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UMA FILOSOFIA DO DIREITO PARA O MUNDO


LATINO?*

Diego Javier Duquelsky Gómez1

Notas Preliminares

Embora a proposta de elaborar uma filosofia do Direito para o


mundo Latino já havia sido apresentada no debate sobre “O Futuro do
Positivismo Jurídico”, ocorrido no XXIII Congresso da IVR, na Cracóvia,
em agosto de 2007 2 , foi em novembro de 2009, quando escutei essa
expressão pela primeira vez, na ocasião em que o professor Manuel
Atienza recebia o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de
Buenos Aires. Sua conferência magistral, intitulada “Uma nova visita à
filosofia do Direito na Argentina” (Atienza, 2009: 9-30), retoma o
decálogo das ideias que constituem o que o próprio Atienza não hesita em
chamar de “um tipo de Manifesto, com eixos ou ideias força motriz,
intencionadas a construir uma filosofia (uma teoria) do Direito, que tenha

* Texto traduzido do espanhol por Hilton Boenos Aires, doutorando em Filosofia pela
Universidad Católica Argentina – UCA. Contato: hiltonboenosaires@uca.edu.ar
hilton.boenos.aires@hotmail.com
1
Advogado pela Universidad de Buenos Aires – UBA; Mestrado em Teorias Críticas do
Direito e Democracia na América Latina pela Universidad Internacional de Andaluzia –
Espanha. Professor de Teoria Geral e Filosofia do Direito na UBA-UNPAZ-UNDAV,
Argentina.
2
Posteriormente publicada como: ATIENZA, M. (2008). Es el positivismo jurídico una
teoría aceptable del Derecho? Em: Ideas para una filosofía del Derecho. Una
propuesta para el mundo latino, Universidad Inca Garcilaso, Lima.
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sua visão direcionada aos países latinos da Europa e da América”.
Confesso que naquela ocasião não dei a devida atenção à proposta. O
tema central da conferência era uma atualização da situação da
iusfilosofia em meu país, realizada mais de três décadas depois de
terminada sua tese doutoral sobre a filosofia do Direito na Argentina. O
importante para boa parte do auditório (me incluo), dominado pela
mentalidade colonial sobre a qual falaremos neste trabalho, passava pela
visão que nosso ilustre visitante tinha da comunidade acadêmica local e,
principalmente, os novos nomes ou escolas apareciam na lista, e o lugar
assignado a cada um deles, etc.
Cinco anos mais tarde, em outubro de 2014, o professor Atienza foi
convidado a ditar a conferência de encerramento do 1º Congresso
Latinoamericano de Filosofia Jurídica e Social, coincidente com as XXVIII
Jornadas Argentinas. Vínhamos trabalhando na ideia de organizar
encontros com a Associação Argentina de Filosofia do Direito e, em algum
momento, constituir uma entidade regional, 3 onde o título da
apresentação seria precisamente “Uma filosofia do Direito para o mundo
latino. Outra reviravolta”. Tudo isto foi, não apenas coincidente com
nossas intenções, mas, principalmente, muito alentador.
No referido trabalho se desenvolveram de maneira muito mais
exaustiva cada um dos pontos do decálogo ou Manifesto e, tal como
sinaliza seu autor, são produto de “polêmicas com iusfilósofos do mundo
latino que defendem posturas mais ou menos distantes da minha:
Bulygin, Guastini, Comanducci, Chiassoni, Laporta, García Amado, Haba o
Ferrajoli”4. Foi na ocasião deste congresso quando alguns de nós tivemos
a ideia de celebrar no mês de maio de 2016, em Alicante, o evento que
nos reúne, algo que foi visto por muitos de nós – além de ampliar a

3
Neste sentido há mais de uma década a AAFD organiza atividades acadêmicas
conjuntas com seus pares de Chile e Brasil.
4
(ATIENZA), “Una filosofía del Derecho para el mundo latino. Otra vuelta de
tuerca”. Lamentavelmente, ainda por ser impresso, mas, próximo de ser publicado
conjuntamente com as outras apresentações do mencionado Congresso.
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convocatória a outros países europeus de tradição latina – como uma
continuação dos esforços realizados em um sentido semelhantes iniciados
com as “Asociaciones del Cono Sur”.
Embora seja certo que, tal como se afirma em sua apresentação, “...
a convocatória deste Primeiro Congresso de Filosofia do Direito do Mundo
Latino tem sido precedida de uma fase de consulta a iusfilósofos de
diversos países latinos, europeus e americanos, da qual se tem resultado
um amplo acordo sobre a conveniência de empreender essa tarefa”, o
modo no qual se tem desenhado sua estrutura organizacional, a definição
de sua agenda e seu modo de trabalho nos faz refletir sobre como os
espaços de pensamento democrático podem estar condicionados pelo
substrato democrático de seu próprio processo de construção. Esta última
afirmação não implica questionar de forma alguma as qualidades daqueles
que definiram a estrutura organizacional. Vai além disto, e é notável como
na composição, tanto do Comitê de Honra, quanto do Conselho de
Assessoria, que se tem garantido a pluralidade ideológica, geográfica e
acadêmica. Em termos pessoais me sinto representado, tanto pela
presença de dirigentes da entidade que integro, como de meus mestres
do mundo acadêmico e muitos dos personagens que mais respeito e
admiro.
O que tento demonstrar, em consonância com um dos problemas
propostos pelo próprio professor Atienza em mais de uma ocasião,
(ATIENZA, 2012: 123-134; nota 6) é que, diferentemente do que ocorre com
outras especialidades, são poucas as estruturas científico-institucionais
representativas dos cultivadores de nossa disciplina, e, em consequência,
resulta complexo sair da lógica das relações pessoais, dos prestígios, dos
vínculos profissionais, etc. no momento de se construir novos espaços. Se
não estivermos atentos, isso pode levar a reproduzir relações de
subordinação dentro do mundo jurídico latino, e a continuar relegando
certas perspectivas e silenciando determinadas vozes. Tal como destaca

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Boaventura de Sousa Santos, o conhecimento científico não é socialmente
distribuído de um modo equitativo, já que foi desenhado precisamente
para converter um lado da linha em sujeito de conhecimento, e o outro
em seu objeto (SANTOS, 2010: 52 e ss). A participação assimétrica na
determinação de centros e periferias aparece como um problema evidente
na mesma convocatória deste Congresso. De fato, a iniciativa pretende
“contribuir também para equilibrar a filosofia do Direito a um nível
mundial e para reduzir, por isso, o excessivo peso que nas últimas
décadas tem recaído sobre a cultura anglo-saxã”.5
A preocupação que me motiva a escrever este trabalho não é outra
que a de formular algumas diretrizes sobre o lugar da América Latina na
constituição de uma filosofia do Direito para o mundo latino, a fim de
evitar reproduzir – no marco da luta contra o colonialismo cultural anglo-
saxão – novas formas de colonialismo interno. E deste modo
assegurarmos que o caminho compartilhado que começamos a transitar,
desemboque em um projeto emancipatório.

1. Problematizando o conceito de “mundo latino”

Tanto em seu Manifesto original, quanto no “Reviravolta” (notas 3 e


6), o professor Atienza toma a ideia de “globalismo localizado” de
Boaventura de Sousa Santos6 para expressar o que ocorre no mundo da
cultura iusfilosófica e assim adotar uma atitude cautelosa em relação ao
modo com que certas tradições jurídicas, particularmente a anglo-saxã,
nos impõem o tratamento de certos “tópicos de moda”, para estudar
determinados autores, atender determinadas problemáticas. Neste
sentido, seria interessante desenvolver teorias do direito “regionais” em

5
http://iusfilosofiamundolatino.ua.es/presentacion
6
Entre muitos outros, ver (SANTOS, 1999)
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torno de diferentes círculos culturais, entre os quais podemos reconhecer
aqueles que constituem os países latinos, da Europa e da América. Atienza
sustenta que “ainda que com níveis de desenvolvimento econômico,
político, científico, tecnológico, etc. diferentes, esses países são
sumamente afins desde o ponto de vista de seus sistemas jurídicos e de
suas línguas; possuem uma rica tradição de pensamento jurídico, e em
todos eles o Estado Constitucional opera como um ideal regulador para o
desenvolvimento do Direito e da cultura jurídica”. (ATIENZA, 2009)
Embora compartilhamos em linhas gerais desta afirmação, estimo
que pode ser enriquecedor para que renda maiores frutos o projeto,
problematizar o próprio conceito de “mundo latino” e o modo em que os
países “da América antes portuguesa e espanhola” foram incorporados a
tal tradição. 7 Tampouco podemos deixar passar por alto que esses
distintos níveis de desenvolvimento entre os países latinos da Europa e
América não são resultado do acaso.

1.1. O Latino como localismo globalizado relocalizado

O primeiro paradoxo com o qual nos encontramos, é que o mundo


latino, a partir do qual pretende-se apresentar uma visão cultural
alternativa, não é outra coisa senão um “localismo globalizado
relocalizado”, ou um “ex localismo globalizado”. A expansão do latim como
língua franca ao longo de vastas regiões do globo, foi produto de grandes
e complexos processos militares, culturais e religiosos.
Seria impossível conceber o mundo latino sem pensar
primeiramente no avanço de Roma sobre uma importante parte da
Europa. Vai além, essa língua latina foi-se forjando durante múltiplos

7
Uma análise interessante das famílias de culturas jurídicas, seus laços de parentesco e
suas rotas à/e através da modernidade, pode encontrar-se em (SANTOS, 1999).
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cruzamentos etino culturais, alcançando sua plena estabilização com
Virgílio, aquele que na Eneida reinventa o mito da origem de Roma e a
Epopeia destes “latinos”, percebendo-se de sua futura glória imperial.
(FILIPPI, 2015: cap. 5) Mas, tampouco poderíamos concebê-lo sem
Justiniano e seu intento de reunificação de ambos impérios romanos, nem
pensaríamos, como porção crucial desse mundo, grande parte da América
sem a colonização perpetrada pelos Reis Católicos.
Vejamos: quer dizer que a característica definidora do mundo latino
é uma raiz idiomática? Basta que sejam países que falem línguas
“românicas”, para considera-los parte deste mundo? Penso que não. Uma
porção importante da África é francófona, como também o são alguns
países asiáticos. O mesmo ocorre com as regiões lusófonas ou italófonas
desses continentes, e, não obstante, ao menos em termos intuitivos nos
custa pensar em tais culturas como parte do mundo latino.
Possivelmente isto se deva ao fato de que - diferentemente do que
ocorreu durante a conquista da América, quando da mão da Igreja
Católica o latino desenvolvia suas pretensões de universalidade, durante a
fase de conquista, a qual poderíamos chamar “imperialista”, que se
desenvolve fundamentalmente durante o século XIX e impacta
basicamente o continente africano - o localismo que se globaliza é a ideia
de “progresso”, produto da revolução industrial, cujo expoente máximo é
o império Britânico. (TRAVERSO, 2003: cap. 2) E como bem explica
Boaventura de Sousa Santos, quando uma entidade local logra globalizar-
se, isso implica simultaneamente, a relocalização de seu rival, neste caso,
o latino.

1.2. Iusfilosofia do mundo latino ou iusfilósofos de países latinos?

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O segundo ponto problemático tem relação com a pergunta sobre
aqueles que podem ser considerados iusfilósofos do mundo latino. Basta
haver nascido em um país, da Europa ou da América, onde se fale
espanhol, italiano, português ou francês para ser considerado parte desta
tradição cultural? Ou a condição de iusfilósofo latino vem dada pela
formação, as preocupações, os temas que se aborda?
Com muita crueza – quase crueldade – Atienza adverte sobre como
uma parte importante dos filósofos do direito de nossos países, se
esforçam em “se empenhar em escrever textos iusfilosóficos, que
pareceriam ter como objetivo último o de serem citados [por outros
trabalhos acadêmicos] – naturalmente, apenas em notas de rodapé – em
alguma obra de um autor anglo-saxão. (ATIENZA, 2012: 128)
Ao menos na Argentina, muitos de nossos colegas apenas estudam,
ensinam e dialogam com autores anglo-saxões. É mais do que isso,
desenvolvem suas atividades acadêmicas em âmbitos universitários
privados, cujo mérito principal (ao menos assim apresentam suas
estratégias de marketing) são seus contatos com escolas de direito dos
Estados Unidos. Outros, por sua vez, mantêm uma visão tão limitada do
objeto de estudo próprio da filosofia do direito, e defendem cânones de
cientificidade que passam por um grau de assepsia, que os impedem de
contaminarem-se com a realidade social, em um nível tal, que suas
atividades poderiam ser realizadas em relação a qualquer sistema jurídico.

1.3. O sexo do Mundo Latino

São muitos os teóricos que têm estudado o modo no qual o


pensamento moderno (ainda que, talvez, muito antes deste período),
tem-se estruturado em torno a dualismos ou pares de conceitos opostos:
sujeito/objeto; formal/informal; cultura/natureza, etc. (SANTOS, 2001:

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273). O pensamento jurídico crítico feminista, ademais, tem posto ênfase
que esses pares dicotômicos estão sexualizados e, consequentemente,
hierarquizados. Um clássico nesta matéria é o trabalho de Frances Olsen,
“El sexo del derecho” 8 . Ali a autora nos mostra como nos dualismos
racional/irracional;ativo/passivo;pensamento/sentimento;abstrato/concret
o; e universal/particular, o primeiro destes elementos não aparecem
apenas como superior ao outro, senão que ao mesmo tempo se os associa
com o masculino, enquanto que o subordinado seria próprio do feminino.
Me parece interessante advertir que, embora durante muito tempo a
“latinidade” foi sinônimo de civilizado, 9 a partir do processo de
“relocalização” previamente analisado, se poderia afirmar que muitos dos
traços que, segundo Olsen, se assignam ao feminino, também se
associem ao mundo latino. Basta pensar nos arquétipos que são
apresentados pelo cinema ou séries de televisão, empresas de turismo,
revistas de interesse geral. O apaixonado “latin lover”, os ferventes
aficionados pelo futebol que fazem inigualável o espetáculo de Boca–
River, as sensuais danças latinas, as “ruta del bacalao”10, as “vendetas”,
as famílias numerosas, as senhoras fervorosamente religiosas, os
camponeses dormindo placidamente sob o sol em pleno horário de
trabalho e tantos exemplos mais. A construção desta sorte de senso
comum, é o que, ao mesmo tempo que aparentemente ressalta o lado
positivo desses atributos, legitima a primazia do pensamento racional,
abstrato, universal, próprio da cultura anglo-saxã (ainda que também
germânica).

8
Referência completa na seção de bibliografia.
9
Já voltaremos a este ponto quando analisarmos o complexo vínculo da América com o
latino.
10
Traduzido ao pé da letra: “Rota do Bacalhau”, originário de Valencia, movimento
nascido com fins de contracultura vanguardista, terminou virando símbolo de excessos e
consumo de drogas, onde se organizavam “festas loucas”, que duravam até quatro dias.
[N. T.].
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2- A latinização da América

Assim como é possível problematizar a própria ideia de mundo


latino, e resulta pertinente ver como essa noção tem se construído
historicamente, outro tanto ocorre com a “latinidade” da América. Nesta
parte, trataremos de mostrar em primeiro lugar como a cultura jurídica de
nossos países vem determinada por três tradições imperiais, que
condicionaram seu potencial emancipatório. Também veremos como a
expressão “América Latina” é relativamente recente, e foi utilizada para
legitimar determinados projetos recolonizadores. Deste modo, o latino na
América aparecerá como civilização, mas também como barbárie.

2.1. A Herança pesada

É um lugar comum destacar como traço próprio de nossa cultura


jurídica o formalismo, o normativismo e, - no âmbito penal – uma
concepção autoritária, práticas não-liberais, ausência do contraditório, etc.
Se, utilizando a terminologia de Bachelard (1972), fizéssemos um tipo de
psicanálise da razão jurídica latino-americana, advertiríamos que boa
parte dessas características são resultado da herança legada pelo mundo
latino, configurada durante três impérios e plasmada em três construções
jurídicas: o direito romano, o modelo inquisitivo e o código de Napoleão.11

2.1.1. O Legado de Roma

É notável como o direito romano mantém sua influência na formação


dos juristas de nosso continente, e assim o faz por mais de um caminho.
Por um lado, até poucos anos a matéria “Direito Romano” tem formado

11
Decidimos apresenta-los nesta ordem, respeitando uma cronologia global, ainda que,
obviamente, é a colonização ibérica que fez possível a entrada do direito romano em
nosso continente.
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parte do currículo da maioria das escolas de advocacia (o que continua
sendo em muitas delas). Isso não seria preocupante se não fosse o fato
de que seu ensino tem sido parte crucial de uma concepção que apresenta
o direito como um fenômeno ahistórico e neutro. Como se tudo o que
houvesse que se saber sobre o jurídico tivesse origem em uma
desenvolvidíssima concepção que há milhares de anos estabeleceu, de
uma vez por todas, e para sempre, os vínculos jurídicos.
Para tomar o exemplo de Carlos Cárcova, basta uma análise
superficial para nos fazer pensar que, por ter-se mantido certas
denominações, o vinculum, ou a obligatio são figuras semelhantes às de
nossos ordenamentos positivos, (CÁRCOVA, 2009) deixando de fora da
análise os modos de produção, formas de governo, tipos de bens no
comércio ou tantos fatores mais presentes em um ou em outro período
histórico.
Também é importante ter presente que o Corpus Iuris Civilis, a
compilação através da qual o direito romano chega até nós, não apenas
contém normas de direito privado, mas também de direito público e
inclusive canônico. Essa combinação será chave para entender o efeito
conservador que tem tido nossa cultura jurídica. Por outra parte, o direito
romano também tem sido particularmente influente na formação do
modelo de ciência, próprio da dogmática jurídica que se consolida durante
o século XIX.
Tanto Savigny, com o desenvolvimento da “pandectística”, como
posteriormente o primeiro Ihering, através da chamada “jurisprudência de
conceitos”, encontram no direito romano a manifestação de uma
racionalidade e universalidade, que não era necessária ser buscada em
um conjunto de princípios abstratos, como pretendia o iusnaturalismo
racionalista, senão que já havia tido uma manifestação concreta: “A
importância do direito romano para o mundo moderno não consiste em
haver sido em um momento a fonte do direito, já que isso foi passageiro;

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sua autoridade reside na profunda revolução interna, na transformação
completa que fez sofrer todo nosso pensamento jurídico. O direito
romano, como o cristianismo, se converteu em um elemento da civilização
do mundo moderno”. (IHERING, 1992: 34).12

2.1.2. A Colonização

O impacto da conquista da América na história do pensamento


ocidental moderno, tem sido muitas vezes subvalorizada. Em geral,
apresentamos a reforma protestante como o ponto de partida de um
processo de secularização, que culmina nas revoluções burguesas e chega
ao nosso continente importado por revoluções liberais. Entretanto, como
sinaliza Boaventura de Sousa Santos, as dicotomias próprias do
pensamento moderno se constroem sobre linhas “abissais”, (SANTOS,
2010: cap.2) muitas vezes invisíveis. Neste sentido, a distinção entre
sociedades metropolitanas e territórios coloniais será crucial, tanto para a
ciência, quanto para o direito moderno, que ficam de um lado da linha.
No Novo Mundo, “do outro lado da linha”, não há conhecimento real;
há magia, idolatria, crenças, opiniões. É a terra sem lei, o exemplo vivo
do estado de natureza. Resulta muito interessante, ademais, observar
como, particularmente a Espanha, leva adiante a conquista do Continente,
e como isso impacta as futuras instituições jurídicas da América. Esse
modo vem marcado pela reconquista. Como defende Alberto Filippi “(...) o
estigma com o qual a península ibérica começa a dominante expansão
etnocêntrica do Ocidente, deriva da profunda experiência militar de
derrotar os árabes, e da [experiência] jurídica de expulsar os judeus”.
(FILIPPI, 2015: 60)
Assim como serviu para levar adiante a “limpeza do sangue”, que
pretendia dar identidade histórica e política à Espanha, e delimitar suas

12
Realizei uma análise mais profunda do tema, em (DUQUELSKY, 2012).
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débeis fronteiras interiores, a inquisição – como parte do quadro
jurídico/político/militar – foi uma ferramenta chave para coroar o
etnocentrismo e manter povos originários, negros e mestiços,
subordinados, separados e discriminados em distintos âmbitos da
hierarquia colonial.
Não é difícil de explicar, então, como essa tradição desaguou em um
modelo de processo radicalmente autoritário, no qual a dogmática penal,
e principalmente, a doutrina processualista, não vacila em adotar o jargão
do modelo inquisitivo.13 Ferrajoli caracteriza este modelo de direito e de
processo penal com base em duas características, uma relativa à definição
normativa (substancialismo penal e cognitivismo ético) e outro à
comprovação judicial do afastamento [desviación] (decisionismo
processual e subjetivismo inquisitivo) (FERRAJOLI, 1995: 40-45).
Este modelo, que tem permanecido vigente em boa parte da
América Latina até os últimos anos do século XX, ainda rege, total ou
parcialmente, muitas jurisdições – reproduz a lógica do magistrado como
um delegado do soberano, onde o juiz é simultaneamente investigador e
decisor, o procedimento é escrito, em boa medida secreto, e não há
igualdade de armas entre acusação e defesa, nem mecanismos de
controle externo das decisões.

2.1.3. A Codificação Napoleônica

O código de Napoleão será o terceiro grande aporte da cultura


“latina” ao nosso continente. E igualmente como aconteceu na Europa, se
operará a partir dele uma transformação definitiva do papel dos juristas.
Como já temos defendido, os juristas, esses “descobridores” das regras

13
Para a relação entre o modo de determinar a verdade processual e o conhecimento
científico próprio da indagação, ver a clássica Terceira Conferência brindada por Foucault,
realizada na PUC do Rio de Janeiro, em (FOUCAULT, 2001: 63 e ss); Para uma
perspectiva contrária a tal postura, (FERRAJOLI, 1995: 264).
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que teriam que guiar a conduta humana através da Razão, passam a ser
apenas simples “repetidores” de um código, que se supõe coerente,
completa e sistemática expressão da Vontade Geral. (DUQUELSKY, 2012).
Mas esse não é o traço que mais nos interessa ressaltar neste ponto,
senão o modo paradoxal, no qual o modelo de propriedade privada da
codificação francesa impactou a América Latina.14
E o apresentamos como um paradoxo porque, enquanto que o
modelo proprietário francês pode ser visto como uma reação à
configuração feudal, em nosso continente a codificação civil – ainda que
esteja fortemente influenciada por tal fonte – possibilita e legitima a
repartição de vastíssimos territórios entre alguns poucos latifundiários. No
caso argentino, por exemplo, o Código Civil de 1870 contém uma série de
dispositivos que permitiram a aprovação da terra pela oligarquia de
Buenos Aires, após a violenta expulsão e o aniquilamento das populações
nativas [autóctonas]. Um princípio estabelecido no Código Civil – expõe
Javier Azzali (2014) -, seria chave ao longo do tempo para que se
consolidasse o poder de uma classe ausente do território: o título constitui
o direito de propriedade sem necessidade de configurar a posse efetiva.
A consolidação durante o século XIX deste modelo latifundiário,
também é necessário para garantir o papel dos novos países
“independentes” da América Latina, como exportadores de matérias
primas no novo esquema de divisão internacional do trabalho. Como
indicam Pisarello e Tedeschi:

Esta nova ordem exigia, antes de mais nada, a construção de um Estado


‘nacional’ capaz de assegurar a produção orientada à exportação. Este
processo comportou uma nova onda de pilhagens contra os setores mais
vulneráveis do antigo regime. A partir do Estado emergente, se
impulsionaram campanhas de extermínio dirigidas a “pacificar” o deserto, se
organizou um gigantesco processo de privatização da terra, e se propiciou a
substituição da população nativa por imigrantes dispostos a prover a mão de
obra que a nova economia requeria. A extensão de alambrados, a criação de

14
Uma excelente análise do caso argentino pode ser encontrada na Dissertação de
Mestrado, ACOSTA MAGDALENA, Mariel. (2015). El derecho de propiedad inmueble
en Argentina desde una visión crítica y de derechos humanos, UNLa.
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cadastros, escrituras e registros, a conversão forçada de parte da população
mestiça em peões rurais, foram a certidão de nascimento de algumas relações
de propriedade, pensadas ao serviço de um modelo de sociedade elitista e
excludente (PISARELLO, TEDESCHI, 2011)

2.2. A Construção Europeia da América Latina

Se rastrearmos a origem da expressão América Latina ou “Latino


América”, indicaríamos que remonta à segunda metade do século XIX. A
“invenção semântica da latinidade”, como denomina Filippi, (2015: 385 et
segs) à pretensão de impor este nome à América que havia sido ocupada
por espanhóis e portugueses, foi o eixo da política expansionista francesa
de Napoleão III, que entre 1862 e 1866 invade o México sob a égide do
exercício de uma suposta vocação imperial da raça latina.
Essa invenção, continua Filippi, foi decisiva para a ideologia “crioulo
europeizante”, e o permitiu combater os traços de “barbárie” que
sobreviviam sob a forma de mestiçagem, etnias indígenas e
afrodescendentes. Foi assim como, em seu tempo, a opinião pública
europeia acompanhou o intento de Napoleão III, como um modo de
culminar a tarefa que estava inconclusa com as declarações de
independência. É por isso que encontramos uma profunda resistência a
assumir esse suposto caráter “latino” por parte de autores como o
mexicano José Vasconcelos,15 ou José Carlos Mariátegui, possivelmente o
primeiro autor peruano de origem marxista, que, em suas “Divagações
sobre a latinidade”, (1950) confronta não apenas a ideia original de
latinidade, cunhada pelos franceses, mas também com a reinvindicação de
Mussolini.
Efetivamente, também il Duce havia invocado a antiga glória do
império romano e a ascendência latina sobre a América do Sul,
especialmente com a Argentina, um dos primeiros países a estabelecer
vínculos estreitos com o fascismo. O fundamento: não apenas o

15
Neste sentido é famoso o artigo “Reneguemos del latinismo”, em La Antorcha, 3, 18
de outubro de 1924.
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“descobridor do Novo Mundo, Colombo, era de estirpe latina, mas também
o era o próprio ‘inventor’ do nome do continente, Américo Vespúcio.
Inclusive Simón Bolívar é apresentado na mitologia fascista como
‘encarnação do gênio latino, continuador de Júlio César e precursor do
Duce Mussolini’”. (FILIPPI, 2015:389)
Mariátegui adverte severamente o uso reacionário da latinidade, e
por isso entende que os setores progressistas devem estar atentos e
rechaçar inclusive o uso da expressão América Latina. Diz o autor
peruano:

Espiritual [e] ideologicamente, os espíritos da vanguarda não podem, por


outro lado, simpatizar com o velho mundo latino. É necessário agregar às
veementes razões de Vasconcelos, outras mais atuais. O fenômeno
reacionário se alimenta da tradição latina. A “Reação” busca as armas
espirituais e ideológicas no arsenal da civilização romana; o fascismo
pretende restaurar o Império. Mussolini e seus camisas negras ressuscitaram
na Itália o machado do Lictor, os decuriões, os centuriões, os cônsules, etc. O
léxico fascista está totalmente impregnado de nostalgia imperial. O símbolo
do fascismo é o fascilotório. Os fascistas saúdam romanamente ao seu César.
(MARIÁTEGUI, 1950: 170-171)

Em oposição à América “latinizada” por franceses e italianos, ainda


que igualmente reacionária e autoritária, podemos encontrar,
principalmente em torno aos anos 1930, uma ideologia que disputa seu
predomínio cultural: a noção de “hispanidade”, cuja análise excederia o
alcance deste trabalho. Entretanto, é muito interessante ver, além disso,
como essa tensão marca as complexas relações entre o regime fascista
italiano, e o franquismo espanhol.16
Ainda que, também complexas, tampouco podemos deixar passar a
relação da Igreja Católica com essas ideologias, que encontramos tanto
no caso de Napoleão III, que reivindicava a França como herdeira das
nações católicas europeias, como no caso de Mussolini e suas relações
com o Vaticano, ou como no de Franco, “caudilho da Espanha pela graça
de Deus”.

16
Sobre o vínculo entre franquismo e peronismo, ver (FILIPPI, 2015: 414 e ss).
104
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O traço comum de todos esses projetos de raiz latina para nosso
continente – uma vez mais, França, Itália e Espanha – novamente obstam
a possibilidade de se construir um projeto emancipatório, toda vez que, às
limitações próprias da cultura jurídica analisadas nos pontos prévios, se
somam concepções que servem de base para um modo autoritário de
exercício do poder, e para continuar com a eliminação de qualquer
vestígio de influência cultural não europeia.

2.3. Do Latino como Civilização ao Latino como Barbárie

Não é de estranhar, então, que em meados do século XX, tanto o


liberalismo político, como o positivismo jurídico – cada um a seu modo
reivindicando um suposto universalismo -, foram vistos como um
autêntico avanço civilizatório frente a uma latinidade que na América se
associa ao autoritarismo e, principalmente, ao “atraso”. O centro do
mundo se transladou para o norte do continente e em consequência, a
América Latina passa a ser vista como “o quintal” do império, e o máximo
de emancipação viável aparece representada pela democracia liberal e o
livre mercado. A visão do latino já não tem mais o seu epicentro em Roma
ou Paris, mas sim em Miami. Vai além disso, em muitos de nossos países
assistimos ao aberto confronto entre a direita nacionalista católica e a
direita liberal, entendendo este último termo apenas no sentido
econômico.
Um modelo de ciência do direito, como o proposto pelo positivismo
jurídico, é visto como uma “evolução” frente à preeminência do
pensamento aristotélico tomista, e o ceticismo ético defendido em termos
democráticos. Basta ler “o que é a Justiça? (KELSEN, 1993) para
compreende esta posição. Um dos traumas do pensamento jurídico e
político latino americano, herdado da Europa, é o temor da ditadura da
maioria. Efetivamente, regimes como o nazismo e o fascismo subiram ao

105
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poder com forte apoio popular, e, em nome do povo, dizimaram os
direitos das minorias. Mas, como temos sustentado em um trabalho
recentemente publicado, não devemos perder de vista que as noções de
“maioria-minoria”, não podem ser associadas diretamente com situações
de maior ou menor poder real. Em nossas sociedades existem minorias
privilegiadas e poderosas, e enormes maiorias que representam os
setores mais fracos e vulneráveis. (DUQUELSKY, 2015)
Nossas ditaduras tem sido sempre ditaduras das minorias, que em
nome da república, da democracia e da liberdade, violaram
sistematicamente os direitos que diziam defender. Por isso é quase uma
falta de respeito com suas vítimas seguir invocado uma e outra vez esse
temor. Um dos traços da “barbárie”, que geralmente é imputado aos
países da Ibero américa, é sua falta de respeito pela lei.17 De fato, um dos
problemas jurídicos do mundo latino sobre o qual se ocupa este encontro,
é precisamente a anomia.
Não obstante, seria interessante perguntarmos quais razões nossas
sociedades deveriam ter para cumprir a lei. Neste sentido, apesar da
extensão da citação, creio que valha a pena recordar as palavras de
Zaffaroni, um dos mais destacados juristas da América Latina:

Esta não é uma característica negativa de nossos povos, senão um produto de


experiência histórica. Quando se compara com os alemães se indica como
positivo que eles têm fé no Direito, creem no Direito, [mas não se percebe] a
extrema diversidade histórica. Se os alemães acreditam no Direito, é porque
ao longo de tudo o que lhes passou, por mais aberrante que tenha sido,
protagonizaram personagens que se apresentaram diante de seu povo com o
rosto que Deus ou o diabo os havia dado: o imperador era monárquico, os
revolucionários de Weimar eram sociais democratas, Weimar era republicana,
Hitler era nazista, Adenauer era democrata cristão, a República Democrática
era comunista. Na América Latina – e, em especial na Argentina – todos
invocaram sempre o direito, desde os encomendeiros, que exploravam todos
os índios e quase os extinguiram, com o pretexto de educá-los, como dizia o
direito indígena. Na América Latina cada vez que se invocou o direito foi para
enganar o povo, para legitimar sua servidão, para evitar o exercício da
soberania popular. Prestemos atenção em nossa história: ninguém disse
claramente que iria exercer uma ditadura. Disseram que a história que os

Talvez a obra mais famosa sobre o tema seja a de Carlos Nino (2005), Un país al
17

margen de la ley.
106
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impunha, em nome do liberalismo, da democracia, da República, da liberdade
das instituições, do Direito. E o que fizeram? Proibiram partidos políticos, o
radicalismo nos anos trinta, o peronismo nos anos cinquenta, bombardearam
a Praça de Maio, fuzilaram sem processo, derrogaram constituições por
decreto, exilaram, sequestraram, torturaram, confiscaram e, finalmente,
fizeram desaparecer trinta mil pessoas. Tudo em nome do Direito.18

Agora, se nos perguntarmos como foi possível que a principal


alternativa contra os traços autoritários e antidemocráticos dessa tradição
latina fossem o liberalismo anglo-saxão e o positivismo jurídico, é porque
eles obedecem, em boa medida, aos limites do pensamento jurídico crítico
de raiz eurocêntrica.
Podemos encontrar essas limitações a partir da origem do
pensamento de esquerda. Como ressalta Boaventura de Sousa Santos, em
sua crítica radical à democracia liberal, Marx contrapõe ao sujeito
monumental, que é o Estado liberal, outro sujeito monumental: a classe
operária. Essa redução leva igualmente à redução das especificidades e as
diferenças que fundamentam a personalidade, a autonomia e a liberdade
dos sujeitos individuais e coletivos. Entretanto, passa por alto o
componente étnico cultural, o impacto do colonialismo, etc. É notável
como uma parte importante do pensamento crítico latino americano do
século XX renegou o “local”, a própria terra, o “real”, e se limitou a
sofisticadas discussões teóricas com autores europeus. Inclusive o
constitucionalismo e a teoria do Estado reproduziram essa lógica de
subordinação.
Por exemplo, se chama a atenção o lugar assignado à Constituição
de Weimar em relação à Constituição de Querétaro como antecedente do
constitucionalismo social. Ainda que a constituição alemã seja dois anos
mais nova que a mexicana, sem sombra de dúvidas boa parte dos
professores e alunos de direito constitucional conhecem mais sobre a
primeira do que a segunda.

18
Eugenio Raúl Zaffaroni, Conferência realizada na ocasião de seu recebimento do título
de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Nacional de José C. Paz em 15/4/2015.
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O mesmo ocorre com a dicotomia “estado de bem-estar/populismo”,
onde, seguindo a velha tradição aristotélica de formas puras e impuras de
governo, o segundo elemento se apresenta como um modo corrompido do
primeiro. Inclusive o pensamento de esquerda, praticamente até o
aparecimento de Laclau (2005), aceitou com frivolidade a carga emocional
negativa ou pejorativa do termo. E isso tem impactado não apenas em
níveis teóricos, mas, principalmente, no sentido comum político e jurídico
de nossas sociedades.19
Por isso é muito importante, como defende Boaventura (2010: 21),
distanciar-se também da tradição crítica eurocêntrica, o que não implica
descartá-la ou jogá-la na lixeira da história. “A distância com relação às
versões dominantes da modernidade ocidental, acarreta assim a
aproximação às versões subalternas, silenciadas, marginalizadas de
modernidade e racionalidade, tanto ocidentais, quanto não ocidentais”.

3.- O Mundo Latino como Projeto Emancipatório. Aportes de ambos


os lados do Atlântico

Depois de seis mil palavras advertindo sobre o impacto do “latino


europeu” na cultura jurídica “latino-americana”, e, principalmente, os
riscos de reproduzir internamente o colonialismo cultural que se tenta
combater, alguém poderia supor que este trabalho pretende de algum
modo justificar certa oposição ao projeto de formulação de uma filosofia
do direito para o mundo latino. Nada mais longe da realidade. Nesta parte
final gostaríamos de destacar alguns fatores histórico-políticos, e alguns
traços de nossa cultura jurídica que, a partir de ambos os lados do

19
O modo em que este dualismo é percebido nos setores médios da América Latina
reflete um componente colonial e racista que muitas vezes não é advertido. O raciocínio
implícito é do tipo “Como no estado de bem-estar europeu os beneficiários são brancos,
está certo que o Estado os proteja. Sem dúvidas um francês ou um sueco que não
trabalha é porque não consegue emprego. Ao contrário, se um latino americano de tez
morena não trabalha, é um vadio que vive de benefícios sociais”.
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Atlântico – permitiram pensar uma iusfilosofia do direito para o mundo
latino como projeto emancipador. Isso será possível, ademais, porque
nenhuma cultura – mais além de suas pretensões universalizantes – é
fechada e absoluta, já que no processo de constituição de direitos, há
imposições, resistências, interpretações e influências diversas, etc..
Inclusive, porque as coisas não saem sempre como o previsto.

3.1. Influências latino europeias na construção de projetos contra-


hegemônicos

3.1.1. Sobre as repúblicas, frades e escravos

Iniciávamos a segunda parte deste trabalho referindo-nos à pesada


herança de uma cultura jurídica construída com base no direito de três
impérios, o romano, o espanhol e o napoleônico. Devemos reconhecer,
entretanto, que essa herança possui algumas joias no fundo do baú.
Assim, por exemplo, podemos ver como em oposição à influência
conservadora do direito romano imperial, os liberais crioulos no início do
século XIX são fortemente influenciados pela Respublica Romanorum.
O problema crucial dos revolucionários americanos não
monárquicos, era buscar um fundamento de legitimação da passagem da
monarquia à república. E a experiência histórica da Libertas romana era
um bom exemplo disso. Não apenas isso, pois essa mesma experiência
havia sido fonte em tempos modernos, de experiência republicana em
cidades europeias por breves períodos, como Florença, Amsterdã ou
Genebra, e inclusive de um modo muito mais duradouro na República de
Veneza. (FILIPPI, 2015: 136)
E assim como os independentistas latino americanos se inspiram na
república ao invés do império, José Carlos Mariátegui se pergunta: “Quais
elementos vitais podemos buscar, então, na latinidade? ”. Ao que
responde: “Nossas origens históricas não estão no Império. A herança de
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César não nos pertence; nos pertence, melhor dizendo, a herança de
Espártaco” (MARIÁTEGUI, 1950 173). Do mesmo modo, podemos advertir
que tampouco é linear e pacífico o modo no qual os conquistadores
espanhóis levaram adiante o processo colonizador e evangelizador. E o
que encontram em seu caminho não foi apenas resistência por parte das
populações originárias, mas também entre suas próprias linhas.
Excederia em muito o propósito deste trabalho, fazer um recorrido
preciso de cada uma das etapas deste processo. Aqui, simplesmente
sinalizamos seu ponto de partida: a denúncia de Antonio Montensino, em
21 de dezembro de 1511, na cidade de Santo Domingo, que marca o
começo das reclamações em relação às condições de tratamento
desumano contra os povos subjugados no continente americano. A partir
disto, e principalmente com a figura de Bartolomeu de las Casas e sua
famosa “Carta ao bispo de Chiapa sobre a matéria dos índios que foram
feitos escravos [...]”, 20 podemos encontrar uma longa história onde, no
direito “indígena” – que cumpre um papel central para possibilitar a
exploração e o extermínio – se inscrevem marcas de resistência, e se
encontram personagens que “usam-no de forma alternativa”, a favor da
proteção dos indígenas, mestiços, negros e mulatos.
Outro tanto acontece com a influência francesa na América Latina e
seu processo emancipatório. Assim como na primeira parte mostramos
como o Código de Napoleão – que claramente é um corolário do processo
iniciado com a revolução de 1789 – cumpriu um papel conservador a
partir de seu modelo de direito de propriedade, seria injusto não
reconhecer a influência decisiva de muitas das ideias de seus antecessores
franceses no processo revolucionário americano.
Se buscamos ressaltar um impacto radicalmente revolucionário
daquelas ideias, nada melhor que pôr em primeiro plano a revolução

20
“Carta al obispo de Chiapa sobre la materia de los indios que se han hecho esclavos y
se poseen oy por los españoles en las indias”.
110
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haitiana, tantas vezes esquecida. Porque o Haiti não foi apenas o primeiro
país da América Latina a proclamar sua independência, mas também foi o
primeiro a derrogar a escravidão.21 Em um longo processo revolucionário,
que se inicia em 1790 e culmina em 1804, resulta particularmente
ilustrativo, além das diversas correntes e visões em conflito na antiga
metrópole, onde, os ideais de liberdade e igualdade proclamados para os
europeus, em mais de uma ocasião são postos entre parênteses para a
colônia.
Do mesmo modo, se observa como os mulatos ricos, os principais
interessados no início da revolução, enfrentam os brancos, e em outro
momento enfrentam a rebelião dos escravos, homens de cor que são em
número dez vezes maior do que a população livre. Outro dado
interessante para mostrar as múltiplas arestas destes processos, é que a
constituição de 1801 consagra a abolição da escravidão, mas não a
independência. Assim, em seu artigo terceiro estabelece que “Não haverá
escravos neste território. Aqui, todos os homens nascem, vivem e morrem
livres e franceses”. Outro breve exemplo é como os processos de
construção de direitos não resistem a análises lineares, nem monocausais,
e, deste modo, permitem, paradoxalmente, usos conversadores e
emancipatórios.

3.1.2. Sobre os imigrantes, exilados e veteranos de Guerra

Assim como a figura do colonizador tem sido central para a


formação da identidade da América Latina, o mesmo ocorre com a figura
do imigrante. Não devemos perder de vista que boa parte dos europeus

21
Mereceria uma análise especial no modo em que ambas questões se cruzam e,
possivelmente, ver como isso tem incidido no futuro de tal país. De certa maneira, se
trataria de uma análise similar à das revoluções (a norte americana e a francesa) onde
resulta muito interessante a proposta de Hanna Arendt, que considera “boa” a norte
americana, e “má” a francesa, já que a primeira é pura em sua ânsia pela liberdade,
enquanto que a segunda mescla o problema da igualdade. Ver (HABERMAS, 2000).
111
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provenientes de países latinos que habitam nosso continente,
principalmente nos países do eixo sul, provêm dos estratos sociais mais
baixos em suas terras de origem.
Isso tem feito que, além de formar parte do sistema de dominação
colonial, sobretudo em termos étnicos, muitos desses imigrantes
chegaram com uma bagagem potencialmente emancipatória, por causa de
suas experiências políticas ou sindicais na Europa. O caso mais
significativo, sem sombra de dúvidas, é o argentino, onde o mandamento
constitucional de “fomentar a imigração europeia”, corroborou com a
vinda de milhares e milhares de comunistas, anarquistas e socialistas
provenientes do velho continente, a tal ponto que, em 1902, a pedido da
União Industrial Argentina, se ditou a chamada “Lei de Resistência”, que
permitia ao Poder Executivo deportar todo estrangeiro que houvesse sido
condenado, ou fosse perseguido pelos tribunais de seu país de origem, e a
todo aquele cuja conduta comprometesse a segurança nacional ou
perturbasse a ordem pública.
A essas ondas migratórias sucederiam outras, cruciais para a
configuração do pensamento emancipatório latino americano. Produto dos
regimes autoritários encabeçados por Franco e Mussolini, os imigrantes
econômicos seriam sucedidos por exilados políticos. Deste modo,
diferentes autores de viés marxista, e também liberais e sociais
democratas, começaram a ser estudados por nós, de forma mais intensa.
Muitos dos exilados, ademais, com uma importante formação acadêmica
em seus países de origem, se integram às universidades latino
americanas.22
Finalmente, o pós-guerra europeu gera uma última onda migratória,
mas também um importante intercâmbio entre os exilados radicados em
nosso continente, e os intelectuais europeus que começam a repensar a

22
Um caso emblemático, o grande jurista espanhol Luis Jiménez de Asúa; ver AAVV
Estudios Jurídicos En Homenaje Al Profesor Luis Jiménez De Asúa. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1964.
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reconstrução institucional de seus países. Neste contexto, por exemplo,
começa o frutífero e incessante intercâmbio entre Norberto Bobbio e a
América Latina. (FILIPPI, 2001)

3.1.3. Sobre as Ditadura e os Novos Exilados

Infelizmente, as seguintes décadas também fomentaram


intercâmbio entre a intelectualidade progressista latino americana e
europeia, ainda que agora os exilados fossem em sentido inverso. Embora
os golpes de estado em nosso continente começaram várias décadas
atrás, a partir dos anos sessenta e principalmente nos setenta, os níveis
de violência e intolerância alcançaram níveis nunca antes imaginados. Foi
assim como muitos pensadores da América Latina, não apenas se
formaram em universidades europeias e trocaram ideias diretamente com
pensadores de esquerda da época, mas além disso, viveram pessoalmente
alguns processos que me interessa destacar.23
O primeiro deles é o “maio francês”, que resulta particularmente
relevante por representar o fim do monopólio do conflito de classes como
conflito social. Em certo sentido, ainda quando - como todo marco
histórico – seja mais metafórico que específico (já que pela mesma época
se desenvolveram outros episódios semelhantes, como a luta pelos
direitos sociais nos EUA, a primavera de Praga, etc.), o certo é que a
reclamação dos estudantes franceses põe em claro que existem outras
formas de dominação além da apropriação dos ganhos de capital.
Em segundo lugar, especialmente relevante para o pensamento
jurídico crítico da Argentina e Brasil, o movimento do “uso alternativo del
diritto” italiano. Como se sabe, entre os prestigiosos integrantes deste
movimento se destacam autores como Pietro Barcellona, Luigi Ferrajoli,

23
Me limitarei a citar três exemplos, um italiano, um francês e um espanhol, para manter
a simetria que vem guiando este trabalho.
113
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Giusepe Coturri, Salvatore Senese, Vincenzo Accattatis, Domenico
Pulitano, Francesco Misiani, etc. Apesar de suas particularidades, tais
autores coincidem em constatar que o sistema jurídico não é um conjunto
compacto de normas, mas uma entidade descontínua e cheia de lacunas.
A tarefa que consiste na determinação e constituição de sentidos já não
será, então, considerada técnica, mas axiológica, valorativa, teleológica.
Dalí que pudesse se cumprir com a finalidade de preservar o status quo
existente, ou, ao contrário, com a intenção de favorecer os interesses das
classes subordinadas, de facilitar a ampliação da cidadania, de lutar
contra a exploração (DUQUELSKY, 2000)
Finalmente, não podemos deixar passar a relevância do retorno à
democracia na Espanha, para o que, durante as décadas seguintes,
seriam processos semelhantes na América Latina, particularmente o
debate em torno da nova Constituição Espanhola de 1978. A influência do
pensamento iusfilosófico espanhol da época, com todas as suas variantes
conceituais e ideoógicas seriam determinantes na formação de muitos dos
mais prestigiosos juristas latino americanos, alguns dos quais foram
testemunhas desse processo.

3.2. Também temos muito a dizer

Possivelmente, aqueles que responderam à chamada para pensar


em “Uma filosofia do direito para o mundo latino”, tenham desacordos
com boa parte dos pontos do decálogo proposto pelo professor Atienza e –
para dizê-lo em termos do pouco latino John Rawls - , inclusive seja difícil
encontrar um “consenso sobreposto” que vá mais além do desejo de
tentá-lo. Consideramos também que o êxito deste projeto coletivo
depende, em grande medida, não apenas da pluralidade de vozes que
participam, mas também da capacidade de pensar e repensar
constantemente suas próprias premissas e pontos de partida.

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As indicações formuladas a partir de uma visão crítica latino
americana, por outro lado, não devem ser vistas apenas como uma
“reclamação” com intuito que sejam atendidas suas preocupações, ou
respeitados seus pontos de vista, senão que estamos convencidos que o
“sul do norte” pode aprender muito com o “sul do sul”. Igualmente ao
que temos feito ao longo de todo este trabalho, não apontaremos
principalmente à análise metateórica, senão que sinalizaremos alguns
traços dos sistemas e práticas desenvolvidas na América Latina nos
últimos anos, que refletem uma tendência – alguns passos, alguns
avanços – até a construção de um sentido comum jurídico-político
alternativo, que podem ajudar a pensar o modo de encarar problemas
similares em países latinos europeus, muitos deles até agora inéditos no
Velho Continente.
Há pouco tempo assistimos a um “acontecimento político” na Grécia
que pareceu pôr em crise de forma definitiva a representatividade
democrática, inclusive sob formas de democracia indireta como o
plebiscito ou referendo. As negociações financeiras que condicionavam o
futuro do desenvolvimento econômico grego, seguiram um caminho à
margem do resultado da consulta popular. E embora o exemplo seja
tomado de um país não latino, a crise da representação política também
afeta boa parte da Europa latina. Da mesma forma, essa crise obriga a
repensar as formas de ação política e os limites da democracia liberal.
Por isso, mais além de que, a partir de um ponto de vista formal,
podemos aceitar que tanto nos países da Europa como da América, “o
Estado Constitucional opera como um ideal regulador para o
desenvolvimento do Direito e da cultura jurídica”, também devemos
reconhecer seus limites. 24 Assim, como é enriquecedor neste ponto do
debate em torno ao “neo-constitucionalismo”, não podemos deixar de
sinalizar que em nosso continente também se tem desenvolvido o que

24
Ponto 3 do Decálogo, ver Notas 3 e 4.
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alguns tem chamado de “Novo Constitucionalismo Latino americano”,
surgido em torno aos estudos e reflexões a partir das reformas
constitucionais da Colômbia (1991), Argentina (1994), Venezuela (1999)
e, particularmente, do Equador (2008) e Bolívia (2009).

3.2.1. Novas velhas formas de ação política

Dos múltiplos aspectos de interesse que apresentam esses


processos, me referirei, em primeiro lugar, ao papel dos movimentos
sociais no processo constituinte. Nos anos noventa, proliferaram os
trabalhos em torno aos chamados “novos movimentos sociais” (NMS), que
apareciam como os representantes de uma nova forma de ação política.
(DUQUELSKY, 2001). A maioria desses estudos, de origem europeia,
destacavam a composição social heterogênea de seus membros, o
prosseguimento de objetivos ou necessidades de corte pós-material, o
caráter lúdico de suas manifestações, etc.. Entretanto, também surgem na
América Latina NMS’s cujo propósito é perseguir a satisfação de velhas
necessidades. Em palavras de Boaventura de Sousa Santos:

Basta ter em mente as diferenças significativas em termos de objetivos de


ideologia e base social entre os NMS’s dos países centrais e os da América
Latina. Entre os valores pós-materialistas e as necessidades básicas; entre as
críticas ao consumo e as críticas à fala de consumo, entre o hiper-
desenvolvimento e o sub (ou anárquico) desenvolvimento, entre a alienação e
a fome, entre a nova classe média e as (pouco esclarecedoras) classes
populares, entre o estado-provedor e o estado autoritário, há, naturalmente,
diferenças importantes. (SANTOS, 2001)25

A crise do modelo neoliberal na América Latina, no final dos anos


noventa, não implicou apenas uma crise política sem precedentes, senão
que resignou o papel dos Novos Movimentos Sociais. No caso da Bolívia,
particularmente, o processo que desemboca na aprovação da Constituição

25
“Los Nuevos Movimientos Sociales”, em OSAL, Observatorio Social de América
Latina (no. 5 sep 2001) CLACSO.
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de 2009, teria sido impossível mediante um sistema de representação
político partidário ou gremial tradicional. Neste sentido, o exemplo
bolivariano não deveria ser menosprezado na hora de reformular o nexo
entre a cidadania e a determinação de seus modos de governo. (CHAPLIN,
2010)
Um grupo de movimentos sociais de outro perfil, com incidência
particular na cultura jurídico-política argentina mereceria um parágrafo à
parte, mas, por razões de extensão não vamos desenvolver: os
movimentos de direitos humanos que brigam pela memória, verdade e
justiça em relação às violações aos direitos humanos na ditadura cívico-
militar. Através de sua luta seguem levando adiante processos que
alcançam, não apenas os militares genocidas, senão que nos últimos
tempos se tem avançado também sobre os responsáveis civis, que
utilizaram as forças armadas como veículo para impor suas políticas
econômicas.
Aplicando o princípio da imprescritibilidade nos delitos de lesa
humanidade, as construções jurídicas permitiram que continuassem as
investigações dos delitos realizados há quarenta anos, sem que fosse
necessário recorrer a tribunais especiais, e com absoluto respeito às
garantias constitucionais dos imputados também constituem um caso
interessante a ser estudado, com o qual há muito para se aprender.

3.2.2. Constitucionalização do pluralismo étnico e jurídico

Estudar as experiências latino americanas também pode ser


interessante para uma Europa que sofre frente aos problemas vinculados
à imigração, os refugiados, a diversidade cultural e o fundamentalismo
religioso. Isto não pretende ignorar outro debate, muito mais complexo,
sobre a elaboração de uma concepção intercultural dos direitos humanos,
ou melhor, para usar palavras de Boaventura (2010: 63 e ss), ao

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desenvolvimento de direitos humanos interculturais pós-imperiais. Já
poderíamos encontrar o reconhecimento constitucional às faculdades
jurisdicionais dos povos originários, há um certo tempo, nas constituições
do México, Perú e Colômbia26, entre outras. A novidade das constituições
do Equador e Bolívia se dá pelo fato de irem além.
O artigo primeiro da carta magna equatoriana estabelece que é “um
Estado Constitucional de Direitos e Justiça, social, democrático, soberano,
independente, unitário, intercultural, plurinacional e laico”, enquanto que
o preâmbulo da constituição Boliviana define sua organização política
como um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário.
Em ambos os casos o reconhecimento também alcança o plano
idiomático, direito à identidade, propriedade de terras comunitárias,
conhecimento coletivo, educação multicultural e, evidentemente, a
administração da justiça. No caso da Bolívia, é muito interessante a
integração de um Tribunal Constitucional plurinacional, além de garantir
representação parlamentar especial e a autonomia indígena originária
camponesa.

3.2.3. A Pacha Mama e o bem viver

Possivelmente a novidade mais significativa das constituições


modernas de nosso continente passe pela relação com a natureza, seu
reconhecimento como sujeito de direitos, o que constitui basicamente um
intento de reestabelecer o vínculo ancestral entre a mãe terra e as
comunidades humanas. O profundidade desta mudança de perspectiva
implica romper com algumas dicotomias do pensamento moderno, onde
“natureza/sociedade” é apenas uma delas, já que também supõe romper

26
Pode servir nossa análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional Colombiano em
(DUQUELSKY, 2006)
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o dualismo “direitos/obrigações”, possibilitando o reconhecimento de
direito a entidades incapazes de ser titulares de deveres.
A partir do preâmbulo de ambas as constituições encontramos
assignado um lugar especial para essa relação. No caso do Equador se
proclama “(...) Celebrando a natureza, a Pacha Mama, da qual somos
parte e que é vital para nossa existência (...) Decidimos construir uma
nova forma de convivência cidadã, com diversidade e harmonia com a
natureza, para alcançar o bem viver, o sumak kawsay (...)”. Por sua
parte, o preâmbulo da Constituição diz: “Cumprindo o mandato de nossos
povos, com a força de nossa Pachamama e com a graã de Deus,
refundamos a Bolívia (...)”.
É muito interessante ver como o Título II da Constituição do
Equador, relativo aos “Direitos”, se inclui um capítulo dedicado aos
direitos da natureza que inclui tanto o direito de sua existência ser
respeitada integralmente, a manutenção e regeneração de seus ciclos
vitais, estrutura, funções e processos evolutivos (art. 71), quanto o direito
à restauração, independente da obrigação que tem o Estado e as pessoas
naturais ou jurídicas de indenizar os indivíduos e coletivos que dependam
dos sistemas naturais afetados (art. 72).
Como sinaliza Zaffaroni em seu ensaio original “La Pachamama y el
Humano” 27 (p. 111), o constitucionalismo andino, deste modo, dá um
salto conceitual muito relevante. Se passa do ambientalismo a um
autêntico ecologismo constitucional (ecologia profunda, em palavras do
autor). A invocação dos direitos da Mãe Terra já vem acompanhada, como
vimos, de uma regra ética coletiva básica, contida na noção quéchua de
sumak kawsay, comumente traduzida como “bem viver”. Esta noção

27
Vale a pena ressaltar que esta obra foi fundamental para uma sentença da Câmara
Federal de Cassação Penal da Cidade Autônoma de Buenos Aires, em 18 de dezembro de
2014, na qual se reconheceu direitos básicos como “sujeito não humano” a uma fêmea
orangotango do Zoológico de Buenos Aires, onde dera lugar a um recurso de Habeas
Corpus e se ordenou sua transferência a um santuário, no qual viveria em semiliberdade.
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difere do tradicional “bem comum”, reduzido ou limitado aos humanos, já
que alcança a boa vida de todos os viventes.
Obviamente não é nossa ideia propor uma sorte de neocolonialismo
inverso e que, com base nessas concepções, os países latinos da Europa
passem a tomar como suas determinadas visões do mundo que nem
sequer formam parte de uma importante proporção das sociedades latino
americanas. Entretanto, não se pode deixar passar que, como temos
sinalizado, toda cultura é incompleta e nenhuma é homogênea. Em
consequência, também existirão no velho mundo aqueles que advirtam
sobre a necessidade de repensar profundamente as relações entre o ser
humano e a natureza, aqueles que sustentem visões radicalmente
inovadoras, capazes de imaginar os nexos necessários para um diálogo
frutífero com estas manifestações do pensamento jurídico latino
americano.

4.- O que fazemos com o dia 29?

No dia 28 de Maio de 2016, à tarde, depois de árduas jornadas de


debate e reflexão teórica, havíamos discutido acerca da constituição de
uma Associação de filosofia do Direito do mundo latino, seguramente se
decidirá para se organizar um congresso bienal até a publicação de uma
edição que sirva como seu órgão de expressão. E depois? Assim como em
várias partes do trabalho que temos sinalizado nossas discrepâncias com
alguns dos pontos do decálogo do professor Atienza, há um plano no qual
estamos totalmente de acordo: “talvez não tenha sentido produzir obras
destinadas unicamente a outros filósofos do Direito, e menos ainda
quando seus destinatários diretos parecem ser intelectuais que lhes sejam
estranho tudo o que se gera fora de seus âmbitos culturais”.28

28
Ver notas 3 e 4
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Nosso desafio não é apenas seguir discutindo entre nós. É
fundamentalmente ver de quais modos nosso saber pode contribuir a
repensar o sentido comum jurídico, a acompanhar práticas jurídicas
emancipatórias, a combater o colonialismo cultural, tanto externo, quanto
interno. Mas é preciso ser consciente de que nos últimos trinta anos as
lutas mais avançadas não foram protagonizadas por vanguardas, senão
por grupos sociais cuja presença na história foi prevista pelo pensamento
crítico eurocêntrico: Indígenas, camponeses, piqueteiros,
afrodescendentes, mulheres, etc. (SANTOS, 2010: 19)
Nós, os juristas, deveremos, então, abandonar o papel do Sr. Wolfe
– famoso “cleaner” do filme Pulp Fiction, protagonizado por Harvey Keitel
-, encarregados de apagar da história as manchas de sangue das lutas
pelos direitos, e aprender a trabalhar com o barro, artesãos de Oaxaca.

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