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O QUE SE PODE APRENDER COM A ASCENSÃO

NEOPETENCOSTAL?

O texto vai de encontro à visão que propõe significar o cenário político atual sob o epíteto
“neofascismo”. Acredito que essa alcunha fixa observador e objeto analisado em vez de
nos permitir fazer perguntas interessantes sobre o porquê de nos encontrarmos nesse atual
estado. Não pretendendo analisar toda a massa predicada por “neofascista”, é certo que
há, ali, fascistas, há também gente revoltada, homem ressentido etc. o foco será numa
parcela considerável (possível ser até a maioria) proveniente das igrejas evangélicas, o
neopetencostalismo. Num primeiro momento encontramos a análise do
neopetencostalismo como um movimento de gente iludida, uma lavagem cerebral, uma
sandice, contudo, se observado mais de perto, o objeto se revela mais complexo, ou pior,
racional.

RELIGIÃO: O ELOGIO DE MARX E O MATERIALISMO DE HEGEL


A comparação entre ópio e religião é anterior a Marx, a coisa já havia sido feita por uma
porção de gente – Novalis, Heine, Kant, Sade etc. –; para esses autores, a religião operava
como um anestésico. A ideia da metáfora é a de que, numa existência terrena atroz, a
religião anestesia o sujeito, o faz suportar a vida.

Ao contrário dessa galera, Marx, um sujeito de bases dialéticas, oferece como que um
twist ao efeito torporífero da religião. Dirá: “A religião é suspiro da criatura oprimida, a
alma, a disposição [Gemüt] de um mundo sem coração, assim como o espírito [a mente]
dos estados de coisas sem mente, insanos [geistloser]”: a religião não só anestesia ou faz
alucinar, ela é, também, o suspiro, a alma e a mente de um mundo sufocante, embrutecido
e insano. Só depois de dizer do direito e do avesso, no fim da linha, o Marx vai dizer, é o
ópio do povo.

A coisa não para por aí. As coisas que existem no mundo não podem simplesmente não
existir, nenhuma formação antropológica existe ali como apêndice social ou é descartável.
De modo que podemos dizer que, se a religião existe, é porque ela responde a
necessidades estruturais de uma cultura – daí Marx continuar: “A supressão da religião
como felicidade ilusória do povo, é a exigência da felicidade real [do povo]”. O que a
religião realiza ilusoriamente? Além da felicidade, já mencionada por Marx, a religião
realiza ilusoriamente a justiça – posto que, se não há justiça entre os homens, há a justiça
divina –, a religião realiza ilusoriamente a igualdade – se no mundo reina a desigualdade
e os privilégios, todos somos iguais perante Deus. Daí, ele continua: “A exigência de que
abandonem as ilusões acerca de uma condição, é a exigência de que abandonem uma
condição que necessita de ilusões”; ou seja, a menos que se resolva no plano da realidade
aquilo que a religião resolve no plano imaginário, seguiremos construindo soluções
imaginárias para problemas reais.

Assim, Marx faz ver o outro lado da comparação entre religião e ópio, a religião não só
eteriza o povo, mas é, igualmente, uma espécie de avesso do ópio, é razão, alma,
coração...

Hegel nota um aspecto mais materialista presente nas religiões que Marx. A obra ou a
materialização do espírito: o templo, o monumento, a estátua... cada povo constrói uma
obra que é a representação do Espírito desse povo, Espírito aqui entendido como uma
forma que compreende a sociedade, o psiquismo ou, se quiser, a cultura daquele povo. O
que eram as religiões egípcia e grega? Eram representações de um estatuto da própria
sociedade egípcia e grega. No Egito, segundo Hegel, temos uma sociedade onde muito se
trabalha e pouco se produz, o tempo de fruição da vida é abreviado pelas dificuldades
impostas pela aridez do ambiente, logo, esse povo constrói monumentos que só são
habitados depois da morte, porque a vida é a vida de penúria. Por outro lado, os deuses
gregos, representações ideias ou idealizadas do homem, habitam os templos, o filósofo
conclui daí que é uma vida dedicada ao culto do homem, ao artista que tem tempo livre
para produzir linhas curvas e colunas onduladas, em oposição à linha reta egípcia, que é
simplesmente útil. Na primeira sociedade se trabalha, é o artesão, na segunda, se goza, é
o artista.

Enquanto essas religiões afirmam o caráter da sociedade, a peculiaridade do cristianismo


reside em seu aspecto de transcender a sociedade na qual encontra-se inserido, a ideia de
paraíso, de justiça divina, amor, igualdade, não replica o estado de coisas, antes, promove
uma adulteração desse estado, uma imaginação melhorada do mundo. Reprodução essa
que nega o mundo: a) virtualmente, posto que o paraíso não se encontra no sublunar; e b)
materialmente, isto é, os cristãos, a partir dos ensinamentos de Jesus, devem realizar a
comunidade cristã, sendo esta a obra de cristo, pois é ela que garante a entrada no paraíso
celeste. Assim, o “outro mundo” imaginado pelo cristianismo não pode, somente, estar
num outro lugar, deve ser empreendido terrenamente. – Um paralelo entre o judaísmo e
o cristianismo, o primeiro não é militante, pois se trata de um povo escolhido pela linha
do sangue, o segundo é militante, espalhar a palavra de salvação e efetuar a conversão é
trabalho de todo cristão.

Sumarizando, a religião, o cristianismo, no caso, é razão (coração e alma), e, também,


obra.

BREVE ESBOÇO DA ARQUITETURA CATÓLICA E NEOPETENCOSTAL


Qualquer um que vá a uma cidade pequena pode observar o que há no centro daquele
lugar, uma igreja católica. Era em torno dessa construção que uma cidade se edificava.
De modo que não é a igreja que se encontra localizada no centro, o centro é que está, ou
estava, localizado na igreja. As quermesses, as festas temáticas, procissões, missa de
domingo, eram o que vitalizava, escorava ou lastreava o fato daquelas pessoas coabitarem
um espaço físico. Assim, a igreja não era mais uma dentre as construções, era um
monumento narcísico da cidade. Era uma construção especial a qual os moradores
esmeravam com dinheiro, fossem possuidores, ou com trabalho, fossem trabalhadores.
Os santos escolhidos como padroeiros contavam a história de identificações do lugar (por
que se apelava a esses emissários de Deus e não a outros?). Podemos dizer que tinha um
pedacinho de cada um naquela coisa e cada um se constituía com um pedacinho daquilo.

As cidades cresceram, os trabalhadores foram empurrados para as periferias, as


comunidades tendiam ao desfazimento, o rebanho de Cristo se separava. A solução para
esse momento foram as ações pastorais. Grupos de voluntários que se propunham a não
deixar o rebanho desassistido, levando o evangelho e outros tipos de ajuda. Essas ações
promovem grupos de oração ou missas em lugares, por vezes, longes de uma igreja – fora
da paróquia – e também ajudam com comida, roupa de frio, assistência de saúde,
informação – vide o programa de redução da mortalidade infantil realizado pela Dra.
Zilda Arns no município de Florestópolis. Contudo, supomos, o ritmo de crescimento das
cidades foi superior à velocidade em que as ações pastorais conseguiriam alcançar.

Daí surge o contexto propício para igrejas alternativas à católica. De início, as igrejas
neopetencostais se constituem alugando cômodos comerciais das periferias, por vezes
cômodos muito pequenos, bares, restaurantes ou lojas de material de construção que
fecharam. De início, sabemos bem que as frequenta, é gente sem esperança e gente sem
a roupa da missa de domingo, mas, por algum motivo, não têm maiores problemas em
entrar naquele lugar humilde em trajes maltrapilhos. Parece haver um outro clima naquele
ambiente. Enquanto as igrejas católicas localizadas nos centros apresentam uma
tendência à elitização, o povo dos cantos da cidade não se sente constrangido em entrar
nos templos improvisados. De alguma maneira, o povo desse templo parece ser surrado
como o povo que entra nesse templo, a igreja mesmo é austera, como são austeros seus
habitantes. E essas igrejas são descentralizadas, como o são seus habitantes. A miríade de
igrejas evangélicas pode chegar onde a igreja católica não chega.

Me refiro aqui, naturalmente, ao momento de fundação desses templos, alguns dos quais
pude acompanhar.

VENHA A NÓS O VOSSO REINO


Voltando a Marx e seu elogio à religião. As pessoas convertidas a essa nova corrente
cristã encontram um ânimo, uma mensagem de esperança e uma racionalidade que são
contrários ou negam o mundo desalentador no qual vivem. Os habitantes de áreas
vulneráveis necessitam da fé, pra andar na rua, pra ir pra um trabalho de merda, pra ficar
em baixo da chuva de tiro...

Por outro lado, o que esse povo ganha quando entra para a igreja, além de esperança,
ânimo e compaixão? Me lembro da entrevista do Silas Malafaia dada à Marília Gabriela;
ela diz que ele pega dinheiro de pessoas pobres, que estão na penúria, o Silas responde
algo como: “uma pessoa, você pode enganá-la por três meses, por seis meses, mas se ela
não tem retorno ela te abandona, não se pode enganar alguém por anos”. Pois bem, qual
o retorno obtido por aquele que se converte?

O cara quando compra o terno, deixa de ser visado pela polícia – em certa medida, até os
traficantes respeitam quem virou irmão –, quando ele entra para a igreja, ele deixa de
beber – comprometer cem ou duzentos reais da renda mensal no bar é muito dinheiro e
cerveja é muito caro –, os irmãos se ajudam mutuamente – se o irmão abre uma carrocinha
de cachorro-quente, os irmãos vão todos lá comer para fortalecer o cara –, se, por acaso,
abre um negócio, contrata os irmãos para lá trabalharem, se um irmão perde o emprego,
ele vai encontrar ajuda com os irmãos da igreja (uma amiga disse certa vez que as igrejas
evangélicas são como uma maçonaria de pobre); há algum tempo, o sujeito evangélico
era sinônimo de bom trabalhador, alguém honesto que não roubaria seu patrão... Logo, é
racional, é uma maximização de vantagens entrar para a igreja.
A menos que se enxergue o lado racional e materialista da religião, qualquer crítica
empreendida, erra o alvo; e foi precisamente por essas razões, aliás perfeitamente
empíricas e racionais, que o neopentecostalismo cresceu no Brasil (as projeções são de
que os evangélicos, sob as atuais circunstâncias, passarão os católicos até 2040). E
cresceu a ponto de o movimento mudar de escala, isto é, passaram à esfera do Estado.

É nesse ponto que nos encontramos, nós os chamamos fascistas por não disporem do
jargão, do repertório esperado no pacto republicano – do qual, aliás, já não faziam parte.
Não possuem os valores da gente esclarecida, até porque não precisaram de
esclarecimento para se levantar pelos próprios cabelos.

Em vez de argumentar sobre o porquê de estar errado, devíamos aprender porque o


movimento neopetencostal está certo.

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