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Desenvolvimento e dependência

Ruy Mauro Marini

Fuente: Archivo de Ruy Mauro Marini con la anotación "Artigo publicado


no Correio Braziliense, (1992)"

A crise do socialismo europeu, a revolução científico-técnica e a difusão da doutrina neo-


liberal puseram em xeque, nos anos 80, os pontos de referência de que se valiam os meios
políticos e intelectuais mais progressistas da América Latina para pensar o futuro da região:
os conceitos de desenvolvimento e de dependência. Seu lugar é ocupado hoje por palavras
de ordem, entre as quais se destacam a economia de mercado, a inserção no processo
mundial de globalização e a redução do Estado.

Os estudos sobre o desenvolvimento ganharam impulso depois da segunda guerra mundial,


graças sobretudo ao progressivo e muitas vezes conflitivo processo de descolonização que
então se verifica. A maioria das nações do globo, muitas delas emergindo à vida
independente, toma consciência do abismo que as separa de um grupo de países que
concentram a riqueza material e o conhecimento científico-técnico. As tensões que isso
provoca nas relações internacionais levam a que o organismo encarregado de discipliná-las
—a Organização das Nacões Unidas— alente a elaboração de teorias destinadas a explicar e
justificar essas disparidades.

Surgiram assim as comissões econômicas regionais das Nações Unidas, das quais a mais
atuante foi a da América Latina. A Cepal estabeleceu um esquema explicativo para o
subdesenvolvimento que, fiel ao padrão proporcionado pela ONU, o considerava como uma
etapa prévia ao desenvolvimento econômico pleno e (no que ia além do que pretendia a
ONU) um resultado das transferências de valor realizadas no plano das relações econômicas
internacionais.

A chave dessas transferências, que descapitalizariam a região e deprimiriam as condições de


vida de suas populações, seria a troca de bens com baixo valor agregado, essencialmente
matérias primas, por bens de maior valor agregado, de origem industrial. Em conseqüência,
a Cepal preconizava uma política de industrialização, assegurada por um marcado
protecionismo estatal. Sobre essa base, entrariam a resolver-se os problemas sociais e a
instabilidade política que caracterizam os nossos países.

Reinando absoluta nos anos 50, a teoria desenvolvimentista da Cepal foi posta em xeque
quando, a princípios dos 60 e após um grande esforço de industrialização, os países latino-
americanos mergulharam em uma grave crise econômica, que não tardou em dar lugar a
perturbações políticas. Foi nesse contexto que surgiram as ditaduras militares, que se davam
como objetivo resolver os problemas econômicos à custa das liberdades políticas. E foi
também quando, insistindo sobretudo nos problemas financeiros e tecnológicos criados pela
desnacionalização de nossas economias, se constituiu a teoria da dependência.

Desenvolvimento e dependência, tanto para a Cepal como para a teoria da dependência,


eram questões ligadas à elevação do nível de vida das maiorias, à defesa da democracia e
das liberdades cidadãs e à luta pela soberania nacional. As idéias que tomaram seu lugar
preocupam-se principalmente com a competitividade empresarial, com a liberdade de ação
dos capitais privados e com a integração subordinada a algum dos blocos econômicos que
estão construindo os grandes centros capitalistas.

Há, por trás disso, realidades objetivas. Os bens de menor valor agregado, consistentes em
produtos agrícolas ou minerais, que foram tradicionalmente os pontos fortes da América
Latina, representam hoje cerca de um quarto do valor das transações comerciais
internacionais. As técnicas de produção manufatureira que imperavam no mundo até a
década de 1970 e às quais começávamos a aceder se modificaram drasticamente.

A economia internacional passa atualmente por uma transformação que resulta, no


essencial, do notável avanço da microeletrônica, da aplicação da informática ao processo de
produção, do desenvolvimento da indústria aero-espacial e das telecomunicações, da
fabricação de novos materiais e das inovações que se estão verificando no campo da
biotecnologia. Não participar dessa transformação é aumentar o subdesenvolvimento,
ampliando a brecha que nos separa das condições em que produzem e vivem os povos do
mundo desenvolvido. Mas, para ser parte dela, a América Latina necessita contar com
capitais, capacidade para importar novas tecnologias, escalas de mercado e mão-de-obra
qualificada.

Nossa dependência nos tem, porém, obrigado a seguir caminho inverso. Em dez anos, entre
1982 e 1991, por força da nossa dívida externa, realizamos uma transferência líquida de
recursos ao exterior da ordem de 275 bilhões de dólares. Nossas exportações aumentaram
em um terço, nesse período, mas —seja porque nossos produtos se vendem mal, seja
porque as divisas angariadas foram usadas para transferir recursos ao exterior— nossa
capacidade para importar, em termos per cápita, se reduziu em 40%.

A estagnação econômica em que se debateram quase todos os países da região, no período,


deprimiu nosso produto per cápita em 9%, o que —somado à concentração da renda—
tornou ainda menos dinâmico o mercado interno. Os gastos em educação e pesquisa não só
não cresceram como, devido às políticas de austeridade postas em prática (as quais
incidiram fortemente sobre os gastos sociais do Estado), diminuíram.

É necessário um grande esforço para reverter essa situação. Ele passa pela reunião de
forças, a fim de se ter o peso suficiente para influir nas decisões internacionais. A integração
regional, como base para o relacionamento com os blocos econômicos em formação e com
os organismos internacionais, é por isso fundamental. No contexto da economia mundial
contemporânea, os projetos estritamente nacionais parecem já não ter cabida, sendo mister
buscar a constituição de entidades mais poderosas.

Mas não se pode fazer isso ingenuamente. A verdadeira integração econômica só será
possível com a delegação de atribuiçõs estatais a órgãos supra-nacionais, em maior ou
menor grau, desde a política tarifária, monetária e fiscal, até as que se referem às questões
laborais, educacionais e culturais.

A integração latinoamericana, como arma principal na luta contra a dependência e pelo


desenvolvimento, não pode ser vista como algo que interessa somente ao governo, aos
empresários e à economia. Ela tem que ser entendida como uma grande empresa política e
cultural, capaz de convocar à participação ativa todos os setores do povo.

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