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Sandra Pinto
Dentre os títulos a serem escolhidos estava A partida, filme que assisti em 2009 e que me
impactou por tratar, com extrema delicadeza e profundidade, o difícil tema da morte. Senti-me
imediatamente atraída a aceitar o desafio, e rever o filme à luz dos ensinamentos junguianos, mesmo
sabendo que a película foi objeto de inúmeras e excelentes resenhas. Nesse sentido tranquilizou-me as
palavras do mestre:
“Um conceito ou uma imagem são simbólicos quando significam mais que aquilo que designam ou
expressam. Eles possuem um aspecto 'inconsciente' abrangente, que jamais pode ser definido exatamente
ou que jamais se esgota numa explicação” (Jung)- Kast p.60
A medida em que revi a película na tela do meu computador, novas visões surgiram em minha
tela mental. Vislumbrei na narrativa de Daigo Kobayashi a jornada do herói em busca do Lapis
Philosophorum.
Início da jornada
Em Yamagata Daigo procura emprego e atende a um curioso anúncio da agência NK para uma
atividade que "auxilia nas jornadas". Pensando tratar-se de um trabalho ligado ao turismo segue animado
para a agência. O dono, Sr Sasaki, oferece-lhe uma excelente remuneração para o trabalho de agente
responsável pelo Noukan, ritual japonês de acondicionamento de mortos.
Daigo aceita a oferta e superando as dificuldades e preconceitos de um trabalho visto como pouco
honroso segue seu aprendizado.
O primeiro dia foi desesperador pois foram chamados a atender um cadáver em avançado estado
de putrefação.
De volta à casa e ainda guardando segredo de seu trabalho à esposa Mika, Daigo tem uma
reflexão.
"Em que exatamente estou sendo testado?
Será uma punição por não ter assistido minha mãe morrer?"
“O que vai acontecer comigo?
Pensar nessas coisas lhe dá vontade de tocar violoncelo e ele pega seu pequeno instrumento de
infância. Dentro da capa encontra uma misteriosa pedra envolta num jornal. Uma pedra disforme e escura.
Tocando a música preferida de seu pai revisita seu passado, e a dor do abandono sofrido aos seis
anos de idade, quando o pai saiu de casa para nunca mais voltar. Não consegue lembrar-se da fisionomia
do pai.
O protagonista uma vez mais observa a dualidade vida e morte na luta dos salmões nadando
contra a correnteza e questiona:
“Porque lutar tanto se vão morrer de qualquer jeito?”
Nesse momento de introspecção seu chefe surge e Daigo lhe pergunta se foi coincidência ele
passar por ali exatamente naquele momento, e o Sr Sasaki diz que foi o destino e acrescenta:
"Seu trabalho é um presente divino"
Mika descobre o verdadeiro trabalho do marido e sai de casa. A medida em que os ritos vão
sucedendo Daigo sente-se cada vez mais pressionado a abandonar o trabalho.
No rito funerário de uma criança ocorre uma grande briga. O pai da criança acusa um rapaz pela
morte da filha e afirma que nem que ele fizesse o trabalho de Daigo para o resto da vida pagaria sua
dívida para com ele.
Sentindo-se desanimado com mais a vivência de mais esse preconceito, Daigo vai à agência para
demitir-se, mas o Sr Sasaki o convida para subir em seu pequeno cômodo e conta-lhe um pouco de sua
história. Sua esposa falecida há nove anos foi sua primeira cliente e desde então ele segue fazendo esse
trabalho.
O baiacu ou fugu é um peixe venenoso e seu preparo deve ser feito com o máximo cuidado.
Durante muitos anos foi proibido no Japão. Comer a deliciosa iguaria do fugu significa arriscar-se a
perder a vida.
“Como deus Psychocopompós, Hermes conduz as almas para o mundo dos mortos, assim como traz de
volta para a vida mitos herois e deuses que estavam presos no Hades.
Como deus Philántropos, Hermes se define como amigo dos homens, o deus que acompanha e guia os
mortas em caminhos desconhecidos e em perigosos limiares.” Eyler e Fernandes p. 14.
Em seu primeiro ritual como nokanshi - agente funerário - Daigo veste uma bela moça. Cuidadosamente
retira o quimono ritualístico para não expor o corpo. Cobre-o e inicia a limpeza com água e um pano
limpo simbolizando a eliminação do cansaço do mundo, da dor, do desejo e a preparação para um novo
nascimento.
Durante a limpeza descobre que o corpo é de um rapaz. A mãe pede que o filho seja enterrado
como mulher.
Durante o Noukan Daigo atua como um psychopompós, um guia entre os vivos e os mortos,
ampliando a percepção dos familiares com seus gestos solenes e cheio de afeto.
Ao final do rito o pai do rapaz morto agradece e diz que durante muito tempo não conseguiu falar
com o filho quando este vestia-se de mulher, mas ao ver o cuidado com que Daigo preparou o corpo
conseguiu enxergar novamente o filho Tomeo, mesmo este parecendo uma moça.
“Eu sou tão agradecido a vocês”, diz o pai ajoelhado num choro convulsivo.
A história prossegue e nosso heroi está cada vez mais confiante e solene com seu trabalho.
Com seu violoncelo de criança senta-se ao ar livre em verdes e belos campos onde toca a música
preferida de seu pai. O ar vibrando nas cordas do instrumento representando a sublimatio. Compreensão.
Através da música Daigo amplia suas percepções e cura sua criança ferida.
“Se o plexo solar e o plexo cardíaco são centros psíquicos rudimentares, poder-se-á admitir que no curso
da primeira infância traços mnêmicos de forte carga afetiva aí se acumulem. Será difícil, através do
instrumento verbal, mobilizar esses afetos tão profundamente depositados e trazê-los à consciência.
O mais simples e o mais eficaz será seguir o declive que a espécie humana sulcou durante milênios para
ilveira, p 17
exprimi-los: a dança, as representações mímicas, a pintura, a escultura, a música.”. S
Mika retorna e lhe conta que está grávida. Pede que o marido abandone o trabalho. O telefone
toca e Daigo é informado da morte da senhora da casa de banhos.
Daigo faz o ritual da senhora assistido pelos familiares da morta e por sua esposa. A cada gesto
do belo ritual, Mika surpreende-se. Daigo pede a cada participante que umedeça o rosto da morta e
ofereça seu último adeus. Solutio. Purificação. A esposa finalmente compreende a grandeza do trabalho
do marido.
O filho da senhora morta assiste atônito a todo ritual. Ele próprio havia se esquivado do amigo
quando soube a natureza do seu trabalho “indigno”.
Pedras e ancestralidade
Passeando com Mika na beira de um riacho Daigo pega uma pequena pedra entrega-lhe e diz que
é uma carta de pedra.
“ Muito antigamente antes dos humanos inventarem a escrita, eles buscavam uma pedra que
representasse seus sentimentos e a dava a outra pessoa. Quem recebia a pedra percebia o que o outro
sentia pelo peso e textura. Por exemplo a textura lisa significava uma índole pacífica, e a rugosa uma
preocupação com os outros.”
Daigo prossegue, diz que foi o pai quem lhe contou a história e combinou que lhe daria
uma pedra todos os anos, mas a única pedra que lhe entregou é a que guarda junto ao violoncelo.
Apoteose do heroi
“Tal como o próprio Buda, esse ser divino é um padrão da condição divina que o heroi humano atinge
quando ultrapassa os últimos terrores da ignorância”. Campbell p.145
Daigo é informado da morte do pai. Reluta em receber o corpo. Acompanhado por Mika
resolve ir até a cidade onde o pai vivia.
Ao chegar Daigo é informado da vida simples do pai e aguarda a chegada dos agentes
funerários. Retira o lenço que cobre o rosto do falecido e não o reconhece.
Ao pegar aos mãos do pai para colocá-las em posição de prece encontra certa dificuldade,
pois uma das mãos está fechada. Ao abrí-la uma pequena pedra cai. Entrega-a a Mika e continua com os
ritos.
Com gaze assenta a musculatura do rosto e o barbeia. Inicia a limpeza e purificação com
água.
Nosso heroi psycopompos é agora seu próprio guia. O sal da terra verte-se em suas lágrimas
conferindo-lhe a clara visão. Solutio. Volta ao tempo de infância e finalmente reconhece seu pai.
“Pai. Ele é meu pai” - su ssurra entre lágrimas.
Mika abre a mão para lhe entregar a pedra que estivera com o pai, mas Daigo envolve sua mão e
simbolicamente coloca sobre o ventre da mãe, passando o amor ancestral ao seu futuro filho.
A pedra negra e disforme que seu pai lhe dera na infância é substituída por uma pequena pedra
branca, lisa como a Lua. Afeto cuidadoso. A obra se completa.
Referências
CAMPBELL, J. (2013). O heroi de mil faces.
EYLER, F S & FERNANDES, I. (2012). A vida, a morte e as paixões no mundo antigo - novas
perspectivas.
http://cemiteriocantareira.com.br/blog/2016/02/17/funeral-e-cerimonia-de-cremacao-no-japao/
http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2013/01/cozinheiros-precisam-de-licenca-para-preparar-peixe-ven
enoso-no-japao.html