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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de 2018

Partilha da dor: a piedade e o trágico1


Sharing pain: pity and tragedy
Mariana Maciel Nepomuceno 2

Resumo: A dor e a ruptura profundas com determinados valores socialmente


compartilhados geram um sentimento de perda e luto muito próximos das noções
gregas de tragédia que se perpetuaram enquanto fonte do imaginário do sofrimento
extremo no Ocidente. Este artigo busca mapear imagens que se aproximam de uma
percepção de mundo marcada pela concepção do trágico, a partir da intenção de
buscar um pensamento que coloque as imagens como meio ativo de produção de
reflexão, reconhecendo que a produção incessante de imagens tanto pode produzir
uma miríade de fragmentos que fluem desafiando qualquer sentido de unidade e
continuidade; como também podem se concentrar em torno de núcleos capazes de
exprimir experiências coletivas do luto e da dor. São explorados, aqui, os
sentimentos de piedade e do medo próprios da noção de comoção desperta pela
experiência do trágico.

Palavras-Chave: Imagem1. Imaginário 2. Tragédia 3.

Abstract:
Deep pain and disruption with certain socially shared values generates a sense of
loss and mourning very close to the Greek notions of tragedy that perpetuated
themselves as a source of the imaginary of extreme suffering in the West. This
article seeks to map images that approach a perception of the world marked by the
conception of the tragic, from the intention to seek ways to replace the images as an
active actor of producing reflection, recognizing that the incessant production of
images can produce a myriad of fragments flowing in defiance of any sense of unity
and continuity; but can also focus around nuclei capable of expressing collective
experiences of mourning and pain. The feelings of piety and fear proper to the
notion of commotion awakened by the experience of the tragic are explored here.

Keywords: Image 1. Imaginary 2. Tragedy 3.

1. A jornada de Alice
O romance Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende (2014), conta a história de
Alice, que deixa João Pessoa e segue a Porto Alegre à revelia de sua vontade. A única filha,
Norinha, deseja ter uma criança e requer a companhia da mãe. Alice reluta mas cede. Deixa
sua rotina de professora aposentada para ser a avó que sua filha deseja que ela seja. Neste

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Imagem e Imaginário Midiáticos do XXVII Encontro Anual da
Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de 2018.
2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco
(PPGCOM/ UFPE), tutora do Laboratório de Comunicação da Faculdade Pernambucana de Saúde e bolsista de
pesquisa da FACEPE. E-mail: nepomucenomariana@gmail.com

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espaço geográfico tão distinto de casa e onde ela é completamente desconhecida, Alice inicia
uma espécie de peregrinação. Na capital gaúcha, sentindo-se inadequada naquela terra de
estrangeiros, Alice desaponta-se com Norinha e decide procurar por Cícero, o filho de uma
conhecida que também migrou para o Rio Grande do Sul e que estaria sem enviar notícias à
mãe há algum tempo. Alice se desloca pela periferia da cidade em busca do rapaz, sentindo-
se sempre observada como uma “outra” – paraibana, nordestina, baixinha, com sotaque
diferente. Entretanto, ao contar a história da mãe que se angustia pelo filho perdido, a cidade,
até então hostil, se abre e além de percebida, ela é amparada e reconhecida por pessoas que
estão tanto quanto ela distantes do centro. A chave para este reconhecimento é girada quando
se descobre o que motiva a andança de Alice – o sofrimento de uma mãe:

“Ninguém desistia do assunto, mas lá para cima não é bom tu ir sozinha, não, tu não
sabe como são as coisas...Vamos, vamos subir que eu ajudo a procurar, se Deus
quiser a gente acha o rapaz e aquela mãe vai sossegar”, (REZENDE, 2014, posição
1029).

Alice não reencontra a filha para apaziguar as arestas da relação entre as duas nem alcança
qualquer informação precisa sobre Cícero. O que ela acha, no fim da jornada de 40 dias por
Porto Alegre, é um jovem negro morto, obviamente filho de uma outra mãe, que Alice não
conhece mas pressente a dor. É esse encontro que ocasiona a volta de Alice para a casa em
que a filha mora – a aparição, o vislumbre de um filho morto.
O que interessa, aqui, é Alice notar a comoção provocada pela imagem mental
formada pela ideia do que sente uma mãe que perde o filho. Imagem que funciona como um
catalisador de ação, um ímpeto movido pelo reconhecimento do sofrimento. Mesmo que não
se trate de um enredo trágico ou próximo dos conflitos de uma tragédia aos moldes dos
dramas helênicos de Sófocles ou Eurípedes, o romance de Rezende traz a possibilidade de
percepção da dor do outro como algo avassalador e ajuda a perceber o contorno conceitual de
algo que pode ser assumido como parte da potência de partilha do trágico: comover-se com o
destino de quem segue o caminho que se dá a percorrer pelo gatilho de nossas paixões.
Milan Kundera, no livro A Insustentável Leveza do Ser, apresenta o do sentimento de
compaixão entre dois amantes– Tomás e Tereza:

Quando Tereza sonhava que enfiava agulhas sob as unhas, ela se traía, revelando a
Tomás que mexia às escondidas em suas gavetas. Se alguma outra mulher tivesse
feito isso com ele, nunca mais ele lhe dirigiria a palavra. Como Tereza sabia disso,

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dizia: - Ponha-me para fora! – Ora, não somente ele não a mandou embora, como lhe
tomou a mão e beijou-lhe a ponta dos dedos, pois nesse momento ele próprio sofria a
dor que ela sentia sob as unhas, como se os nervos dos dedos de Tereza estivessem
diretamente ligados a seu próprio cérebro. Aquele que não possui o dom diabólico da
compaixão (co-sentimento) só pode condenar friamente o comportamento de Tereza,
pois a vida particular do outro é sagrada e não se abrem as gavetas onde ele guarda
sua correspondência pessoal. Mas como a compaixão se tornava o destino (ou
maldição) de Tomás, pareceu-lhe que era ele mesmo que se tinha ajoelhado em frente
à gaveta de sua escrivaninha e que não sabia tirar os olhos das frases escritas pela
mão de Sabina. (KUNDERA, 1983, p. 26).

Tomás sente a dor que Tereza sente, a dor que ele mesmo provocara. O sentimento não é
mais exclusivo dela. E é a coabitação dessa emoção que passa a definir Tomás. Não seria
também aquilo que nos aproxima enquanto seres humanos - a possibilidade de sentirmos em
partilha dores que não passam diretamente pela nossa própria vivência? Este é o fascínio
produzido pela imagem que guarda em si um páthos – a transmissão de uma comoção intensa
que é capaz de comunicar, de estabelecer um vínculo entre pessoas que estão em
temporalidades, em contextos culturais, sociais, históricos e espaciais diferentes. Um dos
pontos cruciais do trágico é a junção tensa entre o medo e a piedade, desperta pelo outro e
que ecoa em nós – a parcela de horror nosso que percebemos a partir de outras pessoas.
A tragicidade não é um valor encerrado no passado, vivido apenas pelos antigos. A
dor e a ruptura profundas com determinados valores socialmente compartilhados geram um
sentimento de perda e luto muito próximos das noções gregas de tragédia que se perpetuaram
enquanto gênero literário e como referência para o sofrimento extremo no Ocidente. Como
afirma Raymond Williams (1966), a tragédia traz em si uma espécie de amálgama da tradição
greco-cristã que soldou as linhas de força da civilização ocidental. A tragédia seria a mais
simples e poderosa ilustração da continuidade cultural tanto enquanto forma como enquanto
meio para interpretação do passado possível de ser descrita como uma forma particular de
evento com uma forma particular de resposta intelectual emotiva da audiência. A experiência
do trágico condensa as crenças e tensões fundamentais de um período e concretiza o que está
enraizado em determinada cultura (WILLIAMS, 1966, posição 618).
A perspectiva da tragédia como a defesa de uma de tradição cultural, tradição posta
aqui como continuidade, desloca para o presente a ação enquanto agente de seleção e de
valoração sobre quais aspectos do enredo trágico se tornam mais importantes ou sobre que
matrizes novas narrativas trágicas são elaboradas. A tragédia, nos gregos, seria uma forma
madura tocando cada ponto de uma cultura madura. No mundo medieval é subordinada à

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noção de virtude e volta-se para a fortuna de príncipes e de reis. A permanência da tragédia


como arte pode ser tomada como a permanência de seus significados particulares que foram
perdidos e modificados na transição do mundo clássico para o mundo medieval, por exemplo.
Muito do rigor criativo e da tensão da tragédia vêm do processo único de refazer
ações reais de mitos como ação dramática sequenciada. Um dos resultados mais singulares
desse processo é apresentar em uma forma dramática uma estrutura de sentimento
(WILLIAMS, 1966, posição 138). O que a forma incorpora para a história e a sua presença
enquanto narrativa não é só a instância metafisica enraizada na experiência individual mas
uma experiência coletiva compartilhada de uma vez e de forma indistinta, tanto metafísica
quanto socialmente, como argumenta Williams. Até mesmo a mudança contextual sobre a
concepção de indivíduo modifica a percepção do que é o trágico.
Williams (1966) registra que a definição mais famosa do inglês medieval para a
tragédia se refere à mudança de condição. A diferença entre o rei rico medieval e o herói
trágico grego. A história da tragédia passa a ser a história da mudança da prosperidade para a
adversidade, determinada pela mutabilidade – fator externo e geral, que não contem a ideia
da queda, presente na tragédia grega, gerada pela potência da vontade e da ação demasiadas.
A tragédia medieval exclui o conflito e se volta para a noção de fortuna. Percebe-se então a
mudança de uma cultura em que a tragédia se dá pela ação humana para outra em que a ação
humana é limitada pelos desígnios divinos da religião católica. A Renascença continua a
olhar para a ideia de tragédia a partir da noção de mutabilidade e potencializa o paradoxo da
doce violência (WILLIAMS, 1966, posição 245): como pode o prazer estético atrelar-se ao
sofrimento?
Apresento a tragédia como operador para este estudo pois é interessante pensar no
enredo trágico como um caminho para a comoção e como espaço do conflito. Os romances e
seus respectivos trechos a que me refiro acima não guardam consigo elementos que os
definiriam como herdeiros da tragédia, mas contribuem para compreendermos o caminho
possível de ser percorrido por um estado de espírito, por uma comoção desperta pela dor de
outrem, o trajeto de um sentimento. E é esse poder catártico desperto externamente que
convoco para uma dinâmica de estudos de imagens. Aproximo imagens que resguardam
distâncias entre si, mas que juntas se tornam capazes de condensar emoções entalhadas como
detalhes por artesãos e que se tornam potentes quando são apresentadas em conjunto.

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2. Montagem e emoção

Didi-Huberman explica que Walter Benjamin trata a dialética e o procedimento de


montagem como indissociáveis na desconstrução do historicismo, apontando para a
necessidade de desmontar a história para que fosse possível expor as heterocronias
(“heterogeneidades”) e anacronias (“não contemporaneidade”) dos “elementos que compõem
cada momento da história”. Esse movimento estaria apto a criar intervalos e
descontinuidades, aproximando elementos anteriormente separados de seu lugar habitual.
Esse olhar estaria “constantemente no limiar do presente”, (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.
120-121).
O material da montagem pareceria, para Didi-Huberman, “volátil, “sutil”, pois “foi
retirado de seu espaço normal, porque não cessa de correr, de migrar de uma temporalidade a
outra. A montagem dependeria do “saber das sobrevivências e dos sintomas”, como apontaria
Aby Warburg (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 123). Para Didi-Huberman: “A montagem
separa coisas habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente separadas. Ela cria
um abalo e um movimento”, (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 123). Esse movimento é próximo
da investigação que Benjamin traça a partir da hipótese freudiana de que “a consciência barra
os choques, impedindo que eles penetrem suficientemente a fundo para deixar um vestígio
permanente na memória”, (BUCK-MORSS, 2012, p. 168). Se Freud partia dos estudos sobre
as neuroses dos soldados da Primeira Guerra Mundial, Benjamin afirma que a experiência do
choque se transformou em norma da vida moderna, sufocando a experiência:
Se o ‘centro’ desse sistema não se localiza no cérebro, mas na superfície do corpo, a
subjetividade, longe de ser limitada dentro do corpo biológico, desempenha o papel
de mediadora entre as sensações internas e externas, as imagens da percepção e as da
memória. Por essa razão, Freud situou a consciência na superfície do corpo,
descentrada do cérebro (que ele se dispunha a ver como nada além de gânglios
nervosos grandes e evoluídos), (BUCK-MORSS, 2012, p. 197).

Os intervalos criados pelos procedimentos de deslocamento e relocação fazem surgir, então,


“intermitências”, em que “a memória involuntária e o desejo inconsciente se revelam, ou
melhor, vêm à tona”, (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 124). O procedimento de criação de
intervalos entre imagens evocadas por semelhança pode contribuir para que sejam vistas
atribuições que antes poderiam estar fora do alcance da visão. Susan Sontag pontua que cada
imagem possui uma trajetória própria articulada com os vários discursos que a

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acompanharão, construídos a partir das comunidades que reivindicarão esses discursos, numa
polissemia incessante. Sontag aponta a recorrência de representações dentro de uma
iconografia do sofrimento que privilegia frutos da ira, divina ou humana. Eagleton sugere que
a tragédia em si tenha sido capaz de desenvolver um pensamento próprio, durante a era
moderna. A tragédia seria importante para a modernidade por apresentar, entre outros
elementos, uma crítica ao Iluminismo.

3. O presente da Piedade

Busco, a partir desse pressuposto, remontar uma memória do presente, construída por
imagens dispostas em um mesmo espaço, para que dialoguem entre si e possam juntas revelar
potências que, se observadas de forma isolada em cada imagem, perderiam em força. A busca
também é de conectar o presente ao passado, partindo da ideia de que a produção incessante
de imagens tanto pode produzir uma miríade de fragmentos que fluem desafiando qualquer
sentido de unidade e continuidade; como também podem, a partir de uma vivência coletiva,
concentrarem-se em torno de alguns núcleos capazes de exprimir experiências coletivas do
luto e da dor, desafiando a anestesia e convidando a um sentir junto.
Procuro refletir nessas imagens a dimensão cênica e pública da expressão de um
imaginário atual marcado pela turbulência, pela disputa política e pela tensão entre o
indivíduo e as diversas aparições de alteridade diante deste indivíduo (outras pessoas ou o
Estado assim como outras formas de poder institucionalizado). O romance de Rezende está
inserido em um contexto local de diferenças sociais entre centro e periferia, seja entre
Nordeste e Sul do Brasil, seja entre o morro periférico e o bairro de classe média-alta em que
mora a filha de Alice. O livro de Kundera está imerso temporalmente no desenrolar da
Primavera de Praga e no que foi politicamente para o mundo ocidental o ano de 1968. Esta
proposta busca delinear similitudes e diferenças, aproximando-se de noções vindas da
tragédia enquanto construção de sensibilidade, e enquanto imagens que permanecem como
possibilidades narrativas do contemporâneo. É a partir da presença do conflito e da
dissolução de uma ordem estabelecida, disparadores da tragédia desde os gregos, que envolvo
meu argumento metodológico para apresentação dessas imagens: a dimensão política da
representação do sofrer.

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São imagens que se alinham por contiguidade a imagens artísticas como a Pietá, de
Michelangelo, a Vênus de Botticelli e o jovem morto descrito no poema de Rimbaud, “Le
dormeur du val” – e que se aproxima também das várias representações do corpo da Ofélia de
Hamlet. Essas imagens indiciam a permanência no imaginário social de alegorias cuja
vibração de significado resiste ao tempo. Imagens que rompem a funcionalidade do
ornamento e que transportam para si a especificidade totalizante e aporética do trágico
(MAFFESOLI, 2003), potencialmente alçadas à dimensão imaginal e pondo em relevo a
atualização de temas políticos de que é capaz o pensamento estético. Coloco essas imagens
em conjunto para que juntas se deem voz e atuem como um coro de um tempo que lhes é
interno mas que é partilhável a quem olha.
Verificam-se neste conjunto vestígios da “sobrevivência dos signos ou das imagens,
quando a sobrevivência dos próprios protagonistas se encontra comprometida”, (DIDI-
HUBERMAN, 2011, p. 150). São formas de resistência à desordem de um mundo em
decomposição, uma “iconografia do sofrimento”, (SONTAG, 2003, p. 51). Parto do
pressuposto de que um rompimento institucional como o vivido pelo Brasil em 2016 não se
dá somente no campo das forças políticas, dá-se também no campo do imaginário de uma
sociedade (CASTORIADIS, 2004). Visto que: “a dimensão doadora de sentido da instituição
social é, evidentemente, muito mais que multidimensional e extraordinariamente complexa;
com efeito, ela consiste na criação de um mundo, do mundo dessa sociedade”
(CASTORIADIS, 2004, p. 257), então a realidade é também significação imaginária,
composta pela linguagem como uma de suas dimensões e a imagem torna possível a
representação dessa relação. Aristóteles é um dos primeiros pensadores a perceber aspectos
essenciais do imaginário, atestando que “a alma nunca pensa sem fantasmas, isto é, sem
representação imaginária”, (CASTORIADIS, 2004, p. 127).
Imagens são também fantasmas que habitam o mundo e que nos ajudam a
compreendê-lo, construindo aproximações que o tornam legível, a partir de suas regras e
repetições, capazes de fornecer um mínimo de previsibilidade ao cosmos e a nós mesmos.
Fantasmas que se perpetuam e criam nexo entre passado e presente.
Localizo para este estudo imagens que, juntas, orquestram-se como um coro grego
que canta a tragédia do presente, que anuncia em gesto a dissolução de um mundo imaginário
e aponta a nossa vulnerabilidade não diante apenas do destino, mas de nós mesmos: seres

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humanos que não aceitam seus corpos de animais, que fecham os olhos as emoções para
depois vê-las irromperem incontroláveis, como o giro da incansável roda da fortuna (FIG 1).

Figura 1 – Prancha de imagens

As imagens que são apresentadas neste estudo estão dispostas na prancha acima. A
identificação, em sentido horário, de cada uma delas: 1 – Sheila Cristina; 2- Dilma Rousseff;
3 – Pietá, de Michelangelo; 4 – Guernica, de Picasso; 5 – Cena da minissérie Justiça, em que
a mãe, personagem de Débora Bloch, toma em seus braços o corpo da filha assassinada,
representada pela atriz Marina Ruy Barbosa; 6 – Diego Machado; 7- Marcha das Vadias; 8 –
Índia protesta em Brasília; 9 – estátua da Medusa. Assim como o caminho do ponteiro feito
pelo relógio, elas marcam uma temporalidade. Porém, condensam horas que lhes são
próprias, fora de uma circunscrição espacial linear. As imagens em questão articulam, quando
dispostas em conjunto, e a partir de uma inquietação subjetiva, reflexões sobre o tempo
presente que saem do plano individual e singular para o que pode ser partilhado, comunicado
com outrem.
4. O que se encontra no caminho

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A Alice do livro de Maria Valéria Rezende não encontrou o Cícero que procurava.
Surgiu um outro jovem negro que apareceu no seu caminho e a impulsionou de volta para a
casa e para um possível mas ainda distante reencontro com a filha. O jovem morto que ela
também chama de Cícero poderia ser Diego Machado, cuja imagem está na prancha de
imagens que apresento abaixo. Diego é o estudante assassinado cujo corpo foi encontrado no
Campus do Fundão, da UFRJ. A morte de Diego aconteceu dentro da universidade e a
suspeita é de que o crime tenha sido motivado pela militância de Diego na defesa de questões
relacionadas a direitos sexuais. Negro, gay, natural de Belém do Pará e cotista, morto no Rio
de Janeiro, antiga capital nacional e maior cartão postal do Brasil. Esses elementos compõem
um quadro simbólico capaz de cristalizar a vida de Diego em uma narrativa dentro de um
cenário de conflitos com contornos trágicos como se dá no poema de Rimbaud, aqui
transcrito a partir da tradução de Ivo Barroso:

O Adormecido do vale

Era um recanto onde um regato canta


Doidamente a enredar nas ervas seus pendões
De prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões

Jovem soldado, boca aberta, fronte ao vento


E a refrescar a nuca entre os agriões azuis
Dorme; estendido sobre as relvas, ao relento
Branco em seu leito verde onde chovia luz

Os pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono


De uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem frio, ó Natureza – aquece-o no teu leito.

Os perfumes não mais lhe fremem as narinas;


Dorme ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre o corpo. E tem dois furos rubros no peito.

O quadro referencial que compõe as escolhas feitas pela mídia da imagem de Diego para
representa-lo nas notícias sobre a morte dele aponta mais comumente para a representação da
Ofélia de Shakespeare pintada por John Everett Millais (1852) (FIG 2) – o corpo deitado
ladeado por flores em meio à floresta ou algo que poderia ser um bosque. Há um intervalo
que cria a distância entre a pintura de Ofélia por Millais – noiva de Hamlet afogada em um

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rio na tragédia de Shakespeare - e o jovem soldado do poema de Rimbaud – ferido pela


guerra (“E tem dois furos rubros no peito”).

Figura 2 – Ofélia de John Everett Millais


Fonte: Tate Modern

Neste espaço contíguo em que podemos encontrar a imagem de Diego próxima a de


Ofélia repousa uma espécie de semelhança talvez estranha entre o guerreiro que parece
dormir e a mulher representada em um estado de retorno à natureza pela morte. É interessante
aqui observar também um espaço, um intervalo entre a dupla que a imagem de Diego
provoca entre a mulher (Ofélia) e a guerra (Diego é a imagem do soldado e, também, do filho
morto pelo combate) que revela contornos presentes no próprio construto do luto que
percebemos como trágico. A imagem de Diego evoca, para mim, a de Sheila Cristina,
chamada pela jornalista Eliane Brum de Pietá Negra do Brasil ao ser fotografada depois de
passar no rosto o sangue do filho morto em um confronto entre a polícia do Rio de Janeiro e
traficantes. Desnorteada diante do corpo amado inerte, Sheila pintou o rosto com a dor. O
gesto de luto de Sheila Cristina remete a uma pietá mais antiga, a da Guerra de Troia:
Hécuba. Ela recebeu o corpo do neto de cinco anos para o preparo dos ritos fúnebres.

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Hécuba, idosa, viu familiares mortos e sua terra arrasada pela guerra. Viu o neto ser entregue
para que fosse morto pelos gregos para que à criança fosse permitido o funeral. É Hécuba a
Pietá pagã, a primeira Pietá ocidental. Maria, a Pietá cristã, recebeu no colo o corpo do filho
Jesus morto por ameaçar o poder oficialmente instituído. A guerra de Guernica também
mostra o grito de uma mãe. Guernica mostra a dor incomensurável como herança inescapável
da guerra. A mãe e o filho em um canto, entre os corpos, os pedaços, os fragmentos que
sobram quando a harmonia se vai. É na fórmula “piedade e terror3” (WILLIAMS, 1966,
posição 282) que alicerça a expectativa em torno do poder de comoção do trágico que
percebo um entrelaçado entre as variadas imagens da Pietá e o imaginário do conflito e da
guerra.

5. Maternidade e guerra

O corpo é reivindicado na disputa entre mulheres e Estado. Não só pelos filhos que
são destinados à guerra mas também pelo direito de nós, mulheres, possuirmos nossos
próprios corpos. As mulheres com rostos abertos pelo grito fotografadas na Marcha das
Vadias do Recife de 2016 e a índia que se põe como obstáculo vivo à polícia aparecem como
uma síntese dos conflitos provocados pela possibilidade da morte, violenta e/ou simbólica,
enquanto acontecimento público: nós, mulheres, vivemos sob risco e nosso único despojo na
guerra são os corpos de nossos filhos mortos. A fotografia da índia dispõe de códigos comuns
a outras imagens de mulheres em locais de conflitos enfrentando soldados – como primeira
instância de observação estaria, então, a identificação do próprio repertório iconográfico de
quem produziu a imagem. Mas, em esquema de contiguidade com as outras imagens, aposto
num olhar mais amplo do registro, na perspectiva de abrir a imagem para retirar-lhe do
ordinário e reforçar a potência de insubmissão que o gesto da índia traz.
As mulheres da Marcha das Vadias que foram registradas na fotografia como
guerreiras - peitos nus e corpos pintados – avançando de bocas escancaradas e cabelos ao
vento abrem diálogo com a imagem da Medusa, mulher amaldiçoada e transformada em
monstro terrível que se tornou capaz de imobilizar em pedra quem a olhasse de frente.

3
O pesquisador e crítico literário Peter Szondi (2004) decide pelo uso do termo “medo” no lugar de terror como
tradução da palavra “fóbos” de Aristóteles. Aqui, neste texto, alterno entre a preferência de Williams pela
palavra terror e pela opção feita por Szondi para medo, reconhecendo a importância das escolhas dos dois
autores.

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Medusa teve como destino ser decapitada por Perseu para ter sua cabeça usada por ele como
arma (BULFINCH, 2017). A representação da Medusa geralmente está centrada na cabeça.
Pensar o corpo como uma centralidade dentro da reflexão estética, não só em sua
materialidade mas também como imagem. Pensar o corpo como elemento que retornou
recentemente ao debate teórico e político, sendo alvo de disputa dos discursos e colocado
como parte da política como fazem as mulheres da Marcha das Vadias e das passeatas do 8M.
Como entidade política, o corpo, principalmente o das mulheres, se conecta a temas que vão
de ações do Estado a dinâmicas de representação e de valor e gosto no mundo das galerias de
arte. O sujeito que surge na burguesia e permanece no capitalismo revela-se imbricado em
uma modelagem estética sensualista que escapa à ideia do sublime kantiano, mesmo que
recuse o corpo como elemento estético de importância. O corpo insere o que há de concreto,
de físico, o lugar do sensorial entre o pensamento e a ação política:
A última força de coesão da ordem social burguesa, em contraste com o aparato
coercitivo do absolutismo, serão os hábitos, as devoções, os sentimentos e os afetos.
E isso equivale a dizer que o poder, neste regime, foi estetizado. Ele é indissociável
dos impulsos espontâneos do corpo, está imbricado à sensibilidade e aos afetos, é
vivido como um costume irrefletido. O poder está agora inscrito nas minúcias da
experiência subjetiva, e a fissura entre o dever abstrato e a inclinação prazerosa foi
harmoniosamente curada, (EAGLETON, 1993, p. 22).

Pensando pela imagem do corpo e do corpo em ação, ou seja, pensando com o gesto,
podemos perceber o mesmo sentimento das variadas pietás numa estátua de um guerreiro
como o Laocoonte, cuja figura masculina condensa elementos de languidez e de virilidade
misturados a desespero e compaixão. Essa visada se distancia do posicionamento de Kant
que, segundo Cassirer, demonstra predileção pelo ideal do guerreiro como ser digno de
respeito. De acordo com Buck-Morss:

O estadista e o general são ambos tidos por Kant em mais alta estima ‘estética’ do
que o artista, uma vez que os dois, ao moldarem a realidade, e não suas
representações, imitam o protótipo autogerador, o Deus judaico-cristão produtor da
natureza e de si mesmo, (BUCK-MORSS, 2012, p. 160).

Desta forma, o corpo feminino e gestos que indicassem homoerotismo se tornam duas
ameaças à psique modernista. Buck-Morss compara a sensualidade homoerótica à
sexualidade reprodutiva das mulheres, sendo a primeira possivelmente mais perigosa. Uma
consequência da inferência que separa o estético dos sentidos:

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Se, na terceira Crítica, o “estético” nos juízos é despojado de seus sentidos, na


segunda Crítica os sentidos não desempenham nenhum papel. O ser moral é
indiferente aos sentidos desde o começo. Mais uma vez, o ideal de Kant é a
autogeração. A vontade moral, expurgada de qualquer contaminação dos sentidos (os
quais, na primeira Crítica são a fonte de toda cognição), instaura sua própria
dominação como normal universal. A razão produz a si mesma na moral kantiana –
de maneira ainda mais ‘sublime’ quando a própria vida é sacrificada à ideia, (BUCK-
MORSS, 2012, p. 161).

A ideia de um “criador viril, um iniciador de si mesmo, sublimemente


autossuficiente” permanece durante todo o século XIX – “assim como a associação da
estética desse criador com o guerreiro e, por conseguinte, com a guerra “, (BUCK-MORSS,
2012. P. 162). Um dos pontos de investigação seria o temor do poder biológico das mulheres
que pode ser entrevisto a partir dessa separação entre corpo e sentidos. Excluindo-se o corpo,
exclui-se também o sexo. Essa seria a chave para a autogeração do masculino, surgido
independente de um pênis sensorialmente sensível e, logo, imprevisível ou fora do controle
do racional. O pensamento feminista contribuiu para a reivindicação do corpo como elemento
importante no debate sobre a experiência. Essa relação entre virilidade e guerra sob o olhar
crítico do feminismo pode ser encontrada no questionamento feito por Virginia Despentes a
partir do elo entre o enaltecimento da figura da mãe e a autoridade do Estado. “A
maternidade se tornou o aspecto mais glorioso da condição feminina (...) Mamãe sabe o que é
bom para a criança”, (DESPENTES, 2016, p. 20). A comoção provocada pela dor de uma
mãe narrada na história de Alice parece mostrar uma continuidade própria da tradição trágica:
enxerga-se a dor a partir das mulheres que são mães e que perdem os filhos. Maternidade e
dor surgem como uma espécie de binômio e de destino incontornável para a mulher
ocidental.
O estabelecimento pela tradição seria de que os valores viris, masculinos seriam os
valores da experimentação, do risco, da ruptura com o lar. Mesmo que de forma binária e um
tanto simplificadora é interessante cogitar que, para o Estado, uma das funções da mãe em
tempos de conflitos seria enviar os filhos à guerra (DESPENTES, 2016, p. 23-24). Despentes
percebe neste vínculo a perda de autonomia do indivíduo diante do Estado, que passaria a
assumir, então, posturas autoritárias, fascistas.

6. O sensível contra o fascismo

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De modo circular, o autoritarismo fascista seria uma consequência direta da alienação


sensorial frutificada a partir da conjugação entre estética e política, distanciando o sensível do
corpo e tornando mais aceitável a guerra. Benjamin surge, então, para exigir da arte
“desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais
humanos em prol da autopreservação da humanidade”, (BENJAMIN APUD BUCK-MORSS,
2012, p. 156).
A abordagem kantiana que contribuiu para a constituição do sujeito moderno pôde ser
confrontada por Hegel, que alia novamente corpo e mente, do ponto de vista do que é
produzido como pensamento humano e não como aquilo que pode ser observado somente
pelo viés biológico: “Se você quer saber o que é a mente, examine o que ela faz – portanto,
desvie a filosofia da ciência natural para o estudo da cultura humana e da história humana”
(BUCK-MORSS, 2012, p. 163). Essa articulação entre corpo e mente favorece uma
concepção que enxerga o sujeito como ser sinestésico, imerso em “um sistema estético de
consciência sensorial, descentrado do sujeito clássico – no qual as percepções sensoriais
externas se unem às imagens internas da memória e da expectativa”, (BUCK-MORSS, 2012,
p. 164).
Este sistema sinestésico seria, de acordo com Buck-Morss, ‘aberto’ e favoreceria
descontinuidades, favorecendo um processo de aproximação involuntária ou não de imagens
mentais. Esse processo de produção de semelhança também pode ser percebido, de acordo
com Buck-Morss, entre expressões faciais e no gesto, como nas imagens de uma
apresentação de Wagner em Bayreuth em 1930 e um discurso de Hitler no Reichstag – braços
e mãos esticados à frente. A comunicação pelo sistema sinestésico pode ser percebida pela
expressão facial., percebida por Buck-Morss como uma marca singular e individual, capaz de
diferenciar uma pessoa da outra tal como faz uma impressão digital. Além da possibilidade
de diferenciação, a expressão do rosto reuniria, para ela, “três aspectos do sistema sinestésico
– sensação psíquica, reação motora e significado psíquico”, (BUCK-MORSS, 2012, p. 166).
Essa forma de linguagem seria uma espécie de oposição à disposição racional do que é
comunicado: “Escrita na superfície do corpo como uma convergência entre a impressão do
mundo externo e a expressão do sentimento subjetivo, a linguagem desse sistema ameaça
trair a linguagem da razão”, (BUCK-MORSS, IDEM).
Se proponho uma proximidade com intervalos entre as imagens de Diego, de Sheila,
do Laocoonte, da Pietá e de Guernica é na intenção de potencializar um imaginário afetivo,

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na expectativa de dar vida a sentimentos mortos e reavivar a força de ações que se


entrecruzam com a comoção provocada pelo trágico. Se tomarmos Antígona, a filha de
Édipo, como ponto de reflexão para olharmos para o que fazemos da morte, podemos ouvir
de Creont, tio dela e governante de Tebas, a recusa em ser confrontado por uma mulher.
Antígona desejava enterrar o irmão para obedecer a lei dos deuses. Creonte desejava fazer
cumprir a lei do Estado. O conflito é desmedido. Como é desmedida a ação desencadeada por
Ulisses, que conjura contra Filoctetes, o guerreiro abandonado em uma ilha, sozinho e ferido.
Filoctetes é o guardião das armas de Hércules, sem as quais não se venceria a Guerra de
Troia: é traído, então, por Ulisses.
4
Dilma Rousseff , presidenta retirada do poder pelo Impeachment de 2016,
fotografada ainda durante o mandato, com o olhar voltado para baixo e, a seu lado, a cadeira
vazia foi representada no discurso midiático como Antígona, a mulher passional que coloca o
Estado em risco. Proximidade negada por ela, que se via tal qual Filoctetes. A senhora que
espera também poderia ser uma Hécuba, aquela que aguarda o corpo do neto, do objeto de
amor e afeição, para a despedida final, o rito fúnebre.

7. Atar os fios ou costurar a mortalha

Albin Lesky, em seu estudo sobre a tragédia grega, apresenta a definição de


Aristóteles: “Tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão”,
(ARISTÓTELES APUD LESKY, 1996, p. 28). Ao ser imitada durante a encenação por
atores, a tragédia é capaz de provocar terror e compaixão ao público, ajudando-o a purgar
essas emoções, trazendo-lhes alívio (LESKY, 1996, p. 28-33). A tragédia também é
conhecimento dialético e, portanto, não pode ser contida em fórmulas universais. Está em sua
raiz o conflito e o entrelaçamento entre oposições como relações de antagonismo que
contemplem situações em que o forte só apareça caso se mostre fraco e que dependa da
fragilidade para que sua força seja percebida (SZONDI, 2004).
Pois é próprio do desencadear da ação trágica a impossibilidade humana de
reconhecer nossos próprios limites diante de determinadas situações. Aristóteles limitou a

4
A própria Dilma Rousseff afirmou se identificar, em entrevista ao Valor Econômico, com o personagem de
Filoctetes. Disponível em: http://www.valor.com.br/cultura/4902470/segunda-torre-de-dilma.
Acesso: 25 fev 2018.

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tragédia ao destino dos heróis. Isso aponta a relação entre a tragédia grega e os mitos mas
também demonstra a mudança repentina de alguém que dispunha de boa posição social e caiu
no infortúnio, na miséria. É preciso, portanto, considerar, além da dignidade de quem cai,
qual a “altura da queda”, pois, segundo Albin Lesky: “O que temos de sentir como trágico
deve significar a queda de um mundo ilusório de segurança e felicidade para a desgraça
ineludível. (LESKY, 1996, p. 33).
Acompanha sempre o sentimento do trágico a sensação de esfacelamento, de
dissolução, de perda irreparável. A mãe que perde o filho parece ser uma jornada capaz de
mobilizar o sentimento de piedade a ponto de fazer brotar um elo, de sugerir a partilha da
experiência de uma dissolução de mundo, de uma narrativa estruturada. Comunica a dor ou
pelo menos a torna reconhecível. A imagem da Dilma, sentada, cabisbaixa, em meio à crise
política durante seu mandato condensa também a imagem da guerrilheira durante uma pausa
no curso da ação de dissolução de um enredo. A imagem também a torna comum, retira-lhe
do altar de líder, quem sabe até antecipe a queda e anuncie a perda.
A proposta de trazer o Laocoonte como imagem para reflexão junto com as figuras de
mulheres ladeadas às estátuas da Pietá e da Medusa e do quadro Guernica parte da intenção
de aproximar a imagem do guerreiro à imagem da mãe, na intenção de produzir fricção, atrito
e ampliar a esfera representativa da maternidade para inseria-la entre aqueles que agem em
meio a um conflito – tirar a mãe da passividade de quem espera que ajam, trazer a mãe para a
ação. A mãe, personagem que sofre a ação trágica, nas várias acepções que a palavrar sofrer
pode receber. A mãe, única via de existência possível para ser mulher, adulta e fértil, em tudo
aquilo que a ideia de fertilidade traz como força e possibilidade. Se encontramos no gesto dos
abraços abertos do Laocoonte proximidade com o gesto de quem recebe no colo o corpo do
filho tal qual a Pietá, podemos buscar, fazendo a jornada de retorno, a guerreira na imagem
da Piedade. Abro as imagens para que conversem entre si, para que deixam de ser vistas
como itens estáticos e se insiram em uma perspectiva que conceda à imagem a dialética.
Fazendo alusão às questões metodológicas colocadas por Walter Benjamin, que afirma
que “as ideias se relacionam com as coisas como as constelações com as estrelas”,
(BENJAMIN, 1984, p. 56) proponho que, ao olharmos para uma constelação de imagens,
façamos como quando observamos no céu uma constelação de estrelas: percebemos os
detalhes mas o esforço da percepção está no desenho feito pelo conjunto, desenho este fruto
da nossa capacidade de imaginar, de conhecer e de partilhar um repertório coletivo já

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amalgamado socialmente, já alçado ao vasto mundo de imagens que compõem o imaginário


da humanidade. E, ao admirarmos as constelações, não percamos da nossa visada os detalhes
que por ora podem lhe fazer companhia nem o céu que lhes dá abrigo. O grupo da imagens
articuladas entre si que apresento são representações de ações trágicas em curso – a luz que
enxergo de estrelas que se moveram e que talvez nem existam mais mas são reencenadas,
reencontradas a cada noite.
Nas noites que caem sobre os dias de 2018, mulheres se levantam e se insurgem,
tomam para si a ação no mundo como Penélopes que abandonam a costura da mortalha e
partem em jornada, traçando novas tramas de suas próprias histórias. Mulheres se tornam
iniciadoras da ação tal qual a concepção kantiana do guerreiro, do criador de si mesmo.
Mulheres se reinventam e tecem seus próprios destinos assumindo os riscos dos excessos e
das desmedidas que são próprias de quem se dispõe ao conflito.

Referências

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BUCK-MORSS, Susan. Estética e Anestésica – uma reconsideração sobre de A obra de Arte
de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter et al. Benjamin e a obra de arte – técnica,
imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. HarperCollins Brasil, 2017.
CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do pensável as encruzilhadas do labirinto. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2004. Vol. VI.
DESPENTES, Virginie. Teoría king kong. Literatura Random House, 2018.
EAGLETON, Terry. A ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
ALBIN, Lesky. A tragédia grega. 1996. São Paulo: Perspectiva, 1996.
________________. Doce violência – a ideia do trágico. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
NUSSBAUM, Martha C. A fragilidade da bondade. Fortuna e ética na tragédia e na
filosofia grega. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
REZENDE, Maria Valéria. Quarenta dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. (e-
book)
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Ebook.z
SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,. 2004.
WILLIAMS, Raymond. Modern tragedy. Stanford University Press, 1966 (e-book)

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