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O artigo discute o con-

ceito de infância à luz da


O SUJEITO
Psicanálise. Serve-se de
Aries, que sustenta a idéia
de que infância é um con-
ceito que nasce juntamente
INFANTIL E A
com a modernidade, e de
Neil Postman, que sustenta
que a infância começou a
INFÂNCIA DO
concluir com a modernida-
de. E o que mais contribuiu
para que a infância come-
çasse a declinar como con-
SUJEITO
ceito foi a invenção de Gu-
tenberg, a imprensa. Disse
esse autor que o que trans-
torna a invenção da impren-
sa é a separação da posse
do saber. Alfredo Jerusalinsky
O autor conclui que,
embora se trate de perspec-
tivas totalmente contrapos-
tas sobre a historicidade do
conceito de infância, são
"Vou comer muito para não ficar velha"
ambas verdadeiras porque,
sem saber, aludem a algo Clara, 3 anos
que a Psicanálise chama de
"sintoma social".
Infância - sintoma social tema sobre o qual falaremos hoje está enun-
- psicopatologia
ciado nesse título paradoxal: "O sujeito infantil e a infân-
cia do sujeito". Eu o escolhi para colocar em evidência
THE INFANTILE SUBJECT que a questão da temporalidade no campo do sujeito é
AND THE INFANCY OF THE estruturada de um modo tal que nosso pensamento cons-
SUBJECT
ciente e nossa reflexão espontânea nào se adaptam facil-
This paper discusses the
concept of Infancy as it is mente à sua lógica. Esse título evidencia já de partida que
viewed by the Psychoanaly- nos confrontamos com uma dificuldade que é própria do
sis. It discusses the ideas of desencontro entre a lógica que organiza a estrutura mes-
Aries, which stand that In- ma do sujeito e nosso habitual modo de pensar as coisas.
fancy is a concept that was
Por isso, não podemos esperar, e isto é uma advertência,
born together with moder-
nity, and the ideas of Neil não podemos esperar que nosso percurso neste semi-
Postman, to whom Infancy nário venha a ser tão fácil como desejaríamos, já que, se
has ended at the beginning formos conseqüentes com essa denominação - a de semi-
of modernity, specially at nário -, o trabalho a fazermos não é simplesmente o de
the moment of Gutenberg's
press invention. The author uma exposição conhecimentos acabados, mas sim um
concludes that both au- exercício de elucidação de um conjunto de conceitos.
thors are right because Conceitos que, embora previamente definidos, oferecem-
they point to the social nos, por sua própria definição, uma série de obstáculos
symptom, a psychoanalyti-
cal concept.
Infancy — social
• Psicanalista membro da Associação Psicanalítica de
symptom -
psychopathology Porto Alegre e da Association Freudienne Internationale.
Diretor do Centro "Lydia Coriat" de Porto Alegre e de
Buenos Aires.
para serem adequadamente compreendidos. É por esse motivo e
não por meras razões de simpatia que se torna necessário que
vocês interroguem porque senão esse exercício não vai ser possí-
vel.
Nosso assunto é a criança e a Psicanálise. De um modo mais
genérico poderíamos dizer a Psicanálise e a infância. Vocês sabem
que há autores que sustentam a idéia de que infância é um con-
ceito que nasce juntamente com a modernidade. "A história social
da criança e a da família", de Philippe Aries, sustenta esse ponto de
vista. Mas há autores - eu menciono isto porque essa visão trans-
formou-se em um lugar comum - que não partilham esse ponto de
vista. Refiro-me especialmente a um autor americano, Neil Postman
que publicou por volta de 1980 um texto que se chama "O Desa-
parecimento da infância", ou seja, não o nascimento, e tampouco
o fim da infância, (talvez -este último- para que não ficasse super-
posto com o texto de Arthur Clark). Bem, aquele autor sustenta a
idéia, muito interessante, de que a infância existiu como conceito
pelo menos desde a época clássica, e oferece uma série de refe-
rências sobre isso na cultura grega, na cultura medieval, na cultura
romana. Segundo ele, a infância começou a concluir, a acabar, com
a modernidade principalmente. E o que mais contribuiu para que
a infância começasse a declinar como conceito, como categoriza-
ção, como fenômeno social, foi a invenção de Gutenberg, a im-
prensa. Não deixou de me surpreender que alguém dissesse seme-
lhante coisa, confesso que levei um susto. Pensei que estava lendo
um texto delirante. Mas, pela curiosidade que costumam despertar
em nós os delírios, digo nós porque nos ocupamos dessas coisas
evidentemente, continuei a ler. E ali me encontrei com os funda-
mentos de tal asseveração. Disse esse autor que o que transtorna a
invenção da imprensa é a separação da posse do saber. Até a
invenção da imprensa, as crianças ficavam, na cultura clássica e na
antigüidade, separadas do campo do saber que no discurso social
era reconhecido como tal. Dito de outro modo, as crianças eram
excluídas de certas formas e fontes de saber consideradas funda-
mentais para a vida social. Advirto a vocês de que eu não estou
contando isto porque eu concordo completamente com essas idé-
ias, mas precisamos levá-las em conta, em seguida veremos por
quê. Ele diz que, em concordância com o nascimento da palavra
impressa, assiste-se ao surgimento, um século e meio depois, da
escola da modernidade, ou seja, ao nascimento da escola estan-
dardizada no que diz respeito ao saber a ser transmitido. La Salle
propõe a substituição do ensino do espírito pelo ensino das coisas,
ou seja, a substituição do ensino das condições morais, voltado
para o resguardo de uma cultura, pelo ensino das variáveis que
permitem caracterizar os objetos; a saber, então, o ensino das ma-
temáticas, especialmente a aritmética e da geometria, das técnicas
de navegação, das técnicas de agricultura, das técnicas de adminis-
tração e do comércio, da transmissão de uma teoria do valor obje-
tivo, ou seja, do valor dos objetos, não medidas disciplinares atuais um princí-
do valor moral mas do valor de uso e pio semelhante, embora recalcado. E o
do valor de troca dos objetos. Nessa efeito que a ciência introduz nas
substituição do ensino moral e religioso crenças: as transforma em técnicas e as
pelo ensino da prática industrial e co- desembaraça de seu irracional conteú-
mercial, opera-se então uma estandardi- do imaginário, e original, para intro-
zação dos conhecimentos a serem ensi- duzi-las no campo de uma suposta
nados e transmitidos, cujo extremo pa- racionalidade, em que a análise de sua
radigmático é representado inicialmente lógica pouco resiste quando ela é agu-
por La Salle, e, no seu extremo mais damente elucidada. Essa estandar-
recente, na tentativa de incluir na dização se universaliza e está contida,
Declaração Universal dos Direitos da por exemplo, nos manuais arquitetôni-
Criança todo aquilo que se supõe que cos que regem as normas de construção
uma criança hoje deve saber. Há um das escolas. Hoje em dia qualquer um
artigo de Alain Grosrichard na Ornicar pode ir ao MEC e pedir as normas de
n. 2 que se chama "O santo pedagogo", arquitetura escolar. Ali há uma série de
no qual ele se preocupou em apresen- itens onde vocês verão a quantidade de
tar os documentos históricos que con- metros cúbicos que deve ter uma sala
têm as propostas originárias de La Salle. de aula, a posição em que têm que estar
Ali se pode ler que La Salle estabelece as janelas, as medidas das classes, a
cuidadosamente nâo apenas os temas posição e tamanho dos quadros negros,
sobre os quais a escola tem que traba- o lugar que tem que haver para o deslo-
lhar mas também as medidas em me- camento do mestre; e, é claro, ali já não
tros, centímetros e milímetros das clas- se encontra a medida da vara, graças,
ses, dos cadernos, dos lápis, a distância entre outras coisas, à rebelião que, em
a que deve estar o quadro negro do Paris, no ano de 1832, Gustave Flaubert
aluno, a posição em que o aluno tem e seus colegas de 14 anos encabeçaram
que estar para poder bem aprender, a contra os castigos corporais praticados
postura física até o detalhe sobre o lu- contra os alunos.
gar no qual têm que estar apoiados os A partir dessa estandardização do
cotovelos, em que posição tem que ensino - estamos falando do fim do
estar a cabeça, em que posição as per- século XVII e início do século XVIII -
nas e os pés, qual é o ângulo de aber- nascem várias questões referidas à
tura entre as pernas que tem que haver, infância. Poderíamos situar nessa data o
e sobretudo a medida da vara do mestre nascimento das pré-condiçòes necessá-
que é representante de sua autoridade, rias para o surgimento de uma psicopa-
de seu poder e de seu saber. Vara com tologia propriamente infantil. Em meu
a qual, evidentemente, vocês sabem, se texto "Quantos terapeutas para cada
aplicavam os castigos que a má na- Q
criança", publicado no n 8 da revista
tureza e a presença de formações de- "Escritos de la infância", tento demons-
moníacas em certos alunos fartamente - trar que a partir de um standard que
para aqueles educadores - justificava. constrói um sujeito infantil suposto co-
Por sinal que estes castigos tinham um mo normal torna-se possível, por con-
ressábio, conservavam um efeito resi- traste, identificar o que se desvia desse
dual das práticas exorcistas. Era para standard e nasce então uma presunção,
expulsar o mal do corpo que esses cas- um suposto psicopatológico nesses
tigos se aplicavam. Não sei se caberia, desvios. Dito de um modo mais sim-
mas provavelmente sim, atribuir às ples: caso se proponha que todas as
crianças de tal idade devem estar em próprias dos adultos. Devem saber vo-
condições de aprender tais e tais coisas cês que até pelo menos o século XVII,
de acordo com o standard, a qualquer fim do século XVII, a iniciação no cam-
criança que não aprenda o que deveria po das letras era extremamente excep-
aprender nessa idade será suposta de cional, bem como na aritmética. Devem
uma patologia. É assim que este sujeito saber também que somente os nobres,
construído - porque este não é um por sua futura função de poder, gover-
sujeito real, mas um sujeito construído, no e administração, deviam se preparar
suposto como normal - é o que seive para tal. Assim, salvo para os filhos dos
de comparação ou de ponto de referên- nobres, não era considerado nem ne-
cia para definir o patológico. Nessa tri- cessário nem conveniente, - e prestem
lha desenvolve-se toda a psicopatologia atenção a esta última palavra, preceito
infantil pelo menos até fim do século da inquisição, não era conveniente que
XIX e ainda permeia parte do que nos as letras se generalizassem porque elas
nossos dias é considerado psicopato- abririam a possibilidade de saberes que
lógico na infância. Nos nossos dias, par- seriam mal manejados ou mal interpre-
ticularmente a partir do nascimento da tados pelo vulgo, - e as crianças deviam
Psicanálise e da influência da Psicaná- ser preservadas, portanto com muito
lise nas considerações psicopatológicas mais razão, de uma série de conheci-
sobre a infância, se transforma esse mentos e formas de saber totalmente
conceito genérico. Não estamos falando contrapostas ao conceito religioso e
da patologia em geral, estamos falando consideradas, por aquelas autoridades,
da psicopatologia. Nesta caso, entendi- extremamente perigosas para a ordem
da como um desvio psicológico do moral da sociedade. Imaginem as con-
standard. Vocês devem saber que todos siderações de Santo Agostinho sobre a
os testes - modo através do qual a Psi- vida sexual, nas mãos de uma criança!
cologia tentou se tornar útil ao campo Escândalo! Essa é a razão pela qual as
diagnóstico - partem de um standard, bibliotecas que restaram da época ale-
partem de um constructo, de um sujeito xandrina, por exemplo, na Europa, es-
imaginário, e é na comparação com es- tavam sepultadas em mosteiros sob
se sujeito inexistente que se estabele- quatro chaves, e que somente aqueles
cem as medidas psicopatológicas, por que provavam ter resistência suficiente,
exemplo, as introduzidas pelos testes. por estar impregnados no espírito divi-
Muito bem, também nessa estandardiza- no, podiam ser autorizados a aceder a
ção lasalliana surge nâo somente a pos- essas leituras. Por isso é que a propos-
sibilidade de uma psicopatologia pro- ta lasallana faz não pouco escândalo no
priamente infantil mas também surgem interior da Igreja ao sustentar a idéia de
as condições que tenderiam a dar razão "ensinar às crianças pobres a ler e es-
a Neil Postman (op. Cit.) quando pro- crever, e também aritmética". Embora
põe que Gutenberg é quem forneceria hoje nos pareça que o conjunto das
um dos principais instrumentos para propostas de ensino de La Salle, compa-
pôr fim à infância. E não deixa de ter rados com os critérios pedagógicos mo-
uma certa razão. Porque é verdade que dernos, apresentam uma série de incon-
a precoce entrada da infância no ter- venientes e, diríamos também, uma sé-
reno das letras faz com que a criança rie de propostas sádicas em relação às
passe a ter acesso a uma série de co- crianças, se a situarmos na época em
nhecimentos que albergam, incluem, que foi produzida, devemos reconhecer
formas de saber que até então só eram seu caráter revolucionário. La Salle esta-
va propondo que tenras crianças de 7 e nas novelas televisivas aparecem. Devo
8 anos de idade fossem iniciadas no lhes dizer sobre algo de que me lembro
campo das letras, o que lhes abria a de quando era criança (anotei em al-
porta para ler Platão. Como vocês gum texto nesses dias). Em meu país de
sabem, poucas coisas eram tão escan- origem, a televisão se instalou quando
dalosas como Platão, e não estranhem eu já tinha 8 anos; quer dizer que eu
que assim fosse porque no fim das con- estava, suponho, em pleno período de
tas Oscar Wilde, que é muito mais re- latência - não me lembro se tive latên-
cente, também foi condenado por ser cia ou não, devo lhes confessar que à
platônico. Porque eu diria que Oscar luz de posteriores acontecimentos tive
Wilde não foi condenado por ser ho- de duvidar disso (é uma brincadeira),
mossexual e sim por ser platônico, ou como todo mundo, pois quando a gen-
seja, por revelar a verdade sobre o te lê na Psicanálise que há um período
amor. Ou seja, essa verdade insuportá- de latência, todo mundo se pergunta
vel que Oscar Wilde enuncia com todas "mas será que eu tive?". Bem, naqueles
as letras e que diz que o amor não tem dias de minha infância eu estava proibi-
sexo e tampouco tem idade. do de escutar o rádio depois das 8:30
Bem, se continuamos essa linha de da noite, porque depois das 8:30 da
análise histórica da infância chegaremos noite vinham as novelas para adultos.
a nossos dias com a comprovação dessa Particularmente, me lembro, por sinal,
tese, na medida em que vão se generali- exatamente daquela que eu escutava
zando e difundindo as formas de par- quando meus pais iam passear. Ou seja,
ticipação nos campos do saber, e tam- não há melhor indicador para saber o
bém na medida em que a infância, ela que a gente precisa escutar: é o que
mesma, começa a aceder de um modo está proibido evidentemente, pois é ali
cada vez mais livre a esses meios de que está o saber de que é preciso se
difusão do saber, e com isso as diferen- apropriar. Havia uma novela que se
ças de saber entre o adulto e a criança chamava "O retrato de Dorian Gray",
vão diminuindo. Por isso, nos nossos vocês devem ter conhecido o livro, é
dias, e diríamos nos últimos dois sécu- uma espécie de metáfora moderna de
los, é tão comum nos encontrarmos Fausto. E meus pais me proibiam de
com o comentário vulgar de como as que eu a escutasse porque depois eu ti-
crianças sabem coisas que quando nha pesadelos. E efetivamente eu os
éramos pequenos nós não sabíamos. tinha! Não havia nada mais espantoso,
Ele nos causa uma certa inquietação e nem mais aterrorizante do que escutar
um certo alarme, embora o comentário pelo rádio a voz lúgubre e tenebrosa do
possa ser risonho quando constatamos ator enquanto negociava com o demô-
que as crianças são muito mais vivinhas nio a venda de sua alma. E era muito
do que supostamente convém, e que pior quando ele gritava desesperado
isso acontece muito cedo. Este "muito que seu rosto se desfazia no espelho
cedo" é arbitrário mas, digamos, ten- porque ele estava sendo convocado a
demos a pensar que é muito cedo para pagar a sua dívida. Posteriormente isso
as crianças ficarem sabendo certas deu um bom trabalho para meu analis-
coisas que supostamente seriam privati- ta. Mas vejam como o rádio, novo passo
vas do saber dos adultos. Assim surgem depois dos livros, colocava já ao alcan-
pesquisas sobre os efeitos da difusão de ce das crianças certos temas que antes
cenas sexuais na televisão, dos efeitos ficavam circunscritos aos adultos. Me
das novelas e das cenas de amor que parece muito divertido como ilustração
daquilo a que aludimos e a que alude também Postman quando ele
diz que Gutenberg assentou as bases da extinção da infância. Foi
por sermos iniciados nas letras tào cedo que aos 11, 12 ou 13 anos
fomos vasculhar na biblioteca de nossos pais para encontrar por
acaso o manual do Dr. Spock "O matrimônio perfeito". Como vocês
sabem esse livro é um antecedente de Master e Johnsons, supon-
do que nas suas técnicas sexuais se encontrava o fundamento da
felicidade matrimonial. Bom, Master e Johnsons se divorciaram. O
que quer dizer que o lugar no qual o discurso social situa o supos-
to do miolo do saber, capaz de garantir a felicidade, sempre se
equivocou e não tem outra possibilidade senão errar porque tal
miolo não existe. Mas isto não impede que, geração após geração,
se repita essa operação de iludir a infância com a existência de um
tesouro de saber que contém o segredo da felicidade, porque esse
é o motor necessário e imprescindível para que a curiosidade da
criança se instale. Então, em oposição a esse autor norte-ameri-
cano, a partir de um ângulo estritamente psicanalítico, poderíamos
dizer que a infância consiste, principalmente, fundamentalmente,
nessa posição do sujeito do discurso, do sujeito da língua, que se
caracteriza por supor, por ser levado a supor que ainda nâo sabe
aquilo que ele precisa mesmo saber. Considerando então desse
modo a infância, pode-se dizer que se em um certo tempo históri-
co a criança partilha de alguma porção e de algum modo do saber
dos adultos, em outra época partilhará de uma outra porção e de
um outro modo de saber e numa terceira, e numa quarta, de outro
modo e de outro modo e de outra porção e de outra porção, sem-
pre diferente, mais extensa, mais restrita etc., etc. Porém, a exten-
são do saber sempre cresce, do saber a produzir e do saber a
adquirir, sempre cresce na medida necessária para que o pequeno
sujeito se perceba como carente do saber que é necessário ter,
principalmente para garantir a vida. Por isso poderíamos dizer que
do ponto de vista psicanalítico a infância não é uma formação
histórica e sim uma formação de estrutura; assim, houve infância
entre os gregos, entre os romanos, na época medieval, no despo-
tismo ilustrado, no renascimento ou nos nossos dias. Porém, qual
é, então, o interesse que há para nós na leitura da história social da
criança e da Psicanálise ou na leitura desse autor americano, ou na
leitura dos belíssimos e interessantíssimos manuais sobre a história
da vida privada que apareceram nos últimos tempos? O interesse
desses dados é o fato de que, não por serem verdadeiros, eles são
solidários entre si, ou seja, embora haja contradição entre eles, são
todos verdadeiros. É tào verdadeira a afirmação deste autor ameri-
cano sobre Gutenberg quanto a de Philippe Aries, em "História
social da criança e da família", ou outros tantos. São perspectivas
totalmente contrapostas, sobre a história, sobre a posição con-
ceituai, sobre a historicidade do conceito de infância. Mas sâo
ambas verdadeiras. Porque sem sabê-lo, porque eles não são psi-
canalistas e nâo precisam sê-lo, nâo precisam sê-lo para produzir
algo interessante e aliás de grande utili- dalo a televisão, ou a Internet causa
dade para nossa compreensão dos alarme: " a que nos levará tudo isso?"
processos humanos sobre os quais nos Ou como dizia o velho senhor de uma
interrogamos. Embora contraditórios propaganda televisiva do Corsa Wind,
entre si, são completamente ver- "onde vamos parar?" Lembram dessa
dadeiros, porque, sem saber, aludem a publicidade? Se fez tanto sucesso é por-
algo que nós chamamos de "sintoma". E que essa frase representa quase univer-
que consiste, como vocês já sabem, no salmente a nossa preocupação. E a
artifício que o sujeito constrói para lidar resposta é "não sabemos". E inventa-
com aquilo que ele não pode resolver. mos um novo sintoma. Esse novo sin-
Dito em termos lacanianos, é uma ten- toma pode se chamar Corsa Wind, de-
tativa desesperada de simbolizar o real pois inventaram o Corsa de 4 portas
que emerge como tal. Nesse real, a que já não é tão wind. Bom, e assim
linguagem não pode chegar, e não con- vai. Mas aos poucos, perdemos o susto.
segue recobrir esse buraco de ignorân- Porque nos damos conta de que a in-
cia na medida adequada do que deve- fância continua e que filhos são filhos e
ríamos saber, precisaríamos saber e não pais são pais, embora o modo de pro-
sabemos, diferença, distância que sem- duzir sintoma não seja o mesmo, por-
pre em alguma medida aparece. Como que, claro, a produção do sintonia indi-
a linguagem não consegue recobrir esse vidual se alimenta do imaginário social
buraco, qualquer contrução discursiva e é ali e a partir disso que faz a sua in-
que se fizer ao redor dessa imensidão venção. E por isso que o inconsciente
de nossa ignorância, de nossa ignorân- não é um acidente histórico, porque
cia fundamental, é inevitavelmente con- vocês devem saber já nessas alturas que
traditória. E assim, de tempos em tem- o grande projeto da modernidade é
pos se inventa outro sintoma. acabar com o inconsciente. Ou seja,
A imprensa, o standard educativo, substituir este lugar da ignorância ao
os testes, as novelas televisivas, Xuxa, redor do qual o discurso social, época
ninguém deve duvidar que Xuxa é um após época, se esmera em produzir
sintoma, suponho, sintoma social. De uma borda discursiva, substituir este
outro lado, bom preço paga por isso: buraco, "tamponá-lo" com um objeto
encarna-o, ou seja, sofre o sintoma em positivado. Ou seja, um objeto de uma
carne própria. Como sofreu Ptolomeu, natureza tal que oculte a extensão de
Copérnico, Galileu Galilei, ou quem for. nossa ignorância recobrindo-a com uma
Na medida em que os sintomas - técnica. Tal o projeto da ciência e da
estamos falando dos sintomas sociais - racionalidade modernista. Por isso não
propõem uma nova modalização do se poderia dizer que os cientistas da
gozar, ou seja, um outro ordenamento modernidade ou os pensadores da mo-
lógico dos modos de desfrutar da vida e dernidade são inimigos do inconscien-
dos modos de gerar e sustentar a ilusão te. Não precisam disso, não precisam
de um saber. Um saber suficientemente sê-lo. Basta que na sua prática social in-
abrangente para nos garantir, na medi- terponham esse tampão, esse objeto
da em que cada sintoma consiste na in- positivado no lugar e no caminho de
venção de uma nova borda, consiste em qualquer interrogação. Entretanto, é o
uma nova proposta acerca dessa nova inconsciente que continua por ali fazen-
forma de saber e desse modo de des- do as suas travessuras, porque na medi-
frutar, de usufruir, cada novo sintoma da em que esse projeto frutificar, e eles
causa escândalo. Por isso causa escân- têm confiança em que isso advirá, o
inconsciente morrerá sozinho, já que- thy sustenta, a partir de Lacan, uma tese
na versão deles o inconsciente não se- que é fundamental para a nossa meto-
ria o inconsciente, senão uma conse- dologia de análise, de análise tanto de
qüência a mais de certos usos históricos um texto como de um paciente. A tese
da linguagem que se confundem com o é a de que a verdade nâo é unívoca,
misticismo. Por isso é que, na atuali- porque se fosse não poderia ser enun-
dade, psicanalistas e astrólogos, do ciada, já que seria da ordem do real e o
ponto de vista do discurso social vulgar, real se caracteriza por ter uma extensão
tendem a ser situados na mesma posi- tal, nossa ignorância, que não pode ser
ção transferenciai. Não sei qual é a comprimido num enunciado único.
experiência de vocês mas não são pou- Aliás, esta questão foi também colocada
cos os meus pacientes que fazem carta por Heidegger, quero dizer, não per-
astral. E, da minha posição transferen- tence originariamente a Lacan, tampou-
ciai, não há autoridade suficiente na co a Heidegger,
minha palavra para eu impedi-los disso. Hegel já falava disso, do valor dos
Isto sem falar dos búzios ou outras enunciados. Em um texto que se chama
práticas que têm outras tradições. Estou "A ética", ele sustenta um princípio fun-
falando das aspirações científicas do damental segundo o qual toda ética, pa-
pensamento místico. Das formas ter- ra ser considerada como tal, precisa,
apêuticas, como a bioenergética, e se antes de mais nada, reconhecer o limite
pode ir até mais longe, tão perto da psi- de seu saber, ou seja, a extensão de sua
canálise como W. Reich. O ergonom, ignorância. Sem esse reconhecimento
vocês sabem é um invento, é um apar- não há ética possível.
elho, inventado por W. Reich, resolutor Há antecedentes do texto de Karo-
dos excessos de energia. É uma caixa thy em um artigo de Mark Darmond
dentro da qual o sujeito em terapia tem que se chama "A lógica e a verdade" e
que ser metido, nâo se mete sozinho. está publicado no Discours Psychanali-
No fim das contas, poder-se-ia ar- tique. Karothiy afirma que qualquer
gumentar que nós, os analistas, também enunciado da verdade implica um certo
apelamos à sugestão. É por isso que distanciamento dela e portanto se torna
Freud nos adverte que a sugestão não é inevitável que os enunciados da verda-
o fundamento da análise. Ele distingue de sejam incongruentes, numa certa
o cobre da sugestão do ouro da inter- medida, entre si. O que é muito dife-
pretação. Metodologicamente conside- rente de sustentar a idéia do relativismo
rada esta questão, quando lemos um da verdade que o pragmatismo contem-
texto como o de Philippe Aries, ou co- porâneo sustenta. Nâo se trata do que a
mo o desse bendito autor americano verdade vale para cada um e cada um
cujo nome demorou em vir à minha tem a sua, pois isso eqüivale a dissolver
mente, justamente se trata de exercer- o império da lei, não haveria referência
mos o ouro da interpretação e não nos simbólica alguma então. Trata-se de que
deixarmos arrastar pela tentação de os esforços de "congruir" - é um verbo
encontrar uma verdade unívoca. A este neológico - de fazer coincidir e conver-
respeito recomendo um livro recente- gir qualquer enunciado da verdade são
mente publicado, em novembro de 97, legítimos, porém é necessário confron-
de Rolando Karothy, da Editora La Cam- tar-se inevitavelmente com uma certa
pana que se chama "Los Tonos de la dose de fracasso. E é por isso que con-
Verdad", ou seja, os tons, as cores da tinuamos falando e produzindo teoria, e
verdade, as nuances da verdade. Karo- produzindo filosofia, é por isso que as
pessoas se analisam, precisamente pela dimensão desse fracasso,
porque a pergunta numa análise é "qual é a minha verdade?", é a
forma subjetiva de enunciá-lo, o que em última instância quer
dizer, "a que forma da verdade meu sintoma poderia se adequar?".
Ou, do outro lado, qual o sintoma que deveria fabricar para con-
seguir "congruir", como me descobrir então em alguma das ver-
tentes da verdade. As crianças se perguntam isso? Esta é a grande
revolução que Freud introduziu: reconheceu que esta interrogação
não é só uma interrogação dos adultos mas é também uma per-
gunta que as crianças se fazem. Uma pergunta que, sob forma de
interrogação acerca do prazer e de sua legitimidade, as crianças
incessantemente formulam. Quantas balas é legítimo comer antes
do almoço, até que horas? Quantos programas de televisão posso
ver, antes de dormir? Até que horas? Qual é minha limitação legíti-
ma na escolha do que como? Do que vou ingerir? Quanto de sal-
gado e quanto de doce? Qual é a fronteira que no meu corpo indi-
ca onde devo colocar as mãos e os dedos? Em quem posso cuspir
e em quem não? A quem posso morder e a quem não? Ou arranhar,
ou abraçar. Quão nu e em que circunstâncias posso estar? Bem,
não vou formular outras perguntas mais escandalosas que, na
experiência de vocês com as crianças de 4 anos ou menos - nas
quais o recalque não está ainda plenamente constituído - vocês
devem escutar. Para termos uma dimensão mais ou menos precisa
da extensão e força dessa interrogação, vou me permitir contar-lhes
uma anedota pessoal porque, por sorte meus filhos me servem de
exemplo nos seminários. Eu tenho uma pequena filha de 3 anos e
meio. Chama-se Clara. O que indica minha pretensão de que se
não pode ser gênio que pelo menos seja clara. E nos outros dias,
brincando com ela, tomado por um acesso amoroso, me aproximo
e lhe digo, quem é a mimosa do papai? Quem é a coisinha do
papai? E ela sorri e como já tem as estruturas próprias da histeria,
sorri dengosamente e não me responde, mas com um olhar incon-
fundível que denota que sabe do que se trata. E então, depois de
um suspense, que me deixa no lugar desejante, é claro, o que a
histeria faz com maestria, vocês sabem, me responde e me diz: "eu
sou tudo". Alarmado, pelas implicações futuras que isso poderia vir
a ter, eu lhe digo: "Bom, tu é muito importante, mas tudo? Tudo
não! Está mamãe, está tua irmã..." e ela me responde: "Filha é
tudo". Insisto e lhe digo, "mas quantas filhas eu tenho?" Ela sabe,
me faz assim com a mão, tenho quatro. E me diz, "Leandro tam-
bém". E o irmão, tenho um guri. O que quer dizer que no seu dese-
jo de representação fálica ela muito gostaria de ser tudo, mas isso
não a impede, contraditoriamente, de levar em conta ou na conta
que ela é um entre outros. Vejam só a complexidade dessa inter-
rogação, que é claro ela não poderia formalizar, mas que inequi-
vocamente e de um modo extremamente transparente se encontra
na arquitetura de sua subjetividade, porque não é por acaso esta
série de respostas, sobretudo se a gente as confronta com o que
alguns meses antes ela já tinha dito que Freud transforma radicalmente é
quando eu, também formulando a esta posição da referência paterna, e ele
mesma pergunta, vejam a pouca origi- o faz explicitamente, por exemplo, na
nalidade dos pais, de todos, pergunta- análise de Moisés em "Moisés e o
mos sempre as mesmas coisas, eu tam- monoteísmo" ou na de Leonardo da
bém lhe perguntei, "quem é a mimosa Vinci em "Uma lembrança infantil de
do papai?" E ela, sem vacilar, me diz, "a Leonardo da Vinci", textos em que ele
mamãe". Bem, esta espirituosa brin- demonstra como na infância destes su-
cadeira com esta criança, por que nos jeitos estavam colocadas as pré-condi-
preocupa? Porque que temos que nos ções para que, se a conjuntura histórica
deter cientificamente em sua análise, lhes permitisse, seus sintomas ficassem
por que pretendemos fazer disso uma ao serviço de uma certa missão artística,
ciência? Na verdade, parece uma ba- científica ou épica. Dito de outro modo,
nalidade. Qualquer astrofísico, se en- Freud tornou legível, na infância, em
trasse nessa aula, diria, "mas vocês se termos de estrutura e não de aconteci-
ocupam dessas coisas? Agora entendo mento, o futuro. Não com uma capaci-
por que o discurso psicanalítico não é dade de predição e sim com uma capa-
considerado sério". Porque nos ocupa- cidade de analisar as pré-condições e
mos disso. Porque sabemos que nestas possibilidades de que diferentes ou i-
pequenas formações discursivas se ate- guais acontecimentos passassem ou não
soura, se monta e se solda o que um a fazer parte deste sujeito. Freud nos
sujeito, para sempre, depois vai ser. propõe que o infantil do sujeito é legí-
Freud nos ensinou e descobriu que, na vel na sua infância, e que, no adulto,
infância, é legível o futuro desse sujeito, essa infantilidade ou essas formações
nâo sob a forma de um oráculo como infantis persistem não sob a forma de
os gregos o praticavam, nem tampouco acontecimentos inexoráveis, mas sob a
sob a forma em que os sacerdotes eram forma de um tecido lógico que permite
consultados pelos romanos. Vocês sa- a esse sujeito ser ou não partícipe de
bem que os imperadores romanos con- certa posição e acontecimento sociais. E
sultavam os sacerdotes para que lhes isto tem um valor psicopatológico fun-
antecipassem qual era a conduta políti- damental porque se afasta decidida-
ca que deviam ter para a resolução de mente dessa técnica comparativa com
certas questões de Estado. E raramente um constructo ideal, um standard toma-
se afastavam do que os sacerdotes reco- do como normal. O que permite a aná-
mendavam porque se, ao afastar-se, a lise do pathos, justamente do sofrimen-
coisa dava certo, considerava-se um e- to, em termos da singularidade que,
quívoco ou uma intenção conspirativa nessa estrutura infantil se perfaz, e que
do sacerdote, que então perdia seu lu- permite ou não a um sujeito ser partí-
gar na hierarquia como consultor, um cipe em certa, em alguma forma, do
mau intérprete dos desejos dos deuses. discurso de seu tempo. Ser ou não par-
E que se acertava, era um bom intér- tícipe, porque nâo está pré-definido
prete; com isto, a relação entre o resul- que não participar seja patológico. Sim,
tado da recomendação e a vontade dos está definido que ele, esse sujeito, na
deuses ficava sempre preservada. Coisa lógica de sua constituição, no infantil de
fundamental, porque se essa referência sua estrutura, disponha, tenha constituí-
aos deuses era uma referência paterna, do os elementos, construído os elemen-
portanto função simbólica fundamental, tos que lhe permitam ler na decisão
devia ser preservada. Mas, justamente, o acerca de seu desejo as conseqüências
de sua escolha. Então tomar conta e se linguagem já contém essa diferença, es-
fazer ou não responsável por seu pró- sa interrogação. E na medida que se
prio sofrimento. É uma dimensão da increvem nisso, isso aparece.
patologia que a humanidade até ali Um analisante neurótico adulto
nunca tinha conhecido e que denota o vem nos perguntar, por exemplo, "por
valor que para todos nós pode ter essa favor me diga quais são meus ver-
reviravolta tão comumente anunciada, a dadeiros sentimentos. A quem, definiti-
de que Freud foi o descobridor da se- vamente, desta meia dúzia, eu amo? Ou,
xualidade infantil. Ou seja, que os anjos qual foi o meu verdadeiro amor, de
tinham sexo. toda a minha história?" Cada um tem a
série que foi capaz de constituir. No
As crianças se perguntam sobre a entanto, para uma criança formular uma
sua verdade, é isso mesmo? pergunta nesses termos é necessário
As crianças se perguntam sobre a que os sintomas lhe sejam próprios. O
verdade, mas não sobre a sua; aos pou- seja, é necessário que ela tenha se visto
cos vão se perguntando sobre a sua, obrigada a inventar um dispositivo psí-
talvez a latência seja o momento em quico com o qual lidar com aquilo que
que isso começa a acontecer com algu- o discurso de seus pais não sustenta
ma força, porque justamente até esse para ela. Uma criança, qualquer uma, é
momento, na medida em que o recal- chamada a desempenhar um papel se-
que não se estruturou completamente, a xual muitíssimo antes de ter condições
fronteira entre o sujeito e outro na cri- para produzir o ato ou a prática que
ança ainda não se estabeleceu de um testemunhe sobre esse lugar. É por isso
modo claro. É por isso que na Psicaná- que as crianças brincam de mamãe an-
lise de crianças há uma questão sempre tes de saber como se faz para sê-lo. Ou
polêmica: quando, quanto e até que para fazer uma mamãe, no caso dos
ponto se deve ou não trabalhar com os meninos. E, nesse momento em que a
pais, justamente porque o sujeito que criança responde ao imperativo do
ali fala nem sempre o faz em nome Outro para constituir-se nesse lugar se-
próprio, ou seja, é em nome do pai e, xual, a criança se vê empurrada a pro-
antes disso ou paralelamente, em nome duzir seu sintoma. E é nesse momento
da mãe, quando a língua materna pre- que ela acede à condição de sujeito. É
valece ainda, que a criança fala. Vocês ali que ela pode começar a se pergun-
sabem que a verdade, o ocultamento e tar acerca de como a verdade afeta a
a mentira, como distinção, aparecem ela. E é por isso que, ao redor, por
muito cedo, na vida de uma criança, exemplo, dos 4 ou 5 anos em geral, as
uma criança recém falante aos 2 anos já crianças apresentam um sintoma que é
está com essa questão colocada para sintoma de infância: brincar, desenhar,
ela. Vocês sabem com que descaramen- mentir. Todo pai e toda mãe mais ou
to as crianças muito pequenas nos sur- menos sensatos toleram a mentira por-
preendem mentindo na nossa frente, que não a consideram uma falta moral,
quando lhes perguntamos quem comeu com o mesmo estatuto que ela teria na
esse chocolate, e respondem, "a minha vida adulta. Consideram, sem sabê-lo,
irmã", quando o fizeram na nossa fren- que se trata de um sintoma necessário,
te. Quer dizer que a questão da ver- ou seja, um momento de constaição de
dade, do ocultamento e da mentira já um artifício com o qual fazer borda no
está inserida na sua estrutura porque faz imperativo do Outro, ou seja, defender-
parte de sua inscrição na linguagem. A se dessa avassaladora posição em que
outro impõe o que deve e não deve ser forma de saber, o que me faz pensar que
dito. E de como a criança deve ou não já não se trata mais do sintoma, já nos
deve usufruir de quase tudo. Então, é afastamos dele. Gostaria então de saber
nesse viés que a interrogação da criança em que campo o sintoma em si, não a
sobre como ela é afetada pela verdade, reflexão que se faz sobre ele, está?
ou pelo ocultamento ou pela mentira, Por mais que não seja cômodo,
começa se tornar possível. Por isso, na nos dois. Lacan diz, em uma parte de
análise de crianças nos encontramos sua obra - e eu o cito porque me parece
com o fato de que a posição do analista importante e verdadeiro, não pelo fato
é muito mais típica a partir da latência de ser Lacan quem o diz mas porque
do que antes dela. Quando digo mais me parece ter a suficiente consistência -
típica, quero dizer mais de acordo com que o sintoma é o real; em outra parte
o que tradicionalmente tem sido formu- de sua obra, ele diz que o sintoma é o
lado a respeito da posição do analista. imaginário e em outra parte de sua obra
Pelo fato de a Psicanálise ter nascido diz que o sintoma é o simbólico. Então,
como uma prática com adultos histéri- definitivamente, o que é? Teremos que
cos, que são então capazes de se for- esperar até o seminário do Sinthome,(o
mularem essa pergunta, o analista ocu- número 23) para que ele nos esclareça
pa com maior comodidade esse típico que não há sintoma sem esses três re-
lugar na transferência e na demanda do gistros. E que o sintoma nem sempre se
paciente precisamente a partir da latên- constitui na mesma posição de enoda-
cia. Não que seja totalmente cômodo mento ou de amarração desses três re-
ficar ali. A latência é um período sobre gistros. Por exemplo, no seminário so-
o qual a imensa maioria dos analistas de bre James Joyce, um caso que ele usa
crianças coincide ao dizer que se trata privilegiadamente como exemplo e par-
de um momento em que a presença dos adigma de análise par o sintoma, ele diz
pais na análise é muito inconveniente, que Joyce nâo é psicótico, em outro lu-
às vezes é inevitável, mas nada conve- gar diz que Joyce não é perverso e em
niente. Contrariamente ao que acontece outro lugar diz que Joyce não é neuróti-
durante esse período, ou a partir desse co. Então quem é Joyce? Ma se lermos
período de latência, a presença dos pais com atenção o seminário, poderemos
se torna quase necessária e inevitável responder a essa pergunta: Joyce é Joy-
na época da pré-latência, ou na época ce. Ou seja, é alguém que se viu na ne-
do modo agudo de desdobramento do cessidade de produzir seu próprio no-
conflito edípico e nas constituições pri- me. O que implica numa particular po-
mordiais do sujeito. Ao menos nas en- sição de amarração entre os três regis-
trevistas preliminares, isto é certo, e tros, que se mantém em função desse
quando se trata de uma criança muito sintoma. Esse sintoma, no qual seu no-
pequena, quase sempre. Porque esse me se sustenta, é a produção de uma
sujeito que está falando ali é um sujeito série de neologismos que lhe permitem
complexo composto pelo dizer dos pais suprir o que a figura de seu pai não lhe
e pela possibilidade de expressão que, permitiu montar no campo da função
ainda que não verbal, entra no campo paterna. Tentando ser mais claro ainda
lingüístico pelo lado da criança. na resposta à sua questão, podemos
considerar o seguinte: o fato de o gozo
Em que campo se situa o sintoma, ser recalcado no sintoma não quer dizer
no do gozo ou no do desejo? Você parece que ele seja extinto. Justamente sua
dizer que cada sintoma tem uma nova posição de recalcado denota que ele, na
estrutura do sintoma, está aí. É isto que por noite ele consegue dormir. Mas,
permite a Lacan dizer que o sintoma é quando ele finalmente consegue no-
o real. Mas, a operação de recalque re- mear os 43 personagens, na ordem cor-
quer um estilete, um buril, uma ferra- respondente, imaginem também o alí-
menta de corte e marca que permita cir- vio que ele obtém desse imaginário. Por
cunscrever e recalcar este gozo, e esse isso digo, o imaginário presta seus bons
suporte é a ordem do simbólico, o sig- serviços. Nem falar do cavalo do pe-
nificante no seu valor simbólico. Ou queno Hans, ou do bonde da mulher
seja, o significante na sua capacidade - homossexual cujo caso foi relatado por
nem sempre exercitada - de representar Freud en "Um caso de homossexualida-
a ordem da alteridade, uma ordem ou- de feminina", que em última instância é
tra que não a do gozo. O que fazer para uma formação secundária a uma histe-
suportar as conseqüências de tal renún- ria. Os enunciados em Psicanálise ja-
cia que a construção do sintoma exige, mais podem responder à univocidade
quais sejam, o afastamento das repre- lógica que a positivação do objeto no
sentações diretas do objeto de gozo, e discurso da ciência lhe exige, porque
recalcar então a voz cujo sussurro me consiste numa prática social totalmente
faz gozar, ou do cocô, ou do olho que divergente daquela, e parte do reconhe-
precisaria estar preso a meu olhar e não cimento da impossibilidade de uma ver-
olhar mais nada senão meu olhar para dade unívoca, como acabei de enun-
permitir meu gozo? Para suportar o ciar. Portanto, torna-se legítima e, além
sofrimento que esta recusa implica, este do mais, necessária a contradição. Des-
corte, é necessário que eu recubra, ve- confiem do analista que é capaz de pro-
nha recobrir o descarnado do vazio, da nunciar em enunciados unívocos, ou
ferida que ali se abre, com alguma ima- seja, de alguém que tenha horror da
gem aconchegante. E vocês sabem o contradição. Sua prática e seu desdo-
quanto, no sintoma, o imaginário pres- bramento é completamente necessário
ta seus bons serviços; quando, por ao exercício da verdade. Como por ou-
exemplo, o neurótico obsessivo se im- tro lado, várias escolas filosóficas o assi-
põe como condição ou se lhe impõe a nalaram.
partir de seu inconsciente a condição
de, antes de dormir, dizer ordenada- Você falou da mentira como forma
mente, por ordem alfabética - estou me de fazer borda ao imperativo do Outro,
referindo a caso clínico - a lista com- na criança bem pequena. Poderemos
pleta dos 43 membros de sua família. E pensá-la como uma forma de articulá-
se ele erra, por ordem alfabética estrita, la com esse fantasma fundamental que
porque Alice não poderia de modo al- está se formando, que está se fixando, se
gum ir antes de Alberto, não pela pri- estabelecendo? Seria uma forma diante
meira letra mas pela quarta - imaginem da falta de estabelecimento deste fantas-
o trabalho que isto dá - ele tem que ma, a mentira viria a frear esse grande
começar tudo de novo e já o assalta a Outro?
angústia de que no lugar onde se que- Vou me permitir referir-me a um
brou a ordem, há um personagem que artigo que eu escrevi, está publicado no
entrou no lugar da falha, cujo nome 2
n 8 de Amarelinhas, uma publicação
entrou no lugar da falha, que vai sofrer de Curitiba, que se chama "O desejo
uma grande desgraça da qual ele é o paterno", no qual justamente assinalo
produtor, e é claro também o culpado, que a constituição do fantasma funda-
por ter errado. Imaginem quantas horas mental não provém só da mãe nem só
do pai, nem só dos pais, ou seja, não é NOTAS
um fantasma hereditário, mas é uma
articulação entre os restos de lin- 1
POSTMAN, Neil (1982). The disappearance
guagem, ou seja os restos da tentativa of childhood. New York, Delacorte Press.
de formular, de dizer, de enunciar res-
2

tos fracassados e da tentativa de enun- GROSRICHARD, Alain ( 1981). El Santo


Pedagogo, (sobre "Les regies de la bienséance
ciar o desejo de cada um que está ali
et de la civilité chrétienne", pequeno livro de
implicado. E também, se a criança for
autoria de Juan Bautista de La Salle, aparecido
enunciada pelos pais como um sujeito em 1703). Ornicar? Barcelona, Petrel, n. 2.
suposto de desejo, ela em seguida é Antecedentes dessa obra são "De civilitate
lançada à posição de um sujeito dese- morum puerilium" de Erasmo (1530), "Civile
jante de cujo fracasso de enunciação o honnesteté pour les enfants" de Mathurin
fantasma fundamental se perfaz tam- Cordier (s.XVII), "Galateo" de J. de La Case,
bém. Ou seja, que no fantasma funda- preferido pelos jesuítas e introduzido em 1617
mental está plasmado nâo somente o nos seus colégios sob o título de "Bienséance
fracasso da relação sexual dos pais, ou de la Conversation entre les hommes". Mas a
partir de La Salle seu livrinho assume o
seja, não há relação sexual, diz Lacan.
comando de modo indiscutível: já não mais se
Pelo fracasso de nos garantir a felici-
fala em honestidade, bons modos e conver-
dade, não é que não haja coito, evi- sação, agora se fala em cálculos e técnicas.
dentemente, coito há, não se alarmem,
e sim que não há no sexual relação que 3
PERROT, Michelle Ü99D História da vida
se sustente. Então nesse fracasso, alicer- Privada. São Paulo, Companhia das Letras, v.4.
ça-se também o desejo que os pais
transmitem para a criança de ela vir a 4
JERUSALINSKY, Alfredo (1997). Cuántos te-
ser a exceção a esse fracasso. E é ali rapeutas para cada nino?. Escritos de la Infân-
que se constitui o fantasma fundamen- cia Buenos Aires, FEPI, n.8.
tal, nessa conjugação entre o fracasso
da relação sexual e a esperança de que ^ Não há nenhum sujeito real da sociedade
não fracasse. Por isso somos conduzi- que reúna todas as condições e características
que a média de qualquer teste pressupõe;
dos, do lugar de nosso fantasma funda-
todos os sujeitos são desviados.
mental, a certas manobras na nossa vida
amorosa e sexual, na esperança de não 6 Naturalmente, referimo-nos ao Banquete de
fracassarmos. Eis ali o cerne do infantil Platão, onde se revela pela boca de Sócrates o
do sujeito. • verdadeiro destino do amor da Alcibíades, e,
por essa via se denuncia o verdadeiro motivo
da excução de Sócrates: ter interpretado, e des-
vendado, a relação entre o amor e o desejo.

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