitos, prota- vo, associado ao cuidado com os integrantes
gonistas de suas histórias e da produção de saúde das redes internas de consultores de saúde da
na instituição resgatando o encantamento com a criança da CGSCAM. Consultores cuidados e
prática clínica e de gestão. Pelo menos em parte, fortalecidos (CAMPOS, 2007) reverberaram e ema-
o fomento do consultor e apoiador como elemen- naram os mesmos sentimentos nos coletivos
tos implicados com a equipe, com laços técnicos e dos estados, capitais e serviços e empoderaram
afetivos foi decisivo no revigoramento e motivação os participantes criando ciclos de virtuosidade.
de práticas para cogestão do trabalho. A inclusão A aplicação metodológica do apoio no
de vários setores e categorias, a valorização da âmbito das maternidades por intermédio dos
contribuição de cada indivíduo no seu campo e consultores de saúde da criança na busca da
núcleo de saber e a possibilidade dos envolvidos democratização, da constituição de sujeitos
pactuarem as situações analisadoras do contexto críticos e com maior autonomia (CAMPOS; CUNHA;
e se corresponsabilizarem pelos desdobramentos FIGUEIREDO, 2013) foi frequentemente exitosa e por
foram indutores de mudanças de atitudes e prá- vezes tensionada diante de situações comple-
ticas dos envolvidos com a assistência neonatal. xas e extremas, carregada de pressões e deci-
sões verticalizadas.
Reuniões mensais pactuadas no coletivo auto-
gerido, ao tempo em que precisa ser regado, vem
progressivamente tornando-se autônomo nas suas A fertilidade do apoio
construções e se tornando ‘Encontros’ de pessoas temático e institucional
com objetivos comuns e compromissos éticos com
o cuidado com as mulheres que buscam assistên-
cia, e seus bebês, mas também com os seus pares ESTRATÉGIA PARA INDUÇÃO DA
que prestam o serviço e precisam ser cuidados. REORGANIZAÇÃO DO PROCESSO DE
Pouco a pouco, foi notório o envolvimento e mu- TRABALHO E ESTÍMULO A ADESÃO
dança na atuação dos profissionais, mostrando-se AS BOAS PRÁTICAS
mais motivados e produtivos. O colegiado da neo-
natologia se mantém como espaço vivo, ativo, com
reuniões sistemáticas contribuindo na implemen- Uma das estratégias mais profícuas na implemen-
tação de boas práticas, fortalecimentos da Inicia- tação da Política Nacional de Saúde da Criança foi
tiva Hospital Amigo da Criança, Método Canguru, o apoio institucional e temático diante da impli-
Banco de Leite Humano entre tantas outras ações. cação com a ação e possibilidade de induzir refle-
Adicionalmente o favorecimento da articulação e xões quanto aos ganhos individuais e coletivos da

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reorganização do processo de trabalho no âmbito foi efetivamente investido no serviço, mostran-


dos serviços e das Secretarias relacionadas ao tema, do a fragilidade quanto a autonomia financeira.
em particular a de saúde. A desconfiança e insufi- Adicionalmente, o monitoramento de indicadores
ciente receptividade diante do desconhecimento do institucionais com vistas a melhoria da qualidade
papel do apoio permearam as relações no momen- da assistência e o redirecionamento das ações per-
to inicial da chegada dos consultores no território. manecem carecendo de investimentos. No período
Através do fortalecimento de vínculos, demonstra- as experiências acumuladas ajudaram no compar-
ção de trabalho cooperativo e solidário, disposição tilhamento de informações e os serviços aos poucos
para construir junto com as equipes valorizando e estão se matriciando em relação a implantação
resgatando as potencialidades, a autoestima e a das diretrizes da RC. Apesar disto destaca-se que
possibilidade de construção de um projeto de tra- se mantém necessárias estratégias focadas para os
balho coletivo, as resistências iniciais se dissiparam. serviços universitários que apresentam uma estru-
De forma similar a proposição de ofertas ainda não tura rígida de gestão e com insuficiente abertura
vivenciadas nos serviços causaram estranhamen- para aderir ao trabalho articulado com a lógica do
tos a exemplo da constituição de colegiados ges- apoio institucional.
tores nos serviços. Em algumas situações portarias
internas dos serviços foram necessárias para de- Não é demais assinalar que, em alguns ter-
sencadear a experimentação no coletivo, amorti- ritórios e serviços, os consultores estaduais
zando as dificuldades iniciais. Aos poucos a lógica observaram um aparente desvirtuamento e
da cogestão se capilarizou nos discursos dos pro- uso inadequado do termo apoio, ao não favo-
fissionais que se empoderaram do seu papel de co- recer a constituição de espaços colegiados que
gestores do cuidado, mesmo que de forma parcial. promovem a cogestão e corresponsabilização
de sujeitos fortalecidos, autônomos, críticos
A maternidade prioritária tem um papel impor- e protagonistas nas organizações (OLIVEIRA;
tante na indução de processos em outras institui- CAMPOS, 2015). Por vezes, profissionais de saúde
ções do estado, pois é certificada como referência denominados de ‘apoiadores’ assumem equi-
no método canguru e tem tutores em reanimação vocadamente ou deliberadamente, com ou
neonatal. No entanto, o tempo político não acom- sem respaldo institucional, a postura de ‘audi-
panha as necessidades técnicas, e mesmo diante tores acríticos, meramente normativos’ sobre
da impotência, do sofrimento dos trabalhadores e um fazer que lhes tenha sido responsabili-
insuficiente apoio da gestão institucional, os pro- zado. Essa prática dissonante da perspectiva
fissionais buscam a partir dos seus ideais susten- em construção na formação dos consultores
tar os processos e avançar. Diversas capacitações de saúde da criança, por vezes, gerou descon-
foram realizadas na instituição e para outros ser- forto, disputas e desacomodações, sobretudo
viços sobre o método canguru, o aleitamento ma- quando as iniciativas eram legitimadas pelos
terno, a reanimação neonatal, o acolhimento com poderes instituídos nas organizações.
classificação de risco e a implantação das boas Em algumas situações, a ativação de espaços
práticas, entre outras. Apesar disto os avanços na comunicativos e de deliberação conjunta foi
adesão às proposições da RC relacionadas às boas imprescindível para a organização de fluxos
práticas foram distintos na atenção neonatal e assistenciais que rompessem a burocratização
obstétrica, a primeira com maior receptividade às de modelos organizacionais verticalizados que
mudanças de prática. A maternidade prioritária foi priorizavam os encaminhamentos e a desres-
a que mais conseguiu captar recursos (habilitação/ ponsabilização com o sujeito e que fragmen-
ampliação de leitos neonatais, centro de parto nor- tavam o cuidado (CAMPOS; CUNHA; FIGUEIREDO, 2013;
mal, reforma do alojamento conjunto e da casa da CAMPOS, 1999). O apoio institucional ofertado
gestante, bebê e puérpera, equipamento para UTI pelos consultores de saúde da criança em mo-
neonatal), porém apenas um quinto dos recursos mentos difíceis de estrangulamento da rede

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Maternidade não é lugar para morrer: relato de um modo de fazer que fortalece os coletivos nos espaços de nascimento 51

assistencial favoreceu o equilíbrio, mesmo dimento as Mulheres Vítimas de Violência Sexual.


que transitório. Isso foi possível a partir de
uma prática consubstanciada por uma teoria, A maternidade prioritária, conhecida pela perma-
valorizando o processo de trabalho interpro- nente situação de porta aberta e superlotação,
fissional entre serviços, em redes regionais diante da necessidade de reforma estrutural provo-
com envolvimento de gestores, trabalhadores cou uma redução de leitos intensificando a super-
e usuários. lotação e estrangulando o acesso das gestantes a
A implicação dos consultores no processo assistência ao parto na capital. Diante do cenário,
de formulação e implementação da PNAISC equipes, equipamentos, materiais e usuários são
pautada em referenciais de inclusão e partici- transferidos e acomodados na outra maternidade
pação dos interessados, cuidado colaborativo, da universidade federal, sendo pactuado o funcio-
cogestão e corresponsabilização ampliou a namento conjunto por 9 meses. O desafio inicial foi
percepção sobre as habilidades dos trabalha- acomodar num mesmo espaço, dois serviços com
dores e sobre o processo de aprendizagem histórias e processos de trabalho distintos e em
compartilhada. A indução de um agir solidário alguns momentos, contraditórios. A maternidade
e comunicativo promovido pelos consultores prioritária com equipes trabalhando dispositivos e
possibilitou em muitas vezes a melhoria da práticas ainda não implantadas pela maternidade
colaboração entre profissionais para lidar com que a acolhia, gerando muito desconforto. Outro
problemas complexos. Por vezes, situações desafio se relacionou a manutenção dos recursos
de crise institucional contribuem para aflorar de incentivo da Rede Cegonha na sua totalidade
e fortalecer espaços de diálogo deliberativo, para as duas maternidades, mesmo com a redução
que se ampliou na participação de muitos ‘na de leitos, decorrente da necessidade de adequação
gestão’, seja por meio de profissionais de saúde, para funcionar os dois serviços em um único espaço.
representações institucionais ou usuários. O pacto entre as três esferas de governo, mediado
pelos apoiadores e consultor, viabilizou o repasse
integral de recurso pelo MS para as maternidades.
O desafio do trabalho Em contrapartida, o Estado e o município garanti-
solidário diante da crise ram a assistência a gestante e ao recém-nascido.

na assistência ao parto e Os diferentes modos de produção de saúde de cada


nascimento serviço, às condições de atendimento e a convi-
vência induzida, produziu conflitos, desencontros
e sofrimento para as duas equipes. As dificuldades
A JUNÇÃO DE DUAS MATERNIDA- foram paulatinamente minimizadas como o apoio
DES: CRIANDO FIOS E SUPERANDO e acolhimento promovidos pelos consultores e
DESAFIOS apoiadores, pelo acompanhamento do Grupo Con-
dutor da Rede Cegonha, do Ministério Público e do
Colegiado de Maternidades da capital. O uso de
Duas maternidades vinculadas a diferentes univer- tecnologia relacional com as Rodas de Conversa se-
sidades são referência para a gestação de alto risco manal entre os gestores e coordenadores das duas
no Estado. Enquanto a 1ª situa-se em hospital geral, maternidades, o compartilhamento de saberes se
a 2a é exclusivamente maternidade, referência para por um lado produziu confrontos e correlações de
56% dos municípios do Estado, selecionada como forças, por outro, a convivência e os vínculos criados
prioritária devido à elevada mortalidade materna e contribuíram para que mesmo num ambiente ad-
neonatal. Esta última é a referência estadual para o verso, a assistência fosse garantida. O reflexo mais
Programa Nacional de Triagem Neonatal, os Ban- concreto do fortalecimento desses novos vínculos
cos de Leite Humano, o Método Canguru e o aten- foi construção compartilhada do Plano Único de

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Ação para implementação das Práticas Neonatais trabalho que padeciam de certezas cristaliza-
nas duas maternidades; resultante do estágio no das e inquestionáveis. A ênfase dos consultores
Hospital Sofia Feldman promovido pelo Ministério estaduais em cuidar dos cuidadores, buscando
da Saúde. Ao retornar para seu espaço de origem a valorização de cada um na sua singularida-
no mês 01/2015, a maternidade prioritária leva o de e potencialidade, por meio de uma escuta
aprendizado com a formalidade dos processos ins- atenta e qualificada (CAMPOS, 2007), algumas
tituídos da maternidade federal e deixa para ela, vezes foi decisiva no reencontro do trabalha-
que os laços e afetos produzidos no cuidado supera dor com a redescoberta do desejo de ofertar
a adversidade do leito improvisado no corredor. cuidado qualificado no fazer cotidiano.
Parece que o processo formativo dos con-
Os arranjos e formatos do apoio ofertado sultores estaduais, aliado à gestão cotidiana
pelos consultores de saúde da criança nos do trabalho e à radicalidade democrática da
vários territórios e serviços tiveram diferentes construção, estimulou um elevado nível de
conformações como estratégia para se adaptar implicação na formulação e implementação da
aos contextos locais, no entanto com a preocu- PNAISC e possibilitou o reencantamento do
pação de não perder a essência da proposição. ato de ‘produzir saúde’ apesar dos permanen-
A amplitude do trabalho em cada maternida- tes desafios. Contraditoriamente, o percurso
de, os conteúdos priorizados, a integralidade foi permeado de frustrações diante de obstá-
da oferta e a intensidade no desenvolvimento culos aparentemente intransponíveis mesmo
das intervenções relacionadas com os eixos que momentâneos. Para essas, situações a
principais da PNAISC foram negociadas consi- valorização de um aprendizado na busca de
derando as necessidades do serviço e o tempo caminhos alternativos foi uma das estratégias
disponível para as múltiplas atividades. que culminaram em exemplos vivos de pro-
A constituição dos colegiados setoriais, tagonismo e autonomia, pela possibilidade
sempre que possível com a presença do con- de análise crítica por parte dos consultores e
sultor estadual, mostrou-se uma boa estratégia demais envolvidos nas ações.
em alguns serviços. Esses espaços institucio- Não faltaram exemplos de notícias de grande
nalizados em muitas maternidades ampliaram repercussão negativa nacional sobre mortes de
a comunicação dialógica e a corresponsabi- mulheres e crianças em maternidades prioritá-
lização pelo cuidado compartilhado (CAMPOS, rias que mobilizaram coletivos constituídos na
2000). O estabelecimento prévio de um con- busca dos melhores caminhos para enfrentar
trato pactuado no coletivo quanto à forma de as adversidades. Em algumas situações, a mo-
operar, flexível o suficiente para se ajustar bilização de trabalhadores, usuários e gestores
às necessidades percebidas no grupo, foi um fez a diferença na publicização de uma defesa
traço comum das experiências exitosas. De incondicional de princípios éticos e compro-
forma igual, os que investiram na administra- misso com a vida e contra a manipulação de
ção da falta de tempo na agenda, traço comum, dados que gerem desinformação.
e na gestão de conflitos que repercutiam nas
práticas dos serviços, tomando-as como anali-
sadores das situações e suas repercussões em O desafio diante da
desfechos negativos, possibilitaram a propo- divulgação de dados sobre a
sição de soluções que emergiram do próprio
grupo (CAMPOS, 2011).
situação institucional
Os colegiados setoriais exitosos, ao promo-
verem processos de reflexão sobre as práticas, MATERNIDADE DE ALTO RISCO E
possibilitaram a ressignificação dos aconte- OS SEUS RESULTADOS NA MÍDIA
cimentos e a reconstrução de processos de NACIONAL

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 43-56, MAR 2016
Maternidade não é lugar para morrer: relato de um modo de fazer que fortalece os coletivos nos espaços de nascimento 53

Em diversas maternidades prioritárias, recorrente- equipamentos para o banco de leite, implantação


mente, são divulgadas na mídia nacional ou local, de acolhimento com classificação de risco e apoio
denúncias sobre o excesso de óbitos maternos e da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais foram
neonatais. Estas maternidades são selecionadas acelerados e ou viabilizados.
por serem serviços de referência para o alto risco
e onde se concentram o maior número de óbitos Nesse sentido, os consultores de saúde da
maternos do País, que em geral, dispõem de es- criança associados aos apoiadores temáti-
trutura e tecnologias densas, frequentemente com cos e de serviços investiram fortemente em
UTI. Informações expostas na mídia, sem o devido Fóruns Perinatais, espaço plural em que se
aprofundamento das questões, por vezes geram encontram regularmente: gestores estaduais e
repercussões negativas, com a culpabilização dos municipais, profissionais e gerentes de vários
serviços, acirramento de conflitos usuário/traba- pontos da rede assistencial materno-infantil,
lhador/gestor e sofrimento coletivo diante da crise. usuários e entidades de classe e de defesa dos
Em 2014, de forma igual, se repetiu a situação sendo direitos. O Fórum, ao incluir e problemati-
denunciada uma suposta elevação da mortalidade zar sobre o perfil epidemiológico e assisten-
neonatal institucional, com depreciação pública cial das regiões de saúde, abre espaço para o
explícita do serviço. A repercussão da matéria cau- diálogo franco com a sociedade. Por vezes, o
sou incômodo, frustação e sofrimento de profissio- nível de protagonismo de movimentos sociais
nais que se sentem impotentes diante das mortes organizados, como o de mulheres ou ainda o
destas crianças. Por outro lado provocou a sua mo- Ministério Público, tem possibilitado a expli-
bilização, das coordenações da maternidade, ges- citação de situações extremas e fundamenta-
tão das Secretarias Municipal e Estadual de Saúde, do proposições de intervenções com vistas a
ministério público e apoiadores tomando a morta- sua superação.
lidade neonatal da maternidade como analisador
da situação no contexto da Rede Cegonha (RC).
A experiência em um
A análise da cadeia de eventos envolvida na de- Fórum Perinatal e a
terminação da mortalidade neonatal na institui-
ção, em diversos espaços coletivos, possibilitou
participação do movimento
identificar estrangulamentos relacionados aos social
diversos níveis de atenção e constituir grupos de
trabalho com vistas ao enfrentamento da situação
partilhando responsabilidades mais solidariamen- ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO COLE-
te. Igualmente importante foi o reconhecimento TIVA PARA GESTÃO DA ATENÇÃO
quanto à importância do serviço para região do PERINATAL
estado e a mobilização popular daí decorrente, ca-
pitaneada pelos servidores, e como demonstração
do apoio promoveu um “grande abraço” coletivo à Os Fóruns Perinatais foram implementados em di-
maternidade. Desdobramentos se seguiram, entre versas instâncias estaduais, regionais, municipais e
eles o município sede da região reinstitui o comitê distritais caracterizado por diferentes conformações
de mortalidade materna e infantil, inicia a orga- ajustadas ao longo dos três anos da experiência. In-
nização dos núcleos de epidemiologia hospitalar dependente do arranjo institucional se constituiu em
e se, amplia a participação nos Fórum Perinatal um coletivo plural, interinstitucional, onde se firma-
Regional etc. Adicionalmente intervenções como ram acordos éticos e políticos entre os entes fede-
a Casa da Gestante, Bebê e Puérpera, habilitação rados, serviços e profissionais de saúde, conselhos,
de leitos de cuidados especiais neonatal, inaugura- ministério público e sociedade civil, para promoção
ção da UTI materna, ampliação da UTI neonatal, da saúde e qualidade de vida da mulher e criança.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 43-56, MAR 2016
54 FRIAS, P. G.; ROSARIO, S. E.; RAMOS, C. V.; VERAS, J. J. P.; DAMIÃO, K. S. L. M.; LIMA, M. R. G.; MARTINS, T. O. V. C.; MACEDO, V. C.

Neste espaço permeado de tensões e conflitos, ex- vínculos afetivos, fomentadores de troca de ex-
pressão de uma rede de atenção à saúde socialmen- periências, aprendizado mútuo, solidariedade,
te construída, emergiu informações, iniciativas entre outros atributos. Os relatos apresentados
e pactos sinalizadores de que é possível garantir no artigo são elucidativos das transformações
uma melhor atenção às mulheres e às crianças. sofridas pelos profissionais que, por diver-
sas vezes, reconheceram que mudaram o seu
O encontro entre sujeitos interessados na atenção modo de enxergar seu trabalho e também sua
à mulher e à criança com a seleção de situações vida pessoal. Aprenderam, uns com os outros, a
simbólicas sobre o cuidado oportunizou a análise desnaturalizar o seu olhar, antes possivelmente
e tomada de decisão sobre temas relevantes. Em enevoados pelas dificuldades encontradas para
uma sequência profícua de relatos de desrespeito lidar com situações muito difíceis e cronifica-
aos direitos das mulheres e crianças, sobretudo em das no ambiente de trabalho. Essas situações
maternidades e as discordâncias no coletivo, quanto se resolveram a partir disso? Claro que não,
a sua existência rotineira e/ou intensidade com que mas o incômodo ficou mais visível, e a vontade
acontece, o movimento de mulheres da cidade deci- de promover mudanças passou a se configurar
diu realizar avaliação das maternidades. Para tanto como desafios a serem vencidos. Entenderam
constituíram grupos de trabalho independente para o permanente processo de construção do cole-
elaborar roteiro para coleta de dados utilizando ob- tivo. Deixaram de ver, por exemplo, a questão
servações e diálogo com as parturientes e puérpe- da mortalidade materna, neonatal e infantil
ras. Todas as maternidades da cidade foram visita- apenas como números, pois se trata de situa-
das e geraram relatórios apresentados e discutidos ções trágicas que afetam diretamente o cotidia-
no Fórum. As gestões dos entes responsáveis pelos no dos familiares envolvidos e indiretamente
serviços e seus respectivos gerentes e profissionais os profissionais responsáveis por esses servi-
foram induzidos a, mais que responder, discutir prá- ços. Passaram a refletir sobre o significado e o
ticas e instituir planos de ação com vistas a oferecer impacto da situação. Com a existência de equi-
um cuidado adequado e respeito à autonomia das pamentos e recursos tudo se resolve? Não é isso
mulheres. O Fórum, como uma arena política e de- que o cotidiano tem demonstrado. Muitos pro-
mocrática, aberto a pluralidade, espaço onde as dis- fissionais estão sofrendo para ir trabalhar em
putas de saberes e poderes são capitalizados, tem espaços que são de nascimento, vida e alegria,
resultado em desdobramentos promissores com o onde a morte deveria ser a exceção; por vezes
sentido da constituição de planos de trabalho com acabam preponderando a dor e o sofrimento,
um forte viés solidário, mesmo que permeado de não apenas para os familiares diante de uma
desconforto, impasses e disputas. suposta incapacidade de ruptura com o insti-
tuído. Dessa reflexão feita em grupo presencial
surgiu a nossa inspiração para o foco deste relato
e que dá título a este trabalho. O estranhamento
Conclusão que impacta a todos é que: maternidade não é
um lugar para morrer, é um lugar para nascer,
Essa experiência envolveu profissionais oriun- para viver!
dos de todos os estados brasileiros. Em comum,
o seu interesse com a causa da atenção integral
à saúde da criança em seus respectivos territó- Colaboradores
rios/serviços de atuação. A maioria dos profis-
sionais não se conhecia, com poucas exceções. Todos os autores foram responsáveis pela
O primeiro efeito benéfico da realização dessa concepção do artigo, busca bibliográfica e des-
atividade foi a constituição de uma rede forta- crição das experiências em seus territórios.
lecida progressivamente por meio da criação de Selma Eschenazi do Rosario sistematizou

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 43-56, MAR 2016
Maternidade não é lugar para morrer: relato de um modo de fazer que fortalece os coletivos nos espaços de nascimento 55

as produções de cada autor. Paulo Germano pelo apoio durante o desenvolvimento dos
de Frias redigiu a primeira versão, e todos trabalhos e possibilidade de corresponsabi-
os autores contribuíram na versão subme- lização nas ações do Projeto de Formulação
tida, aprovando a versão final. O conteúdo e Implementação da Política Nacional de
das figuras foi produzido por Vilma Costa Atenção Integral à Saúde da Criança.
de Macedo, Carmen Viana Ramos, Janaina
Japiassu Pereira Veras, Karla Simone Lisboa
Maia Damião, Maria Raimunda Gomes Lima e Financiamentos
Tereza Odete de Vasconcelos Corrêa Martins.
Os autores declaram que foram bolsistas do
Projeto Formulação e Implementação da
Agradecimentos Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC/MS), desenvolvendo
Ao Ministério da Saúde do Brasil, às ações em pelo menos um dos três eixos de
Secretarias de Saúde dos estados e capitais do ação do Projeto, gestão, formação ou pesqui-
Nordeste, à Fiocruz e aos serviços de saúde sa. s

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 43-56, MAR 2016
56 FRIAS, P. G.; ROSARIO, S. E.; RAMOS, C. V.; VERAS, J. J. P.; DAMIÃO, K. S. L. M.; LIMA, M. R. G.; MARTINS, T. O. V. C.; MACEDO, V. C.

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 43-56, MAR 2016
RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY 57

O desafio da mudança do modelo assistencial


ao parto e nascimento nas Maternidades
Prioritárias do estado do Rio de Janeiro
The challenge of changing the care model of labor and birth in the
Priority Maternity Hospitals in the state of Rio de Janeiro

Rosane Siqueira Vasconcellos Pereira1, Amanda Almeida Mudjalieb2

RESUMO Relato de experiência do Grupo de Trabalho das Maternidades Prioritárias (GTMP)


do Rio de Janeiro, no contexto de implementação da Rede Cegonha, coordenado pela
Secretaria Estadual de Saúde. Em 2013, foram identificadas 32 Maternidades Prioritárias no
Brasil para redução de óbitos maternos, sendo 6 destacadas no estado para acompanhamento.
Formou-se o GTMP como apoio às equipes na qualificação das práticas de atenção ao parto
e nascimento e na redução da mortalidade materna/neonatal. Nesse GT, que funcionava
com reuniões mensais e visitas às Maternidades, gestores e profissionais experimentaram
o trabalho em equipe em cogestão. As rodas de conversa funcionaram como dispositivos de
1Médica. Mestre em reflexão para mudança do processo de trabalho, e a adesão dos atores foi fundamental para
saúde coletiva pela concretizar as ações.
Universidade Federal
Fluminense (UFF) – Niterói
(RJ), Brasil. Consultora PALAVRAS-CHAVE Parto; Mortalidade materna; Mortalidade infantil.
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da ABSTRACT Experience report of the Working Group of Priority Maternity (WGPM) of Rio
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis de Janeiro, in the context of implementation of the Stork Network, coordinated by the Health
para formulação e State Department. In 2013, 32 Priority Maternity Hospitals in Brazil were identified to reduce
implantação de uma
Política Nacional de maternal deaths, being six highlighted in the statefor monitoring. The WGPM was formed as
Atenção Integral à Saúde a support to the teams in the qualification of labor and birth care practices and in reducing
da Criança (PNAISC) no
estado do Rio de Janeiro. maternal and neonatal mortality. In that WG, which happened with monthly meetings and
rosanesvp@uol.com.br visits to the Maternities, managers and professionals experienced teamwork in co-management.
2 Psicóloga. Mestre em The conversation circles functioned as reflection devices to change the labor process, and the
saúde pública pela Escola accession of actors was fundamental forthe achievement of the actions.
Nacional de Saúde Pública
Sérgio Arouca (Ensp) da
Fundação Oswaldo Cruz KEYWORDS Parturition; Maternal mortality; Infant mortality.
(Fiocruz) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Assessora da
Área Técnica de Saúde
da Mulher, Criança e
Adolescente da Secretaria
de Estado de Saúde – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
amandamudja@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 57-63, MAR 2016
58 PEREIRA, R. S. V.; MUDJALIEB, A. A.

Introdução nascimento e, em contrapartida, oferta inves-


timentos para incorporação de melhorias na
A redução da mortalidade materna continua ambiência, reformas e ampliações, aquisição
sendo um grande desafio para o Brasil, no- de equipamentos e ampliação de custeio.
tadamente para o Sistema Único de Saúde Em 2013, foram identificadas 32
(SUS). Em 2013, a taxa de brasileiras que mor- Maternidades no Brasil com maior número
reram na gestação, parto ou em decorrência de de óbitos maternos nos últimos 3 anos, sendo
suas complicações foi equivalente a 69 a cada consideradas Maternidades Prioritárias da
100 mil nascimentos. Isso representa quase Rede Cegonha para o desenvolvimento de
o dobro da meta assumida nos Objetivos do ações de qualificação com o objetivo de im-
Milênio (PORTAL ODM, 2013). Para atingir a meta pactar na redução da mortalidade materna
prevista nos Objetivos de Desenvolvimento do em nosso País. Fazem parte da estratégia de
Milênio (ODM), o Brasil precisa reduzir para intervenção a construção de Planos de Ação,
número igual ou inferior a 35 óbitos maternos o registro de dados no FormSUS e a presença
por cada grupo de 100 mil nascidos vivos até de um apoiador de serviço nas Maternidades.
2015 (BRASIL, 2011A). As ações de qualificação da No Rio de Janeiro, foram identificadas seis
assistência materno-infantil têm por objetivo Maternidades Prioritárias, e o objetivo desse
atender a essas metas e melhorar a assistência trabalho é discutir os avanços nos processos
às gestantes, mães, bebês e famílias. de trabalho dessas Maternidades no período
Segundo dados do Censo 2010, a mortali- de maio de 2013 a dezembro de 2014, por
dade infantil no Brasil foi reduzida pratica- meiode ações conjuntas desenvolvidas para o
mente pela metade (47%) na última década, enfrentamento dessa questão, com destaque
passando de 29,7 para cada mil crianças nas- para o ‘como fazer’, enfatizando no grupo das
cidas vivas para 15,6 em 2010. A Meta 4 dos Maternidades Prioritárias do Rio de Janeiro
Objetivos do Milênio das Nações Unidas, de os ‘modos de fazer saúde’, em que gestão e
reduzir a mortalidade infantil em dois terços atenção caminham juntas.
até 2015, já foi alcançada, porém o componen- Trata-se de um relato de experiência
te neonatal da mortalidade infantil decresceu da organização do Grupo de Trabalho das
pouco e continua um desafio a ser vencido Maternidades Prioritárias (GTMP) do estado
(VICTORA, 2011). do Rio de Janeiro, que teve início em maio
Considerando que no Brasil os indicadores de 2013, com realização de reuniões mensais
de mortalidade materna e infantil, especial- e rodas de conversa com os gestores e traba-
mente o componente neonatal, ainda são ele- lhadores das seis Maternidades participantes
vados, o Ministério da Saúde (MS) implantou desse projeto.
em 2011 a estratégia da Rede Cegonha (BRASIL, Esse Grupo de Trabalho (GT) é coorde-
2011A). A Portaria GM/MS 1.459/2011 institui a nado pela Área Técnica de Saúde da Mulher,
Rede Cegonha no âmbito do SUS, e a Portaria Criança, Adolescente e Aleitamento Materno
GM/MS 650/2011 dispõe sobre a constru- da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de
ção de Planos de Ação Regionais (BRASIL, 2011A; Janeiro (SES-RJ), que também coordena o
BRASIL, 2011B), para a qualificação da assistência Grupo Condutor Estadual da Rede Cegonha.
materno-infantil em cada região de saúde, A SES-RJ vem atuando na implementação da
sobre o repasse dos recursos, o monitoramen- Rede Cegonha no estado desde 2011, quando
to e a avaliação da implementação da Rede aderiu a esse programa, e é responsável pela
Cegonha. implementação dessa Rede em todo o estado,
A Rede Cegonha institui propostas de mu- promovendo reuniões, rodas de conversa,
danças no modelo assistencial com inclusão visitas às nove regiões de saúde, seminários
de boas práticas da assistência ao parto e e oficinas de boas práticas, entendendo esses

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 57-63, MAR 2016
O desafio da mudança do modelo assistencial ao parto e nascimento nas Maternidades Prioritárias do estado do Rio de Janeiro 59

encontros como dispositivos de mudança busca a criação da grupalidade, de forma a


do modelo de atenção e de gestão. Essa foi fortalecer e montar redes de coletivos orga-
uma ação interfederativa que envolveu MS, nizados para a produção de saúde.
Secretaria Estadual de Saúde e Secretarias Tendo como referência essas noções, a
Municipais de Saúde. Coordenação do Grupo Condutor da Rede
Esse GT, bem como o Grupo Condutor Cegonha no estado do Rio de Janeiro vem
Estadual da Rede Cegonha, conta com o conduzindo a implementação dessa Rede no
apoio institucional realizado pela consultora estado, usando como dispositivo de mudança
de saúde da criança/aleitamento materno e o Método Paidéia ou da Roda como forma de
apoiadora da saúde da mulher do MS. ampliar a participação dos gestores e traba-
O MS instituiu por meio da Coordenação- lhadores nos processos de trabalho e tomada
Geral de Saúde da Criança e Aleitamento de decisões.
Materno (CGSCAM) em 2012, em par- As reuniões do GT das Maternidades
ceria com a Estratégia Brasileirinhas e Prioritárias foram permeadas por esses con-
Brasileirinhos Saudáveis, do Instituto ceitos, expressos na forma como eram condu-
Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do zidos os grupos pela Coordenação, alinhados
Adolescente Fernandes Figueira, da Fundação com a proposta dos consultores/apoiado-
Oswaldo Cruz (EBBS/IFF/Fiocruz), o papel resde inclusão das experiências e demandas
do consultor de saúde da criança do MS, que dos gestores e trabalhadores participantes do
atua nos estados, dentro da Política Nacional Grupo, buscando dar um sentido coletivo às
de Saúde da Criança, tendo como primeira ações e às propostas de mudança de práticas.
ação estratégica a atenção à gestação e ao A proposta dos encontros mensais com
nascimento, primeiro passo para o desenvol- as Maternidades Prioritárias foi de produzir
vimento saudável da criança (BRASIL, 2015). um espaço para pensarmos sobre as práticas,
A participação do consultor de saúde da analisar, refletir e levar para o cotidiano dos
criança nas reuniões do Grupo Condutor serviços as sugestões produzidas pela análise
Estadual da Rede Cegonha teve por objetivo em grupo, trabalhando na lógica da Educação
não só inserir as ações de saúde da criança, Permanente em Saúde. Um processo de re-
mas também aproximar o MS da gestão nos flexão, em que todos são sujeitos e busca-se
territórios, nos estados e municípios. A for- a produção de um coletivo organizado, com
mação dos consultores estaduais teve o apoio potência para análise e para agir.
de consultores nacionais da CGSCAM, de Ao pensar o trabalho em saúde, Merhy
tutores da EBBS e de um grupo de pesquisa (2002) lança mão da imagem de valises tecno-
responsável pela avaliação de todo esse pro- lógicas/caixas de ferramentas para descre-
cesso coordenado pelo MS. ver os instrumentos e as tecnologias que o
Este trabalho visa registrar esse processo profissional usa para atuar no encontro com
de acompanhamento das seis Maternidades o usuário. Tecnologias duras, leve-duras e
Prioritárias desenvolvido no Rio de Janeiro, a leves, referindo-se, nas tecnologias leves, às
partir do contexto de implementação da es- das relações, aos saberes relacionais, respon-
tratégia da Rede Cegonha em todo o estado. sabilização, vínculo, atos de fala, trabalho
vivo em ato. Vencer as resistências e ruídos
nos grupos é tarefa de todos e do consultor/
Desenvolvimento das ações apoiador em particular. As ofertas, tecno-
logias duras, leve-duras, eram colocadas na
De acordo com Campos (CUNHA; CAMPOS, 2010), roda, mas as tecnologias das relações tinham
apoiar é uma função coletiva que se expres- um papel fundamental para promover a
sa em um determinado modo de fazer e que aceitação ou a resistência às propostas e sua

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 57-63, MAR 2016
60 PEREIRA, R. S. V.; MUDJALIEB, A. A.

execução pelo grupo, sujeitos de suas práti- no estado do Rio de Janeiro


cas no cotidiano.
Essa forma de trabalhar com as equipes A identificação das seis
tem diretrizes comuns à lógica da Educação Maternidades Prioritárias do Rio
Permanente em Saúde, entendendo que a de Janeiro — Reunião do Grupo
integralidade é um desafio que implica na Condutor Estadual da Rede Cegonha.
mudança do processo de trabalho e de pro- Local: Rio de Janeiro. Data: maio de
dução do cuidado (BARROS; BARROS, 2007; CECCIM, 2013
2005). Nesse sentido, as rodas de conversa
representaram espaços estratégicos para re- Na primeira reunião das Maternidades
flexão e mudança. Prioritárias do Rio de Janeiro, em maio de
2013, foram apresentados pela represen-
Os saberes formais devem estar implicados tante da Coordenação-Geral da Saúde das
com movimentos de auto-análise e autoges- Mulheres do MS os dados e a situação nacio-
tão dos coletivos da realidade, pois são os nal de 32 Maternidades com maior mortali-
atores do cotidiano que devem ser protago- dade materna nos últimos 3anos e elencada a
nistas da mudança de realidade desejada pe- situação das 6 Maternidades do estado.
las práticas educativas. Dessa maneira, além Na reunião, em roda, a reação do grupo
de processos que permitam incorporar tec- de gestores presentes foi de espanto e indig-
nologias e referenciais necessários, é preciso nação, e muitas justificativas foram dadas
implementar espaços de discussão, análise e para aquela situação, geralmente relatan-
reflexão da prática no cotidiano do trabalho. do a dificuldade em “dar conta” do entorno
(CECCIM, 2005, P. 166). (fragilidade do pré-natal na Atenção Básica,
peregrinação a partir de outros hospitais e
Vale destacar que, nas reuniões mensais, municípios vizinhos, alta gravidade dos casos
atrelamos visitas às Maternidades que chegavam da Rede etc.).
Prioritárias, realizando, no mesmo dia, Foi destacada, porém, por um gestor, a
nossa reunião mensal e uma visita a toda importância de reconhecer, apesar de tudo
Maternidade, buscando conhecê-la e re- isso, as falhas que ocorrem nas próprias
conhecer processos de mudança voltados Maternidades. “É preciso encarar este desafio”,
para as boas práticas já em andamento nos disse. A Maternidade como um ponto central
serviços. e potencial irradiador das boas práticas e mu-
Alguns depoimentos dos profissionais danças foi o destaque dado pelo MS.
nessas rodas de conversa mostram a potên- Ressaltamos a importância das relações
cia desses encontros em produzir mudan- que se deram naquele momento. Ofertas
ças e impactar a assistência oferecida pelas foram sendo colocadas na mesa, e a roda
equipes, apontando para a produção qualifi- fluindo. Os gestores falaram de suas dificul-
cada do cuidado, como será descrito a seguir. dades segundo a forma peculiar de cada um,
a convivência de Maternidades na região que
parecem “a Etiópia” e outras “a Finlândia”,
Destaque para como disseram, comparando seus recursos e
dois momentos da trocando apoio e informações.
Ao final, ficou combinado por sugestão
implementação de um dos diretores que essas reuniões não
da estratégia das poderiam parar. Precisavam de encontros
Maternidades Prioritárias mensais.
Assim tem sido, sob a Coordenação do

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O desafio da mudança do modelo assistencial ao parto e nascimento nas Maternidades Prioritárias do estado do Rio de Janeiro 61

Grupo Condutor Estadual da Rede Cegonha, apresentou na grande roda a reflexão e o os


que vem capitaneando essa ação. Esses encon- desafios para mudança explicitados a partir
tros têm sido muito potentes em gerar mudan- daquela discussão. “Pudemos refletir sobre o
ças nas práticas. As equipes das Maternidades que avançamos e o quanto precisamos ainda
Prioritárias construíram seus Planos de Ação avançar”. Uma enfermeira do grupo termi-
com ajuda dos apoiadores institucionais, que nou a dinâmica na roda recitando parte do
atuaram em todas as Maternidades no início trecho da música ‘Por você’ de Frejat, para
dessa ação (atualmente, em 2015, somente ressaltar o desejo de mudança, de não serem
três Maternidades contam com a presença mais os mesmos depois da oficina. A inclusão
de um apoiador, as outras três Maternidades de novas propostas no Plano de Ação de seus
não estão com apoiadores de serviço), e foram próprios hospitais foi a atividade final do dia,
apresentados nas reuniões mensais do GT. levando da teoria à prática a reflexão.
Algumas diretrizes da Rede Cegonha foram No ano de 2014, a Área Técnica de Saúde da
iniciadas e implementadas nas Maternidades, Mulher, Criança, Adolescente e Aleitamento
como os Colegiados Gestores, o Acolhimento da SES-RJ, inspirada na experiência do
e Classificação de Risco, a garantia da pre- Seminário em Belo Horizonte, organizou
sença do Acompanhante da Gestante, que junto com os Grupos Condutores Regionais
aconteceram de maneira diferente em cada da Rede Cegonha seminários e oficinas sobre
Maternidade, sendo acompanhadas pelos boas práticas do pré-natal, parto, nascimento
apoiadores e pela equipe da SES-RJ. e saúde da criança nas nove regiões de saúde
do estado do Rio de Janeiro, iniciando na
I Seminário de Boas Práticas na Assis- Região Serrana, em julho de 2014, e encer-
tência ao Parto e Nascimento. Local: rando na Região das Baixadas Litorâneas, em
Belo Horizonte. Data: novembro de dezembro de 2014. Esses 9 encontros, entre
2013 seminários e oficinas, reuniram aproximada-
mente 2 mil pessoas em todo estado, contan-
As seis Maternidades Prioritárias do Rio de do com a presença de gestores e profissionais
Janeiro, gestores, equipes e consultor do Rio de saúde predominantemente.
de Janeiro participaram do Seminário de Boas A Iniciativa Hospital Amigo da Criança/
Práticas na Assistência ao Parto e Nascimento OMS/Unicef (BRASIL, 2014) passou a fazer parte
em Belo Horizonte, organizado pela equipe da discussão em alguns desses seminários,
do MS, que incluía a discussão de um caso como uma ação sinérgica à Rede Cegonha que
clínico que abordava a assistência a uma ges- também qualifica as práticas. A Portaria GM/
tante durante os vários períodos do trabalho MS nº 1.153, de 22 de maio de 2014, redefine os
de parto e as evidências científicas que emba- critérios de habilitação da Iniciativa Hospital
savam as práticas (OMS, 1996). Os participantes Amigo da Criança (IHAC), como estratégia
foram divididos em grupos, e a cada momento de promoção, proteção e apoio ao aleitamen-
do texto era discutida a prática dos profissio- to materno e à saúde integral da criança e da
nais em seus hospitais relacionada àquela fase mulher, no âmbito do SUS e inclui critérios,
do trabalho de parto. como o Cuidado Amigo da Mulher, em sua
Paralelamente a essa leitura e reflexão, habilitação.
abaixo de cada trecho, podíamos ler resumos
de meta-análises e evidências científicas que
apresentavam as condutas consideradas boas Resultados
práticas para aquele momento do parto (OMS,
1996). Alguns resultados desse processo merecem
No último dia, um relator de cada grupo destaque:

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62 PEREIRA, R. S. V.; MUDJALIEB, A. A.

– Construção dos Planos de Ação das transformá-las em estratégicas;


Maternidades Prioritárias, apresentados e – Avaliar a presença dos apoiadores de
debatidos pelo GT mensal de acompanha- serviço nas Maternidades Prioritárias, consi-
mento desse trabalho; derando junto com a equipe local o trabalho
– Organização do Acolhimento e realizado e o contexto de cada Maternidade;
Classificação de Risco na porta de entrada – Avançar na implementação do Fórum
de todas as Maternidades Prioritárias, com Perinatal da Rede Cegonha no estado do
especial destaque para as duas Maternidades Rio de Janeiro, que se iniciou na Região
que não possuíam esse dispositivo Metropolitana I em maio de 2015.
implantado;
– Aprovação de um dos hospitais pelo MS,
em outubro de 2014, quanto ao cumprimen- Conclusão
to dos critérios para a conquista do título de
Hospital Amigo da Criança/OMS/Unicef. A Esse método de atuar em equipe, em co-
avaliação incluiu os novos critérios da IHAC: gestão, com reuniões mensais e visitas às
o Cuidado Amigo da Mulher e o Direito ao Maternidades, valorizando a roda, repre-
Acompanhante do Recém-Nascido de Risco sentou um movimento contra-hegemônico à
(Portaria nº 1.153, de 22/05/2014) (OMS, 1996). política de ações verticalizadas, ‘de cima para
Esse foi o primeiro hospital do Brasil a con- baixo’, em busca da construção interfederati-
quistar o título nesse novo modelo; va e coletiva de ações de enfrentamento das
– Planos de Ação Regionais da Rede dificuldades trazidas, e o desafio de redução
Cegonha construídos nas nove regiões do da mortalidade materna e neonatal no estado.
estado do Rio de Janeiro no período em Segundo os membros do grupo, esse disposi-
questão, com 100% de Grupos Condutores tivo foi considerado estratégico por promover
Regionais em ação; a ‘magia do encontro’ e induzir os processos
– Seminários de boas práticas realizados de mudança necessários. A participação dos
nas nove regiões com presença maciça dos gestores e equipes foi fundamental para a
profissionais, da gestão e da assistência. mudança no processo de trabalho e de produ-
ção do cuidado descrita neste trabalho.

Desafios
Agradecimentos
Da mesma forma, alguns desafios vêm
sendo apontados pelo grupo e precisam ser Agradecemos aos diretores e equipes das
enfrentados: seis Maternidades Prioritárias do estado
– Manter as boas práticas e consolidar as do Rio de Janeiro pela adesão à proposta de
ações do novo modelo de atenção proposto trabalho e empenho nas ações.
pela Rede Cegonha; Agradecemos a toda aequipe da Estratégia
– Ter acesso aos indicadores do Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis e
FormSUSpara análise dos dados e fortaleci- da CGSCAM, em especial à tutora da EBBS,
mento da tomada de decisão; Elizabeth Müller, e aos pesquisadores Jorge
– Garantir o repasse de recursos da Rede Zepeda e Bruno Emerich.
Cegonha para o estado do Rio de Janeiro; Agradecemos também à consultora na-
– Avaliar o andamento do projeto das cional, Sônia Venâncio, e à consultora esta-
Maternidades Prioritárias para o ano de dual do Espírito Santo, Wanêssa Poton, pela
2015, considerando a possibilidade de colaboração na revisão do texto. s

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O desafio da mudança do modelo assistencial ao parto e nascimento nas Maternidades Prioritárias do estado do Rio de Janeiro 63

Referências

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 57-63, MAR 2016
64 RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY

Atenção ao vínculo e comunicação


1Médico e psicanalista.
de notícias difíceis em maternidades
Pós-graduado (MBA)
em gestão empresarial prioritárias brasileiras
com ênfase em saúde
pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV) – Rio
Attention to bond and communication of bad news in Brazilian
de Janeiro (RJ), Brasil.
Colaborador eventual do
priority maternity hospitals
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis Carlos Lugarinho1, Maria de Lourdes Feriotti2, Priscila Magalhães3, Suely Marinho4
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
carlugar@gmail.com

2Terapeuta ocupacional.
Mestre em educação pela
Pontifícia Universidade
Católica de Campinas
(PUC-Campinas) –
Campinas (SP), Brasil.
Colaboradora eventual do RESUMO Trata-se do relato de uma experiência de capacitação e apoio às equipes de
projeto Contribuições da UTIs Neonatais e Obstétricas para o enfrentamento e transmissão de notícias difíceis em
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis seu trabalho nas maternidades da Rede Cegonha. A experiência configurou-se como um
para formulação e laboratório de práticas por meio da metodologia dos Grupos Balint-Paidéia. Foram capacitados
implantação de uma
Política Nacional de 162 profissionais de 13 maternidades que integraram 8 Grupos. Os resultados proporcionaram
Atenção Integral à Saúde a ampliação da percepção das notícias difíceis e seus efeitos nos profissionais e pacientes/
da Criança (PNAISC).
mlferiotti@gmail.com familiares; exercitaram formas de trabalho cooperativas e interdisciplinares, desenvolveram
habilidades e incentivaram propostas de melhorias na comunicação e no cuidado.
3 Psicóloga e psicanalista.
Mestre em teoria
psicanalítica pela PALAVRAS-CHAVE Humanização da assistência; Assistência à saúde; Cuidadores; Comunicação
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio em saúde; Neonatologia.
de Janeiro (RJ), Brasil.
Colaboradora eventual do
projeto Contribuições da ABSTRACT This article is about the report of an experience of training and support to the teams
Estratégia Brasileirinhas e of Obstetric Neonatal ICU for facing and transmission of bad news in their work in the maternity
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e wards of the Stork Network. The experience was configured as a practical laboratory using the
implantação de uma methodology of the Balint-Paidéia Groups. 162 professionals were trained in 13 maternity hospitals
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde that integrated 8 Groups. The results provided the expansion of the perception of bad news and its
da Criança (PNAISC). effects on professionals and patients/family members; cooperative and interdisciplinary forms of
demagalhaes.priscila@gmail.com
labor were exercised, skills were developed, and proposals for improvements in communication
4 Psicóloga. Doutora and care were encouraged.
em saúde coletiva pela
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj) – Rio KEYWORDS Humanization of assistance; Delivery of health care; Caregivers; Health
de Janeiro (RJ), Brasil.
Colaboradora eventual do communication; Neonatology.
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
sumarinho10@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 64-76, MAR 2016
Introdução: histórico e dos serviços.
justificativa da atenção às Com base na experiência do primeiro ano
desse trabalho, foi elaborada a publicação
notícias difíceis ‘Comunicação de notícias difíceis – compar-
tilhando desafios na atenção à saúde’ (INCA,
A proposta de capacitação e apoio às equipes 2010).
das maternidades da Rede Cegonha para Com o término do convênio com o
o enfrentamento e transmissão de notícias Hospital Albert Einstein, a Estratégia
difíceis em seu trabalho tem sua origem Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis
e referência maior no projeto Atenção ao (EBBS), apoiada pela Coordenação-Geral
Vínculo e Desenvolvimento de Habilidades de Saúde da Criança e Aleitamento Materno
para a Comunicação de Notícias Difíceis (CGSCAM/MS), propôs ao Instituto
em Oncologia com base nos Grupos Balint- Nacional de Saúde da Mulher, da Criança
Paidéia e uso do Protocolo Spikes, desenvol- e do Adolescente Fernandes Figueira da
vido pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz) a
no período de 2009 a 2011. Esse projeto veio extensão do trabalho com as notícias difíceis
validar e ampliar as iniciativas anteriores para as maternidades da Rede Cegonha, em
do Grupo de Trabalho de Humanização e especial para as equipes de UTIs Neonatais.
foi elaborado em estreita articulação com a Com essa parceria, foram realizados, entre
Divisão de Saúde do Trabalhador do Inca. 2013 e 2014, 8 Grupos Balint-Paidéia para
A emergência de notícias difíceis em on- equipes de maternidades prioritárias e de
cologia vai desde o diagnóstico de doença referência da Rede Cegonha: 2 em Campinas
avançada e inclui as cirurgias mutiladoras, (SP); 1 em São Luís (MA), 1 no Rio de Janeiro
as recidivas, a ineficácia dos tratamentos e (RJ); 1 em Belém (PA), 1 em Teresina (PI); 1
indicação de cuidados paliativos exclusivos em Salvador (BA) e 1 em Goiânia (GO). No
até a comunicação da morte dos pacientes total, foram capacitados 162 profissionais das
aos seus familiares. Seu enfrentamento na áreas de neonatologia e obstetrícia, oriundos
prática cotidiana configura, para os profissio- de 13 maternidades.
nais, ‘situações-limite’ nas quais o sofrimen- O objetivo deste artigo é apresentar
to pode tornar-se intolerável, gerando níveis essa experiência de capacitação e apoio às
crescentes de adoecimento no trabalho. equipes de UTIs Neonatais e obstétricas para
O projeto proposto pelo Inca foi aprovado enfrentamento e transmissão de notícias di-
pelo Ministério da Saúde para ser realizado fíceis em seu trabalho em maternidades da
com recursos de contribuições sociais do Rede Cegonha, por meio da metodologia dos
Hospital Albert Einstein de São Paulo. Foi Grupos Balint-Paidéia.
concebido como um ‘laboratório de práticas’
em que os profissionais poderiam: ampliar
sua percepção da experiência dos pacien- Desenvolvimento do
tes e familiares diante do adoecimento e do projeto
tratamento; reconhecer a importância das
intensidades afetivas que permeiam as re- O projeto desenvolveu-se no período de
lações clínicas; exercitar formas de trabalho janeiro de 2013 a dezembro de 2014. Os
cooperativas e interdisciplinares promoven- grupos tiveram em média 25 participantes
do ‘grupalidades solidárias’ (BENEVIDES, 1997) na e foram constituídos por profissionais das
perspectiva de ‘cuidar de quem cuida’ e, com áreas de medicina, enfermagem, serviço
essa experiência, contaminar, direta ou indi- social, psicologia, fisioterapia, terapia ocupa-
retamente, os processos de atenção e gestão cional, nutrição e fonoaudiologia, de acordo
66 LUGARINHO, C.; FERIOTTI, M. L.; MAGALHÃES, P.; MARINHO, S.

com a composição das equipes das mater- Metodologia: os Grupos


nidades. Incluíram também a participação Balint-Paidéia
de gestores e apoiadores locais, municipais,
estaduais ou federais. Os grupos contaram Os Grupos Balint-Paidéia constituem o cerne
com a presença de dois facilitadores com ex- da metodologia desse projeto. Essa proposta
periência nessa metodologia. Quatro facili- foi sistematizada por Cunha (2009), ancorada
tadores formaram duas duplas, e cada dupla em uma experiência desenvolvida em um
acompanhou quatro grupos. curso de especialização em Gestão da Clínica
Os encontros se desenvolveram em dois na Atenção Básica, na cidade de Campinas
ambientes: presencial e virtual, ambos cons- (CUNHA; DANTAS, 2008). Nela se articulam duas
tituídos como espaços protegidos e com diretrizes metodológicas: os Grupos Balint,
preservação de sigilo sobre as discussões. criados por Michael Balint (BALINT, 1988), e o
Foram organizados em 6 ou 8 encontros Método Paidéia ou Método da Roda para
presenciais, quinzenais, com 4 horas de Cogestão de Coletivos, proposto por Campos
duração, sendo o último deles destinado (2000).
à apresentação de um plano de trabalho e Os Grupos Balint, desenvolvidos com os
ações de desdobramento da experiência. Os médicos do sistema público de saúde britâni-
encontros presenciais desenvolviam-se a co na década de 1950, constituíram-se como
partir de relatos, dramatizações e discussões um espaço no qual os profissionais pudessem
de casos atuais que apresentassem situações exercitar, a partir da análise de seus ‘casos’
de comunicação de notícias difíceis, a fim de vividos, uma elaboração dos afetos presentes
exercitar a corresponsabilidade na análise e nas relações clínicas, especialmente quando
no enfrentamento das situações reais trazi- se apresentavam limites ou ineficácia em
das pelos participantes, contribuindo para seus propósitos de cura. Mais do que um
a construção de propostas de encaminha- curso, a participação em um Grupo Balint se
mento. Essas discussões eram articuladas a caracteriza como uma ‘experiência formado-
ofertas teóricas para o aprofundamento dos ra’ que permite aos participantes ampliar o
temas emergentes dos grupos. Uma das fer- conhecimento, a autopercepção e a percep-
ramentas propostas a todos os grupos foi a ção das diferentes formas de lidar com as di-
aproprição dos recursos técnicos contidos ficuldades. Não se trata apenas de apreender
no Protocolo Spikes para o desenvolvimento a dimensão subjetiva das relações clínicas,
de habilidades na comunicação de notícias mas principalmente de se dispor a lidar com
difíceis. o fluxo de afetos inerentes a elas. O papel do
Os encontros virtuais eram viabilizados coordenador, originalmente um psicanalista,
pela plataforma UniverSUS, na qual todos é o de favorecer que o grupo funcione como
tinham acesso à bibliografia e material didá- uma equipe de pesquisa sobre as relações
tico, à fototeca, aos fóruns de discussão sobre com seus pacientes e destes com seus proble-
os casos clínicos, aos planos de trabalho e mas de saúde. Essa proposta foi disseminada
demais tarefas dos grupos e aos diários de em muitos países, passou por um período de
campo elaborados pelos facilitadores a cada descenso e, a partir da década de 1990, res-
encontro e, eventualmente, pelos participan- surgiu em experiências recentes na formação
tes. Todos os inscritos responderam a um médica e na capacitação de equipes multi-
questionário de avaliação individual antes profissionais de saúde (MISSENARD, 1994).
do início dos encontros. Outro questionário O Método Paidéia é inspirado no concei-
foi aplicado no final do processo, acompa- to grego Paidéia, que representa um sistema
nhado de uma avaliação verbal, durante o de formação integral de cidadãos ligado à
último encontro. ideia de democracia e à constituição de novas

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 64-76, MAR 2016
Atenção ao vínculo e comunicação de notícias difíceis em maternidades prioritárias brasileiras 67

formas de governar e viver. Organiza-se em O foco na ‘comunicação de más notícias’


um setting básico, as ‘rodas de conversa’, e deu aos Grupos Balint-Paidéia uma nova es-
caracteriza-se como um espaço de escuta, pecificidade, adaptada às demandas dos pro-
diálogo, reflexão e apoio que oferece aos pro- fissionais que atuam no contexto hospitalar, e
fissionais a possibilidade de buscar, analisar permitiu trazer à luz e acolher necessidades
e interpretar informações; compreenderem e dificuldades que permaneciam relegadas ao
a si mesmos, ao outro e ao contexto; ampliar âmbito individual e privado.
a capacidade de decisão nos projetos e iden- Dois conceitos fundamentais do Método
tificar estratégias para construção de novos Paidéia destacam-se nessa experiência:
padrões de relação entre as pessoas, guiados
pelo sentido essencial da democracia. Pode Clínica Ampliada e Projeto Terapêuti-
contar com uma figura externa, o ‘Apoiador co Singular
Institucional’, a quem compete facilitar o
funcionamento das Rodas de acordo com os Compreendendo a produção de saúde-doen-
propósitos acima descritos. Considerando ça como processos complexos de interações
que a constituição de sujeitos, grupos sociais dinâmicas e singulares de fatores individuais
e instituições é produto das relações de e coletivos, a Clínica Ampliada (CAMPOS, 2013)
poder, do uso de conhecimentos e dos modos caracteriza-se como método clínico que re-
de circulação de afetos, o Método Paidéia conhece o risco e a vulnerabilidade de cada
se propõe a tratar como indissociáveis o de- caso particular e de seu contexto, amplia o
senvolvimento das capacidades de lidar com campo de intervenções para além do combate
afetos, com saberes e com poderes (CAMPOS, às doenças e busca um conjunto de estraté-
2013). gias terapêuticas singulares que, integrando
Articulando as duas diretrizes metodo- diferentes ações, saberes e disciplinas, almeja
lógicas, os Grupos Balint-Paidéia trabalham o desenvolvimento de uma vida participativa,
com um enfoque político-afetivo, compreen- mesmo diante de doenças ou limitações.
dendo a comunicação como ferramenta im- A essa clínica agrega-se o conceito de
prescindível da clínica. Oferecem um espaço Projeto Terapêutico Singular que, como o
protegido no qual os trabalhadores possam nome indica, não se trata de um plano pre-
lidar com a complexidade do seu trabalho definido de intervenções, mas sim de um
e das relações intrínsecas a ele. Favorecem conjunto de propostas terapêuticas pensadas
o desenvolvimento de práticas cooperati- para um sujeito, uma família ou um grupo
vas e solidárias, uma vez que possibilitam a que possui características únicas, particula-
imersão de profissionais em contextos seme- res. As propostas terapêuticas devem resultar
lhantes, com problemas parecidos, comparti- de uma discussão coletiva e interdisciplinar
lhando experiências, dificuldades e soluções. do caso, com a participação efetiva dos dife-
Por sua vez, as tensões presentes nas relações rentes atores dos cuidados em saúde (equipe,
de saber, poder e afeto devem ser percebi- paciente e família). Pressupõe o enriqueci-
das e trabalhadas. O coordenador de grupo mento do processo de tomada de decisão no
agrega à discussão de casos outras estra- trabalho, a divisão de tarefas e responsabili-
tégias pedagógicas, como: ofertas teóricas, dades e a valorização de uma autonomia que
definição de tarefas, intervenções, análises e seja realmente compartilhada (OLIVEIRA, 2008).
sínteses, garantindo, no entanto, a facilitação Os Grupos Balint-Paidéia, nessa expe-
de posturas reflexivas, o desenvolvimento riência, facilitaram o desenvolvimento de
de protagonismo e a construção singular de interações interdisciplinares e ampliaram
processos positivos para enfrentamento das as possibilidades de escuta e comunicação
necessidades de cada grupo (CUNHA, 2009). entre profissionais, pacientes e familiares.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 64-76, MAR 2016
68 LUGARINHO, C.; FERIOTTI, M. L.; MAGALHÃES, P.; MARINHO, S.

Verificamos, nas equipes de UTI Neonatal, dos pacientes, seja dos profissionais, com
inúmeras situações que envolvem decisões maior investimento gerencial em protoco-
quanto ao uso de tecnologias e recursos los e normatizações das atividades, os quais,
para prolongamento da vida que provocam mesmo tendo grande valor como conheci-
dilemas éticos e mobilizam a todos. São situa- mento acumulado, mostram seus limites
ções que exigem o compartilhamento de pro- diante das incertezas da clínica (CUNHA; DANTAS,
jetos terapêuticos que favoreçam o vínculo, a 2008). Assim, o uso do protocolo como ‘estra-
corresponsabilidade, a problematização e a tégia’ deixa espaço para adaptações criativas
avaliação constante. que possibilitem abranger as mais diversas
condições de atendimento que se apresen-
O Protocolo Spikes tam no dia a dia das equipes de saúde, facili-
tando o processo de comunicação, suporte e
Os avanços técnicos e científicos da medi- tratamento inclusivo, no intuito de reduzir o
cina promoveram intensos melhoramentos impacto emocional da má notícia para todos
nos tratamentos ofertados, mas também um os atores nessa situação (equipe, pacientes e
aumento expressivo das categorias do que se familiares/responsáveis).
pode considerar uma má notícia. Essas novas Considerando, no entanto, que o Protocolo
demandas geraram a necessidade de os pro- Spikes foi desenvolvido no Canadá e nos
fissionais desenvolverem maior habilidade EUA, para a área da oncologia, sua utilização
de comunicação, em especial a comunicação nesse projeto exigiu uma adequação à rea-
de notícias difíceis. Considerada uma tarefa lidade brasileira e às áreas de neonatologia
complexa, que exige formação, treinamen- e obstetrícia. Esse trabalho de adequação
to e uma visão ampliada de cuidado médico também se constituiu como estratégia peda-
para com o sofrimento do paciente, Baile et gógica para os grupos que, em um processo
al. (2000) desenvolveram uma abordagem que coletivo de apropriação criativa e produção
se compõe de seis etapas para transmitir más de conhecimento, elaboraram um novo con-
notícias ao paciente com câncer, denomina- senso, com a adaptação das seis etapas ori-
da de Protocolo Spikes (INCA, 2010). Apesar de ginais para a neonatologia e obstetrícia, que
nominado como ‘protocolo’, essa proposta podem ser sintetizadas em:
subverte o caráter preditivo/normativo dos • Etapa 1 – Planejando o encontro: rever os
protocolos em geral, uma vez que se constitui dados que fundamentam a má notícia; avaliar
de modo a orientar a abordagem da comuni- os próprios sentimentos sobre a transmissão
cação da má notícia para a singularidade de da má notícia; buscar ambiente acolhedor e
cada caso. com privacidade; envolver pessoas impor-
Em nossa experiência, utilizamos esse tantes para a gestante ou puérpera, se for seu
protocolo como estratégia complementar desejo;
para a comunicação de notícias difíceis, atre- • Etapa 2 – Avaliando a percepção da
lando-o ao conceito norteador de ‘cuidado’ gestante/puérpera e seu parceiro/familiar:
que orienta o projeto. ‘Cuidado’ entendido ‘antes de contar, pergunte’; valorizar a escuta;
como o elemento que promove uma zona avaliar como ela, o parceiro e a família perce-
de convergência em meio a muitas diferen- bem a situação clínica, o que sabem ou procu-
ças (entre comportamentos profissionais, raram saber a respeito e como estão lidando
entre instituições, entre serviço particular com o problema; adequar a comunicação às
e público, países) e que possibilita maior possibilidades de compreensão e aceitação
êxito na comunicação e ampliação da clínica. ou não da má notícia;
Sabemos que na área da saúde há pouco in- • Etapa 3 – Avaliando o desejo de saber dos
vestimento no lidar com a singularidade, seja pais e obtendo o seu pedido por informações:

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Atenção ao vínculo e comunicação de notícias difíceis em maternidades prioritárias brasileiras 69

procurar saber se os pais ou a família desejam essa definição para além do indivíduo dire-
informações detalhadas sobre diagnóstico tamente atingido, estendendo o campo de
e tratamento ou se preferem receber as in- afetação para as famílias e amigos próximos e
formações gradativamente, colocando-se também para os profissionais e gestores res-
disponível; ponsáveis pelos serviços e redes de atenção
• Etapa 4 – Transmitindo a notícia e in- à saúde.
formações à gestante/puérpera e seu par- Nessa área, as notícias difíceis incluem não
ceiro/família: comunicar a má notícia com apenas diagnósticos clínicos, mas também
delicadeza e de maneira clara, dando tempo uma série de perdas e reveses ao longo do
para que seja processada; evitar transmitir tratamento, podendo se estender à fase de
desesperança e desistência, ressaltando as reabilitação. Podem se referir às malforma-
possibilidades de comprometimento, trata- ções, aos agravos clínicos, às intercorrências
mento e/ou cuidados paliativos, o alívio dos no parto e na gestação ou a qualquer fator
sintomas e o acompanhamento solidário e que provoque sequelas, incapacidades, sofri-
multiprofissional; mento ou morte, tanto para o feto ou neonato
• Etapa 5 – Validando a expressão de sen- quanto para a mãe. As más notícias são par-
timentos e oferecendo respostas afetivas às ticularmente difíceis em sala de parto, onde
emoções das gestantes, parceiros e familia- não há tempo para preparar-se e o impacto
res: favorecer a expressão dos envolvidos atinge intensamente os pais e os profissionais.
sobre o impacto da má notícia, dando voz As más notícias também podem ser pro-
a seus sentimentos e emoções, acolhendo venientes de dificuldades da estrutura, da
como legítimas as expressões de ansiedade, falta de recursos em um serviço ou rede de
raiva, tristeza ou inconformismo. Buscar res- atenção à saúde ou assistência social. Assim,
postas de reconhecimento e sintonia afetiva; não é possível pensar na comunicação da má
• Etapa 6 – Resumindo e compartilhando notícia sem questionar os fatores que levam à
estratégias do plano de cuidado: traçar uma ‘produção de más notícias’. O complexo de si-
estratégia ou plano de tratamento para o tuações que estão na origem da produção de
futuro, orientando os envolvidos de acordo más notícias neste caso inclui: a falta de assis-
com suas possibilidades de compreensão; tência no pré-natal; a precariedade da situa-
compartilhar responsabilidades na tomada ção socioeconômica da mãe e a falta de apoio
de decisão com a mãe, pai/família e ser familiar; a distância dos serviços especializa-
honesto sem destruir a esperança. dos e a falta de transporte adequado; a falta
Observa-se, por fim, que esse protocolo e de equipamentos e capacitação adequada nos
as estratégias/consensos derivados dele pres- serviços da rede básica e maternidades; a su-
supõem interação com o paciente e respeito perlotação das maternidades de referência e
às preferências e diferenças individuais. a insuficiência de leitos nas UTIs.
Está baseado na flexibilidade, e não em uma Há uma especificidade nesse campo de
receita aplicável a todos. atuação que se refere à reversão de ‘expecta-
tivas’: um lugar que trabalha com a expecta-
O que é ‘notícia difícil’ em neonatolo- tiva de nascimento pode evidenciar, de modo
gia e obstetrícia? ainda mais traumático, o contraste entre vida
e morte, entre boa e má notícia.
Buckman (1992), um dos primeiros autores A comunicação de notícias difíceis afeta
a trabalhar esse tema, define má notícia em também o profissional que as comunica. Ao
saúde como qualquer informação que afete lidar com a dor do outro, toma-se contato
seriamente e de forma adversa a visão de um com a própria dor. Não se trata de uma co-
indivíduo sobre seu futuro. Podemos ampliar municação objetiva ou mera informação.

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Ao contrário, a subjetividade se expressa a qualidade do cuidado nem a correspon-


no corpo, por meio do olhar, dos gestos e da sabilidade da equipe. A prática de reuniões
postura, podendo facilitar ou não o apoio interdisciplinares para discussão dos casos
ao outro nesse momento. Algumas notícias mais complexos fortalece a integralidade do
chegam a ser paralisantes, e a experiência cuidado e o acolhimento aos profissionais,
mostra que, para muitos profissionais, o mais tornando o cotidiano mais suportável e favo-
difícil é quando se trata de alguma falha ou recendo a elaboração e o compartilhamento
ausência de recursos do serviço ou do profis- de responsabilidades.
sional para prestar atendimento adequado. Ao contrário, formas idealizadas de vida
Tais situações podem deixar o profissional e de trabalho, que esconjuram o sofrimento,
em uma posição vulnerável ou suscitar-lhe a incerteza e o erro, tendem a criar defesas
sentimentos de impotência e fracasso, colo- enrijecidas que negam aspectos importantes
cando em cheque seus saberes e técnicas. da vivência sensível e empobrecem a expe-
A comunicação de má notícia pode ser riência. Entretanto, os efeitos de choque e
facilitada quando se dispõe de um local ade- paralização podem também acolher possibi-
quado para acomodar a família e quando lidades de abertura para novas sensibilidades
se estabelece o acolhimento e um vínculo na relação com os outros e consigo mesmo.
afetivo. É preciso, também, cuidar dos sen- Lembrando a música de Leonard Cohen,
timentos de culpa ou de agressividade que, ‘There is a crack in everything; that’s how the
com frequência, atingem as mães e familiares light gets in’ ou, em uma tradução livre, ‘são
de bebês com malformações ou riscos graves. as rachaduras, as frestas, que permitem que a
Ao mesmo tempo, é necessário trabalhar a luz possa entrar’.
equipe em face da tendência de fazer julga- Essa perspectiva de comunicação de
mentos morais, atribuir e cristalizar adjetivos notícia difícil, que assume uma forma inter-
e estigmas aos pais, diante da não correspon- subjetiva e dialógica (MATTOS, 2004), está em
dência de seus comportamentos às suas ex- sintonia com a concepção de “comunicação”
pectativas técnicas ou culturais. apresentada por Rosemberg (2012, P. 742) que,
Nos processos de comunicação e elabora- para além de um transmitir e receber men-
ção de más notícias, o ‘tempo’ aparece como sagens, significa ‘tornar comum, partilhar,
fator importante para processar a informa- repartir, associar’. Nesse sentido, significa
ção, admitindo-se que, para os pais, a negação o compartilhamento da experiência, e um
é um recurso legítimo e necessário nesse pro- importante instrumento para esse processo
cesso que envolve intensidades afetivas. Já os encontra-se no conceito de “acolhimento
profissionais estão mais sujeitados ao tempo dialogado” (TEIXEIRA, 2004, P. 3), uma ‘técnica de
cronológico que exige decisões, intervenções conversa’ de apoio ao processo de conheci-
imediatas e obediência aos protocolos. Por mento das necessidades do usuário, fundada
sua vez, é do tempo intensivo da escuta e do em certas disposições ético-cognitivas como
acolhimento que dependem os encontros que o reconhecimento do outro; o reconhecimen-
abrem para novos sentidos, algo que pode to de cada um como insuficiente e o reconhe-
ocorrer como em um flash, tal como propu- cimento de que o sentido de uma situação é
seram Michael e Enid Balint em seu trabalho fabricado pelo conjunto de saberes presen-
com os médicos do sistema público de saúde tes, isto é, no encontro e a partir do vínculo.
na Inglaterra (BALINT; NORELL, 1976). O impacto da notícia difícil provoca uma
Na prática atual da neonatologia, cabe grande carga para o profissional, porém esse
ao médico dar a má notícia objetivamente tema não constitui conteúdo pedagógico nos
e aos demais profissionais cuidar dos senti- currículos da maioria dos cursos da área de
mentos e afetos. Essa divisão não favorece saúde. Equivocadamente, esse impacto tem

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Atenção ao vínculo e comunicação de notícias difíceis em maternidades prioritárias brasileiras 71

sido tratado como uma questão pessoal, e do ambiente.


não profissional. São necessárias estratégias No entanto, não resta dúvida de que a UTI
de cuidado do profissional de saúde, assim Neonatal é o ambiente adequado para faci-
como o desenvolvimento de pesquisas nesse litar a ‘sobrevivência física’ dos bebês que
campo e projetos de capacitação profissional. nascem em sofrimento e risco. Como poderá
Destaca-se ainda a necessidade de aprimorar ser também um ambiente emocional propício
processos de trabalho e de gestão. Espaços ao acolhimento de sua vida psíquica? O que
de grupalidade e trocas entre os profissio- pode sustentar essa situação é, acima de tudo,
nais são reconhecidos como necessários para a confiança que os pais possam depositar na
dar ajuda e suporte aos trabalhadores, pois competência da equipe à qual devem delegar
podem se constituir como espaços de elabo- os cuidados especiais que o recém-nascido
ração da equipe e sustentação das condições necessita. É importante, no entanto, que essa
de trabalho. entrega não seja total, destituindo os pais de
sua função de cuidadores, mas que os pais e
A atenção ao vínculo no ambiente da os profissionais possam chegar a constituir
UTI Neonatal uma ‘equipe mista’ na qual os pais possam
compreender progressivamente a razão dos
Nos primórdios da vida psíquica, o desenvol- procedimentos técnicos e a ‘maternagem’
vimento de um sentimento de confiança no possa contagiar mesmo os procedimentos
bebê depende de sua relação com um am- mais especializados.
biente minimamente estável e assegurador, No modelo mais tradicional de funcio-
no qual os adultos se tornam confiáveis, não namento das UTIs Neonatais — mas que
apenas por estarem presentes e atenderem ainda não pode ser considerado inteiramen-
às suas necessidades, mas também pela ‘sin- te superado —, o bebê era objeto de cuidado
tonia afetiva’ (STERN, 1992) que se expressa no dos profissionais e a mãe, uma ‘visita’, fre-
modo de cuidado com que percebem e res- quentemente pouco tolerada (LAMY, 2000). Por
pondem a essas necessidades. mais que essa situação venha mudando, os
Winnicott (2000, P. 399) afirma: profissionais nem sempre conseguem com-
preender a dificuldade dos pais em confiar
Existe algo que chamamos de ambiente não e entregar seu bebê aos cuidados da equipe.
suficientemente bom, que distorce o desen- Quando essa dificuldade se expressa em des-
volvimento do bebê, assim como existe o am- confiança e hostilidade, chega mesmo a gerar
biente suficientemente bom, que possibilita ressentimentos nos profissionais por não
ao bebê alcançar, a cada etapa, as satisfações, verem reconhecidos seus esforços e dedica-
ansiedades e conflitos inatos e pertinentes. ção. Muitas vezes também aparece o ‘choque
de competências’, e os pais são vistos como
Como é possível que se desenvolvam essas aqueles que ‘atrapalham’ a rotina dos pro-
qualidades no ambiente da UTI? Na UTI, o cedimentos necessários ou os criticam sem
bebê está separado do ambiente materno, conhecimento de causa.
em geral não é amamentado, é cuidado As iniciativas que há vários anos vêm se
por muitas pessoas diferentes e, ainda que desenvolvendo no âmbito do Ministério da
muitos esforços sejam feitos, não é possível Saúde com os programas de Humanização do
aliviá-lo completamente da dor e do descon- parto e de Atenção Humanizada ao recém-
forto. Seu contato com a mãe/os pais, mesmo -nascido de baixo peso — Método Canguru
que consiga ser frequente, é permeado pela — têm sido decisivas para uma mudança de
tensão que não pode deixar de invadi-los em paradigmas na atenção perinatal. A integra-
face da gravidade da situação e da estranheza ção entre tratamento e cuidado no ambiente

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da UTI Neonatal pode depender de uma dis- vínculo’ — dos pais com os bebês, dos profis-
ponibilidade que, em princípio, não seria tão sionais com os bebês e os familiares, dos pro-
difícil: uma ‘conversa’ do profissional durante fissionais com a equipe interdisciplinar e das
um procedimento doloroso que procure fa- equipes com os gestores — que poderá dar
vorecer a expressão dos sentimentos em jogo suporte ou minimizar os efeitos traumáticos
pode acalmar tanto a mãe como o recém- das adversidades que são vividas e comuni-
-nascido e ser um exemplo da possibilidade cadas e promover um ambiente emocional
de criação de um ambiente emocional sufi- facilitador à vida nas UTIs Neonatais.
cientemente bom (DOLTO, 1999). O contato pele Na discussão sobre o tema dos ‘vínculos de
a pele do Método Canguru e a amamentação, confiança’, os participantes ressaltaram que
sempre que possível, podem garantir, em o vínculo, como uma ligação afetiva, envolve
grande medida, a intimidade do contato com uma complexidade e não é facilmente definí-
a mãe e o pai, assim como sua responsabili- vel. Pode proporcionar segurança e parceria,
dade pelos cuidados normais prestados aos mas também portar hostilidade e desconfian-
bebês. Quando se trata das UTIs cirúrgicas, ça ou expressar uma fé cega, gerando submis-
que acolhem os casos mais graves de malfor- são e dependência. Defendem que a relação
mações ou sequelas importantes de intercor- de confiança deve suportar questionamentos.
rências na gestação e parto, as condições são Quanto ao tempo, para alguns o vínculo de
mais adversas. Uma pesquisa recente sobre as confiança exige tempo para aproximação e
relações estabelecidas pelos profissionais de convívio; para outros, o que o define é a sua
saúde de uma UTI Neonatal Cirúrgica com qualidade, mais permeada pela compreensão
os bebês internados e seus pais reconhece a do outro que pelo tempo de convivência. Essa
dificuldade enfrentada pelos profissionais compreensão pode ser rápida e instantânea,
para operar mudanças no processo de traba- mas também pode se desenvolver ao longo
lho que lhes permitiriam conciliar o cuidado de um convívio. O tempo para o vínculo
afetivo com os bebês e a abertura para a par- estaria mais ligado ao sentido de kairós que
ticipação dos pais com as exigências técnicas ao sentido de chronos.
e o rigor dos protocolos para tratamento das
patologias (JUNQUEIRA ET AL., 2011). Os autores
trazem o relato das inúmeras dificuldades Resultados
técnicas e de pessoal nesse ambiente, que
opera geralmente no limite extremo, trazen- Os resultados a seguir são a apreensão das
do grande reponsabilidade e insegurança aos respostas ao questionário final de avalia-
profissionais por trabalharem nesse limite. ção que os participantes responderam no
Ainda assim, identificam várias iniciativas último encontro, bem como das manifes-
individuais que, se discutidas coletivamente, tações diretas durante o encontro final,
poderiam amenizar o ambiente e dar suporte quando também foram apresentadas as pro-
às relações. postas de desdobramento do projeto. Antes,
A noção de ‘ambiente emocional fa- contudo, é preciso registrar que, dos 241
cilitador à vida’ tornou-se central para a inscritos inicialmente, 162 participantes re-
formulação da Estratégia Brasileirinhas e ceberam certificado de participação (67%) e
Brasileirinhos Saudáveis, contribuindo, no aproximadamente 40 participantes, mesmo
âmbito do Ministério da Saúde, para sua in- sabendo antecipadamente que teriam um
corporação como princípio orientador da número de faltas superior ao permitido
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde para certificação, participaram ativamente
da Criança (PENELLO, 2013). das reuniões e das trocas na plataforma de
No âmbito do projeto, é a ‘atenção ao Ensino à Distância (EAD). Esse alto nível de

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adesão ficou evidente pelo expressivo índice demandas e emoções dos familiares, como
de satisfação apontado pelos participantes propõe o projeto. De certo modo, podemos
em relação às suas expectativas iniciais, do associar a esta dificuldade o baixo número
mesmo modo que foi praticamente unânime de gestores que se dispuseram a participar
a aprovação dos métodos e ferramentas em- dos encontros, vários deles comparecendo
pregados nesse processo, especialmente a apenas aos encontros finais, além daqueles
discussão de casos clínicos atuais (ou cujas profissionais considerados ‘problemáticos’ e
repercussões e marcas afetivas permanecem não sensibilizados ao tema. Essas ausências
atuais). foram determinantes para que muitos parti-
Entre os resultados observados, destaca- cipantes, apesar de considerarem de grande
-se a ampliação do conceito do que é uma importância a implantação de Grupos Balint-
notícia difícil. Pudemos verificar que, se ao Paidéia nas instituições como forma de des-
início do projeto a notícia difícil estava re- dobrar os efeitos do projeto, fossem céticos
lacionada com a comunicação de morte já quanto a sua efetivação. Por fim, outros re-
ocorrida ou iminente, este âmbito passou a sultados observados foram: o maior compro-
abranger muitos e diferentes aspectos, como metimento individual no estabelecimento
uma mudança de procedimentos, dificulda- de redes interpessoais, interinstitucionais e
des para utilização de insumos, a rotatividade interprofissionais, fruto do reconhecimento
de um profissional ao qual o paciente estava de ser parte ativa de uma equipe e correspon-
vinculado e até uma alta não esperada, dentre sável pelas ações; organização de formas para
outros. Com a valorização das intensidades socializar esse aprendizado com os colegas
diferentes que a notícia pode provocar nos dos respectivos locais de trabalho, a fim de
vários atores do processo, observou-se igual- evitar que a construção de um projeto tera-
mente uma maior percepção individual da pêutico venha a ser desmontado por outro
incidência da comunicação de notícias difí- profissional menos sensível para lidar com as
ceis no cotidiano do trabalho. Por outro lado, situações limite da clínica. Uma transversali-
apesar da quase totalidade (99%) dos res- dade em ato, cujo efeito é o de potencializar o
pondentes ao questionário ter declarado que próprio trabalho individual e coletivo, sem a
passaram a ter uma estratégia mais consis- exigência absoluta de que consigam isolada-
tente para transmitir notícias difíceis, houve mente dar conta de toda essa complexidade;
também uma percepção generalizada de que a constituição de um coletivo que acolhe e
ainda assim essa transmissão continuaria a problematiza as condições subjetivas, técni-
ser uma tarefa complexa, em decorrência cas, políticas e afetivas, em uma vivência con-
dos fluxos afetivos que esses vínculos trazem tínua de que a habilidade não é dada, ela pode
à tona para o profissional. Isso se traduz em e deve ser construída.
uma inquietação, uma desnaturalização das De acordo com a metodologia do projeto,
rotinas de trabalho, tendo a maioria declara- além de oferecer conteúdos básicos comuns,
do que ainda era mais difícil lidar com as pró- a análise de casos clínicos permitiu que as si-
prias emoções do que com as emoções dos tuações particulares das instituições e/ou das
familiares, até porque o momento da comu- diferentes regiões atendidas fossem trazidas
nicação é sempre uma situação nova, singular à roda, singularizando as discussões e, con-
e mobilizadora. sequentemente, as ‘propostas de desdobra-
O que todas as categorias sentem como um mento’. Todos os grupos foram orientados a
agravante ao processo de transmissão de no- elaborar planos de ação que pudessem dar
tícias difíceis é a falta de um ambiente de pri- continuidade ao trabalho até então realiza-
vacidade e tempo disponível na dura rotina do. Vários desses planos foram estruturados
para um acolhimento mais adequado das em formato de projetos de constituição de

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comissões intra ou inter-hospitalares, de- em outras instituições não atendidas pelo


talhando composição, prazos, orçamentos projeto;
etc., ora focados no cuidado ao cuidador, • O estabelecimento ou reativação de
ora na discussão de casos clínicos e ainda no Comissões de Óbito, a fim de estudar o fluxo
aprimoramento dos processos internos de dos atendimentos e, assim, detectar entraves,
comunicação, com a inclusão eventual de re- falhas e outros fatores que possam ser consi-
presentantes dos pais e responsáveis nesses derados determinantes para a morte materna
comitês. Alguns grupos optaram por realizar e/ou fetal. Esses estudos seriam divulga-
um único plano que abrangesse as várias dos para todas as instituições e equipes que
categorias e instituições ali representadas, estavam envolvidas com aqueles atendimen-
enquanto outros grupos, por terem realida- tos, a fim de se chegar a propostas conjuntas
des, necessidades e estágios diferentes de de melhorias dos fluxos;
desenvolvimento de uma Clínica Ampliada, • Estruturação, ativação e fortalecimento
preferiram a elaboração de projetos indivi- dos serviços de atenção à saúde do trabalha-
duais para cada instituição. dor nas instituições, voltados para o cuidado
Ainda assim, foi possível constatar que integral aos profissionais.
alguns emergentes foram privilegiados
no momento da elaboração desses planos
ou discussões. Podemos então reconhecer Conclusão
temas, como a inclusão institucional da
discussão sobre o vínculo e a comunicação Os Grupos Balint-Paidéia foram apropria-
de notícias difíceis, tanto em seu viés do dos como estratégia de capacitação e apoio
cuidado ao paciente quanto no cuidado ao efetivo a profissionais de saúde nas materni-
cuidador, a preocupação com o estabeleci- dades da Rede Cegonha. Para além da capaci-
mento ou reativação de redes, a necessidade tação específica, a ‘comunicação de notícias
da inclusão desses temas na formação básica difíceis’ evoca a reflexão sobre a ‘produção de
profissional e, principalmente, a importân- notícias difíceis’, o que desloca as questões e
cia de trazer os gestores para esta roda de dificuldades de um plano individual para
discussão e ações. outro de organização de serviços e de polí-
Outras propostas apresentadas ticas públicas. O Método da Roda facilita a
consideravam: efetivação de diálogos interdisciplinares, in-
• A elaboração de consensos que, partin- terinstitucionais e intersetoriais, assim como
do das indicações constantes do Protocolo entre trabalhadores e gestores. Promove a
Spikes, tornassem essas orientações mais organização de coletivos que afirmam sua
próximas da realidade das maternidades e potência para: produzir conhecimento e
UTIs Neonatais; boas práticas; acolher as angústias dos pro-
• O envolvimento ativo dos residentes fissionais no cotidiano; construir Projetos
nas discussões ou comissões, como forma Terapêuticos Singulares compartilhados; ar-
de suprir a deficiência na formação básica, ticular redes de apoio; acolher e comunicar
dando um viés pedagógico ao tema do notícias difíceis; fazer diagnósticos locais e
vínculo e da comunicação de notícias difíceis regionais sobre as condições para prestar um
com a produção de materiais de divulgação serviço adequado à população, modificar am-
(documentários, roteiros de dramatização, bientes, processos e estruturas de trabalho;
planos de aula) que pudessem ser utilizadas aperfeiçoar processos de formação. s

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STRUCTURAL VIOLENCE, AND EPIDEMICS OF Rio de Janeiro: Imago, 2000. p. 399-405.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 64-76, MAR 2016
ENSAIO | ESSAY 77

Um sentido para a paternidade


A meaning for paternity

Carlos Lugarinho1, Liliana Maria Planel Lugarinho2, Liliane Mendes Penello3

RESUMO O ensaio propõe uma discussão em torno da paternidade nos tempos atuais e de
1Médico e psicanalista.
Pós-graduado (MBA) sua importância para o processo de subjetivação do bebê. Apresenta uma discussão sobre a
em gestão empresarial função paterna, que assume papel preponderante nessa subjetivação, apoiado principalmente
com ênfase em saúde
pela Fundação Getúlio no pensamento de Donald Winnicott, Jacques Lacan e Sándor Ferenczi, um para além dos
Vargas (FGV) – Rio papéis sociais ao propor uma diferenciação entre ‘ser pai’ e ‘exercer a paternidade’. Analisa a
de Janeiro (RJ), Brasil.
Colaborador eventual do paternidade enquanto um processo singular, apontando diferenças para o estabelecimento de
projeto Contribuições da uma função materna e para a dinâmica que se estabelece entre esses atores desde o período
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis da gestação. Propõe uma reflexão sobre o papel que a função paterna exerce, para além do
para formulação e gênero, enquanto representante primordial da diferença, ao promover a separação mãe-bebê.
implantação de uma
Política Nacional de Por fim, alerta para a necessidade de uma ampla discussão nos mais diversos níveis, que inclua
Atenção Integral à Saúde a função paterna entre os dispositivos sociais imprescindíveis para uma contemporaneidade
da Criança (PNAISC).
carlugar@gmail.com e um futuro mais humanizados.
2 Médica. Mestre em
saúde pública pela PALAVRAS-CHAVE Paternidade; Desenvolvimento infantil; Cuidado da criança.
Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. ABSTRACT The paper proposes a discussion around paternity in modern times and its importance
Coordenadora executiva to the subjectification process of the baby. It presents a discussion of the paternal function, which
do projeto Contribuições
da Estratégia Brasileirinhas takes a leading role in that subjectification, mainly supported by the thought of Donald Winnicott,
e Brasileirinhos Saudáveis Jacques Lacan, and Sandor Ferenczi, a beyond the social roles by proposing a distinction between
para formulação e
implantação de uma ‘being a father’ and ‘engaging in paternity’. It examines paternity as a singular process, pointing
Política Nacional de out differences for the establishment of a maternal role and for the dynamics established between
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC). those actors from the period of pregnancy. It proposes a reflection on the role that the paternal
liliana.lugarinho@gmail.com function has, beyond gender, as the primary representative of the difference, by promoting the
3 Psiquiatra e mother-infant separation. Finally, it alerts to the need for a broad discussion on several levels,
psicoterapeuta de one that includes the paternal function among the essential social devices for a more humanized
grupos. Mestre em saúde
pública pela Fundação contemporaneity and future.
Oswaldo Cruz (Fiocruz)
– Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. Coordenadora do KEYWORDS Paternity; Child development; Child care.
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
lpenello@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
78 LUGARINHO, C.; LUGARINHO, L. M. P.; PENELLO, L. M.

O que é ‘ser Pai’ na contemporaneidade? A outros sujeitos como participantes primor-


paternidade pode ser encarnada? Ela ‘deve’ diais de sua própria organização. Isso pode
ser encarnada? Pai é uma pessoa, uma ser exemplificado quando afirmamos que
função ou uma figura? Que paternidade em toda mulher em processo de gestação já
é esta hoje, tão diferente e tão a mesma de é presente um registro psíquico de ‘pai’, a
séculos e séculos? Em que aspectos a pater- presença do pai em forma de afetos, presen-
nidade é algo imprescindível ao desenvolvi- tificando as relações, vínculos, memórias, a
mento da subjetividade em nossas crianças? presença ou ausência objetiva de seu próprio
Mais do que dissecar conceitos, o objetivo pai, bem como todas as fantasias associadas a
deste ensaio é oferecer subsídios a partir de esse registro. Tudo isso influencia fortemen-
determinadas fontes teóricas para pensar- te os processos mentais que levam à escolha
mos a paternidade de modo abrangente e, no de um companheiro (a) que a seu lado venha
entanto, rigoroso, buscando, mais que defini- exercer a função paterna para o bebê.
ções ou certezas, sentidos possíveis no nível Em consonância com o pensamento e
psicoafetivo individual e coletivo. Propomos trabalho desenvolvidos pela EBBS, o que se
refletir para além das questões de gênero, considera como base para um desenvolvi-
respeitando as diversas constelações fami- mento da criança em níveis minimamente
liares, cada vez mais numerosas em relação satisfatórios é um ambiente facilitador à
à formação familiar clássica, pensando que vida. O termo ‘ambiente facilitador’ vem de
mesmo nas impossibilidades individuais de Donald Winnicott (1983) e abrange a ideia de
se saber pai e mãe, há quem possa ocupar- cuidado em um sentido amplo, ou seja, não
-se dessas funções ou encarne essas figuras, só o cuidado com as necessidades biológi-
a partir das primeiras inscrições e estímulos cas, como alimentação, mas também aquelas
vindos da criança, tendo em mente que as medidas que visam promover um espaço de
funções podem não recobrir a figura de um segurança para o desenvolvimento emocio-
sujeito ou não se efetuarem de forma social- nal, em última análise, o desenvolvimento de
mente ou psiquicamente esperada. um vínculo emocional.
O campo de observação privilegiado e dis- Para tentar melhor circunscrever a pro-
cussão aprofundada desenvolvido por meio posta deste trabalho, iremos estabelecer de
do trabalho da Estratégia Brasileirinhas e início uma distinção que julgamos funda-
Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) tem sido mental: ‘ser pai’ não tem necessariamente o
construído ao longo desses anos por inter- mesmo sentido de ‘exercer a paternidade’.
médio da articulação entre os profissionais Propomos então fazer uma distinção se-
da saúde (latu sensu), das demandas da mântica aqui entre os termos pai (pai de
população, dos intensos trabalhos de for- família, posição social, legal) e Pai, o que
mulação e implementação de políticas pú- encarna a figura ou exerce a função paterna.
blicas para atendimento a essas demandas Consideramos ser pai (Pater familias) um
e talvez, mais que tudo, da observação de fato, uma inscrição social e um dispositivo
caráter sociológico das diferenças e pontos legal. Já exercer a paternidade (Pai) é um
de encontro entre mães, pais e crianças de processo: afetivo e ético.
todos os cantos do país, sem deixar de lado Sendo então a paternidade um processo,
nossas próprias vivências enquanto mães e não um dado ou um dom, pode-se constatar
pais que somos e filhos que somos ou fomos. que ela não é um fato da natureza, do mesmo
A existência do conceito de constituição modo que a maternidade também não é.
do sujeito faz retomar a ideia das repre- Importante aqui abrir um parêntesis para
sentações psíquicas dessa formação, que se lembrar que, ainda assim, encontra-se muito
entende pelo fato de os seres humanos terem difundido no imaginário social que a mulher

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
Um sentido para a paternidade 79

é naturalmente preparada para exercer a maternidade sobre o bebê. Para a mãe, nesse
maternidade. cenário, a criança é uma extensão de si, e, em
Podemos então fazer uma equivalência decorrência disso, sente-se inteira, como se
entre os processos da maternidade e da pa- fosse o filho aquilo que lhe completa, que
ternidade enquanto processos semelhantes lhe dá sentido enquanto mulher, e da qual só
em sua essência? Poderíamos até encontrar se desprenderá por meio de cortes, seja no
alguma similaridade entre os dois no fato de corpo biológico (o cordão umbilical), ou no
que a construção psíquica ou o processo de corpo erógeno, conforme descrito por Serge
subjetivação estão desde sempre associados Leclaire (1992). Já o processo da paternidade
a uma estrutura dinâmica, relacional, seja se dá em um outro gradiente, na medida em
mãe-embrião-feto, bebê-pai, mãe-pai-bebê, que a gestação é sempre externa ao corpo do
e outras. No entanto, são similaridades que Pai. É um mistério que, uma vez apresenta-
não permitem avaliações de tipo absoluto, do, virá-a-ser paulatinamente desvendado,
pois se encontram desde sempre conforma- aos poucos, se é que ele pode ser inteira-
dos por gradientes, modulações, normal- mente desvendado. Desejar ser Pai tem uma
mente bastante delicadas, sutis e, no entanto, natureza diferente do desejo da gestante, da
distintas. mãe. Por isso a importância, nesse processo,
Em consequência disso, e por razões que de desvendar o mistério, a busca ativa dessa
iremos expor adiante, o processo de cons- compreensão, do desvelamento desse desejo.
tituição da paternidade se dá a reboque do A paternidade vai ser algo a ser investido e
processo de constituição da maternidade. insistido do mesmo modo que o espermato-
Fazendo uma paráfrase com o texto bíblico, zoide investiu e insistiu sobre o óvulo. Quem
poderíamos afirmar que ‘no princípio era a deseja encarnar a paternidade vai ter que
mãe’. O processo de construção do sentido ativamente buscar em si o sentido daquele
da maternidade é algo que se inicia e se de- mistério, seja por meio da pura relação com
senvolve de princípio ‘dentro’ da mulher, a mãe-a-ser, do toque, da carícia e das pala-
em seu corpo ou psiquismo. Por isso, con- vras, que possam fazê-lo sentir a presença
sequentemente, a constatação de que o daquele ser, mas principalmente do cuidado
embrião, o feto ou até mesmo o bebê adotado e conforto que ele pode oferecer àquela
é considerado por ela como parte integran- durante a gravidez e no momento seguinte à
te, não só do seu próprio corpo como da sua chegada da criança. É nisso que se começa
constituição psíquica. É importante dizer a se sentir Pai. O melhor dos mundos vai se
que existem algumas exceções, de viés pa- dar quando a gestante o convida a compar-
tológico, na maior parte das vezes, em que tilhar essa aventura de desvelamento, que a
a mulher não considera o embrião ou o feto maternidade convide a paternidade, permita
como partes integrantes de seu próprio que a paternidade possa se constituir nesse
corpo, mas um corpo estranho. Para além do processo, em uma possível repetição do
biológico, a criança que ela espera faz parte comportamento do óvulo que, diante da in-
de uma gestação dela mesma como ser dese- sistência de milhões de espermatozoides,
jante. A mãe-a-ser, no caso ainda gestante ou se deixa penetrar por um, escolha esta que
expectante, compreende aquele ser, aqueles ainda é misteriosa.
afetos, como parte unívoca de seu próprio A paternidade em gestação, contudo, vai
ser. O bebê faz sentido biológico e emo- ser o motor para a constatação de um sentido
cional para a mãe. Por sua vez, a criança é ainda incipiente de que ‘dentro’ daquela
marcada pelos afetos expressos em palavras mulher está um novo e Outro ser, que espera
e atos de cuidado embebidos no imaginário, a hora melhor para se anunciar como pessoa,
acrescidos, após o nascimento, do olhar da como sujeito. A gestante, por mais que no

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
80 LUGARINHO, C.; LUGARINHO, L. M. P.; PENELLO, L. M.

discurso se refira ao feto ou ao bebê na ter- diversas, vão enfatizar a importância de uma
ceira pessoa, tende a considera-lo também função especular como ponto de partida para
imaginariamente como parte de si própria, um processo de efetiva subjetivação do bebê.
como já afirmado anteriormente. Lacan (1966), em seu trabalho sobre o estádio
Pode-se, portanto, resumir o que foi dito do espelho, vai nos dizer que, em torno de um
até aqui, afirmando que a paternidade é um ano, um ano e meio de vida, o bebê é capaz
processo que se desenvolve de princípio na de se reconhecer através de sua imagem no
‘percepção’ do novo ser e no cuidado, no espelho, o que daria início à constituição
‘apoio’ à mãe. Na dinâmica familiar, seja ela de um Eu autônomo, ou ainda da constitui-
de qual natureza for, a paternidade se cons- ção diferencial de um Je e um Moi. O que
titui em uma posição lateral ou, dito de outra importa neste momento é ressaltar a impor-
maneira, a paternidade se constitui de fora. tância de uma identificação a uma imagem
Todo este processo de cuidado, de presen- e um reconhecimento de si. Winnicott (1975),
ça, de amparo, necessário à constituição do anos mais tarde, vai afirmar, em outras pala-
sentido tanto da paternidade quanto da ma- vras, que o olho da mãe é o primeiro espelho,
ternidade, como dissemos, durante o tempo em que desde o início da vida, ao se ver ali
de espera, vai prosseguir procurando então refletido, o bebê pode iniciar a estruturação
assegurar as melhores condições emocionais de uma subjetividade ao se dar conta de que
para o momento do parto ou da vinda do o que era um único ser, na verdade são dois.
bebê. Diga-se que em nenhum dos casos esse reco-
É após a chegada do bebê que outra dife- nhecimento é automático.
rença vai se estabelecer no processo de es- Por sua vez, a mãe vai precisar passar por
truturação da paternidade. um processo gradual de separação psíquica
Dizemos que o bebê nasce em um estado do bebê. A mãe ‘teve’ um bebê. O bebê é dela,
de imaturidade psíquica (que tem ressonân- e é necessário que ela sinta assim para poder
cias diretas com uma imaturidade biológica) garantir, como dissemos, a sobrevivência
que se traduz no que Winnicott chamou de dele. É importante, nesse momento, colocar
dependência absoluta. O bebê humano é um a ambivalência que traz em si a expres-
dos raríssimos exemplares do reino animal são ‘ter’ o bebê. Ao mesmo tempo que esta
a não ter condições mínimas de sobrevivên- criança vai ser uma promessa de continuida-
cia a menos que tenha um cuidador/prove- de, muitas vezes ela só tem valor enquanto
dor desde os primeiros momentos e é que uma posse, uma extensão de si (da mãe). Por
permanece dependente dessa atenção por isso não é tão raro encontrarmos mulheres
um tempo bastante longo. Psiquicamente, que desejam engravidar, mas não desejam
essa dependência seria representada por ser mães. Por outro lado, também podería-
um estado de completa indissociação entre mos afirmar que, ao ter o bebê, a mãe volta a
o bebê e sua mãe. O corte efetuado na sepa- ser um bebê, indiferenciada dele.
ração de corpos ocorrida no momento do Quando nos referimos acima sobre o olhar
nascimento não tem repercussão no bebê da mãe para o bebê, no qual ele vai se refle-
em termos de uma súbita independência tir, não fizemos referência à intensidade do
psíquica. Em outras palavras, ainda persiste poder desse olhar, da intensa circulação de
um único Ser (mãe-filho) em dois corpos, afetos que se dá naqueles momentos. Esse
sustentado pelos cuidados ininterruptos da poder é de tal monta que existe um grande
mãe, que procura garantir assim a sobrevi- risco de que ambos fiquem capturados nesse
vência da criança. olhar, como Narciso ficou com sua imagem
Jacques Lacan e Winnicott, teóricos no lago. Que não sobre espaço para a indi-
da psicanálise com linhas de pensamento viduação de cada um e eles fiquem assim,

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
Um sentido para a paternidade 81

grudados, como se ainda fosse uma gravidez. Não mais apenas um pater familias, provedor
Então, aqui ainda, temos dois que se perce- de segurança em nível material e social, mas
bem um. principalmente o provedor legítimo de uma
É a figura do Pai, o exercício da paternida- segurança afetiva.
de, aquilo que dissemos que estava ao lado, O Pai tem então a função primordial de
de lado, oferecendo com seus cuidados o efetuar um corte que interrompa a fusão
ambiente necessário para que a mãe pudesse entre mãe-bebê delimitando o mundo
sustentar os cuidados com o bebê, que vai ser interno (fantasias, necessidades e desejos) e
o fiador dessa relação, vai ser responsável externo (realidade) da criança.
por dar também as condições para que uma Percebe-se que, conforme há pequenas
separação efetiva entre mãe e bebê possa mudanças no ambiente mãe-bebê (mãe
se dar. Consideramos um vínculo algo que atende ao telefone mesmo na vigência de
estabelece uma relação entre dois ou mais. uma demanda do bebê, pequenas saídas
Portanto, é o vínculo do Pai com a mãe que vai para fazer compras, entre outras), essas mu-
tornar possível ou efetivo um vínculo entre a danças vão introduzindo a realidade para a
mãe e o bebê. Como ele pode conseguir isso? criança, apresentando-lhe um novo mundo
Desviando para si, no devido tempo, o ‘olhar’ — real e social. Podemos inferir que, ao negar
da mãe, aproveitando-se do convite dela para para o filho alguns de seus desejos, mas in-
compartilhar com ela daquela experiência. É tuindo sua capacidade de lidar com o tempo
o exercício da paternidade que vai por sua de espera por eles sem que sua continuidade
vez convidar essa mãe a retomar o compar- como Ser seja ameaçada, inicia-se a introdu-
tilhamento do mundo extrabebê, para o qual ção no convívio social.
ela deve se voltar, mesmo que inicialmente Sandor Ferenczi foi um dos primeiros
de modo esporádico. pensadores a propor um novo modo de se
Para uma situação que está fechada em conceber a educação de modo a incluir a
si mesma, em um mundo particular que po- criança e seus desejos como parte integrante
deríamos considerar um mundo interno, a em seu processo de inclusão social. Para ele,
paternidade encarna na sua figura e função em 1928, era necessário conceber o concei-
o mundo externo. Como o bebê vai tender to de adaptação em um viés ativo, divergin-
a olhar para onde olha a mãe, se ela retiver do da concepção biológica e evolucionista
seu olhar sobre ele (só para ele, e uma vez na qual o ambiente é o agente provocador
que para o bebê a mãe é si mesmo ou algo de mudanças que permitem ou impedem
que ele ainda não discrimina), serão remotas a sobrevivência de um determinado ser ou
as possibilidades de uma real separação psí- espécie animal. Naquela época, era comum
quica entre o bebê e a mãe. É preciso que o ainda se repetir a frase: ‘Criança não tem
Pai consiga que a mãe volte seu olhar para querer!’, como se tudo que fosse necessá-
ele, para que a criança possa também olhar, rio ao seu desenvolvimento psicoafetivo
como se perguntasse, o que é isso para além adequado era o desejo parental sobre ela.
dela, diferente dela, diferente de mim? Não Ferenczi (1992A) vai dizer que é a família que
é só se ver refletido no espelho que permite tem que se adaptar à criança, utilizando as
a constituição de um Eu; é preciso que manifestações de seus desejos parte inte-
alguém, um terceiro, e aqui neste momento grante do seu processo educativo. Diz ele: “A
eu posso dizer, o Pai, aponte para a imagem tendência natural da criança pequena é para
e diga: ‘Aquele é você!’. Nesse sentido é que amar-se a si mesma, assim como a tudo o que
podemos dizer que, mesmo com todas as considera como fazendo parte dela” (FERENCZI,
mudanças socioeconômicas que ocorreram 1992A, P. 7). A função do meio externo é justa-
nas últimas décadas, o pai ainda é o provedor. mente proporcionar a delicada operação

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
82 LUGARINHO, C.; LUGARINHO, L. M. P.; PENELLO, L. M.

de estabelecer a noção de um ‘dentro’ e paterna encarnada no masculino. Podemos


um ‘fora’ que possa vir a estabelecer uma então considerar que a contemporaneidade
relação entre o ser sujeito e objeto. admite que o papel da paternidade em nível
Resumindo, é papel do Pai realizar as in- social pode ser encarnado independente-
tervenções necessárias que complementem mente do gênero, desvinculando-se do pai
a função materna, funções e figuras que se o gênero masculino. No entanto, observa-
complementam e são vitais para a estrutu- mos que, como em toda revolução, muitas
ração e para o desenvolvimento psicoafe- vezes essas mudanças acabam atingindo
tivo da criança. O Pai promove o suporte áreas que não eram aquelas considerados
emocional para que a mãe possa cumprir como alvo. Um exemplo do que afirmamos
suas funções e, assim fazendo, também é a constatação de que ao destronar o pai
dizer os primeiros nãos... onipotente e autoritário de antes, acabou-
O Pai seria então o primeiro educador -se por desautorizar de modo quase que
da criança, aquele que detém um poder completo a figura e o papel paternos, na
de interdição ao gozo absoluto, represen- ilusão que a maternidade pode dar conta
tado aqui na indistinção afetiva do bebê exclusiva não só da geração como também
com a mãe, função irredutível de um ‘lugar da subjetivação de um novo ser humano.
de exceção’ nas palavras de Jean-Pierre A tarefa, que mesmo sem ser impossível,
Lebrun (2008). Um lugar de Lei, introje- acarreta um fardo psíquico e social enorme,
tado e intransponível em sua autoridade acabou por repetir nas estruturas fami-
simbólica. liares a mesma ‘terceirização’ observada
Não precisamos recorrer aos inúme- no campo do trabalho. Esta observação
ros trabalhos de tantos autores que têm se nos permite extrapolar que, na verdade, a
dedicado a tentar compreender todas as família contemporânea está quase absolu-
mudanças por que vem passando o tecido tamente sujeita ao modo de ser e funcionar
social nos últimos tempos e como essas do capitalismo. Apesar de constatarmos
sociedades tem se apropriado dessa Lei. que, na medida do possível, ainda hoje é
Basta observarmos nossas relações mais comum ver essa cessão de poderes mantida
próximas para termos uma boa noção. Até no âmbito familiar, habitualmente centrada
pelo menos as primeiras décadas do século na figura da avó, o que percebemos é cada
passado, o sentido, subjetivo e social, da vez mais o exercício da maternidade e uma
paternidade era dado como uma capitania paternidade entregues ao Capital e seu
hereditária. Gradativamente, no entanto, braço mais conhecido e, ao mesmo tempo,
como sempre acontece, essa posição de mais reptício, o mercado, o papel social de
realeza passou a sofrer fortes e contínuos detentor da Lei. Reiteramos que esta pas-
ataques, vindo não só das gerações mais sagem se deu associada e em decorrência
novas, mas também alimentado sobretudo a uma incapacidade do Estado em assumir
por uma revolução dos costumes encarnado a contento o papel/função, primeiro foco
principalmente pelas mulheres, cuja voz, desta outorga, o que remete ao título de
até então rouca e abafada, podia agora ser uma palestra de Christopher Reeves (2011)
ouvida em toda sua força. Uma mudança publicada em livro, que procura problema-
necessária, mas que está longe de dar conta tizar esse papel: ‘Será que o Estado algum
de toda a complexidade do mundo e das re- dia será um pai suficientemente bom?’.
lações contemporâneas. Nesse texto, o autor discorre a respeito das
Na verdade, ao que essas vozes femininas cobranças da sociedade de um pai infalível,
(e de tantas outras minorias) se levantaram expondo as possibilidades de manejo entre
foi contra o caráter absolutista da posição família e Estado enquanto uma combinação

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
Um sentido para a paternidade 83

incerta. Mas esta importante discussão Os menores acontecimentos, no decorrer


merece um aprofundamento específico. da vida posterior eram bastante para susci-
Por fim, voltamos a Ferenczi. No artigo tar nelas a vontade de morrer, mesmo que
“A criança mal acolhida e sua pulsão de fosse compensada por uma forte tensão da
morte” (1992B, P. 48), o autor faz menção a dois vontade. ‘Pessimismo moral e filosófico, ceti-
casos clínicos, que afirma serem de “hóspe- cismo e desconfiança’ tornaram-se os traços
des não bem-vindos na família” (em itálico de caráter mais salientes desses indivíduos.
no original), um filho de mãe “obviamente Podia-se falar também de nostalgia, apenas
sobrecarregada de trabalho” e outro cujo velada, da ternura (passiva), inapetência para
pai morreu pouco após seu nascimento. o trabalho, incapacidade para sustentar um
Apesar de escrito em uma época em que a esforço prolongado [...]. (FERENCZI, 1992B, P. 49,
família nuclear tradicional era a regra, nas GRIFO NOSSO).
palavras do autor, “essas crianças registra-
ram bem os sinais conscientes e inconscien- Portanto, para novas crianças, é preciso
tes de aversão ou de impaciência da mãe, e novas mães e pais. E se o desejo materno é
que sua vontade de viver viu-se desde então o motor para a introdução da figura paterna
quebrada” (FERENCZI, 1992B, P. 48). Fica evidente no estabelecimento de uma subjetivação
nesses casos relatados a ausência física ou efetiva do bebê, que aquele ou aquela que
da implicação ativa da figura paterna. deseja se comprometer psíquica e afeti-
Nosso ponto de vista é que, para uma vamente nesta função possa sair de uma
nova formação familiar, é necessária uma posição esvaziada ou passiva, e não mais
ativa adaptação das figuras centrais dessa aguardar que o chamado se faça, mas ati-
triangulação a essa nova realidade. Desse vamente buscar que a figura materna possa
modo, é preciso gerar ‘novas’ crianças. Não se voltar para o lado, desviando o olhar que
mais como as citadas acima por Ferenczi era fixo no bebê. Que esse Pai seja a presen-
(1992B), quase que profeticamente, dada à tificação da Diferença, aquele em que não
generalização que observamos em nossa so- cabe mais o manto da autoridade absoluta,
ciedade de um comportamento onde é cada mas aquele que aprende no dia a dia a ser
vez mais comum que: suficientemente bom. s

Referências

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______. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992b. do complexo de Édipo. São Paulo: Escuta, 1992.
p. 1-13.
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FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de ______. Broken bounds: contemporary reflections on the
morte. In: ______. Psicanálise IV. São Paulo: Martins antisocial tendency. London: Karnak Books, 2011.
Fontes, 1992a. p. 47-51.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de
LACAN, J. Le stade du miroir. In: ______. Écrits. Paris: maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento
Éditions du Seuil, 1966. emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

LEBRUN, J. P. A perversão comum: viver junto sem outro. ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago,
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. 1975.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 77-83, MAR 2016
84 RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY

Processo de formação de consultores


estaduais: reflexão conceitual e prática sobre
a experiência vivida
Training process of state consultants: conceptual and practical
reflections about the experience lived

Evanguelia Kotzias Atherino dos Santos1, Jane Gonçalves Pessanha Nogueira2

RESUMO O presente artigo tem por objetivo relatar a experiência vivida como consultora do
Ministério da Saúde – Coordenação-Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno, no
estado de Santa Catarina e sua capital, no período de 2012 ao início de 2015, dando ênfase
às atividades de formação, articulando-as de modo reflexivo às atividades desenvolvidas no
território. São apresentadas reflexões, tendo como foco a escuta diferenciada das questões
e problemas locais, a condução e mediação de processos grupais, a capacidade de manejo
de situações difíceis, a construção de vínculos cooperativos, a ampliação e aprofundamento
1Enfermeira. Doutora
em Enfermagem pela da compreensão da noção de cuidado, entre outros. A experiência vivida revelou-se rica e
Universidade Federal significativa na aquisição de novos conhecimentos e habilidades, com impacto positivo no
de Santa Catarina –
Florianópolis (SC), território.
Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do PALAVRAS-CHAVE Gestão em saúde; Sistema Único de Saúde; Saúde da criança; Política de
projeto Contribuições da saúde.
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para Formulação e ABSTRACT The following paper aims to report the experience lived as a consultant of the
Implantação de uma
Política Nacional de Ministry of Health – General Coordination of Child Health and Breastfeeding in the state of Santa
Atenção Integral à Saúde Catarina and its capital, in the during the period between 2012 and early 2015. The developed
da Criança (PNAISC) no
estado de Santa Catarina. activities in the area are connected, in a reflexive way, to the formation of new consultants.
gregos@matrix.com.br Reflections are presented focusing on the alternative view of the issues and local problems, group
2 Psicóloga e Psicanalista. management, conflict management, creation of cooperative bonds, increasing and deepening of
Mestranda em the understanding of the notion of care, among others. The experience has been very rich and
perinatologia pela
Universidade Federal do significant because of the knowledge and abilities learned with a positive response from the area.
Rio de Janeiro
(UFRJ) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Consultora KEYWORDS Health management; Unified Health System; Child health; Health policy.
para desenvolvimento
infantil e formação
de grupos e tutora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para Formulação e
Implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
ebbs.jane@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 84-93, MAR 2016
Introdução Como consultora do MS para o estado
de Santa Catarina e capital, iniciei minhas
A Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos atividades em abril de 2012, a convite da
Saudáveis (EBBS) foi inicialmente desen- Coordenação Estadual da Saúde da Criança
volvida em Florianópolis, capital do estado da Secretaria de Estado da Saúde de Santa
de Santa Catarina, como uma pesquisa- Catarina e da Coordenação Municipal da
-intervenção, constituindo-se um dos seis Saúde da Criança da cidade de Florianópolis,
munícipios selecionados como piloto, nos sendo o meu nome encaminhado e aprovado
anos de 2010 e 2011. Tinha como objetivo pela CGSCAM do MS por atender aos cri-
geral “observar e experimentar estratégias térios exigidos. A escolha dos profissionais
de atenção à saúde da criança capazes de para iniciar o processo considerou a impor-
promover ambientes de desenvolvimento tância da construção de um pacto interfede-
saudável” (ZEPEDA, 2013, P. 179). Os principais rativo que fosse capaz de sustentar não só a
resultados dessa pesquisa estão documen- construção, mas também a efetiva implanta-
tados na obra de Penello e Lugarinho (2013). ção da Política em todo território nacional.
Em um segundo momento, a EBBS se O presente artigo tem por objetivo relatar
expande e se faz presente em todos os a experiência vivida como consultora do MS
estados brasileiros, suas capitais e Distrito da CGSCAM no estado de Santa Catarina
Federal (DF), em parceria com o Ministério e sua capital, no período de 2012 ao início
da Saúde (MS), por meio da atuação dos de 2015, dando ênfase às atividades de for-
consultores do MS – Coordenação-Geral de mação proporcionadas pela EBBS, articu-
Saúde da Criança e Aleitamento Materno lando-as de modo reflexivo às atividades
(CGSCAM), iniciativa do próprio Ministério desenvolvidas no território.
em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz Neste relato, são abordados os seguintes
(Fiocruz), constituindo-se esta em uma es- temas: escuta diferenciada das questões e
tratégia prioritária para o fortalecimento problemas locais, a condução e mediação de
das ações direcionadas à atenção integral à processos grupais, a capacidade de manejo
saúde da criança nos territórios, a exemplo de situações difíceis, construção de vínculos
da estratégia adotada para consolidação das cooperativos, ampliação e aprofundamento
Redes de Atenção à Saúde. da compreensão da noção de cuidado, apro-
Assim, desde abril de 2012, todos os priação do conhecimento teórico sobre o de-
estados brasileiros e o DF contam com o senvolvimento emocional infantil, Método
apoio dos consultores de saúde da criança Paidéia como proposta de apoio à cogestão
e aleitamento materno, que têm como ob- de coletivos organizados para o trabalho, a
jetivo principal contribuir para a formu- relação entre o apoiador institucional e a
lação e implantação da Política Nacional transferência e contratransferência entre a
de Atenção Integral à Saúde da Criança equipe e o apoiador.
(PNAISC), além de apoiar as Secretarias de
Estado da Saúde e as Secretarias Municipais
de Saúde das capitais na implementação de Escuta diferenciada das
ações de atenção integral à saúde da criança questões e problemas locais
e aleitamento materno, com ênfase na Rede
Cegonha. As atividades desenvolvidas têm A escuta diferenciada, compreendida como
como foco o tripé: cuidado, gestão e forma- aquela que implica em apreender e compre-
ção. Nesse processo, a EBBS ocupa posição ender o conteúdo e os sentimentos dos atores
de destaque no que se refere às atividades de sociais envolvidos, responder aos sentimen-
formação dos referidos consultores. tos expressos por eles, aceitar as expressões
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e sentimentos tanto positivos quanto ne- escutar, olhar e ver, perceber e sentir, só
gativos, não fazer julgamentos, perceber o assim poderemos realmente compreender
tom de voz, a fluidez do discurso, as pausas, o mundo social que nos cerca e abordar de
as vacilações, construção das frases, obser- maneira objetiva o sentido subjetivo da ação
vando a linguagem não verbal (postura, ex- humana. Acredito que a ‘escuta diferenciada’
pressão facial, gestos, olhar, movimentação das questões e problemas locais encontrados
das mãos, pernas e pés, respiração); esteve nos diferentes cenários em minha prática co-
presente nos contatos estabelecidos, quer tidiana como consultora, agregando os novos
individualmente ou em grupo, constituindo- conhecimentos e o desenvolvimento de ha-
-se em elemento facilitador no enfrentamen- bilidades, contribuiu para o estabelecimento
to das questões cotidianas e na solução dos de relacionamentos cooperativos.
problemas locais.
Esse tipo de escuta, a meu ver, diferen-
ciou-se e contribuiu substancialmente para Condução e mediação de
estimular mudanças nos cenários da prática processos grupais
tanto no âmbito estadual como no âmbito
municipal. A utilização dessa habilidade per- Acredito que do ponto de vista teórico, a
mitiu-me constatar que, na medida em que leitura do texto de Sennett (2012) citado an-
as pessoas se sentem ouvidas, elas sentem-se teriormente, foi bastante elucidativa, tra-
valorizadas, menos defensivas, menos auto- zendo contribuições importantes para a
ritárias, mais flexíveis e mais abertas, propi- ampliação da compreensão dos conceitos de
ciando assim mudar suas atitudes em relação ‘cooperação’, ‘trocas cooperativas’, gestão de
a si próprias e em relação aos outros. conflitos, entre outros, para condução e me-
Ouvir bem, segundo o texto ‘O estado de diação de processos grupais. Segundo esse
espírito cooperativo’, de Sennett (2012), su- autor, a cooperação é compreendida como
gerido para leitura em nosso processo de “uma troca em que as partes se beneficiam”
formação, exige um conjunto de habilidades, (SENNETT, 2012, P. 15). De igual modo, o texto inti-
tais como capacidade de direcionar a escuta tulado ‘Uma contribuição para a cogestão da
atentiva para o que os outros dizem e inter- clínica: grupos Balint-Paidéia’, de autoria de
pretar/refletir antes de responder, conferin- Gustavo Tenório Cunha e Devisson Vianna
do sentido aos gestos e silêncios, bem como Dantas (2008), forneceu importantes subsí-
às declarações. Segundo esse autor, se nos dios teóricos especialmente no que se refere
atentarmos para observar bem, prestarmos à noção de grupalidade.
realmente atenção, demonstrarmos interes- Segundo os autores, o Grupo Balint-
se pelo que o outro diz, a conversa que daí Paidéia é concomitantemente um instrumen-
resultará será enriquecida, mais cooperativa, to gerencial e uma oferta aos trabalhadores
mais dialógica. A arte dialógica, como sus- para que possam lidar com a complexidade
tenta Sennett (2012), parte do pressuposto de do seu trabalho e das relações intrínsecas a
que as pessoas que não observam não podem ele. Trata-se de um grupo para discussões de
dialogar. Essa leitura contribuiu sobrema- casos clínico-gerenciais em que os profissio-
neira para a aquisição e sedimentação de nais possam apresentar seus casos, lidar com
novos conhecimentos teóricos, que incorpo- a subjetividade envolvida, trocar ideias com
rados à minha experiência vivida possibilita- a mediação do gestor/apoiador e se debru-
ram subsidiar melhor a prática, desenvolver çar sobre ofertas teóricas, sempre buscando
e aprimorar habilidades dialógicas. criar uma grupalidade solidária e ampliar a
Em síntese, em relação à escuta diferen- capacidade de análise e intervenção (CUNHA;
ciada, eu diria que é preciso saber ouvir e DANTAS, 2008).

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Do ponto de vista prático, não encon- Construção de vínculos


trei maiores dificuldades em relação a esse cooperativos
aspecto, pois meu vivido cotidiano é trans-
versalizado por oficinas de criação coleti- O vínculo é uma estrutura na qual estão en-
va, tallers, rodas de conversa, entre outras volvidos indivíduos, objetos e uma relação
modalidades de condução de grupos, pri- particular entre eles — do indivíduo ante os
vilegiando a participação ativa dos atores objetos e vice-versa —, ambos cumprindo
sociais envolvidos, constituindo-se estes em determinada função para o alcance de ob-
espaços potenciais de trocas e de experiên- jetivos comuns. Portanto, o vínculo é uma
cias compartilhadas. relação particular com os objetos que resulta
em uma pauta de conduta, que se traduz na
forma observável do vínculo, sendo possível
Capacidade de manejo de identificar nela (na conduta) a sua expressão
situações difíceis (vínculo). Disso se segue que a forma como
os indivíduos se comportarão na organização
Em minha prática cotidiana, de modo geral, (objeto) está diretamente relacionada com o
não encontrei muitas situações difíceis. A estabelecimento de vínculos entre ambos.
mais delicada envolveu a certificação de A minha inserção nos grupos envolveu
14 Unidades Básicas de Saúde (UBS) de três momentos. O primeiro, que incluiu
Florianópolis (SC), sendo exigido pelo MS os fenômenos de afiliação e identificação,
mudança de fluxograma para distribuição de os quais se transformaram em pertença,
fórmulas infantis, feita pelas UBS mediante momento em que identifiquei minha inte-
critérios bem rigorosos. Nesse particular, gração ao grupo. O segundo momento foi
tive que fazer a mediação entre os técnicos o de cooperação, que se traduziu na minha
da área da Secretaria Municipal de Saúde contribuição para a tarefa grupal. A perti-
(SMS), gerentes, secretário de saúde do mu- nência, que consistiu no terceiro momento,
nicípio e coordenação da Área Técnica da quando me centrei nos grupos e nas tarefas.
Saúde da Criança e Aleitamento Materno A identificação, o sentimento de pertença, a
(ATSCAM), para que as unidades fossem integração e a cooperação constituíram-se
certificadas, uma vez que gestores interme- em componentes dos vínculos estabelecidos
diários eram contrários à mudança de fluxo, e se mostraram intimamente relacionados
alegando se constituir em um retrocesso entre si.
em decorrência de dificultar o acesso. Após Em minha avaliação, penso que consegui
várias argumentações, o secretário de saúde fortalecer vínculos cooperativos já estabe-
do município de Florianópolis assumiu lecidos anteriormente e construir novos em
oficialmente na ATSCAM, atualmente todas as esferas de atuação. Na esfera muni-
CGSCAM do MS, o compromisso de alterar cipal, fortaleci vínculo com gestores locais,
o fluxo, enviando ofício ao coordenador da incluindo desde o Secretário Municipal de
ATSCAM. Diante desse compromisso assu- Saúde de Florianópolis até os gestores in-
mido pelo secretário, as 14 unidades rece- termediários e técnicos da área da saúde da
beram a certificação no final de outubro de criança, da mulher e do aleitamento materno.
2012, ficando estas tendo que alterar o fluxo. Na esfera estadual, também foram fortale-
Esta para mim foi uma das situações mais cidos vínculos já existentes com gestores, co-
difíceis de manejar, pois havia um posicio- ordenadores e técnicos da Área Técnica da
namento contrário muito forte por parte de Saúde da Mulher e da Criança. Nessa esfera,
alguns gestores intermediários da SMS em construí vínculos com o grupo condutor da
alterar o fluxograma. Rede Cegonha da Secretaria de Estado da

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Saúde de Santa Catarina (SES/SC), vários paradigmáticas acerca do que é cuidar/


apoiadores do MS, consultores do Método cuidado e contribuíram para reforçar minhas
Canguru, entre outros. crenças e minha visão de cuidado, ou seja,
Na esfera federal, a construção de víncu-
los cooperativos foi muito expressiva e sig- [...] o cuidado como algo que envolve a possi-
nificativa tanto do ponto de vista qualitativo bilidade de escutar e de ser escutado, de aco-
quanto quantitativo. Foram visíveis os dife- lher e ser acolhido, de reconhecimento das di-
rentes momentos que vivenciei o estabeleci- ferenças na busca das melhores soluções, em
mento e construção de vínculos cooperativos qualquer nível de relações. De poder trabalhar
com a coordenação nacional da CGSCAM e a considerando a interdisciplinaridade, a inte-
Coordenação-Geral da Saúde da Mulher do gralidade, as ações compartilhadas, a forma-
MS e suas equipes, com os demais consulto- ção de vínculos de confiança, a construção de
res estaduais e nacionais da CGSCAM, com um compromisso de corresponsabilidade etc.,
os pesquisadores envolvidos com a formula- mas de modo efetivo e para além dos protoco-
ção da PNAISC, com os integrantes da EBBS los de recomendações, que são necessários,
— coordenadoras e tutoras —, entre outros. no entanto nem sempre funcionam. Cuidado,
aqui, se refere a experiência-de-existir-com-
-o-outro presente em qualquer situação da
Ampliação e vida. (PITOMBO; ROSARIO, 2012, P. 5).
aprofundamento da
Em relação às políticas, ampliei minha
compreensão da noção de consciência para a importância de que
cuidado o cuidado sensível deve transversalizá-
-las, considerando que é a sua presença na
O cuidar/cuidado, tanto do ponto de vista construção de vínculos, expresso de forma
prático quanto do ponto de vista teórico, amorosa entre os atores envolvidos, que dá
tem sido meu companheiro em minha tra- sustentabilidade ao ambiente facilitador da
jetória profissional como enfermeira, seja vida, possibilitando outros modos de existir,
na atividade de docente, seja na ativida- pautados em um processo de viver mais so-
de assistencial e gerencial, adquirindo um lidário, “mais valorizador das diferenças e
sentido especial em minha experiência suas desestabilizações, mais colaborativo e
vivida. Tenho procurado ampliar a noção de mais democrático” (PASSOS ET AL., 2014, P. 806).
cuidado, e cada vez que aprofundo o tema,
percebo a complexidade das dimensões que
o comporta. Apropriação do
Na experiência vivida como consultora, a conhecimento teórico
noção de cuidado, do ponto de vista teórico,
foi aprofundada por meio da leitura de
sobre o desenvolvimento
textos, entre os quais, destaco: ‘O cuidado, os emocional infantil
modos de ser (do) humano e as práticas de
saúde’, autoria de José Ricardo de Carvalho Em relação à apropriação de conhecimento
Mesquita Ayres (2004), ‘As diversas faces do teórico sobre o desenvolvimento emocional
cuidar: considerações sobre a clínica e a infantil, destaco os temas apresentados no
cultura’, de Luis Cláudio Figueiredo (2009), ‘Seminário Internacional de Políticas para
e ‘O que significa mesmo o Cuidado?’, de o Desenvolvimento Integral na Primeira
Leonardo Boff (2012). Esses textos me con- Infância’, em que foram abordados e discu-
vidaram a refletir sobre novas perspectivas tidos assuntos extremamente relevantes e

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atuais sobre a temática, entre os quais salien- na maturidade, uma independência relativa;
to a apresentação do vídeo intitulado ‘As ex- e 3) A terceira maneira que a própria mãe é
periências moldam a arquitetura do cérebro’, necessária, e não ‘uma turma de excelentes
produzido pelo Center on the Developing pessoas de boa vontade’, diz respeito ao que
Child (CDC) (2012), da Universidade de o autor denomina de ‘desilusionamento’, até
Harvard, tendo como foco a neurociência e que a criança fique habilitada a livrar-se da
o desenvolvimento infantil; a apresentação dependência inerente às fases iniciais. Ao
feita por Liliane Mendes Penello, intitulada finalizar, o autor enfatiza o princípio de que
‘A importância do fomento ao vínculo e ao o desenvolvimento emocional do bebê, espe-
ambiente facilitador à vida na construção da cialmente no início, só pode ser bem conso-
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde lidado na base das relações com uma pessoa
da Criança’; e a leitura do texto recomendado que idealmente ‘deveria ser a mãe’. Quem
‘Os bebês e suas mães’, do psicanalista Donald mais sentirá e fornecerá o que é preciso?
Winnicott (1994), em que focaliza a importân- O texto de Winnicott (1994) por um lado
cia da mãe no desenvolvimento emocional me convidou a refletir sobre a importância
do bebê cujos efeitos, segundo o autor, são da mãe como elemento central no desenvol-
de importância crucial para o indivíduo por vimento emocional infantil, mas por outro,
se estenderem para além da infância. Muitos suscitou inquietações acerca da contribuição
problemas da fase adulta estariam vincula- do pai nesse contexto.
dos a disfunções ocorridas entre a criança e
o ‘ambiente’, representado geralmente pela
presença (ou não) da mãe. Nesse particular, Método Paidéia como
o autor apresenta três pontos para sustentar proposta de apoio à
sua tese. 1) Considera que a mãe (e não outra
pessoa) é necessária como pessoa viva, pre-
cogestão de coletivos
sente, de forma não platônica no início da organizados para o trabalho
vida para o desenvolvimento físico e também
emocional do bebê. Deve existir completo No processo de formação que acompanha
acesso ao corpo vivo, presente, da mãe, com o desenvolvimento de nossas atividades,
troca de calor, de carinho, de estímulos sen- conheci o Método Paidéia (ou Método da
soriais, auditivos, táteis, entre outros. Roda) como proposta de apoio à cogestão
Também destaca a importância da alimen- de coletivos organizados para o trabalho
tação infantil bem-sucedida, considerando (CAMPOS, 2000; CUNHA; CAMPOS, 2010). Esse Método
uma parte essencial da educação da criança. busca expandir a capacidade das pessoas de
A amamentação materna ganha destaque não aprenderem a lidar com o poder, com a cir-
só pelo valor nutritivo do leite materno, mas culação de saberes e afetos. Caracteriza-se
sobretudo pelas trocas, pelo estabelecimento principalmente por assumir compromisso
e fortalecimento do vínculo que se estabelece com a democracia institucional, reconhecer
entre a mãe e o bebê. 2) A mãe é necessária a importância da pluralidade e a transversa-
para apresentar o mundo ao bebê; o bebê lidade das instituições, apostar na politiza-
precisa conhecer o que está a seu redor, e é ção da gestão, entre outras. Como resultado,
importante que isso seja feito pela própria “pretende contribuir para o desenvolvimento
mãe. Nos primeiros meses de vida, o bebê da capacidade de tomar decisões, lidar com
depende totalmente do ambiente, e vai, com conflitos, estabelecer compromissos e con-
o crescente amadurecimento, tornando-se tratos” (CAMPOS ET AL., 2014, P. 985), aumentando
cada vez mais independente, alcançando, as chances dessas pessoas agirem sobre todas

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essas relações. Aponta para o reconhecimen- formas de organização dos serviços e novos
to da possibilidade de instituir compromissos modos de produção e circulação de poder.
coletivos e para a necessidade de democrati-
zar o poder em todas as dimensões da vida
institucional e social (CAMPOS ET AL., 2014). A relação entre o apoiador
Nesse particular, destaco que desde o institucional e a equipe
início de minhas atividades como consultora
do MS no estado de Santa Catarina e capital, O apoio institucional, entendido como um
essa tem sido uma prática fortemente pre- “recurso metodológico que busca reformular
sente. Compromissos institucionais coletivos os tradicionais mecanismos de gestão”, con-
e essencialmente democráticos têm sido ins- siste em um modo para se realizar a cogestão
tituídos entre sujeitos com distintos graus de que requer “postura interativa, tanto analíti-
saber e de poder, envolvendo gestores, pro- ca quanto operacional” (CAMPOS ET AL., 2014, P. 987).
fissionais, técnicos, entre outros, tanto para a É um tema estratégico e propõe uma nova
contratualização, elaboração de protocolos, maneira de produzir democracia nas institui-
formação, planejamento, avaliação e moni- ções. Ele amplia a capacidade de reflexão e
toramento de eixos (Atenção humanizada, análise das pessoas, que podem qualificar sua
qualificada à gestação, parto, nascimento e intervenção em saúde, seu trabalho em saúde
recém-nascido – Rede Cegonha, Promoção e sua capacidade de produzir mais e melhor
e Acompanhamento do Crescimento e do saúde. O apoiador institucional atua ‘com e
Desenvolvimento Integral, Aleitamento na constituição de coletivos organizados’,
Materno e Alimentação Complementar, em ‘espaços de poder compartilhados’, que
Atenção Integral à Crianças com Agravos se organizam para produzir saúde, tendo um
Prevalentes na Infância e com Doenças papel ativo na ‘cogestão, na roda de gestão e
Crônicas e Atenção Integral à Criança na coprodução’, conceitos estes abordados
em Situação de Violências, Prevenção de no texto.
Acidentes e Promoção da Cultura de Paz), Essa função de apoio institucional é chave
como para a formulação de políticas, como a para que grupos e organizações transformem
da PNAISC. sua gestão e avancem para a democracia
Também o Fórum Perinatal e as rodas de institucional. O apoio institucional busca,
conversa com o apoio integrado constituem- então, reformular o modo tradicional de se
-se em espaços coletivos, participativos e fazer coordenação, planejamento, supervi-
democráticos onde há compartilhamento de são e avaliação em saúde, para que ocorram
poderes, saberes e subjetividades. A relação é, as transformações necessárias nas organiza-
antes de mais nada, um encontro pessoal, no ções. E essas transformações têm sido per-
qual circulam afetos, subjetividades, e nesse ceptíveis em meu território.
encontro estão todos seus potenciais. Como
resultado do uso desse Método, que possibi-
lita e reconhece a importância, a pluralidade Transferência e
e a interpenetração (transversalidade) das contratransferência entre a
instituições, é possível perceber ampliação
da grupalidade solidária e inovações nas prá-
equipe e o apoiador
ticas gerenciais e nas práticas de produção de
saúde, propondo para os diferentes coletivos/ Para que o efeito ‘Paidéia’ se cumpra, efeito
equipes implicados nessas práticas o desafio este compreendido como “o trabalho reali-
de superar limites e experimentar novas zado para ampliar a capacidade das pessoas

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para lidar com informações, interpretá- como também a Iniciativa Hospital Amigo da
-las, compreender a si mesmas, aos outros Criança (IHAC), Bancos de Leite Humano,
e ao contexto” (CAMPOS ET AL., 2014, P. 985), são Método Canguru, nos comitês (Aleitamento
necessários vários procedimentos metodo- Materno, Mortalidade Materna, Fetal e
lógicos. Um desses procedimentos que me Infantil), Apoio Integrado, entre outros
chamou a atenção é o reconhecimento de eixos. Cito, à guisa de exemplo, a experiên-
que há ‘transferência e contratransferência’ cia vivenciada em uma maternidade pública
entre a ‘equipe e o apoiador’. O conceito de vinculada à SES/SC, em que inicialmente seu
transferência, nesse Método, é utilizado na corpo clínico (médico) rejeitava a ideia de
cogestão para indicar que há fluxo de afetos. implantar um Centro de Parto Normal intra-
Desejos, bloqueios, interdições, que cruzam -hospitalar, em contraposição ao desejo das
os espaços coletivos sem que os envolvidos enfermeiras obstétricas atuando na institui-
tenham plena consciência desses movimen- ção. Após várias rodas de conversas com os
tos. Há, portanto, afeto, luta pelo poder e con- atores implicados (direção, neonatologistas,
flito nas relações que se estabelecem entre os obstetras, enfermeiras e demais profissionais
membros de uma equipe, destes com o apoia- envolvidos, apoiadores institucionais do MS,
dor e vice-versa. Reconhecer que há circu- gestores da SES/SC), decidiu-se no coletivo a
lação de afeto é reconhecer que as pessoas implantação de um Centro de Parto Normal
em cogestão se afetam, gerando incômodo, intra-hospitalar nessa maternidade.
desafio, inveja, disputa, simpatia, mudança
e ódio entre elas. Processos de produção de
afetos em que as pessoas transferem às outras Descrição de algumas
características estereotipadas, o que as esti- situações vividas para
mula a criarem padrões fixos de relação, os
quais podem bloquear a cogestão Paidéia
ilustrar as reflexões
dos coletivos. Assim, reconhecer a existência realizadas
desses processos, analisá-los com crítica e in-
tervir sobre os significados transferidos é um Teria inúmeras situações vividas ilustrando
poderoso recurso de gestão. A transferência as reflexões realizadas. Destas, selecionei
é um processo dialético, em que as partes a minha participação e contribuição para a
influem sobre a construção do significado adesão e implantação da Rede Cegonha no
atribuído ao outro, ao coletivo e ao resultado estado de Santa Catarina e capital, uma das
do trabalho. ações eleitas como prioritárias.
Fazendo uma avaliação à luz do conteú- No início de minhas atividades como con-
do do texto, no que se refere às modalidades sultora, em maio de 2012, todos os estados
predominantes de construção de transferên- brasileiros já haviam aderido à Rede Cegonha
cia entre a equipe e o apoiador, percebo em e se encontravam em adiantado processo
minha experiência como apoiadora institu- de implantação, exceto Santa Catarina e
cional a modalidade três, ou seja, a que con- Maranhão. A partir de então, foi iniciado um
templa ‘o processo de transferência criador trabalho de cogestão — compreendido como
ou crítico é a que tem prevalecido’. Tal cons- um sistema de gestão que pretende elimi-
tatação se dá em vários espaços, seja na SES/ nar a separação entre quem planeja, quem
SC (de forma mais intensa), na Secretaria executa, quem gere, quem avalia, tendo como
Municipal de Saúde de Florianópolis, nos ponto de partida a construção de contrato es-
fóruns, nas reuniões técnicas, nas instituições tabelecendo expectativas, objetivos, regras e
hospitalares que aderiram à Rede Cegonha, método de trabalho no sentido de sensibilizar

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instituições, gestores e equipes, visando às rica e significativa em termos de aquisição


transformações necessárias, unindo esforços de novos conhecimentos teóricos, práticos
onde o apoiador institucional (consultor da e no desenvolvimento de habilidades, espe-
CGSCAM, apoiador temático, de referência cialmente as interpessoais, tanto no que se
e de serviço) desempenhou e continua a de- refere às atividades desenvolvidas em grupo
sempenhar papel primordial com as equipes (sejam as virtuais, por meio de fóruns grupais
e sujeitos implicados no processo. Como re- na Plataforma UniverSus dos coordenado-
sultado desse empreendimento — em que o res e consultores da saúde da criança para
apoiador institucional ofertou/oferta suporte a construção interfederativa da PNAISC), e
ao movimento de mudança deflagrado pelos encontros presenciais (por meio de fóruns,
coletivos, buscando fortalecê-los no próprio seminários, reuniões, encontros, oficinas
exercício da produção de novos sujeitos de formação), quanto no que diz respeito
em processos de mudança, constituindo-se às atividades desenvolvidas de forma indi-
tarefa primordial do apoio —, em dezembro vidual, por intermédio da leitura de textos
de 2012, três regiões de saúde eleitas como sugeridos e complementados por iniciativa
prioritárias em nosso estado já tinham seus própria. Fazendo um balanço do que resultou
planos de ação aprovados nas instâncias ne- para mim, sem dúvida, o saldo foi altamente
cessárias e suas portarias publicadas pelo MS, positivo.
seguida da contratualização dos serviços. Acredito que o meu estoque de experiên-
Desde agosto de 2013, as demais regiões cia e de conhecimento acumulados ao longo
de saúde do estado de Santa Catarina, em de minha trajetória profissional, associados
número de 13, também aderiram à Rede à aquisição e sedimentação de novos conhe-
Cegonha, totalizando 100% de adesão, ou cimentos, novas experiências e o desenvol-
seja, as 16 regiões de saúde existentes nesse vimento de novas habilidades, contribuiu e
estado já desenvolveram seus planos de ação, vem contribuindo significativamente para
em espaços coletivos, democráticos, parti- minha atuação como consultora do MS da
cipativos, suas portarias também já foram CGSCAM no estado de Santa Catarina e sua
assinadas e publicadas pelo MS, e as mudan- capital.
ças que se fazem necessárias estão ocorren- Além desses aspectos, destaco também
do com muitas rodas de conversas. Enfim, os encontros presenciais possibilitando a
a meu ver, este é um exemplo concreto de troca de experiências por meio de rodas de
minha prática cotidiana, que ilustra bem a conversa e debates com vistas à reflexão de
relação apoiador institucional e equipe e que situações inerentes ao processo de trabalho,
mostra o efeito Paidéia. bem como as estratégias adotadas para o
fortalecimento de vínculos entre os profis-
sionais participantes, competência técnica,
Considerações finais apoio político, estabelecimento de parcerias,
adoção de metodologias construtivistas no
Em linhas gerais, a experiência vivida em processo de trabalho, valorizando o saber
relação às ‘atividades de formação’ na quali- prévio e as experiências dos atores envolvi-
dade de consultora do MS para a CGSCAM dos, conhecimento prévio do território, ex-
aqui relatada foi e continua sendo bastante periência de gestão pública anterior. s

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Referências

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 84-93, MAR 2016
94 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Enfermeira. Doutoranda
O que move o nosso trabalho? A experiência
1

em epidemiologia pela
Universidade Federal de
Pelotas (UFPel) – Pelotas
(RS), Brasil. Consultora
do consultor da saúde da criança e
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do aleitamento materno em apoiar as ações nos
territórios
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma What moves our work? The experience of child health consultant and
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde breastfeeding support actions in the region
da Criança (PNAISC) no
estado do Espírito Santo.
wanipp@gmail.com Wanêssa Lacerda Poton1, Sonia IsoyamaVenâncio2, Rosane Siqueira Vasconcellos Pereira3, Daniel
2 Médica. Doutora em Pires de Carvalho4, Sílvia Helena de Araújo Carneiro5, Vânia Maria Andrade da Rocha6, Elizabeth
saúde pública pela Cruz Müller7
Universidade de São
Paulo (USP) – São Paulo
(SP), Brasil. Consultora
nacional da CGSCAM/
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e RESUMO Este artigo relata a experiência da consultoria na área de saúde da criança e
implantação de uma aleitamento materno (Coordenação-Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno)
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde do Ministério da Saúde nos estados do Acre, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro
da Criança (PNAISC). e Rondônia, na contribuição para a implementação das ações de saúde da criança nesses
soniav@isaude.sp.gov.br
territórios. O texto traz os desafios enfrentados na implantação da consultoria nos estados,
3 Médica. Mestre em como ocorreu a formação desse consultor e suas ações no território, bem como sua atuação
saúde coletiva pela
Universidade Federal nas redes de atenção à saúde. O resultado desse trabalho deu-se na transformação desse
Fluminense (UFF) – Niterói consultor, bem como no aumento das ofertas à saúde da criança no território e avanços a partir
(RJ), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/ da elaboração e aprovação da Política Nacional de Saúde da Criança, construída de forma
MS e colaboradora do coletiva.
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis PALAVRAS-CHAVE Saúde da criança; Consultores; Política de saúde.
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de ABSTRACT This article reports the experience of consulting in child health and breastfeeding
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no (CGSCAM) of the Ministry of Health in the states of Acre, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio
estado do Rio de Janeiro. de Janeiro and Rondônia, in contributing to the implementation of child health actions in these
rosanesvp@uol.com.br
territories. The text presents the challenges faced in the implementation process of consultancy
4 Médico. Mestre em in the states, how the training of those consultants was carried out and their actions in the
ensino em ciências da
saúde pela Universidade territories, as well as their performance in health care networks. The result of this work took
Federal de Rondônia place in the transformation of the consultants, as well as in the increasing of the offers to child
(Unir) – Porto Velho
(RO), Brasil. Consultor health in the territory and advances from the preparation and approval of the National Child
estadual da CGSCAM/ Health Policy, built collectively.
MS e colaborador do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e KEYWORDS Child health; Consultants; Health policy.
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no
estado de Rondônia.
dpdan007@hotmail.com

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 94-100, MAR 2016
O que move o nosso trabalho? A experiência do consultor da saúde da criança e aleitamento materno em apoiar as ações nos territórios 95

Introdução consultor, com imersão no território, pre-


tende valorizar sua singularidade e o ‘como
A Flor do Sonho fazer’ personificado em cada ser (CECCIM, 2005;
CUNHA; CAMPOS, 2010).
A Flor do Sonho, alvíssima, divina, Essa atuação no território promove uma
Miraculosamente abriu em mim, aproximação maior entre o Ministério da
Como se uma magnólia de cetim Saúde (MS), secretarias estaduais e munici-
Fosse flor ir num muro todo em ruína. pais de saúde para uma construção conjunta
e interfederativadas ações dirigidas à saúde
Pende em meu seio a haste branda e fina da criança. 5 Enfermeira. Especialista
E não posso entender como é que, enfim, Cabe ao apoiador levar ofertas de tecnolo- em urgência e emergência
Essa tão rara flor abriu assim!... gias duras (ofertas de melhoria na estrutura pela Universidade Federal
do Acre (Ufac) – Rio
Milagre... fantasia... ou, talvez, sina... física e aquisição de equipamentos) aos ges- Branco (AC), Brasil.
tores, trabalhadores e equipes, igualmente Consultora estadual
da CGSCAM/MS e
Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos, a oferta de tecnologias leves e leve-duras, colaboradora do projeto
Que tem que sejam triste sos meus olhos como as tecnologias das relações, facilitan- Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Se eles são tristes pelo amor de ti?!... do uma intervenção não só tecnocrata, mas Brasileirinhos Saudáveis
também de atuação nos conflitos e afetos que para formulação e
implantação de uma
Desde que em mim nasceste em noite calma, permeiam as rodas de conversa e de cogestão Política Nacional de
Voou ao longe a asa da minha’alma (MERHY, 1997). Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no
E nunca, nunca mais eu me entendi... O objetivo deste trabalho é relatar a ex- estado do Acre.
periência dos consultores/apoiadores da shacsasemeadora@gmail.com

(ESPANCA, F.) Coordenação-Geral de Saúde da Criança 6 Médica. Mestranda em


e Aleitamento Materno do Ministério da promoção de saúde e
prevenção da violência
O que move nosso trabalho é o desejo de Saúde (CGSCAM/MS) sobre a atuação do pela Faculdade de
oferecer uma atenção universal e integral às apoio à implementação das ações de saúde da Medicina da Universidade
Federal de Minas Gerais
crianças brasileiras, melhorando a qualida- criança nos estados do Acre, Espírito Santo, (UFMG) – Belo Horizonte
de de vida e promovendo o desenvolvimen- Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rondônia, (MG), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/
to pleno da infância, base para a formação a partir da percepção dos Consultores de MS e colaboradora do
de um indivíduo saudável. Nesse contexto, Saúde da Criança (CSC) que atuam nesses projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
agregamos um olhar especial para gestores e territórios. Brasileirinhos Saudáveis
profissionais de saúde, atores fundamentais para formulação e
implantação de uma
nesse cenário. O trabalho isolado não daria Política Nacional de
conta desse cuidado holístico, pois a inte- O apoiador e o território: Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no
gralidade, um dos princípios doutrinários sua inserção em uma rede estado de Minas Gerais.
vaniarocha@gmail.com
do Sistema Único de Saúde (SUS), é objeto/
objetivo das redes de atenção à saúde (CECÍLIO,
de relações 7 Psicóloga. Mestre em
2001; ALECRIM; DOBASHI, 2014). psicologia clínica pela
Pontifícia Universidade
O consultor surge, então, com o ofício A consultoria da saúde da criança e do Católica do Rio de
de promover reflexão e análise dos contex- aleitamento materno foi inserida no terri- Janeiro (PUC-RJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
tos da atenção à saúde, contribuindo para tório brasileiro desde março de 2012 pela Consultora pedagógica do
a construção de uma linha de cuidado que CGSCAM/MS, em parceria com a Estratégia projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
atenda integralmente à criança, tendo como Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis Brasileirinhos Saudáveis
grande desafio disparar nos atores a produ- (EBBS), com o objetivo de fortalecer as para formulação e
implantação de uma
ção de novas subjetividades que promovam ações voltadas para a saúde da criança no Política Nacional de
mudanças efetivas nos processos de traba- território, promovendo uma articulação in- Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
lho e produção do cuidado. O trabalho do terfederativa, a fim de construir uma linha bmuller@centroin.com.br

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 94-100, MAR 2016
96 POTON, W. L.; VENÂNCIO, S. I.; PEREIRA, R. S. V.; CARVALHO, D. P.; CARNEIRO, S. H. A.; ROCHA, V. M. A.; MÜLLER, E. C.

de cuidado da atenção integral à criança, apoio, fomos vistos em princípio como fis-
favorecendo seu pleno desenvolvimento e a calizadores dos serviços. Houve um grande
redução da mortalidade infantil. gasto de energia e um desgaste emocional
Esse trabalho não veio ‘pronto’. Uma ca- razoável, até o alcance do reconhecimento
racterística que possibilitou o seu sucesso foi da função ‘apoio’. Passamos por diversos
a liberdade proporcionada ao consultor de conflitos de ordem relacional e de interesses
desenvolver suas ações a partir da realidade políticos, jogos de poder. Hoje esses conflitos
encontrada em seu território, construindo ainda surgem, mas com menos frequência e
relações durante esse processo, que foi ad- com um enfrentamento diferenciado: empo-
quirindo assim uma forma singular e não derados de saberes e das funções do apoio à
pré-formatada — espontânea — à medida implantação das ações de saúde da criança.
que o trabalho de formação dos CSC e sua Aprendemos inicialmente a cartografia, a
atuação eram desenvolvidos (MERHY, 1997). nossa inserção nos cenários dos territórios,
No início das nossas atividades como CSC um mapeamento, com a perspectiva de poder
nos territórios, tudo era inesperado, surpre- enxergar os atores-chave nesse contexto.
endente e desafiador. Entramos de um jeito Nosso campo de visão se ampliou muito, e al-
e saímos metamorfoseados, na junção de cançamos e pontuamos as pessoas certas que
vários uns (um pouco de cada afeto combi- teríamos que apoiar nas ações. O reconhe-
nado). Não tínhamos ideia das mudanças cimento da necessidade de conhecer esse
que estariam por acontecer no nosso modo componente cartográfico dos diferentes ter-
de agir e de pensar e qual desafio teríamos ritórios que compõem o espaço que iríamos
pela frente. Aliás, não tínhamos a dimensão atuar, de modo que se tivesse uma visão
do que significava essa nossa nova função. O permanente das deficiências e potencialida-
coletivo de CSC foi formado com uma diver- des, mostrou-se fundamental para nortear a
sidade de profissionais de saúde com vivên- nossa atuação governamental. Revelou-se aí,
cias no SUS; o sentido seria dado à medida portanto, a importância da cartografia como
que o trabalho dos CSC fosse sendo constru- instrumento de planejamento e gestão das
ído. O mais interessante é que esse coletivo nossas futuras ações.
diversificado trabalharia compartilhando as
suas angústias, dificuldades, experiências,
vitórias, ou seja, multiplicidades de senti- A construção das ações
mentos voltados para um bem comum maior. do consultor de saúde da
As dúvidas eram imensas, proporcionais ao
trabalho a ser realizado. Não tínhamos a di-
criança
mensão das mudanças que provocaríamos
nos nossos territórios e na nossa maneira de As ações do consultor foram e são apoiadas
agir e pensar em termos de políticas públicas por um tripé — tutoria da EBBS, consul-
voltadas para a saúde materno-infantil, com tor nacional e pesquisador — que norteou
foco na atenção integral à saúde da criança. a construção do processo de trabalho dos
O processo era muito novo para todos nós. CSC e possibilitou a renovação de cada con-
Aos poucos, fomos sendo conduzidos de uma sultor diante dos conflitos enfrentados a
forma muito sutil e despercebida, trilhando cada momento. Aprendemos a apoiar sendo
um caminho com muitas descobertas e ga- apoiados. Além do conteúdo formal, que
rantia de emoções inéditas. nos proporcionou o preparo para realizar o
A inserção do consultor não foi tão fácil, apoio às coordenações da saúde da criança
sendo heterogênea na diversidade territo- dos estados e capitais, utilizamos tecnolo-
rial do nosso País. Apesar da proposta ser de gias relacionais, como o apoio institucional,

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 94-100, MAR 2016
O que move o nosso trabalho? A experiência do consultor da saúde da criança e aleitamento materno em apoiar as ações nos territórios 97

condução de rodas de conversa e articulação locais, norteou nossa atuação enquanto re-
dos serviços no território, a partir da carto- presentantes do MS. Revela-se aí, portanto,
grafia e da produção de espaços coletivos a importância da ‘cartografia’ como instru-
(FRANCO; ANDRADE; FERREIRA, 2009). mento de planejamento e gestão das nossas
Além desses atores (consultor nacional, presentes/futuras ações (ROLNIK, 2006).
tutora da EBBS, equipe da CGSCAM), o pro- A segunda dimensão labutada com os CSC
cesso de trabalho do consultor foi construído foi a ‘grupalidade’: teve potência como um
também com a participação do pesquisador dispositivo de mudança que interferiu na for-
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que mação e se disseminou enquanto prática viva
nos trouxe, em vários momentos, a reflexão no dia a dia do consultor. A ‘grupalidade’ é
de nossas atividades, os avanços e os obstá- uma oferta ao trabalho em equipe, um espaço
culos por meio da devolutiva da pesquisa. para a produção de sentidos, mudanças, sub-
Esse foi um refletor que nos ajudou a realizar jetividades, sujeitos, saúde e para a constru-
a análise de nossas ações nos territórios com ção das nossas ações (BARROS, 2009).
destaques para as fragilidades e potenciali- Chegamos então ao ‘cuidado’, como aposta
dades, reconstruindo objetivos, produzindo de construção de um ambiente facilitador à
subjetividades e mudanças ininterruptas. vida, base para o desenvolvimento saudá-
Esse apoio aos CSC foi constante: en- vel da criança e da atenção qualificada ao
contros presenciais e virtuais, favorecendo binômio mãe-filho. O cuidado proporciona
a grupalidade e dando potência para o agir. um ambiente favorável ao processo de tra-
Os encontros virtuais ocorreram a partir da balho, para que gestores, trabalhadores e
Plataforma UniverSUS-EAD, instrumento usuários possam desenvolvê-lo com com-
importante que permitiu o contato constante prometimento para atingir a integralidade
entre os consultores e destes com suas tu- da atenção em saúde de forma humanizada.
torias e equipe da CGSCAM, por meio dos Aprendemos que o ‘cuidado’ é um modo de
fóruns, leituras e discussões de textos, trocas fazer na vida cotidiana que se caracteriza pela
de vivências no contexto dos trabalhos. Esses atenção, responsabilidade, zelo com pessoas
dispositivos nortearam as ações dos CSC em lugares e tempos distintos — estar impli-
por permitir a constante formação, troca cado (AYRES, 2004).
de ideias, experiências e esclarecimento de Poder ‘contar’ com a equipe da EBBS/
dúvidas. Fiocruz em nosso processo de formação
Durante o processo de trabalho dos CSC, a como consultores, em uma proximidade
EBBS dedicou-se a lapidar cada consultor, de afetiva, contato próximo, olho no olho, re-
modo a fortalecê-lo diante das demandas que ceptiva às fragilidades e potencialidades do
enfrentou/aria no território. Essa formação consultor, promoveu uma ampla, marcan-
compreendeu três dimensões: cartografia, te e profunda transformação. Isso nos deu
grupalidade e cuidado. coragem, ousadia e criatividade para atuar
A ‘cartografia’ foi o início de tudo: um ins- nos territórios em contato com os profissio-
trumento potencial de inserção nos territó- nais da gestão e do cuidado e para levar a
rios, um mapeamento com a perspectiva de estes ambientes essa ‘nova forma de fazer’,
poder enxergar os atores-chave dentro de seu como aprender, como ressignificar o trabalho
contexto. Nosso campo de visão se ampliou no cotidiano das práticas, incluindo o prazer
muito, proporcionando-nos o reconhecimen- nos processos de trabalho e de produção do
to das pessoas-chave para o apoio às nossas cuidado (BARROS; BARROS, 2007).
ações. Conhecer os diferentes territórios de Este prazer, que sempre fica à margem,
nossa atuação, fazer um diagnóstico perma- ‘não dito’, mas que faz toda a diferença. Prazer
nente das necessidades e potencialidades que precisamos resgatar no trabalhador

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 94-100, MAR 2016
98 POTON, W. L.; VENÂNCIO, S. I.; PEREIRA, R. S. V.; CARVALHO, D. P.; CARNEIRO, S. H. A.; ROCHA, V. M. A.; MÜLLER, E. C.

ou gestor para dar sentido ao seu trabalho. e demandas que foram surgindo como potên-
Trabalho vivo em ato, produtor de encontros cias para a atuação dos CSC.
e desencontros. Produzir encontros, ampliar Essa atuação foi integrada em parceria
a escuta, transformar as relações, essa foi a com outros apoiadores do MS, na qual os
tarefa dos CSC no território — transformar e CSC participaram do processo de habilitação
ser também transformado. Essas tecnologias e qualificação dos leitos neonatais, apoian-
das relações compreendem cerca de 80% da do a inserção de redes, trazendo as ofertas
produção do cuidado (MERHY, 1997). e propostas do MS, apoiando as instituições,
com um olhar especial para os gestores e os
profissionais de saúde, articulando os servi-
Os frutos desse trabalho ços, promovendo a conversa entre os atores
— tecendo redes —, partindo do pressuposto
Nos estados e regiões, a função dos CSC não que o trabalho isolado não dá conta da im-
é fazer por, é fazer com, lado a lado — um plementação do cuidado na saúde (FIGUEIREDO,
grande diferencial desse trabalho. Todo pro- 2009; CECÍLIO, 2001).
cesso de construção das ações de saúde da
criança ocorreu de forma coletiva e comparti-
lhada nos territórios. Maior destaque deve-se Novos e permanentes
à elaboração da Política Nacional de Atenção desafios
Integral à Saúde da Criança (PNAISC), de-
senhada nos encontros nacionais de coor- Apesar de avanços importantes, algumas di-
denadores de saúde da criança, agregando ficuldades precisam ser ponderadas, como a
todos os saberes, opiniões, desejos dos CSC, intensa rotatividade dos profissionais da Área
coordenadores estaduais e municipais, entre Técnica de Saúde da Criança, com algumas
outros atores presentes nesses encontros. equipes desfalcadas, e mudanças na gestão
Momento inédito e histórico de construção municipal e estadual, o que não impediu o
coletiva de uma política nacional. desenvolvimento das ações, mas reduziu o
Atuamos, em alguns momentos com par- ritmo do andamento dos processos para sua
ticipação ativa, na construção dos planos plena atividade.
regionais da Rede Cegonha (RC) e na sua A fragmentação do processo de trabalho
implantação em quase 100% das regiões dos nas equipes, tanto na gestão municipal como
estados de atuação dos CSC. Trabalhamos estadual e federal, compartimentalizadas em
na implementação da Iniciativa Hospital ‘caixinhas’ e setorizadas, ainda constitui um
Amigo da Criança/Organização Mundial desafio para o trabalho integrado.
da Saúde/Fundo das Nações Unidas para a Um planejamento pautado em resultados
Infância (IHAC/OMS/Unicef ) com a inclu- concretos, a partir de um monitoramento
são do Cuidado Amigo da Mulher, Método de indicadores que avaliem a estrutura, os
Canguru, Estratégia Amamenta e Alimenta processos e os resultados, faz-se necessário
Brasil (EAAB), Atenção Integral às Doenças para o acompanhamento das ações dos CSC
Prevalentes na Infância (AIDPI) Neonatal, no território, bem como para a avaliação da
Mulher Trabalhadora que Amamenta gestão, de forma a dar visibilidade ao traba-
(MTA), fortalecimento dos Bancos de Leite lho e orientar as tomadas de decisão.
Humanos, Linha de Cuidado para a Atenção
Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes
e Famílias em Situação de Violências, am- Considerações finais
pliação da Triagem Neonatal, inclusão do
Palivizumabe no SUS, entre outras estratégias O empoderamento dos CSC vem sendo

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 94-100, MAR 2016
O que move o nosso trabalho? A experiência do consultor da saúde da criança e aleitamento materno em apoiar as ações nos territórios 99

constituído, de forma permanente, ao longo mostrou-se como uma aposta que ligou
do processo de um novo modo de construção todas as ações de saúde da criança nos ter-
das ações de saúde da criança no território. ritórios e mobilizou trabalhadores e gestores
Mesmo assim, gargalos ainda acontecem nos espaços de discussão e rodas de conversa
nesse caminho. A formação permanente, para refletirem sobre suas práticas, ressigni-
por meio dos encontros nacionais, com ar- ficando o trabalho e indo ao encontro das
ticulação interfederativa, paralelamente aos necessidades do usuário e da integralidade
encontros de formação da EBBS/MS, são do cuidado, objetivo maior do trabalho em
instrumentos para o fortalecimento do papel saúde.
do consultor. Essa forma de trabalho nos fez crescer
Tendo em vista os grandes desafios pro- como seres humanos. Aprendemos a cuidar
postos no início do trabalho do consultor, sendo cuidados, em um processo de trans-
além das dificuldades encontradas no seu mutação permanente. Hoje, como CSC,
decorrer, observam-se avanços no processo podemos voar e alcançar destinos longín-
de trabalho da Área Técnica de Saúde da quos, inimagináveis em todos os sentidos das
Criança, tanto municipal quanto estadual. nossas vidas: profissional, pessoal e familiar.
Para que esse apoio institucional pro- O que ganhamos não pode ser dimensio-
porcionado pelos CSC possa continuar nado nem mensurado; nos tornamos seres
contribuindo nos processos de mudança na humanos diferenciados, graças a toda essa
atenção e gestão, é fundamental que se man- iniciativa maravilhosa voltada para um SUS
tenham estratégias exitosas, tais como os en- melhor e para um Brasil melhor, com mais
contros presenciais e a distância (por meio saúde.
da Plataforma UniverSUS), o processo de
formação permanente dos consultores, bem
como sua inserção no território próxima às Agradecimentos
coordenações municipal e estadual da saúde
da criança, facilitando o processo de integra- Agradecemos a toda a equipe da Estratégia
ção entre os entes federativos. Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis
(EBBS/IFF/Fiocruz) e da CGSCAM, em
especial à nossa tutora da EBBS, Elizabeth
Conclusão Müller, à nossa consultora nacional, Sonia
Venâncio, e aos pesquisadores Jorge Zepeda
Estamos no caminho certo. O consultor e Bruno Emerich. s

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 94-100, MAR 2016
RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY 101

Psicanalista. Doutora
Construção de confiança e reconhecimento
1

em saúde coletiva
pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) – Rio de Janeiro
no processo de formação ministrado pela
(RJ), Brasil. Consultora
para desenvolvimento Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos
Saudáveis aos consultores estaduais da saúde
infantil e formação
de grupos e tutora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis da criança do Ministério da Saúde
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Trust building and recognition in the training process lectured by
Atenção Integral à Saúde the Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis to state
da Criança (PNAISC).
msmaia@centroin.com.br consultants of child health of the Ministry of Health
2Enfermeira. Especialista
em saúde pública pela
Marisa Schargel Maia1, Ariane Tiago Bernardo de Matos2, Helga Muller Mengel3, Hermila
Fundação Educacional
de Goiás (FEG) – Goiânia Tavares Vilar Guedes4, Maria José Guardia Mattar5, Ricardo César Caraffa6, Rosimeire da Mota
(GO), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/
Barros Aires7, Sebastião Leite Pinto8
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de RESUMO Analisamos neste artigo as dimensões éticas e subjetivas da noção de reconhecimento
Atenção Integral à Saúde implicadas no processo de formação conferida pela Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos
da Criança (PNAISC) no
Distrito Federal. Saudáveis aos consultores estaduais do Ministério da Saúde. Nosso principal objetivo foi
matos.ariane@gmail.com contribuir para a formulação e implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
3Assistente social e da Criança. Conclui-se que trabalhar a ‘escuta implicada’ como habilidade específica, a qual
sanitarista. Especialista estimula o reconhecimento das potencialidades e das fragilidades próprias e do outro durante
em saúde coletiva pela
Universidade Federal o processo de formação, foi um agente facilitador para a construção de redes de confiança,
de Sergipe (UFS) – São desdobrando-se como importante ferramenta para incentivar o processo cooperativo no
Cristóvão (SE), Brasil.
Consultora estadual campo de trabalho.
da CGSCAM/MS e
colaboradora do projeto
Contribuições da PALAVRAS-CHAVE Gestão de qualidade total; Saúde global; Confiança; Habilidades sociais.
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e ABSTRACT We analyze in this article the ethical and subjective dimensions of the notion
implantação de uma of recognition implicated in the training process granted by Estratégia Brasileirinhas e
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde Brasileirinhos Saudáveis to the state consultants of the Ministry of Health. Our main goal was
da Criança (PNAISC) no to contribute to the formulation and implementation of the National Policy for Comprehensive
estado de Sergipe.
mengelsales@hotmail.com Child Health Care. We conclude that working the ‘involved listening’ as a specific skill, which
stimulates the recognition of one’s own potential and weaknesses and of the other during the
4 Pediatra. Doutora em
medicina e saúde pela training process was a facilitator for building trust networks, unfolding as an important tool to
Universidade Federal da encourage the cooperative process at the work field.
Bahia (UFBA) – Salvador
(BA), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/ KEYWORDS Total quality manegement; Global heath; Trust; Social skills.
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde

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102 MAIA, M. S.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; GUEDES, H. T. V.; MATTAR, M. J. G.; CARAFFA, R. C.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.

da Criança (PNAISC) no
estado da Bahia. Quanta responsabilidade! Há 2 anos atrás em formação/capacitação dos 27 consultores
hermila.guedes@gmail.com Brasília nos reuníamos para iniciar a tal con- estaduais do Ministério que atuariam nos 26
5 Médica pediatra sultoria. E o que seria isso? Eram perguntas estados e no Distrito Federal.
e neonatologista. de todos os lados. E todos tentavam entender O objetivo da EBBS era formar gestores/
Especialista em ciências
da saúde pelo Hospital e as respostas nunca eram satisfatórias. Mas consultores para atuarem como ‘braços’ do
Maternidade Leonor afinal qual é o papel do consultor? Foram três Ministério da Saúde na construção do pacto
Mendes de Barros/
Secretaria de Estado dias muito estressantes. Tive sentimentos os interfederativo em torno da implementa-
da Saúde – São Paulo mais diversos: medo, ansiedade, curiosidade. ção de práticas de saúde que já apontassem
(SP), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/ A vontade era de desistir porque ninguém me para a construção da PNAISC. No entanto,
MS e colaboradora do respondia. Voltei para casa sem saber ao certo para além dos conteúdos programáticos ne-
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e o que fazer. Como iria fazer a consultoria? cessários ao exercício da função, o desafio
Brasileirinhos Saudáveis Como iria ser recebida no território? Como enfrentado foi de transmitir um modo de
para formulação e
implantação de uma diz o ditado ‘santo de casa não faz milagre’. fazer/ser consultor. Afinal, o consultor é um
Política Nacional de Foram muitas as emoções... facilitador, um mediador (muitas vezes de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no conflito) em seu território, um catalizador
estado de São Paulo. Esse foi o relato de uma das consultoras, de discursos e afetos, em que habilidades
mjgmattar@hotmail.com
mas que traduz, em certa medida, a sensação específicas são necessárias. Desse modo, um
6 Pediatra. Mestre de todos nós que iniciamos nessa jornada deslocamento subjetivo seria fundamental:
em saúde coletiva
pela Universidade como consultor estadual, como consultor precisavam desenvolver a arte da escuta e,
Estadual de Campinas nacional, tutor, pesquisador ou técnico da para isso, necessitavam desenvolver uma
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Consultor Coordenação-Geral da Saúde da Criança. sensibilidade empática; aprender a arte do
nacional da CGSCAM/ Cada um trazia um motivo pessoal e profis- acolhimento, disponibilizando-se a desfazer
MS e colaborador do
projeto Contribuições da sional para estar ali, mas, juntos, tínhamos nós relacionais; também era fundamental
Estratégia Brasileirinhas e como objetivo contribuir para elaboração que aprendessem a fomentar redes de coo-
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e e execução de uma ousada tarefa: a formu- peração, diminuindo os aspectos competi-
implantação de uma lação e implantação da Política Nacional tivos das relações institucionais. De acordo
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde de Atenção Integral à Saúde da Criança com o nosso grupo 23,
da Criança (PNAISC). (PNAISC). O projeto1 se constituiu por três
rcaraffa@terra.com.br
eixos: Com o conhecimento e habilidades que adquiri-
7 Enfermeira. Cursando 1) Gestão – consultores estaduais (CE), mos ao longo do nosso percurso na formação e
especialização em
enfermagem neonatal e consultores nacionais (CN), técnicos da no exercício da função de consultores no territó-
pediátrica no Instituto Coordenação-Geral de Saúde da Criança rio, potencializamos ainda mais as nossas expe-
Tocantinense de Pós-
Graduação (Itop) – Palmas e Aleitamento Materno do Ministério da riências e amadurecemos nossas relações com os
(TO), Brasil. Consultora Saúde (CGSCAM/MS), coordenação geral gestores locais. Construímos entre nós um elo de
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do da CGSCAM; confiança através do testemunho e da troca so-
projeto Contribuições da 2) Formação – consultores para desen- bre as fragilidades que enfrentamos nos nossos
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis volvimento infantil (também responsável caminhos. As fragilidades compartilhadas foram
para formulação e pela tutoria) e coordenação técnica, ambos material de formação-intervenção nos permitin-
implantação de uma
Política Nacional de da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos do modelar nossas práticas de trabalho com mais
Atenção Integral à Saúde Saudáveis (EBBS); segurança e embasamento teórico.
da Criança (PNAISC) no
estado de Tocantins. 3) Pesquisa – pesquisadores e seu
rosaires1@hotmail.com.br coordenador. Sabemos que não basta juntar pessoas,
8 Pediatra. Especialista em Com esse horizonte, coube à EBBS2 con- mesmo que especializadas e experientes,
pediatria pela Associação tribuir e participar da construção de um para que haja o estabelecimento de um grupo
de Médicos Brasileira
(AMB) – São Paulo pacto interfederativo que desse sustentação de trabalho. É necessário um passo a mais
(SP), Brasil. Consultora para a formulação e implantação da PNAISC, para que se potencialize o trabalho grupal,
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do assumindo a responsabilidade pelo eixo de sobretudo para se construir uma grupalidade

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Construção de confiança e reconhecimento no processo de formação ministrado pela Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis aos consultores estaduais da saúde da 103
criança do Ministério da Saúde

cooperativa entre os agentes implicados no as habilidades de comunicação não verbal,


projeto Contribuições da
processo, a partir da qual o grupo pode ad- úteis para estabelecer vínculo positivo com Estratégia Brasileirinhas e
quirir a qualidade de dispositivo. Com esse os agentes implicados, favorecendo a com- Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
fim, privilegiou-se, no processo de formação, preensão e a construção de uma cartografia implantação de uma
a experimentação nas oficinas de trabalho: do campo em questão. ‘Ouvir’ com os olhos, Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
os consultores deveriam experimentar em com os sentidos, enfim, com a sensibilidade da Criança (PNAISC) no
nosso coletivo aquilo que queríamos trans- a partir de uma implicação empática é de estado de Goiás.
slpinto19@gmail.com
mitir. Algo da ordem de um sentido4 do tor- suma importância porque nos permite lidar
nar-se um facilitador de processos grupais com as complexas questões da gestão com NOTAS EXPLICATIVAS:
precisava ser transmitido, mas sua dimensão maior tato. A partir dessa escuta, pode-se 1O projeto foi financiado
mais profunda não se encontrava no campo analisar, sintetizar e devolver conteúdos pelo Fundo Nacional de
Saúde via Convênio com o
da significação, mas no âmbito do sensível. para que as equipes compreendam a reali- IFF/Fiocruz.
Diante dessa perspectiva, nos pusemos a re- dade local. Sublinha-se, aqui, que durante a
2 Em sua concepção, a
fletir sobre a experiência vivida no processo comunicação, a escuta é parte do processo EBBS se apoia em uma
de formação e destacamos dois aspectos que de comunicação; quando nos colocamos em compreensão de saúde
ampliada, valorizando
consideramos fundamentais para a possibili- uma posição de escuta em que a empatia é as etapas iniciais do
dade de construção da ‘função de facilitador’ nuclear, oferecemos ao outro um acolhimen- desenvolvimento humano
como espaço potencial
do consultor: to a partir do qual será possível experimen- de produção e promoção
tar ‘juntos’ angústias e necessidades. de saúde. Busca aplicar
na práxis de saúde a ideia
Parece simples, mas desenvolver em si a de que saúde é fruto da
1º. Escuta implicada capacidade de ouvir empaticamente exige integração do ser humano
ao ambiente social em que
um trabalho interno de remanejamento vive, dando ênfase àquele
Não se trata de qualquer escuta, é preciso subjetivo, afinal, em nossa cultura, a apren- encontrado nos primórdios
da vida. Com o objetivo
qualificá-la: transformar a escuta comum dizagem mais difundida é a limitação da ca- de oferecer uma formação
em arte de ouvir, compartilhar e entrar em pacidade de empatia. Treina-se a habilidade que atenda ao cuidado em
saúde, utiliza um método
sintonia com o outro, parceiro da experiên- de anestesia da empatia todos os dias quando, de trabalho construtivista
cia de comunicação. A ‘escuta implicada’ é por exemplo, passa-se por crianças necessi- centrado em três eixos
fundamentais: cuidado,
um poderoso instrumento para aprofundar tadas e drogadas nas ruas e faz-se como se cartografia e grupalidade.
o entendimento dos meandros dos processos fossem invisíveis. Com certeza, esse é um
3 No processo de
subjetivos implicados nas ações de gestão. A processo psicológico defensivo que exige um trabalho colaborativo
partir dessa diferença qualitativa, pode-se aprofundamento que não cabe neste escrito; os 27 consultores foram
divididos em 5 grupos:
atuar com os coletivos, buscando formas para no entanto, profissionais de saúde agem da nosso grupo era formado
lidar e intervir em questões de difícil manejo mesma forma em relação a seus pacientes, e por consultores dos
seguintes estados:
nos territórios. Ou seja, pode-se criar con- nesse contexto, houve um condicionamento Tocantins (Rosimeire),
dições para construir com os grupos e com específico. Ninguém discordaria da ideia de Bahia (Hermila); Goiás
(Sebastião); Sergipe
as equipes ações que visem soluções para as que médicos e enfermeiros que trabalham (Helga); São Paulo (Maria
inúmeras dificuldades encontradas. Colocar em uma emergência precisam diminuir sua José) e Distrito Federal
(Ariane). Pela tutora
em prática esse projeto, respeitando o papel capacidade empática para poder exercer seu Marisa, pelo consultor
e a posição de cada ator, não é simples. ofício, de outro modo seria muito difícil lidar nacional Ricardo e pelo
pesquisador Nestor.
Faz parte do dia a dia dos consultores com seu semelhante em condições extre-
utilizar a habilidade de comunicação. Por mas. Esse fato traz um outro elemento para 4 Sublinhamos que
a palavra sentido,
meio da escuta, apreende-se qual a situação pensarmos: a empatia é um dos mecanismos neste contexto, está
em voga, podendo-se dar oportunidade para mais primitivos do humano, favoreceu o flo- vinculada não somente
aos mecanismos de
que os atores da equipe possam colocar seus rescimento da espécie e é um mecanismo significação linguística,
sentimentos e questões. Compreendemos de ponta na relação mãe/pai/bebê, possi- mas também a sentidos
afetivos provenientes dos
que o consultor/facilitador, exercitando uma bilitando o desenvolvimento do bebê, mas afetos vividos no processo
‘escuta implicada’, terá a chance de utilizar também é suprimível e pode ser cortada pela de formação.

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104 MAIA, M. S.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; GUEDES, H. T. V.; MATTAR, M. J. G.; CARAFFA, R. C.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.

raiz dependendo do processo coletivo em para o consultor que desempenha a ‘função


jogo5. Entendemos que nossa cultura com- de apoio’. Desde os escritos de Gastão Wagner
porta uma certa atrofia dos processos empá- Campos (2003), sabemos que o apoiador deve
ticos e que a busca por uma escuta empática estar sempre inserido em movimentos co-
precisa ser trabalhada e estimulada para que letivos, buscando novos modos de operar e
se rompa com a anestesia dessa capacidade. produzir nas organizações. É, portanto, na ar-
No caso da formação dos consultores, a ticulação entre o cuidado e a gestão — na qual
‘escuta implicada’ centrada na empatia é fun- estes domínios se interferem mutuamente —
damental, pois auxilia no entendimento das que a função de apoio institucional é ativada:
necessidades das equipes e localidades, cada nos espaços coletivos, por meio de arranjos
uma comportando sua realidade específica. ou dispositivos que propiciam a interação
Como sublinha Franz de Waal (2009), o contá- entre sujeitos.
gio dos estados de espírito é condição básica É a parir da ‘escuta implicada’ que o con-
para a coordenação e cooperação em ativida- sultor pode exercer sua função de apoiador:
des coletivas. A ‘escuta implicada’ favorece escutar é o primeiro passo, ou antepasso, para
a possibilidade de construir um território se poder manejar situações difíceis em que
comum entre as pessoas de um grupo. Quando resistências pessoais e/ou institucionais, rela-
se entra em ‘sintonia afetiva’6 com o outro, ções de poder e afetos tóxicos estejam impe-
os territórios subjetivos individuais sofrem dindo ou dificultando a circulação de desejos
um rebaixamento, e algo da experimentação e saberes, visando, assim, a construção e via-
comum pode emergir: essa experiência não bilização de projetos a serem pactuados por
se encontra nem dentro de mim nem dentro atores institucionais e sociais. Essa moda-
do outro, mas entre mim e o outro, no espaço lidade de escuta também se faz importante
comum no qual surgirão processos criativos na construção de objetivos comuns, como
coletivos. compromissos e contratos. Somente a partir
Segundo a fala de um consultor: da escuta singular, na qual buscamos uma
cooperação dos implicados, é que podemos
Escuta é uma característica com a qual sempre ampliar a capacidade institucional nos pro-
as pessoas me identificaram tanto pessoal quan- cessos de planejamento, monitoramento e
do profissionalmente. Escuta qualificada, porém, avaliação, fomentando a ampliação da capaci-
hoje tenho clareza que nem sempre era o caso. dade crítica dos grupos, o que propicia pro-
Os encontros presenciais, as oficinas e os textos cessos transformadores das práticas de saúde,
lidos e estudados permitiram uma qualificação contribuindo para melhorar a qualidade da
desta escuta. Passei a perceber mais claramente atenção no SUS.
5 Como afirma Franz a necessidade de colocar também a escuta como O trabalho do consultor guarda semelhan-
de Waal, “A supressão
da empatia tem um
uma etapa do processo de cuidado, de colocá-la ças com a ‘função apoio’ teorizada por Gastão
lado macabro, como como parte da responsabilização que devemos Wagner Campos (APUD CUNHA; DANTAS, 2008), sua
nas histórias dos
nazistas que adotavam
ter e oferecer aos grupos e trabalhos dos quais ação em campo envolve uma tríplice tarefa
um comportamento fazemos parte. Aprendi a escutar o outro e con- — ativar coletivos, conectar redes e incluir
sentimental com seus
próprios familiares […]
siderar a fala do outro, sendo a minha interpre- a multiplicidade de olhares e práticas, inte-
ao mesmo tempo que tação apenas parte do que o outro quer dizer. Es- resses e desejos para produção de objetivos
possuíam abajures
feitos de pele humana e
cuta qualificada pressupõe ainda percepção da comuns, na implementação das políticas de
exterminavam multidões escuta do outro no grupo e a decodificação que saúde.
de inocentes” (WAAL,
2009, p. 119).
cada um faz, processo importante para a cons-
trução de consensos possíveis. Hoje tenho aprendido, principalmente nas ofi-
6 Para um aprofundamento
do conceito de ‘sintonia
cinas de formação, que para ser uma consulto-
afetiva’, ver Stern (1992). A arte da escuta é o instrumento central ra no território preciso identificar pessoas que

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Construção de confiança e reconhecimento no processo de formação ministrado pela Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis aos consultores estaduais da saúde da 105
criança do Ministério da Saúde

estrategicamente também acreditem em mudan- de deslocamento subjetivo das equipes e


ças. Essas pessoas me fortalecem, fazem acreditar grupos. Em sua função, o consultor, utilizan-
que sou útil e que temos um objetivo comum, com do sua sensibilidade, aceita a real situação,
isso o retorno do trabalho é muito gratificante, reconhecendo as potencialidades da equipe,
pois foi uma construção em parcerias de ideias em oferecendo uma ajuda prática no território:
consonâncias. pontua-se informações relevantes para que os
atores as utilizem, busca-se soluções para as
Nesse contexto, percebe-se a importância fragilidades, criando coletivamente caminhos
crucial de aprimorar a capacidade de escuta possíveis. Esse processo auxilia a conquista
para poder exercer essa tríplice tarefa. No de metas pactuadas.
entanto, lembrando Rubem Alves (2015), O processo de formação EBBS contribuiu
escutar não se constitui somente pelo tempo na elaboração de um ‘modo de fazer’ que
em que você aguarda educadamente para inclui a dimensão afetiva das relações inter-
poder falar e dar sua opinião sobre determi- pessoais. Durante as oficinas de formação,
nado assunto. Aqui, o consultor, ao ocupar a os participantes experimentaram, no âmbito
função de escutador, tem a oportunidade de de suas próprias relações, a possibilidade
catalisar afetos, transformando-os em potên- de escutar e ser escutado. Dizer isso parece
cia de ação, desobstruindo caminhos que, por simples, mas em inúmeras situações de traba-
vezes, podem estar impedidos por dificulda- lho escutamos sem ouvir, e esse passo rumo
des relacionais entre pessoas, departamentos a uma escuta, de fato, abre portas a duas di-
ou instituições. mensões subjetivas sem as quais dificilmente
Portanto, para que mudanças possam poderíamos sobreviver à aridez dos jogos de
ocorrer, são necessários mecanismos de co- poder nos territórios, quais sejam: reconheci-
gestão que impliquem um ‘modo de fazer’ mento e confiança.
diferenciado que se coadune com um espírito
de cooperação para que gestores e agentes No processo de formação ganhamos ferramentas
da saúde possam ter um olhar renovado para que auxiliam na construção de rede de confiança
o próprio trabalho, para suas relações no nos territórios e isso fez toda a diferença. Essa
serviço e para as relações das equipes com os possibilidade se deu, entre outras coisas porque,
usuários. através do processo vivido na formação, aprende-
Testemunha um consultor: mos a nos reconhecer e podermos ter confiança
em nós mesmos pelo reconhecimento do outro;
Talvez o aspecto em que mais evolui tenha sido isso se desdobrou na possibilidade de reconhecer
a participação sem rigidez de conceitos prefixa- o território, suas fragilidades e potencialidades e,
dos, comprometido com a escuta e a percepção sobretudo, reconhecer o outro através da escuta.
do momento vivido por cada indivíduo ou institui-
ção participante. Algumas qualidades já faziam Chegamos então a outra habilidade que
parte de minhas atitudes em um grupo, sendo o julgamos importante para que o sucesso
condutor, ou não, mas, os encontros e as leituras, desse projeto tenha sido possível: a habilida-
me permitiram contribuir mais na construção dos de de reconhecer que abriu a possibilidade
consensos e dos encaminhamentos. Como nas si- de construção de confiança entre os agentes
tuações de escuta, evolui na construção dos con- implicados.
sensos possíveis (inclusive dentro de casa!).

Como vimos acima, processos relacionais 2º. Confiança e


implicam jogos de poder, competitividade e reconhecimento:
muitos outros afetos que geram dificuldade

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106 MAIA, M. S.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; GUEDES, H. T. V.; MATTAR, M. J. G.; CARAFFA, R. C.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.

reconhecimento pessoal, amadurecimento, a expectativa e a constru-


reconhecimento do outro, ção de uma certa previsibilidade ambiental o
reconhecimento das tranquilizará, ajudando-o a se desenvolver e
se preparar para a vida. Aos poucos, o bebê,
fragilidades e da potencia porque já confia, poderá esperar. É o reco-
grupal no âmbito do nhecimento dos pais sobre o quanto pode o
trabalho bebê em seu momento de vida que determina
a qualidade e o jeito da rotina7 em seus cuida-
A possibilidade, a habilidade, ou melhor, a dos, conferindo-lhe a previsibilidade neces-
competência para poder confiar no outro, sária para criar o sentimento difuso, aberto e
no futuro e no mundo ao redor é construída sem predicado de poder confiar.
e se enraíza nos processos primários do de- Winnicott (1988) teoriza amplamente sobre
senvolvimento infantil. É a partir da relação a necessidade da mãe (ou um substituto) se
de total dependência de seus cuidadores adaptar, inicialmente, de uma forma absoluta
que o bebê, aos poucos e progressivamente, às necessidades do bebê (em seus primeiros
aprende que pode confiar primeiro em seus dias de vida) de modo a não provocar des-
mais próximos e depois no ambiente amplia- continuidades abruptas em sua sensação de
do. A provisão ambiental (biopsicossocial) e bem-estar, pois o bebê está embrionariamen-
sua previsibilidade são fundamentais para se te construindo o sentimento de confiança
construir o território subjetivo da confiança. no meio que o circunda: sempre que sentir
Em contrapartida, há uma larga escala de psi- algum desconforto, alguém virá ao seu encon-
copatologias que derivam da impossibilidade tro. Triste do bebê que não pode contar com
de confiar, da desconfiança. Sob vários aspec- essa previsibilidade ambiental. O ambiente
tos, a base para a construção da confiança é dará ao bebê essa provisão que além de física
o reconhecimento, mas um ponto importante é afetiva, a partir da qual o mundo se apresen-
da possibilidade de confiar é a previsibilida- tará em pequenas doses (WINNICOTT, 1988).
de. Certamente, o acaso, o imponderável está Poder confiar se traduz na alegria de poder
incluído todo o tempo como um par insepa- compartilhar com outros a experimentação
rável da previsibilidade, mas há que se ter da vida no mundo. Corroborando nosso argu-
uma constância de ritmos e afetos no trato mento, Luís Cláudio Figueiredo (2009) diz que
com a criança para que esta possa se organi- a estabilidade do ambiente é fator fundamen-
zar internamente, tornando familiar o mundo tal para a alocação da possibilidade de confiar,
(FERENCZI, 1992; WINNICOTT, 1999). mas vai além, incluindo “a capacidade da mãe
Um bom exemplo é o sentimento de fome estabelecer uma relação harmônica e ritmada
para um bebê: primeiro ele experimenta um com o bebê em que ela pode ser ‘inventada’
desconforto corporal que precisa ser solucio- pelo bebê e, ao mesmo tempo, ser ela mesma”.
nado, pode chorar para ser acolhido e espera (FIGUEIREDO, 2009, P. 84). Os processos de empatia
conseguir solucionar sua sensação de descon- e de sintonias afetivas (WAAL, 2009; STERN, 1992)
forto, se tudo ocorrer ‘suficientemente bem’, asseguram o espaço de experimentação exis-
o outro o acolherá, o leite chegará, dando-lhe tente entre a mãe e seu bebê, inaugurando um

mesmo a sensação de ter ‘criado’ o leite, o seio campo de experimentação do eu no mundo,
preciso sublinhar que
rotina não é sinônimo ou a mamadeira, essa prontidão ambiental do eu com outros para toda a vida. Como
de cuidados mecânicos:
lhe protege do afeto agudo de angústia ou an- veremos adiante, não se trata de um processo
os cuidados com o bebê
adquirem um hábito, mas siedade, e o bebê pode começar sua marcha que diga respeito e se restrinja ao desenvol-
são sempre banhados
no mundo experimentando a espontanei- vimento infantil, esse campo de experimenta-
por afetos e falas que os
tornam uma experiência dade de seus movimentos, gestos e afetos. ção (inaugurado nos primórdios da infância),
única a cada vez.
Com a rotina dos cuidados ambientais e seu em que o poder confiar se nutre, existirá entre

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criança do Ministério da Saúde

o eu e o(s) outro(s) durante toda a vida. É o redes de trabalho.


território intersubjetivo de experimentação Inúmeras psicopatologias têm a descon-
e criação por excelência: não está comigo ou fiança como base, mas precisamos sublinhar
com o outro, mas se dá entre nós dois. que a desconfiança, o não conseguir confiar,
Como afirmamos acima, o ponto funda- tem como origem a vivência, repetidas vezes,
mental para a construção dessa base subjeti- da ‘desautorização da experiência vivida’
va do poder confiar é o reconhecimento: nos (MAIA, 2004). Se sou criança e sou espancada
cuidados para com a criança, os pais sabem sempre que meu pai chega em casa em-
intuitivamente o quanto ela pode. O meca- briagado, nascerá em mim um sentimento
nismo de empatia os auxilia a interpretar de profunda injustiça que dificilmente será
as necessidades e desejos de seu bebê. Há reparado; como fui punido, não por meus
uma ‘avaliação’, mesmo que não consciente, erros, mas pelo desvario do mundo adulto
do que uma criança pode suportar em cada que não pôde reconhecer minha infância e
estágio de seu desenvolvimento: o tempo protegê-la, minha experiência de tristeza,
que um bebê pode esperar por um alimento angústia ou outros afetos, por viver em um
é bem diferente do tempo de uma criança de ambiente desestabilizado, fica desautorizada
4 anos. Está em jogo aqui o reconhecimento porque não conta com o reconhecimento do
da experiência existencial vivida pelo outro, outro (MAIA, 2004).
com seus ritmos, fragilidades e possibilida- Com a repetição da ‘experiência de de-
des. Há, por parte dos pais, uma ‘autorização’ sautorização’, já que a resposta do ambien-
(mecanismo não consciente) à criança para te não faz sintonia com minha experiência,
que possa viver a experimentação do mundo possivelmente restringirei minha esponta-
nos diversos estágios do desenvolvimento neidade vital e serei um adulto desconfiado
infantil. — sempre à espera de que não seja reco-
Sabemos que o bebê deve se adaptar à nhecido em minhas fragilidades e potencia-
cultura, mas é preciso proteger seu poten- lidades. Sublinhemos que, no que toca à
cial lúdico, criativo que está florescendo espontaneidade e à criatividade, o espaço de
desde o nascimento. Quando o Ministério experimentação no mundo das pessoas que
da Saúde indica livre demanda de aleita- se encontraram ou se encontram sob esse
mento materno nos primeiros meses de vida registro pode ficar prejudicado. Há maior
é porque se sabe, por meio das pesquisas, o chance de se colocarem no mundo a partir
quanto é importante para o recém-nascido, do sentimento defensivo de desconfiança, e
não somente o alimento leite, mas o respeito com dificuldade poderão superar a barreira
aos ritmos do recém-chegado que ainda não que as separa de seus outros.
estão regulados ao ambiente. Retornando ao desenvolvimento emocio-
Um exemplo oposto, ou seja, de não reco- nal infantil que ocorre em ambientes facilita-
nhecimento da experiência singular, e nada dores, temos como um dos desdobramentos
mais injusto, é pressionar uma criança que na vida adulta o leque de possibilidades rela-
tem uma determinada fragilidade cognitiva cionais, incluindo os recursos que portamos
a cumprir metas de aprendizagem que estão para lidar com as situações de vida, como as
fora de seu alcance. O acolhimento e o reco- geradas no mundo do trabalho, por exemplo.
nhecimento do vivido singular é a chave para
a construção de redes afetivas de confiança,
em um primeiro momento estamos nos refe- Conclusão
rindo ao ambiente familiar, mas podemos ex-
pandir esse raciocínio para todos os campos No processo de formação EBBS, a valo-
da experiência humana, incluindo aqui as rização do território intersubjetivo de

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experimentação, intimamente ligado ao éticas. Está ligada “a efetividade de uma con-


princípio de ‘ambiente facilitador à vida’ gruência no tempo, entre uma palavra dada
(PENELLO, 2013), foi um dispositivo nuclear para e o comportamento que se segue” (DEJOURS,
favorecer a emergência dos afetos pessoais 2005, P. 53), diz-se do cumprimento de uma
na construção de afetos interpessoais. A ‘promessa’.
partir desse campo de experimentação entre Na dinâmica do trabalho, diz respeito
pessoas, pode-se construir vínculos de con- à equidade dos julgamentos das condutas
fiança, em que os processos de reconheci- dos implicados. A promessa diz respeito
mento em suas diversas vertentes podem ser ao reconhecimento do outro. O reconheci-
vividos por cada um. mento deve ser conferido às competências
e fragilidades na execução das tarefas e
Acredito na teoria de que a nossa vida é uma col- atribuições. Não é o Eu que é alvo do julga-
cha de retalhos, onde cada pessoa que faz par- mento, mas a tarefa que executa, é somente
te da nossa caminhada é representada por um em um segundo momento que o eu absorve
retalho – colorido ou não, grande ou pequeno, a conquista do âmbito do fazer para sua
costurado com pontos firmes ou frouxos; feitos realização como pessoa, subjetivando-se
de tecido nobre ou ordinário que rasga facilmen- continuamente.
te... Posso dizer sem medo de errar que a minha O julgamento, a avaliação, a crítica e o
colcha ficou muito maior e mais colorida com a diálogo em equipe podem ter a função, no
costura de retalhos tão especiais! registro da subjetividade, de reconhecimen-
to pelo outro. O reconhecimento funciona,
Ao fomentar o ‘poder confiar’ em cada assim, como uma retribuição, uma restitui-
um dos implicados no processo de formação, ção moral-simbólica, uma retribuição justa
tivemos como desdobramento uma poten- pela contribuição nas redes de trabalho. Um
cialização das ações do CE em seu território. agradecimento àquele que empenhou sua
O incremento de territórios existenciais que inteligência, afetividade e criatividade nas
envolvem a construção de confiança (em si e tarefas realizadas. Só onde há uma rede de
no outro) traz como desdobramento a possi- confiança a partir de uma ética que implique
bilidade de reconhecimento de relações de reconhecimento é possível cooperar, mini-
reciprocidade, facilitando o processo coo- mizando a tensão, sempre presente entre
perativo no campo de trabalho. Para Franz individualismo e cooperação.
de Waal, “a construção de laços de confian-
ça derruba a barreira entre os indivíduos, A confiança que foi em mim depositada foi e é
fazendo com que eles acreditem uns nos a razão para eu permanecer. Não importa até
outros, preparando-os para empreendimen- onde vamos, ter participado valeu a pena. Hoje
tos comuns” (WAAL, 2009, P. 232). o Estado reconhece a importância de nossa con-
Como afirma um consultor, tribuição. Os laços se estreitaram MS e SES e
considero que a Saúde da Criança cresceu muito
A partir dessa construção de confiança conse- com nosso apoio ‘um braço da CGSCAM/MS no
guimos diminuir os nossos enfrentamentos de território’. Eles não querem que isso termine.
poder e de vaidade em serviço, fortalecendo, as-
sim, o reconhecimento do papel do consultor no Assim, com Dejour (2005), entendemos que
território.
trabalhar, pois, não é somente executar atos
No que diz respeito ao mundo do traba- técnicos, é também fazer funcionar o tecido
lho, Christophe Dejours (2005) sublinha que social e as dinâmicas intersubjetivas indispen-
a confiança se fundamenta em competências sáveis à psicodinâmica do reconhecimento,

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 101-110, MAR 2016
Construção de confiança e reconhecimento no processo de formação ministrado pela Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis aos consultores estaduais da saúde da 109
criança do Ministério da Saúde

que, é o caráter necessário em vista da mobi- qualidades, fragilidades e defeitos; reco-


lização subjetiva da personalidade e da inteli- nhecimento de si através do olhar do outro.
gência. (DEJOUR, 2005, P. 58). Reconhecimento de si por meio da reflexão
crítica sobre si próprio. Julgamos que essa
Nessa medida, o reconhecimento adquire experiência associada à aquisição de outras
funções múltiplas, é o resultado de seu habilidades, como, por exemplo, o refina-
esforço, mas também é o princípio através mento da escuta, a valorização da dimensão
do qual podemos estabelecer metas possí- afetiva das redes de trabalho, favoreceu o
veis, reconhecendo os limites e possibilida- incremento de capacidades individuais que
des daqueles implicados nas dinâmicas de puderam ser atuadas no cotidiano do traba-
trabalho. Esse processo não é secundário, é lho de campo nos territórios.
central para promover um estado de espí-
rito cooperativo nas equipes de trabalho. O Quando o consultor estabelece confiança e inte-
incremento de territórios existenciais que ração com o grupo, estes passam a compreender
envolvem a construção de confiança (em si melhor seus objetivos e juntos buscam alcançá-
e no outro) também traz como desdobra- -los de forma compartilhada. As competências
mento a possibilidade de reconhecimento individuais e complementares dos membros
de relações de reciprocidade, facilitando a possibilitam alcançar resultados e perseguir ob-
experimentação da alegria e da vitalidade no jetivos coletivos, através do suporte EBBS, cola-
cotidiano do trabalho cooperativo. Afirma boração e comunicação aberta e clara entre seus
Christhophe Dejour (2000), membros. Trabalhar bem juntos, dar apoio uns
aos outros, se identificar com o grupo, querer que
Do reconhecimento depende na verdade o o grupo vença e tenha sucesso, é muito mais do
sentido do sofrimento. Quando a qualida- que um estado ou comportamento de coopera-
de de meu trabalho é reconhecida, também ção uns com outros é um estado de colaboração,
meus esforços, minhas angustias, minhas de investimento de todos num esforço grupal, vi-
dúvidas, minhas decepções, meus desânimos sando o ideal comum.
adquirem sentido. Todo esse sofrimento, por-
tanto, não foi em vão; não somente prestou Especialmente, fortaleceu o pacto interfe-
uma contribuição à organização do trabalho, derativo na perspectiva da formulação e do
mas também fez de mim, em compensação, movimento de implantação de uma política
um sujeito diferente daquele que eu era antes pública que tem a atenção integral à saúde
do reconhecimento. (DEJOUR, 2000, P. 34). da criança e seu desenvolvimento pleno,
como objetivo principal e como orientador
Entendemos que a experimentação, da produção de cidadania e desenvolvimen-
durante o processo de formação, trouxe a to sustentável da sociedade brasileira.
possibilidade de estabelecer relações de “Por último: nós consultores descobrimos
confiança entre os pares, propiciando di- que somente se consegue apoiar quando nos
versos territórios subjetivos de reconheci- autorizamos a sermos apoiados pelo grupo a
mento: reconhecimento do outro com suas quem pretendemos ajudar”. s

Referências

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rubemalves.locaweb.com.br/hall/wwpct3/newfiles/
escutatoria.php>. Acesso em: 22 abr. 2015. CUNHA, G. T.; DANTAS, D. V. Uma contribuição para a

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 101-110, MAR 2016
110 MAIA, M. S.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; GUEDES, H. T. V.; MATTAR, M. J. G.; CARAFFA, R. C.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.

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DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 101-110, MAR 2016
RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY 111

Psicóloga e psicanalista.
Desafios que vêm do Norte: descobrindo e
1

Mestre em psicologia
pela Universidade
Federal Fluminense
(UFF) – Rio de Janeiro
criando espaços como consultor da saúde da
(RJ), Brasil. Consultora
para desenvolvimento criança
infantil e formação
de grupos e tutora do
projeto Contribuições da
Challenges from the North: discovering and creating spaces as a child
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
health consultant
para formulação e
implantação de uma
Política Nacional de Luciana Bettini Pitombo1, Zeni Carvalho Lamy2, Altamiro Vianna e Vilhena de Carvalho3, Ana
Atenção Integral à Saúde Lúcia Nunes4, Maribel Nazaré dos Santos Smith Neves5
da Criança (PNAISC).
lupitombo@yahoo.com.br

2 Médica. Doutora em
saúde da criança e da
mulher pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz)
– Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. Consultora
nacional da CGSCAM/ RESUMO Este artigo é um relato de experiência sobre o trabalho dos Consultores Estaduais
MS e colaboradora do da saúde da criança do Ministério da Saúde (CGSCAM/MS), mais especificamente do Grupo
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e 5 do qual faziam parte os estados do Amapá, Pará, Amazonas, Roraima e Maranhão. Estes
Brasileirinhos Saudáveis estados que são integrantes da Amazônia Legal garantem a esse grupo algumas especificidades
para formulação e
implantação de uma peculiares às regiões Norte e Nordeste (aqui representada pelo Maranhão), trazendo desafios
Política Nacional de próprios daquela região e retratando a dimensão continental de nosso País. Iremos, em um
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC). primeiro momento, discorrer sobre alguns aspectos do trabalho do consultor e, em seguida,
zenilamy@gmail.com abordaremos um evento realizado no qual, a partir de uma oficina proposta, pode-se delinear
3 Médico. Mestre em algumas especificidades regionais.
DST pela Universidade
Federal Fluminense
(UFF) – Rio de Janeiro PALAVRAS-CHAVE Saúde da criança; Política de saúde; Capacitação.
(RJ), Brasil. Consultor
estadual da CGSCAM/
MS e colaborador do ABSTRACT This article is an experience report on the work of State Consultants of child health of
projeto Contribuições da the Ministry of Health (CGSCAM/MS), more specifically of Group 5, which included the states
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis of Amapá, Pará, Amazonas, Roraima, and Maranhão. Those states, which are members of the
para formulação e Amazônia Legal, provide to the group some peculiar specificities to the North and Northeast
implantação de uma
Política Nacional de (represented here by Maranhão), bringing challenges that are proper to that region and
Atenção Integral à Saúde portraying the continental dimension of our country. We will, at first, discuss some aspects of
da Criança (PNAISC) no
estado do Roraima. the consultant’s work and then discuss an event held in which, from a proposed workshop, it was
vilhenabr@gmail.com possible to outline some regional specificities.
4 Assistente Social.
Especialista em violência KEYWORDS Child health; Health policy; Training.
doméstica contra criança
e adolescente pela
Universidade de São
Paulo (USP) – São Paulo
(SP), Brasil. Especialista
em gestão em saúde pela
Universidade Federal
do Maranhão (UFMA)
– São Luís (MA), Brasil.
Consultora estadual
da CGSCAM/MS e
colaboradora do projeto
Contribuições da Estratégia
Brasileirinhas e

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
112 PITOMBO, L. B.; LAMY, Z. C.; CARVALHO, A. V. V.; NUNES, A. L.; NEVES, M. N. S. S.

Introdução e foram definidos três eixos de monitoramen-


to do trabalho: gestão, formação e avaliação.
O conhecimento [...] exige uma presença Dessa forma, cada grupo contava com um
curiosa do sujeito em face do mundo. Requer consultor nacional, um técnico da CGSCAM
sua ação transformadora sobre a realidade. (no eixo da gestão), um tutor da EBBS (no
Demanda uma busca constante. Implica in- eixo da formação) e um membro do grupo da
venção e reinvenção. pesquisa avaliativa que foi desenvolvida ao
(FREIRE, P.) longo de todo o processo. Esses quatro pro-
fissionais realizaram suas atividades, cada
No ano de 2011, a Coordenação-Geral de um, com ênfase em um determinado aspecto
Saúde da Criança e Aleitamento Materno do — gestão, formação ou avaliação — mantendo
Ministério da Saúde (CGSCAM/MS) iniciou uma comunicação contínua, garantindo coo-
um projeto para a construção e implantação peração mútua na condução das atividades.
da Política Nacional de Atenção Integral à Neste escrito, iremos abordar reflexões
Saúde da Criança (PNAISC) inexistente até relacionadas ao trabalho dos CE do Grupo 5
então em nosso País. Muitas ações voltadas do qual faziam parte os estados do Amapá,
para a saúde da criança eram desenvolvidas Pará, Amazonas, Roraima e Maranhão. Estes
pelo Ministério da Saúde, mas aconteciam de estados que fazem parte da Amazônia Legal
forma compartimentalizada sem que houves- garantem a esse grupo algumas especificida-
se uma articulação entre elas. des peculiares às regiões Norte e Nordeste
Foi nesse contexto que a CGSCAM/MS (aqui representada pelo Maranhão), trazendo
articulou, em parceria com a Estratégia desafios próprios daquela região e retratan-
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis/ do a dimensão continental de nosso País. As
Instituto Nacional de Saúde da Mulher, grandes distâncias, as dificuldades de acesso,
da Criança e do Adolescente Fernandes de deslocamento, de recursos humanos para a
Figueira/Fundação Oswaldo Cruz (EBBS/ composição das equipes, a presença de terras
IFF/Fiocruz), o I Encontro de Coordenadores indígenas e de áreas de preservação ambien-
Estaduais e Municipais (de Capitais) de tal, as populações indígenas, ribeirinhas e
Saúde da Criança. A proposta desse encontro quilombolas são algumas das característi-
Brasileirinhos Saudáveis foi promover a troca de experiência entre os cas e desafios existentes. Pensar em política
para formulação e
implantação de uma diferentes estados brasileiros e aproximar pública voltada para a saúde da criança, nesse
Política Nacional de os entes federal, estadual e municipal, pos- contexto, força todos os envolvidos a um
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no sibilitando o conhecimento, por parte da contato com as intensidades locais.
estado do Maranhão. CGSCAM, das principais dificuldades e desa- Entender essas especificidades não é
alu_nunes@hotmail.com
fios enfrentados. fácil nem mesmo dentro de cada território.
5Médica. Mestre em Essa experiência despertou a necessidade Indígenas de diferentes etnias, ribeirinhos,
ensino em ciências da
saúde pela Universidade de uma maior aproximação que levou à iden- migrantes de diferentes regiões do Brasil, po-
Federal de São Paulo tificação, em cada estado, de um profissional pulações de fronteira (encontradas em quatro
(Unifesp) – São Paulo
(SP), Brasil. Consultora com experiência de trabalho na área mater- estados desse Grupo) e população urbana
estadual da CGSCAM/ no-infantil. Foram contratados 27 consulto- dividem, se não o mesmo espaço, os mesmos
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da res para aturem nos 26 estados e no Distrito serviços de saúde. O trabalho dos consulto-
Estratégia Brasileirinhas e Federal apoiando e articulando as ações em res, entre outras tarefas, envolvia trazer à luz
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e torno da saúde da criança no Brasil represen- essas questões e estimular a oferta de uma
implantação de uma tando a CGSCAM. atenção singular capaz de reconhecer essas
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde No intuito de organizar o processo de diferenças.
da Criança (PNAISC) no trabalho, esses Consultores Estaduais (CE) Com o desenrolar do trabalho, diferentes
estado do Amapá.
maribelsmith@uol.com.br foram divididos em cinco grupos de estados, temáticas foram surgindo e ganhando corpo

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
Desafios que vêm do Norte: descobrindo e criando espaços como consultor da saúde da criança 113

e vivacidade, tanto pelo fato de que os con- É interessante o reconhecimento do in-


sultores moravam nos territórios (um dos cômodo do novo papel e da necessidade de
critérios de seleção), quanto pela orientação construção e constituição de um lugar a partir
no sentido de realizarem uma cartografia dos do qual o trabalho poderia ser desenvolvido.
territórios garantindo a inclusão das vicissi- As questões levantadas no depoimento abaixo
tudes e potencialidades locais. Para Merhy apontam para a delicadeza e complexidade
(2014, P. 61), do início desse trabalho e, ao mesmo tempo,
demonstram que o suporte oferecido pelo
o trabalho vivo comporta diferentes lógicas e eixo da formação abriu possibilidades de
a criatividade permanente do trabalhador em enfrentamento.
ação pode ser explorada para inventar novos
processos de trabalho, e mesmo, para abri-lo E como conseguir realizar essa caminhada?
em outras direções não pensadas. Como fazer essas interações? O que fazer para
ser visto como parceiro? Quando entrar e quando
Iremos, em um primeiro momento, discor- sair de cena? Não há uma única resposta para
rer sobre alguns aspectos do trabalho do con- estas questões, mas, certamente, o apoio e a
sultor e, em seguida, abordaremos um evento formação que acompanhou todo o processo de
realizado no qual, a partir de uma oficina pro- trabalho foram decisivos para o amadurecimen-
posta, pode-se delinear algumas especificida- to necessário e para a incorporação do papel de
des regionais. consultor/apoiador.

Podemos interpretar que foi esse amadu-


Adquirindo habilidades: o recimento que possibilitou que o trabalho
processo de formação dos consultores fosse sendo, gradativamente,
aceito nos territórios. Os depoimentos abaixo
Procurando ir além do relato dos fatos, bus- demonstram esse processo:
cou-se refletir sobre as dificuldades e facili-
dades encontradas nos caminhos do trabalho A observação desconfiada do início foi sendo
do consultor de saúde da criança nos estados modificada aos poucos, fomos sendo observa-
brasileiros. Nesta reflexão, utilizou-se depoi- dos, reconhecidos, necessários, importantes.
mentos dos consultores do Grupo 5 sobre a No entanto, não foi e não é um processo de
experiência vivida, sendo importante ressal- trabalho linear e sem crises. Os conflitos, ine-
tar que esse convite à reflexão e à apropriação rentes aos humanos surgiam e precisavam ser
das experiências foi incentivado durante todo negociados a cada instante. Apoiar, muitas
o período, estando atrelado ao processo de vezes, significava enfrentar situações, propor
formação e acompanhamento oferecido. mudanças. Significava aproximar pessoas, arti-
O relato abaixo descreve o início do cular conversas, alinhavar pontos desgastados.
processo:
A aceitação, às vezes vinha do fato de já traba-
O primeiro passo foi a busca de parceiros no lharmos no território com questões ligadas à saú-
território, tarefa não muito fácil. Entramos no de da criança (violência contra a criança, desnu-
território, algumas vezes como estrangeiros, e trição, população indígena) tendo conhecimento
mesmo quando já fazíamos parte dele, havia um e reconhecimento nos locais de atuação. Motiva-
estranhamento e até certo incômodo deste novo dos pelo desafio de refletir sobre o nosso espaço
papel. Papel que não existia e lugar que precisava no território, vieram as primeiras lembranças,
ser construído. Mas fomos ganhando espaço e, como um filme. Para começar a trabalhar como
assim, constituindo-nos. consultor a primeira questão foi compreender o

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
114 PITOMBO, L. B.; LAMY, Z. C.; CARVALHO, A. V. V.; NUNES, A. L.; NEVES, M. N. S. S.

que é ser um consultor e como o trabalho poderia afetos, lugares e sentidos atrelados a um de-
ser desenvolvido. terminado momento histórico. Assim, foi pos-
sível reforçar a constituição e manutenção de
O processo de formação e de construção do fóruns e espaços coletivos — como os Fóruns
trabalho dos consultores de saúde da criança Perinatais —; representar outros apoiadores
nos territórios foi pensada tendo como norte nos momentos em que não se encontravam
três grandes eixos estruturantes: cartografia, no território; auxiliar na criação da referência
grupalidade e cuidado1. de pontos da assistência; contribuir na elabo-
Além desses grandes temas, foram traba- ração de eventos, cursos e simpósios; auxiliar
lhados ao longo dos encontros presenciais os atores locais na identificação de metas e no
de formação outros também pertinentes ao seu monitoramento; e até mesmo apaziguar
trabalho, sempre com ênfase na utilização ânimos e aproximar parceiros tão distintos
de metodologias que privilegiassem tecno- quanto indígenas, ribeirinho, quilombolas,
logias relacionais; a cooperação, empatia e presidiários, adolescentes, entre outros, tra-
simpatia; a capacidade de escutar e acolher zendo todos para as rodas de conversa sobre
o outro em sua diferença e singularidade e saúde da criança com gestores e profissionais
o desenvolvimento de habilidades para o de saúde.
manejo de situações difíceis. A perspectiva Com relação ao desenvolvimento da gru-
da dimensão criativa do trabalho individual e palidade, no decorrer do processo foi ficando
coletivo sempre esteve presente, e procurou- claro que não era suficiente ter pessoas reu-
-se proporcionar momentos experienciais/ nidas para que houvesse uma experiência de
vivenciais que produzissem transformações trabalho em grupo e que o tema grupalidade
subjetivas concretas na forma como os CE não é algo que possa ser ensinado por meio de
conduziam o trabalho nos territórios. Ou seja, uma exposição de conteúdos mais tradicional.
houve uma ênfase constante na constituição Era necessário passar pela experiência. Nesse
de um verdadeiro ‘laboratório de práticas’. sentido, as atividades grupais desenvolvidas
A aprendizagem significativa em torno do ao longo do processo de formação foram mar-
trabalho cartográfico proporcionou a aquisi- cadas pelo reconhecimento e acolhimento do
ção de habilidades a partir da atuação no ter- fluxo afetivo inerente aos encontros. O reco-
ritório, entendendo que: nhecimento dos pares e a confiança gerada
foram a tônica, proporcionando um plano
Cartografar não significa ir ao campo em bus- de inclusão das singularidades presentes e
ca de algo previamente sabido. É bem mais do circulantes.
que isso. Trata-se de ‘examinar’ o campo por Além disso, a compreensão do grupo como
outra perspectiva, sendo fundamental que o um dispositivo2, que tem a potência de fazer
‘olhar’ seja o de alguém que garimpa aqui- funcionar engrenagens que muitas vezes não
lo que o território apresenta como potencial são previamente identificadas, explicitou as
de crescimento, mas que, por algum motivo diversas possibilidades para sua utilização. A
1 Não
não realiza. É no (re)conhecimento deste ter- construção desse espaço entre os consulto-
é objetivo do
presente artigo a ritório – isto é, conhecer novamente – que é res, primeiro nos pequenos grupos e depois
abordagem mais detalhada possível (re)inventá-lo. (PITOMBO; MAIA; ROSARIO, ampliando para a inclusão de todos eles, foi
de cada um deles, mas
sim sua utilização para 2014, P. 113) algo que se deu gradativamente a partir das
a reflexão proposta. A atividades realizadas no processo de forma-
respeito da metodologia
de formação EBBS, conferir Esta é a principal riqueza do processo: co- ção, nos encontros presenciais e a distância
Pitombo, Maia e Rosario nhecer e inventar possíveis caminhos a partir por uma plataforma utilizada para interação
(2014).
do diálogo constante estabelecido nos territó- e formação e, também, pela utilização de apli-
2 Cf. Barros (1994, 1997). rios. Territórios vivos, compostos por pessoas, cativos, como o WhatsApp.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
Desafios que vêm do Norte: descobrindo e criando espaços como consultor da saúde da criança 115

Esse aprendizado contínuo e vivencial não o da saúde, envolver trabalhadores e ges-


forneceu a cada um dos participantes, subsí- tores, entre outros.
dios para o trabalho nos diferentes espaços Nesse cenário, a construção da PNAISC
coletivos, caracterizando um ‘modo de fazer’ foi algo que motivou a todos. Juntamente ao
pautado pela ênfase na dimensão do sensível, trabalho desenvolvido pelos consultores nos
mesmo diante de aspectos técnicos ligados estados e capitais, houve um processo inter-
às tecnologias duras. Foi ficando claro para setorial, em torno da construção da política,
todos a importância de manter uma atenção que se desenrolou durante os Encontros
para as sutilezas dos encontros. A aquisição Nacionais de Coordenadores de Saúde da
desse tipo de percepção só pode se dar em Criança de Estados e Capitais3. A PNAISC
ato e implicou, na maioria das vezes, em mu- tem como objetivo promover o desenvol-
danças pessoais. Houve uma percepção por vimento integral da criança, respeitando a
parte dos CE de uma transformação gradativa integralidade e universalidade da atenção a
e crescente tanto como profissionais quanto ela, incluindo a participação nesse processo
como pessoa. da iniciativa privada, da sociedade civil e da
O desafio da inclusão da dimensão sensível família, visando contribuir para a garantia
e afetiva, no âmbito da gestão, foi um dos as- dos direitos humanos e da qualidade de vida
pectos abordados pela formação oferecida, e é e para o exercício da cidadania4.
muito importante acompanharmos os efeitos A PNAISC reúne um conjunto de ações
positivos dessa aposta. A esse, respeito uma programáticas e estratégicas para o desen-
consultora comentou: volvimento da criança organizada em eixos
estratégicos com os seguintes focos: atenção
Após quase dois anos, nos sentimos competentes humanizada e qualificada à gestação, parto,
para desenvolver o trabalho com a tranquilidade nascimento e ao recém-nascido; aleitamento
necessária para o manejo das mais diversas situ- materno e alimentação complementar saudá-
ações relacionais e grupais. Conseguimos pouco vel; promoção e acompanhamento do cresci-
a pouco aprender a pensar no contexto que pode mento e desenvolvimento integral; atenção
estar envolvido em determinados comporta- integral à criança com agravos prevalentes e
mentos e que não nos cabe julgar e sim tentar doenças crônicas; atenção integral a crianças,
entender e procurar soluções para as diversas adolescentes e suas famílias em situações de
dificuldades. Aprendemos a conciliar, apaziguar violências; prevenção de acidentes e promo-
3 No período de 3 anos
e harmonizar, mesmo quando outros atores não ção da cultura de paz; atenção a crianças com ocorreram 13 Encontros
percebiam. Aprendemos também a atuar como deficiência ou em situação de vulnerabilida- de Coordenadores de
Saúde da Criança de
facilitadores de alguns processos desencadeados, de; e vigilância e prevenção do óbito materno, Estados e Capitais,
compreendendo que o bem maior é a criança res- fetal e infantil. organizados e promovidos
pela CGSCAM/MS em
peitada e incluída em todas as suas dimensões e As discussões desenvolvidas em torno da parceria com a EBBS/IFF/
necessidades. construção da PNAISC foram indutoras de Fiocruz. As deliberações
eram tomadas de forma
ações dos consultores nos estados. Procurou- conjunta, envolvendo
A diversidade de intervenções na área se incluir nas políticas públicas dos terri- todos os atores no
encaminhamento das
da criança também se constitui como uma tórios a atenção integral à saúde da criança, propostas, entre elas,
riqueza, possibilitando transitar em muitos sabendo-se que, como dizem Pinheiro, Barros e a mais importante, a
construção da PNAISC
contextos de todas as redes de atenção e em e Mattos (2010, P. 38), “é em meio à realização até então inexistente em
muitas outras áreas de políticas públicas, das atividades nos serviços de saúde que as nosso País.

como assistência social, direitos humanos e políticas públicas se constituem como tal”. 4A Portaria GM nº 1.130,
educação. Foram constantes os desafios: tra- Esse fato exigiu um processo de desenho e de 5 de agosto de 2015,
institui a PNAISC no
balhar a cartografia nesses espaços, inserir, redesenho das cartografias e dos arranjos vol- âmbito do SUS. Cf. Brasil,
influir e emergir em outros territórios que tados para a atenção à criança nos territórios, 2015.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
116 PITOMBO, L. B.; LAMY, Z. C.; CARVALHO, A. V. V.; NUNES, A. L.; NEVES, M. N. S. S.

em estreita conexão com as redes de atenção Norte se desenrolou no I Encontro Paraense


e com as orientações da CGSCAM/MS. de Saúde da Criança e Aleitamento Materno
A respeito dos constantes ‘desenhos e na cidade de Belém do Pará (PA)5, ocorrido no
redesenhos’ dos territórios, um consultor período de 17 a 19 de dezembro de 2012. Nessa
comenta: oportunidade, a CGSCAM/MS, em parce-
ria com a EBBS/IFF/Fiocruz, realizou uma
Ao voltarmos no tempo, percebemos que toda oficina com os coordenadores de saúde da
a experiência vivida, só foi tão profunda porque criança de estados e capitais presentes, repre-
aconteceu a partir do ‘aprender fazendo’. E isto sentante da Organização Pan-Americana da
foi facilitado por um começar já atuando no pro- Saúde (Opas), técnicos da CGSCAM/MS e CE
cesso (pela cartografia), entendendo que ‘não da saúde da criança em torno da discussão de
saber muito por onde começar e de que forma casos clínicos institucionais de difícil manejo6
começar’ se constituía como um método de tra- relacionados à saúde da criança. Foram duas
balho que possibilitou uma abertura criativa. tardes de trabalho, em que o mesmo grupo se
5 Este encontro reuniu reuniu para refletir sobre a saúde da criança
“profissionais das gestões
Municipais, Estaduais e Estando nos territórios cientes da abertura na região Norte. Em cada uma das tardes, um
Nacional; profissionais para o novo, proporcionado pela utilização caso clinico-institucional foi apresentado por
da Assistência à Saúde;
da Assistência Social, constante da cartografia, os CE descobriram um consultor da saúde da criança. Um deles,
Educação, Sociedade e criaram espaços para o desenvolvimento do em particular, trouxe com sensibilidade uma
Civil, Comunidade
Acadêmica e Científica trabalho. Aprenderam a cobrar resultados, situação relacionada à saúde da criança indí-
locais, regional, nacional manejar conflitos — que muitas vezes provo- gena, uma das realidades das crianças brasi-
e internacional para
avaliar, discutir e propor caram e levaram à necessidade de mudanças leiras, que expressam as especificidades dessa
ações e estratégias para no caminho — e a lidar com a eterna disputa região do País e os desafios encontrados no
a melhoria da qualidade
da assistência, redução de espaço e poder. trabalho quando os saberes leigo e profissio-
dos riscos e agravos à nal precisam encontrar suas interfaces.
saúde e da mortalidade
da criança da Região Sem desejarmos, nós mesmos, nem o espaço, Para Cecílio, Carapinheiro e Andreazza
Norte do Brasil, mais nem o poder; querendo somente a construção. E (2014), é necessário compreender que o leigo
especificamente a Criança
Paraense. Entendendo faz parte desta construção sabermos a hora de e seu agir apresentam-se como contraponto
as suas peculiaridades dar um passo atrás, devido ao acirramento ou ao saber hegemônico do profissional, mas
socioculturais, econômicas,
geográficas e étnicas” impossibilidade de diálogo com gestores munici- não no sentido de oposição ou negação, e
(CARTA DE BELÉM, 2012). pal ou estadual, e até com os próprios apoios do sim como contraste. Contraste este poten-
6A condução do trabalho Ministério da Saúde. cialmente revelador do funcionamento da
em torno da discussão dos máquina da saúde. E é com esse contraste que
casos clínicosinstitucionais
foi baseada na Neste cenário, as cores e aromas vindos muitas vezes os profissionais não conseguem
metodologia Balint-Paidéia. do Norte se intensificaram e emergiram na lidar, como veremos no caso abaixo descrito7:
Esta abordagem utiliza
a discussão de casos de forma de realidades e desafios compartilha-
forma estratégica, tanto dos, ao longo de todo o processo da consul- Às vezes quando estou na unidade semi-
para disparar como para
incluir reflexões sobre toria, com todos os participantes, vindos de -intensiva com algum Yanomami fico imagi-
aspectos gerenciais e todos os estados do País. No próximo item, nando que mundo é este, em que vivemos,
subjetivos inerentes ao
campo da saúde. A este iremos abordar essa temática a partir do aos olhos deles. Lembrem que muitos vivem
respeito, conferir Cunha e relato de uma atividade desenvolvida em um em um mundo onde não há veículos, os sons
Dantas (2008).
evento no Pará. são os da floresta e dos cânticos nos dias de
7 Estetexto e outros festa e a luz se acaba ao mesmo tempo que
relatos sobre a vida
dos povos indígenas Desafios que vêm do Norte... o dia. As crianças são seres livres. Quando
na região amazônica pequenos permanecem em tipóias, trança-
podem ser encontrados
no blog (IMPRESSÕES Uma experiência interessante de cartogra- das de lã ou feitas de entrecasca de árvore,
AMAZÔNICAS, 2015). fia e reconhecimento dos desafios da região sempre grudadas a seus pais (parêntese:

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
Desafios que vêm do Norte: descobrindo e criando espaços como consultor da saúde da criança 117

nunca vi um Kaiapó homem carregando seu e passa horas espremendo os seios flácidos
filho em uma tipóia, mas já vi os Yanomami dos muitos filhos, na boca que não consegue
várias vezes com esta atitude). Na medi- nem fazer esforço para sugar. Mas a criança
da que crescem ganham o espaço ao seu continua cansada, e é enviada a outra enfer-
redor: as pernas das mães, a maloca, a al- maria, agora semi-intensiva. Retiram-se os
deia e a mata, conquistando a liberdade. amuletos. Fios no peito, monitores apitando
incessantemente, tubos e até um capacete
Eis que um curumim fica doente. Chama-se de oxigênio no rosto. Inaceitável! Ansiosa a
o pajé para fazer ‘xapori’ e soprar a doença mãe tira fios e capacete. Vê o filho ficar roxo
da criança. Ele canta, sopra e enfumaça. A e sem ar o que a leva à resignação de quem
equipe de saúde inicia o uso de antibióticos, entende que a entrega é a única solução para
questiona certas práticas, que, em alguns a preservação da cria. Não é fácil quando
casos, podem até agravar a doença, e se o a criança chora e ela pouco mais pode fa-
caso complica o resgate é acionado. Chega o zer do que sacudi-lo à maneira Yanomami,
avião ou helicóptero e a criança e sua família esfregando a mão no peito ou na cabeça da
voam para Boa Vista. Pai e irmãos ficam na criança e gritando ‘shhhh, shhhh, shhhhh’.
Casa do Índio. A criança é levada direto para
um hospital. Nosso pronto socorro – como Às vezes o trabalho é difícil para a equipe,
todo PS – é sempre cheio. Gente falando, como quando uma criança de pouco mais de
criança chorando, barulho, luzes que nunca dez anos, mãe, não de uma boneca, mas de
se apagam. Cores, formas, ruídos, cheiros. um bebê de verdade, em dois dias, por três
Tudo é novo para estas mães que ganharam vezes arrancou o cateter de uma veia profun-
uma roupa que tape suas vergonhas e que da, colocado por um cirurgião chamado espe-
andam descalças e com um seio esquecido cialmente para este fim e que na terceira vez
para fora da blusa após o seu filho dormir previu o trágico destino da criança vítima de
cansado. Entram na sala do médico. Já co- uma desidratação sem fim. Aos poucos, com
nhecem este procedimento, mas o diálogo é o amor das mães, a dedicação da equipe e as
impossível ou mínimo, mesmo com a ajuda bênçãos de algum Makunaima Yanomami os
de tradutores que pouco falam do português pequenos se recuperam. Mais ativas, puxam
alienígena neste país indígena. Nem sempre os cabelos das mães que trocam as lágrimas
os profissionais dão a atenção devida, e pela por um sorriso de orelha a orelha, encantador
gravidade com que chegam, logo se consta- como ver a vida brotando aos poucos. Melho-
ta ‘índio sempre é trabalho’, não pelo sentido res, as crianças são transferidas para a ‘enfer-
preconceituoso, mas pelo fato de que tem maria indígena’, onde os pais já podem acom-
menor resistência a infecções respiratórias. panhar as mães em grandes redes e junto a
parentes com quem podem conversar mais à
Logo vem a internação: criança deitada na vontade enquanto seus filhos se recuperam.
cama, furada, com o precioso sangue indo Logo escuto: ‘Casai, casai’. As mães pedem
parar em tubos. A cama em uma enferma- para ir para a Casa do Índio, onde segue seu
ria, onde todos olham tentando entender as tratamento e onde a cantoria se repete, mas
diferenças, por vezes difíceis de aceitar. Os mudando o tom, pois o pedido agora é para
olhos são curiosos dos dois lados. Mas o voltarem para as aldeias, onde, ao redor da fo-
que eu escrevi? Criança na cama… curumim gueira poderão contar deste estranho mundo
não dorme em cama e o sono não vem sem dos napopo (não índios). (IMPRESSÕES AMAZÔNI-
a curva da rede que imita a curvatura do dor- CAS, 2015).
so da mãe. A solução é simples: a mãe, pe-
quenina, deita na cama junto com o pequeno Esse relato demonstra o tamanho dos

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
118 PITOMBO, L. B.; LAMY, Z. C.; CARVALHO, A. V. V.; NUNES, A. L.; NEVES, M. N. S. S.

desafios encontrados no território e traz ques- potável nas áreas indígenas;


tões importantes para o debate: como receber • Não acompanhamento da saúde indí-
os diferentes? Nossos espaços estão prepara- gena pelos sistemas de monitoramento do
dos para seu acolhimento? Respeitamos suas Ministério da Saúde;
crenças? Sua cosmovisão? Como incluir e • Óbitos nas populações indígenas por
sensibilizar os diversos atores (da assistência desnutrição e diarreia;
à gestão) em temáticas como essa? • Falta de continuidade da atenção à
Após a apresentação do caso, a palavra cir- saúde nas aldeias devido à falta de recursos
culou por todos os presentes abordando tanto humanos e por questões em torno do proces-
os desafios quanto as contribuições oriundas so de trabalho;
das vivências de cada um. Na abordagem • Problemas com o registro civil da criança
metodológica proposta, espera-se que haja a indígena (muitas têm um nome no registro e
inclusão dos afetos e dos aspectos gerenciais outro que é utilizado na aldeia);
surgidos, e nesse caso específico, após as duas • Grande quantidade de crianças indíge-
tardes de trabalho da oficina (no segundo dia nas no município de Paragominas com sífilis
houve a apresentação de um outro caso), as congênita;
discussões do grupo foram consolidadas em • Violência sexual nas regiões que beiram
um documento encaminhado para a orga- os rios, nas casas e nos barcos;
nização geral do evento. Nesse documento, • Implantar e fortalecer os comitês regio-
procurou-se apontar as dificuldades levanta- nais de combate ao escalpelamento;
das e algumas propostas para possíveis arti- • Necessidade de conversa entre os estados
culações na região Norte do País, auxiliando que fazem fronteira entre si e entre outros
na construção da Carta de Belém8. países em relação ao atendimento de saúde.

Dificuldades Propostas que podem ser utilizadas


para as articulações do Norte
• Dificuldade de interlocução entre as
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde • Mobilização da Sesai, com outras áreas
com a Secretaria Especial de Saúde Indígena do MS. Ponto fundamental para o início de
(Sesai); qualquer trabalho, uma vez que os piores in-
• Dificuldade de fixação dos profissio- dicadores passam pela saúde indígena;
nais de saúde, principalmente no interior do • Mobilização para que a Rede de Urgência
Estado; e Emergência (RUE) atinja áreas remotas de
• Dificuldades em torno das relações entre fato, em conjunto com o exército. Salas de
as diversas culturas e suas diferenças; estabilização onde há pelotões de fronteiras
• Preocupação com o aleitamento materno com médico militar e onde há elevada mor-
e com a alimentação complementar saudável talidade, inclusive em transporte, a exemplo
na população indígena em função do acesso do estado de Roraima, podendo servir de
crescente à alimentação industrializada e à modelo para outras regiões dos estados do
8O conteúdo produzido sociedade de consumo; Norte;
subsidiou a construção • Persistência de elevados índices de ex- • Combate à violência contra crianças e
da Carta de Belém,
documento construído ploração sexual, gravidez precoce (adoles- adolescentes (exploração infantil e abusos
coletivamente com a centes e jovens) e violência contra a criança diversos, emocional e físico) por meio da
participação de todas
as entidades e pessoas e o adolescente; mobilização das diversas entidades gover-
presentes no evento e • Preocupação com o uso de álcool e namentais e não governamentais. Problema
encaminhada para o
governo do estado do Pará drogas na população indígena; social que, embora mostre tendência a me-
e da capital. • Falta de saneamento básico e de água lhorar com maior acesso à educação, saúde

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
Desafios que vêm do Norte: descobrindo e criando espaços como consultor da saúde da criança 119

e boas condições de moradia e alimentação, regulação, a aldeia central pode ser o ponto
deve ser assumido como um problema de de encontro, fazendo com que o paciente
fato e mobilizar os gestores de saúde; chegue mais rapidamente até o serviço de
• Combate efetivo à desnutrição infantil saúde. Transporte adequado e qualificação
e necessidade de implantação do Sistema das equipes de transporte para crianças e
de Vigilância Alimentar Nutricional (Sisvan gestantes de risco;
Web). Criar material de orientação alimentar • Expansão do teste do pezinho que
com a linguagem das diversas etnias. O Norte ainda não é uma realidade em muitos mu-
segue com os piores indicadores nacionais, e nicípios do interior. Políticas de interiori-
este assunto deve ser encarado como priori- zação do teste do pezinho, da orelhinha e
dade para os gestores. O resgate de práticas do olhinho devem ser realizadas. Além do
alimentares saudáveis e merenda escolar re- diagnostico, garantir o acompanhamento dos
gionalizada são alguns pontos a serem traba- casos positivos nos serviços;
lhados. O incentivo ao aleitamento materno e • Fornecimento regular de medicações
alimentação complementar adequada devem fundamentais. Uma das queixas mais comuns
estar sempre na pauta; dos municípios e comunidades mais isoladas
• A Atenção Integrada às Doenças é a falta de medicações fundamentais para
Prevalentes na Infância (AIDPI) deve ser diabetes, hipertensão, distúrbios neurológi-
uma prioridade para a região Norte, com cos, asma e antibióticos. O MS deve acom-
aumento dos esforços para sua penetração panhar de forma mais efetiva a distribuição
no interior, para todos os trabalhadores de desses medicamentos;
saúde; • Implantação e ampliação de serviços de
• Capacitação de parteiras tradicionais telemedicina nas regionais dos estados;
proporcionando sua integração aos serviços • Incluir no SisPreNatal as gestantes indí-
de saúde. Tradução do ‘Livro das parteiras’ genas atendidas nos serviços de saúde e por
para a linguagem das diversas etnias. Deve parteiras tradicionais;
ser estimulado como uma característica re- • Propor a construção de um evento na
gional e de grande importância. As parteiras região Norte para a discussão da questão do
devem ser qualificadas sem serem despreza- combate à exploração infantil e à violência
dos seus saberes tradicionais. Em paralelo a contra crianças e adolescentes com partici-
isso, deve acontecer melhora nas coberturas pação da sociedade civil organizada e dos di-
e adesão ao pré-natal; versos setores envolvidos na temática a nível
• Serviço de Atendimento Móvel de nacional e internacional;
Urgência (Samu) diferenciado – O Samu deve • Criar salas de parto culturalmente ade-
compreender as características regionais, quadas às diversas etnias;
com destaque para locais de difícil acesso. • Preocupação com a formação de recur-
Assim, é fundamental que sejam disponibi- sos humanos adequados aos desafios encon-
lizadas ambulanchas e o aeromédico onde trados nos territórios com ênfase no aspecto
se fizer necessário. Para facilitar o acesso, do cuidado com o cuidador;
devem ser estabelecidos pontos de aproxi- • Entendendo que as questões da saúde
mação entre as ambulâncias do Samu e os são extremamente complexas, propomos
transportes locais, como acontece em área uma maior integração das diversas áreas da
indígena com mapeamento das rotas de en- gestão, nos diversos níveis da federação;
contro. Exemplo: a ambulância muitas vezes • Pensar estratégias específicas para dimi-
não consegue chegar em determinada aldeia, nuição dos altos índices de mortalidade in-
mas chega em uma aldeia mais central. Uma fantil nas regiões indígenas. Exemplo: entre
vez acionado o resgate, dentro de critérios de os Yanomami temos 310 crianças até 1 ano

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 111-120, MAR 2016
120 PITOMBO, L. B.; LAMY, Z. C.; CARVALHO, A. V. V.; NUNES, A. L.; NEVES, M. N. S. S.

mortas entre mil nascidos vivos; que se graduam no Norte do País e que ne-
• Importância da mobilização social e in- cessariamente irão lidar com essas situações.
centivo ao protagonismo nos diversos níveis Descobrir tal realidade foi um desafio que
de gestão; cada consultor de saúde da criança teve que
• Ampliar e divulgar ações de acolhimen- enfrentar.
to aos casos de violência contra a criança e A construção do espaço ideal para a ação,
o adolescente, como a experiência do Propaz para o diálogo e para a promoção de encon-
Integrado e Projeto Crescer desenvolvidos tros de parceiros que por vezes se encontram
no Pará. próximos territorialmente, mas distantes em
ações e em pensamentos, foi uma tarefa fun-
Esta síntese não pretendeu dar conta da damental do consultor de saúde da criança.
grandiosidade das questões e problemas, Somente com a avaliação e reavaliação do
mas nos mostra o cenário com o qual o con- caminho seguido, com correções de rotas e
sultor da saúde da criança teve que se haver. criação de novas possibilidades, é que segui-
Parece claro que a maior parte dessas ques- mos na construção da garantia da saúde de
tões e problemas não são pensados durante cada criança, de cada brasileirinha e brasilei-
a formação profissional, mesmo daqueles rinho saudável. s

Referências

BARROS, R. B. Grupo e produção. In: LANCETTI, Paulo: Hucitec: Fapesp, 2014.


A. Saúde e Loucura 4: Grupos e Coletivos. São Paulo:
Hucitec, 1994, p. 145-154. CUNHA, G. T.; DANTAS, D. V. Uma contribuição para a
cogestão da clínica: Grupos Balint Paideia. In: CAMPOS,
______. Dispositivos em ação: o grupo. In: LANCETTI, G. W. S.; GUERRERO, A. V. P. (Org.). Manual de práticas
A. Saúde e Loucura 6: Subjetividade. São Paulo: Hucitec, de Atenção Básica: saúde ampliada e compartilhada. São
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BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.º 1.130, de 5 de MERHY, E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4. ed.
agosto de 2015. Institui a Política Nacional de Atenção São Paulo: Hucitec, 2014.
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Federativa do Brasil, Brasília, DF, 6 ago. 2015. Seção 1, p. PINHEIRO, R.; BARROS, M. E. B.; MATTOS, R. A. (Org.).
37. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores,
saberes e práticas. Rio de Janeiro: UERJ; CEPESC;
CARTA DE BELÉM. Belém do Pará, 2012. (mimeo). ABRASCO, 2010.

IMPRESSÕES AMAZÔNICAS. Impressões amazônicas PITOMBO, L. B.; MAIA, M. S.; ROSARIO, S. E. Estratégia
44. Disponível em: <https://impressoesamazonicas. Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS):
wordpress.com/impressoes-integrais/impresses- formando e transformando no campo da saúde pública.
amaznicas-44/>. Acesso em: 10 set. 2015. Trivium, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 109-116, 2014.
Disponível em: <http://www.uva.br/trivium/edicoes/
CECILIO, L. C. O.; CARAPINHEIRO, G.; ANDREAZZA, edicao-ii-ano-vi/pesquisas/pesquisa-1.pdf>. Acesso em:
R. (Org.). Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São 8 set. 2015.

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RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY 121

Médica pediatra. Doutora


Construção da grupalidade como fator de
1

em medicina e saúde pela


Universidade Federal da
Bahia (UFBA) – Salvador
(BA), Brasil. Consultora
crescimento e qualificação de consultores da
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do saúde da criança
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
Groupality construction as a growth and qualification factor for child
para formulação e
implantação de uma
health consultants
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no Hermila Tavares Vilar Guedes1, Ariane Tiago Bernardo de Matos2, Helga Muller Mengel3, Maria
estado da Bahia. José Guardia Mattar4, Rosimeire da Mota Barros Aires5, Sebastião Leite Pinto6, Ricardo César
hguedes@uneb.br
Caraffa7, Luciana Bettini Pitombo8, Marisa Schargel Maia9
2Enfermeira. Especialista
em saúde pública pela
Fundação Educacional
de Goiás (FEG) – Goiânia
(GO), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e RESUMO O presente artigo surgiu da ideia de compilar observações acerca da experiência
implantação de uma vivenciada por seis profissionais de saúde durante o seu processo de qualificação para atuar
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde como consultor/apoiador da saúde da criança nos estados. Tal experiência foi conduzida por
da Criança (PNAISC) no um consultor nacional e por uma tutora com experiência em formação de profissionais de
Distrito Federal.
matos.ariane@gmail.com saúde. O ponto forte percebido a partir das falas dos membros do grupo foi a aquisição de
habilidades de comunicação e gerenciamento de grupos, a partir da autoconfiança adquirida
3Assistente social.
Especialista em saúde por meio da problematização das experiências de cada um, levadas a discussões no grupo.
coletiva pela Universidade
Federal de Sergipe
(UFS) – São Cristóvão PALAVRAS-CHAVE Consultores; Capacitação profissional; Profissionais da saúde; Saúde
(SE), Brasil. Consultora pública.
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da ABSTRACT This article began with the idea of compiling observations about the experience lived
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis by six health professionals during their qualification process to act as a consultant/supporter of
para formulação e child health in Brazilian states. Such experiment was conducted by a national consultant and a
implantação de uma
Política Nacional de tutor with experience in training health professionals. The strong point noticed from the speeches
Atenção Integral à Saúde of the group members was the acquisition of communication and group management skills, that
da Criança (PNAISC) no
estado de Sergipe. emerged from the self-confidence gained by the problematization of each one´s experiences,
mengelsales@hotmail.com brought into discussion in the group.
4 Médica pediatra
e neonatologista. KEYWORDS Consultants; Professional training; Health personnel; Public health.
Especialista em ciências
da saúde pelo Hospital
Maternidade Leonor
Mendesde Barros/
Secretaria de Estado
da Saúde – São Paulo
(SP), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/
MS e colaboradora do
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
implantação de uma

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 121-129, MAR 2016
122 GUEDES, H. T. V.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; MATTAR, M. J. G.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.; CARAFFA, R. C.; PITOMBO, L. B.; MAIA, M. S.

Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde Introdução de informações e a implantação de progra-
da Criança (PNAISC) no mas, estratégias e ações. Essa estratégia é es-
estado de São Paulo.
mjgmattar@hotmail.com A interação à distância tem contribuído sig- sencial para a efetivação da Política Nacional
5 Enfermeira.
nificativamente nos processos de formação de Assistência Integral à Saúde da Criança
Especializanda em de profissionais de saúde; notadamente no (PNAISC), construída coletivamente na atual
enfermagem neonatal e que se refere à qualificação para atuações gestão da CGSCAM/MS e que representa
pediátrica pelo Instituto
Tocantinense de Pós- em atividades específicas. Assim, buscamos, uma conquista de todos os que atuam em
Graduação (Itop) – Palmas no presente texto, apresentar a percepção de prol da saúde e do desenvolvimento saudável
(TO), Brasil. Consultora
estadual da CGSCAM/ um grupo de consultores em saúde da criança das crianças em nosso país. Os 27 consulto-
MS e colaboradora do acerca de seu processo de formação. res foram divididos em 5 grupos de trabalho
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e É consenso no grupo que tal processo, com para o desenvolvimento e acompanhamento
Brasileirinhos Saudáveis momentos presenciais e virtuais, por meio de da formação e das atividades nos territórios.
para formulação e
implantação de uma plataforma na internet, promoveu a atuação Diversos textos foram apresentados como re-
Política Nacional de cada vez mais qualificada de cada um em seu ferência, além da utilização das experiências
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no território. Também é senso comum a percep- dos participantes em seus territórios.
estado do Tocantins. ção de que esse avanço ocorreu paralelamen-
rosaires1@hotmail.com.br
te à conquista da grupalidade, que foi sendo
6 Médico. Especialista em
pediatria pela Universidade
construída e consolidada à medida que a co- A utilização de abordagens
Federal de Goiás (UFG)
– Goiânia (GO), Brasil e
municação dentro do grupo e no coletivo dos e técnicas grupais durante o
consultores foi se tornando mais fluida. As
especialista em medicina
ricas trocas de experiências, demonstrações
processo de formação
preventiva e social pela
Secretaria Estadual de de apoio e cumplicidade fortaleceram não
Saúde de Goiás – Goiânia
(GO), Brasil. Consultor apenas as capacidades de cada um, mas, prin- O trabalho com grupos, entendido aqui como
estadual da CGSCAM/ cipalmente, contribuíram para desenvolver um dispositivo (BARROS, 1994, 1997), foi uma das
MS e colaborador do
projeto Contribuições da habilidades de comunicação e gestão de con- tônicas de todo o processo tanto nos momen-
Estratégia Brasileirinhas e flitos, especialmente úteis ao papel do consul- tos presencias quanto no trabalho realizado
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e tor. Dessa forma, o papel formador exercido pela plataforma. Tomar o grupo como um
implantação de uma pelo grupo foi sendo percebido e consolidado. dispositivo implica um avanço com relação às
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde A formação dos consultores estaduais para concepções mais tradicionais de grupo, que o
da Criança (PNAISC) no a Coordenação-Geral de Saúde da Criança apresenta como um somatório de indivíduos
estado de Goiás.
slpinto19@gmail.com e Aleitamento Materno do Ministério da ou como uma unidade em si. Sua principal ca-
7 Médico.
Saúde (CGSCAM/MS) foi coordenada pelos racterística é seu caráter ativo, acionador de
Mestre em saúde
coletiva pela Universidade profissionais que compõem a Estratégia potencialidades e composto por um emara-
Estadual de Campinas Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis nhado de linhas, não mais conectado a unida-
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Consultor (EBBS). A experiência de formação, também des e totalidades, cabendo se instalar sobre as
nacional da CGSCAM/ nova para os tutores da EBBS, foi focada linhas que o compõem e o atravessam seguin-
MS e colaborador do
projeto Contribuições da em três eixos de trabalho: a Cartografia, a do suas múltiplas direções. Muitas vezes, ao
Estratégia Brasileirinhas e Grupalidade e o Cuidado; e desenvolveu-se acompanhar essas linhas, a partir dos relatos
Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e através de tutoria em oficinas presenciais e comentários que povoavam os encontros,
implantação de uma e em Ambiente Virtual de Aprendizagem situações eram iluminadas, principalmente
Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde (AVA). as de difícil manejo, apontando para soluções
da Criança (PNAISC). A tarefa proposta à EBBS era conduzir a possíveis a parir da troca de experiências dos
rcaraffa@terra.com.br
formação dos consultores dos 26 estados e do participantes. O grupo como dispositivo é
8 Psicóloga e psicanalista. Distrito Federal para, em seus territórios, tra- disparador de intensidades, porque estamos
Mestre em psicologia
pela Universidade Federal balharem como interlocutores da CGSCAM/ atentos àquilo que de sensível se apresen-
Fluminense (UFF) – Niterói MS com gestores locais e profissionais dos ta, processos que nos afetam, experiências
(RJ), Brasil. Consultora
para desenvolvimento serviços de saúde, a fim de facilitar o trânsito que produzem ‘grupalidade’. Além disso, a

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 121-129, MAR 2016
Construção da grupalidade como fator de crescimento e qualificação de consultores da saúde da criança 123

experiência da grupalidade deve ser entendi- urgências do cotidiano e onde é possível colo-
da como um processo que vai se constituindo car em análise as ações e os afetos envolvidos
gradativamente, a partir do seu exercício. na prática dos profissionais.
Durante os encontros presenciais, havia
uma preocupação em intercalar os momen- A premissa de Balint não depende apenas da
tos dos pequenos grupos com os trabalhos na oferta de conhecimentos técnicos que pudes-
grande roda, com a participação de todos. O sem ser adquiridos em cursos ou por meio de
trabalho nos pequenos grupos se desenvol- protocolos (saber cognitivo), mas também da
veu no sentido da construção de um espaço capacidade pessoal de lidar com afetos e con-
de acolhimento, ‘intimidade’, gerador de flitos, inclusive inconscientes (CUNHA; DANTAS,
confiança e apoio mútuo; no qual caibam as 2011).
dúvidas, o mal-estar, em que as diferenças Tendo iniciado em 2012, até o final de 2013
podiam aparecer favorecendo o trabalho. No o grupo já estava consolidado, apesar de mu-
início, a grande roda se caracterizava por mo- danças em sua composição. Tais modificações
mentos mais formais de transmissão de co- não implicaram em quebra do direcionamen-
nhecimento, igualmente importantes para a to, já que os novos consultores foram rapi-
formação dos consultores. Com o decorrer do damente engajados nas atividades e no afeto
trabalho, e com o desenvolvimento de ativi- dos demais. A partir de novembro de 2013,
dades nas quais os consultores eram mistura- as trocas de experiências foram fortalecidas
dos compondo novas configurações grupais, por meio do grupo no WhatsApp; já que, por
começamos a perceber a diferença da quali- intermédio dessa ferramenta de comunica-
dade relacional também no grupo maior, que ção, as conversas ocorrem de forma pontual
congrega todos os subgrupos. A utilização da e rápida, estabelecendo uma vinculação mais
metodologia dos Grupos Balint Paidéia em próxima e cotidiana.
uma das oficinas possibilitou a experiência da Neste artigo, realizamos uma análise da
potência do trabalho coletivo em torno da dis- experiência de participação de um dos cinco
cussão de um caso clínico institucional. Esse grupos de formação de consultores/apoiado-
infantil e formação
método possibilita a produção de narrativas res, a partir das impressões de cada um deles, de grupos e tutora do
que se tornam proveitosas para todos e pos- durante o processo de formação à finalização projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
sibilita o exercício da escuta e da grupalidade deste. Buscamos verificar quais as expecta- Brasileirinhos Saudáveis
solidária (NOGUEIRA; PITOMBO; ROSARIO, 2010). Essa tivas que os participantes do grupo apresen- para formulação e
implantação de uma
metodologia foi apresentada em uma das ofi- tavam ao início do processo e analisar se, ao Política Nacional de
cinas presenciais e utilizada para a discussão final do processo, foram atingidas; identificar Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC).
de dois casos escolhidos previamente. possíveis facilidades e dificuldades sentidas lupitombo@yahoo.com.br
Nessa oportunidade, percebemos que a ati- pelo grupo; apontar potencialidades e fragi-
9 Psicanalista. Doutora
vidade produziu ambientes propensos à dilui- lidades observadas, identificando os sucessos em saúde coletiva
ção dos limites rígidos das especialidades, não e insucessos conseguidos no território. Além pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro
se tratando de grupos terapêuticos, mas com disso, identificamos as características apon- (Uerj) – Rio de Janeiro
efeitos terapêuticos; pois, afinal, é afirmada a tadas como importantes para o crescimen- (RJ), Brasil. Consultora
para desenvolvimento
importância da validação e o reconhecimen- to pessoal, incorporadas ou evidenciadas a infantil, formação de
to da dimensão subjetiva da experiência em partir da experiência de formação em grupo, grupos e tutora do
projeto Contribuições da
todos os momentos do processo. Pudemos para a atividade de consultoria/apoio. Estratégia Brasileirinhas e
observar, corroborando Cunha e Dantas (2008, Brasileirinhos Saudáveis
para formulação e
P. 25), que
implantação de uma
Metodologia Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde
o grupo Balint-Paidéia possibilita um espa- da Criança (PNAISC).
ço mais protegido, menos pressionado pelas Foram objetos de análise, para a elaboração msmaia@centroin.com.br

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124 GUEDES, H. T. V.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; MATTAR, M. J. G.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.; CARAFFA, R. C.; PITOMBO, L. B.; MAIA, M. S.

do presente texto, as falas individuais dos apreciar e concluir, também, por meio do
participantes de um dos grupos de consulto- mesmo processo. Afinal, concordamos todos
res, coletadas por meio dos relatórios dos en- com a sábia frase: “a colcha de retalhos forma
contros presenciais, além das falas no AVA e um desenho e um todo muito maior do que a
no WhatsApp. Este artigo aborda, principal- soma dos retalhos”, trazida por nossa tutora,
mente, o eixo de construção da grupalidade de arquivos maternos de sua infância.
como ferramenta para o desenvolvimento Considerando os objetivos, foram então
das competências necessárias ao consultor. identificados aspectos norteadores (quadro
Além de descrever e apresentar uma 1) que guiaram a construção de uma conclu-
análise do processo de formação por inter- são, a partir dos relatos individuais, configu-
médio dos relatos individuais, por vezes rando, dessa forma, uma construção coletiva
são citadas falas editadas dos consultores, do relato final, discutida e aprovada pelo
já que, desse modo, permite-se ao leitor grupo.

Quadro 1. Aspectos norteadores para elaboração do texto

Expectativas e seu alcance ao final do processo

Facilidades e dificuldades sentidas pelo grupo


Potencialidades e fragilidades observadas no território
Sucessos e insucessos no território:
- Concretizados
- Em andamento
Características importantes para o crescimento pessoal, cuja aquisição/realce ocorreu a partir da experiência
de formação para a consultoria

Do início do processo preparada para tamanho desafio. Mas topei e fui...


formativo No primeiro curso, quanto mais explicavam mais
eu ficava confusa. E eram tantas as atribuições
A inserção das pessoas no papel de consultor que tive a impressão que não daria conta. Pensei
ocorreu por meio de seleção feita pelos técni- em desistir; mas aceitei o desafio e resolvi ver até
cos do MS, a partir da identificação de candi- onde poderia contribuir.
datos sugeridos pelas coordenações de saúde
da criança dos estados e capitais. Uma vez se- Foram constituídos cinco grupos de
lecionados, ocorreu um encontro inicial, em estados, sob a coordenação de um consultor
Brasília, onde houve a apresentação formal nacional e uma tutora da EBBS. A regionaliza-
das equipes envolvidas e do projeto de for- ção não se fez presente em nosso grupo, já que
mação de consultores. A fala a seguir resume uniu Sergipe, Bahia, Goiás, Distrito Federal,
os relatos de todos, quanto àquele momento Tocantins e São Paulo; mas acreditamos que
inicial: essa diversidade tem sido um ponto impor-
tante de agregação de conhecimento. As di-
Com relação às minhas expectativas com a fun- ferenças são enormes em alguns aspectos,
ção, confesso que não sabia bem o que iria fazer. mas são mínimas em outros; e essa percepção
Sabia apenas que era para área da criança e para nos leva a pensar, discutir, concluir... ou não,
apoiar o estado. Não me sentia nem um pouco acerca de processos, atitudes e necessidades.

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Construção da grupalidade como fator de crescimento e qualificação de consultores da saúde da criança 125

A formação do grupo 2 me deixou meio confusa evidentes e ocultos; entraves diversos e pos-
e cheguei a questionar porque fazer parte desse sibilidades de intervenção que venham a fa-
e não de outro. Mas não durou muito. Hoje nosso cilitar o movimento em prol da qualificação
grupo se completa e não ficamos mais sem nos das ações da CGSCAM/MS, visando a que
falar nem que seja pelo WhatsApp. Trocamos ex- essa ação possa ser efetiva em cada espaço.
periências e nos apoiamos. Criamos um vínculo
tão forte que vou levar por toda a minha vida. A escuta neste processo é fundamental. Trata-se
de uma escuta qualificada: a arte de ouvir e en-
Tudo era muito novo. Para aqueles pro- tender o processo; de sugerir como lidar e intervir
fissionais de saúde com um tempo maior de nas questões difíceis do território, de construir as
experiência, tudo parecia ainda mais sur- ações com o grupo, para chegar às soluções, res-
preendente... Finalmente, surgia a possibi- peitando o papel e a posição de cada ator.
lidade de que os territórios fossem ouvidos
e integrassem a elaboração de um plano A experiência cotidiana trouxe maturida-
ampliado de saúde integral para as crianças, de à percepção do papel do consultor, como
incluindo ações interministeriais, juntando a pode ser percebido no relato a seguir:
saúde com o social e a educação. Estávamos
representando nossos estados, participando Faz parte do trabalho dos consultores utilizar ha-
de um marco histórico: a construção coleti- bilidades de comunicação. Através da escuta se
va de uma política de Estado que precisava e conhece a situação atual, que vai além do que é
precisa ser conhecida e vivenciada por todos informado oficialmente. A escuta dá oportunida-
os brasileiros: a Política Nacional Integrada de para que os atores da equipe exponham seus
de Saúde da Criança. sentimentos e o consultor/apoiador pode utilizar-
-se de conhecimentos sobre comunicação não
verbal, para perceber o contexto em questão. Por
O papel do consultor vezes, é interessante devolver questionamentos,
para que a equipe possa refletir mais acerca da
Para exercer bem seu papel, o consultor realidade local; buscar apreciação positiva das
precisa conhecer seu território de ação. falas, para assegurar ao grupo que suas consi-
Assim, o eixo da cartografia foi inserido no derações foram acolhidas e compreendidas. A
programa de formação. Entretanto essa car- comunicação integra o conjunto de habilidades
tografia também tem uma definição ampliada de apoio; e é uma ferramenta impactante no en-
— não se trata de conhecer geograficamente frentamento de realidades adversas. É papel do
o campo de ação — que seria impossível, em consultor conhecer situações, elogiar as poten-
um espaço limitado de tempo, já que nosso cialidades da equipe e oferecer ajuda prática no
país é continental, e cada estado é compos- território, pontuando informações e orientações
to por dezenas a centenas de municípios. A relevantes, no intuito de amenizar as fragilidades
cartografia em saúde encerra uma forma de e buscar a conquista das metas dos serviços.
conhecimento de espaços, condições de assis-
tência e de ação que dependem não somente A conclusão acerca da importância do tra-
de aspectos estanques, de aspectos quantita- balho em grupo é consequente à percepção
tivos, de gráficos ou elementos disponíveis do valor do trabalho grupal na formação:
em relatórios oficiais (FERIGATO; CARVALHO, 2011).
Para conhecer bem o território de ação, cabe O trabalho em grupo, com grupos e através dos
ao consultor apurar o seu olhar, a sua escuta, grupos é característica do trabalho do consultor/
a sua compreensão e a sua capacidade de in- apoiador. Muitas vezes, esse trabalho coleti-
teragir para que possa perceber indicadores vo é um aspecto facilitador; contudo, pode ser,

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 121-129, MAR 2016
126 GUEDES, H. T. V.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; MATTAR, M. J. G.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.; CARAFFA, R. C.; PITOMBO, L. B.; MAIA, M. S.

também um aspecto dificultador da ação, a de- Construímos um elo de confiança a partir das fra-
pender da qualidade da interlocução. A inserção gilidades que enfrentamos em nossos caminhos.
do consultor no território se faz a partir de sua Tais fragilidades contribuíram para modelar as
inserção em grupos existentes e/ou fomentando nossas práticas de trabalho, agregando seguran-
organização e formação de novos, grupos. Por si ça e embasamento teórico.
só, essa inserção já constitui um desafio. Afinal,
ao mesmo tempo em que passa a ser um membro Nas falas a seguir, percebemos clara-
daquele grupo, para onde leva a sua colaboração mente a potência que o método formativo
individual, suas vivências, seus afetos, por outro que a EBBS vem executando com os grupos
lado, em todos os momentos não deixamos de confere a esse trabalho.
cobrar de nós próprios (ou de sermos cobrados
por) um papel diferenciado, enquanto consultor/ [...] para nós consultores da criança, muitas
apoiador, que traz a responsabilidade de inter- das vezes, sozinhos nos territórios de cada um,
mediar e viabilizar muitas demandas do grupo. essa movimentação com trocas de afetos foi e
está sendo condição necessária para resistir-
As dificuldades e os conflitos específicos mos com confiança, nos espaços de disputas
do trabalho em grupo são, então, apontadas: (que nos parecem) tão naturais, quando pensa-
mos na política e nas relações nela implicadas.
[...] como se colocar como consultor/apoiador,
ao mesmo tempo em que está participando da Conduzir processos que viabilizam ambien-
construção do processo de apoio, em situação tes facilitadores enobrece a alma; apesar
não muito diferente dos demais membros dos das tensões e conflitos que permeiam os
grupos? O fato de estar inserido profissional ou espaços de disputa ali estabelecidos, sendo
pessoalmente no território é, por si só, um as- possível perceber que os afetos se revelam.
pecto facilitador do trabalho? Ser oriundo do
território e/ou do serviço apoiado, certamen- Quando o consultor estabelece confiança e in-
te aumenta a responsabilidade e a implicação; teração com os membros do grupo, estes pas-
mas, paralelamente, dificulta a neutralidade e a sam a compreender melhor seus objetivos e,
imparcialidade? juntos, buscam alcançá-los de forma compar-
tilhada. As competências individuais e com-
plementares dos membros possibilitam alcan-
çar resultados e perseguir objetivos coletivos.
A construção da
grupalidade O mais interessante nisso tudo é a cumplicidade
que construímos ao longo desses dois anos. In-
Como já referido, fomos, continuamente, divíduos que surgiram dos mais diversos lugares
percebendo a importância do grupo no de- com suas vivências. E a interação disso tudo foi se
senvolvimento e na potencialização das ca- dando como se fôssemos peças de quebra-
pacidades de cada um. A interação tornava -cabeça, que se encaixam e se completam per-
mais sólida a incorporação de habilidades e feitamente. Nunca imaginei que pudesse agregar
competências. tantos valores e com tamanha intensidade numa
vivência de grupo. Podemos dizer que vivencia-
Com o conhecimento que adquirimos ao longo do mos de fato o construtivismo.
nosso percurso formativo de consultores e apoia-
dores no território, potencializamos o aprendi- “É fato que um grupo é formado por indi-
zado com as nossas experiências e amadurece- víduos; em nosso caso, o indivíduo é formado
mos as nossas relações com os gestores locais. pelo grupo”.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 121-129, MAR 2016
Construção da grupalidade como fator de crescimento e qualificação de consultores da saúde da criança 127

Poder perceber a multiplicidade e a com- grupo ampliado, no qual os laços de afeto e


plexidade inerente ao encontro grupal, pelo cooperação também foram se solidificando,
acesso ao plano dos afetos, foi algo valori- de modo a integrar todos em uma enorme
zado como um diferencial no processo de corrente verde-amarela. No âmbito mais res-
formação. Além disso, enquanto membro trito, onde circulam situações particulares
de muitos grupos, é preciso reconhecer e dos territórios, em que muitas vezes a con-
valorizar a própria individualidade e poder fidencialidade é necessária e ética, o apoio
se acolher a cada momento. Cada indivíduo individual do consultor nacional e/ou da
tem o seu espaço e suas características, de tutora da EBBS se faz disponível e presente
modo que a pluralidade pode ser uma potên- por meio do dispositivo Pé do Ouvido, parte
cia grupal. Acerca desse aspecto, Barros (1994, do AVA.
P. 146) diz:
No território foram muitas as emoções. As piores
O grupo não tem relação com a vida privada dos foram as primeiras. Muitas rejeições. E foi preciso
indivíduos que se reúnem em determinado espa- explicar muitas vezes sobre o papel de consultor.
ço, por um certo tempo, para cumprir certos ob- Tantas redes para apoiar, portas fechadas, mas,
jetivos. Ele é (ou pode ser) um dispositivo quando devagar, fui encontrando atalhos e a vontade de
trata de intensificar em cada fala, som, gesto, o fazer foi aumentando. Muitas portas se abriram
que tais componentes acionam das instituições e sempre que precisava, tinha o ‘pé de ouvido’ e,
(sociais/históricas) e de como nelas constroem atrás dele o consultor nacional e a tutora EBBS,
novas redes singulares de diferenciação [...]. sempre dispostos a nos apoiar. Na verdade, o
‘pé de ouvido’ na plataforma foi minha primeira
Foi também importante perceber a dife- paixão.
rença entre o nosso grupo de consultores e os
grupos dos quais passamos a fazer parte, em A construção contínua desse novo ator —
nossos territórios, por conta da atuação como o consultor/apoiador — impulsionador de
consultores da saúde da criança. Apesar de novas práticas, tem se apresentado como um
aprendizes em ambos, no primeiro, somos fator de fortalecimento do trabalho no terri-
inseridos com objetivo prioritário de nos tório; tanto para o MS, o estado e o municí-
prepararmos para a atuação; já nos demais, pio, quanto para os serviços e profissionais
precisamos demonstrar habilidades que a in- apoiados que, em meio a tantas descons-
serção no primeiro nos confere. Obviamente, truções, vão percebendo um novo modo de
como dito anteriormente, todas as inserções fazer e de qualificar seu trabalho.
trazem crescimento e, quando expostos ao Lidar com dificuldades foi um aprendiza-
grupo, se tornam situações problematiza- do valioso durante a formação.
das para induzir discussão acerca de atitu-
des e agregação de competências. Todos nós vivenciamos, em nossos terri-
tórios, diversos situações de pressão, que
nos fizeram crescer e, hoje, podemos di-
Sobre o ‘empoderamento’ zer que amaduremos todos juntos a partir
dessas situações; e somos seres diferentes.
O grupo de consultores se constitui em um
apoio permanente, utilizado sempre que A autoconfiança adquirida tem sido importante
necessário, de modo geral e em situações para conseguirmos diminuir os nossos enfrenta-
específicas de cada membro. Essa afirma- mentos de poder e de vaidade. Em contrapartida,
ção tanto é apropriada para o grupo menor, fortalecemos o reconhecimento do nosso papel
constituído pelos seis estados, quanto para o de consultor e apoiador no território.

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 121-129, MAR 2016
128 GUEDES, H. T. V.; MATOS, A. T. B.; MENGEL, H. M.; MATTAR, M. J. G.; AIRES, R. M. B.; PINTO, S. L.; CARAFFA, R. C.; PITOMBO, L. B.; MAIA, M. S.

Há, em inúmeras falas, o reconhecimento transformação positivas — seja na função de


ao modo cuidadoso, primoroso, com que a cada um no território e no espaço ampliado,
EBBS tem conduzido o processo de formação seja enquanto pessoas.
de consultores. Por vezes, tem sido abordada
a diferença do modo de atuar dos demais Não importa até onde vamos; ter participado já
apoiadores do MS que, embora qualificados, valeu a pena. Hoje o Estado reconhece a impor-
não dispõem dos dispositivos formadores e, tância de nossa contribuição. Os laços se estrei-
podemos dizer ‘cuidadores’ dos quais nós, taram entre o Ministério da Saúde e a Secretaria
consultores da CGSCAM/MS, dispomos. Estadual da Saúde; e considero que a saúde da
criança cresceu muito com nosso apoio, já que
O apoio da EBBS a nós, consultores, foi funda- somos ‘um braço da CGSCAM/MS no território’.
mental nesse processo todo. Esse modelo de
construção da grupalidade trouxe segurança Finalizamos nosso artigo com a fala de um
emocional, confiança e crescimento tanto profis- dos consultores, que significa a percepção do
sional como pessoal. sentido da formação em grupo; permitindo
que as tarefas individuais sejam encharcadas
de um pensamento positivo e de apoio, es-
sencial à esperança de que todo esforço cole-
Conclusão tivo nos levará, se não ao alcance, ao menos à
caminhada contínua, na direção da plenitude
A análise das contribuições revela a arti- da saúde da criança brasileira.
culação construída ao longo de discursos,
práticas e posições diversas, permeadas Trabalhar bem, juntos, dar apoio uns aos outros,
por demonstrações de afeto interpessoal e identificar-se com o grupo, querer que o grupo
comprometimento com a causa — objeto do vença e tenha sucesso, é muito mais do que um
trabalho. No decorrer do período de forma- comportamento de cooperação – passa a ser um
ção, é claramente perceptível o crescimen- estado de colaboração, de investimento de todos,
to da autoconfiança e da competência de em um esforço grupal para alcançar o objetivo
membros do grupo, mostrando que o pro- maior: a melhor assistência em prol da saúde in-
cesso de formação resultou em mudança e tegral da criança. s

Referências

BARROS, R. D. B. Grupo e produção. In: LANCETTI, a clínica ampliada. In: BRASIL. Ministério da Saúde.
A. (Org.). Grupos e coletivos. São Paulo: Hucitec, 1994. Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde,
(Saúde e loucura, 4). 2011. p. 143-161. (Série B. Textos Básicos de Saúde)
(Cadernos HumanizaSUS, 2).
______. Subjetividade. In: LANCETTI, A. (Org.). Grupos
e coletivos. São Paulo: Hucitec, 1997. (Saúde e loucura, ______. Uma contribuição para a cogestão da clínica:
6). grupos Balint-Paidéia. In: CAMPOS, G. W. S.;
GUERRERO, A. V. P. (Org.). Manual de práticas de
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Construção da grupalidade como fator de crescimento e qualificação de consultores da saúde da criança 129

FERIGATO, S. H.; CARVALHO, S. R. Pesquisa profissionais de cuidados paliativos. In: INSTITUTO


qualitativa, cartografia e saúde: conexões. Interface NACIONAL DO CÂNCER. Comunicação de notícias
(Botucatu), Botucatu, n. 15, v. 38, p. 663-675, 2011. difíceis: compartilhando desafios na atenção à
saúde. Coordenação Geral de Gestão Assistencial.
NOGUEIRA, J. G.; PITOMBO, L. B.; ROSARIO, Coordenação de Educação. Rio de Janeiro: INCA.
S. E. Transformações afetivas em um grupo de 2010.

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130 POESIA | POETRY

Encantos da Roda
Charms of the Circle

Fátima Cardoso Cruz Scarcelli1

Olhando o céu para além do infinito


Com os olhos de alma prescrutar
quando num lampejo de memória
na ‘Formação EBBS’ comecei a pensar.

Lembrando o girar das Rodas


como um pião num gracioso rodopiar
recordando momentos alegres
das rodas e cirandas na infância a brincar.

E se fez presente o encanto das Rodas


que na linha do tempo passei a lembrar
começando quando ainda criança
nas Cirandas, no passa anel sempre a cantar.

No momento é a ‘Formação EBBS’


que impulsiona muitas Rodas a circular
girando na troca de conhecimentos e experiências
para novos saberes incorporar.

E sempre nos movimentos das Rodas


Vemos a grupalidade se efetivar
fortalecendo mobilizações e coletivos
1 Assistente Social. num fluxo dinâmico de afetar.
Especialista em
administração hospitalar
pela Faculdade São Camilo E rodando a Roda e na Roda rodando
de Desenvolvimento os grupos primam por compartilhar
em Administração da
Saúde – São Paulo (SP), uma explosão de inquietações e afetos
Brasil. Consultora do quanta potencialidade a aflorar.
projeto Contribuições da
Estratégia Brasileirinhas e
Brasileirinhos Saudáveis Na Roda da Atenção a Criança
para formulação e
implantação de uma toda subjetividade vai para ar
Política Nacional de numa construção interfederativa da PNAISC
Atenção Integral à Saúde
da Criança (PNAISC) no como Dr. Paulo costuma falar
estado de Mato Grosso
do Sul.
faticy@gmail.com Na expressão dos muitos Brasis

DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 130-131, MAR 2016
Vivências E B B S 131

cultura, etnias e regionalismo a respeitar


são tão intensos os movimentos dessa Roda
como poderíamos deixar de nós encantar?

No ‘Ser’ Consultor da Criança


que a ‘Formação’ faz desabrochar.
Gratidão pela oportunidade ímpar
assim o grupo costuma se expressar.
Quão fortalecidos e enriquecidos saem
a cada impulso da Roda a rodar.

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Diagramação e editoração eletrônica
Layout and desktop publishing

HG Design Digital

Design de capa
Cover design

Alex I. Peirano Chacon

Normalização, revisão de texto e tradução


Normalization, proofreading and translation

Ana Luisa Moreira Nicolino (inglês)


Frederico Azevedo (normalização)
Lucas Rocha (normalização)
Luiza Nunes (normalização)
Wanderson Ferreira da Silva (português e inglês)

Impressão
Printing

Imos Gráfica e Editora

Tiragem
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Site: www.cebes.org.br • www.saudeemdebate.org.br


E–mail: cebes@cebes.org.br • revista@saudeemdebate.org.br

Divulgação em Saúde para Debate: Revista do Centro Brasileiro


de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, Cebes – n.1 (1989) – São Paulo: Centro Brasileiro
de Estudos de Saúde, Cebes, 2016.

n. 54; 27,5 cm


ISSN 0103–4383

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Cebes


CDD 362.1
Ministério
da Saúde

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