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A ESCRITA E OS EXCLUÍDOS

Alfredo Bosi*

Em memória de Domingos Barbé

Há pelo menos duas maneiras de considerar a relação entre a escrita e os


excluídos. A primeira, em geral praticada pelos historiadores de literatura, consiste
em ver o excluído social ou o marginalizado como objeto da escrita. Objeto
compreende temas, personagens, situações narrativas.
A tarefa do estudioso seria, nesse caso, pesquisar os modos de figuração
das camadas mais pobres na poesia, na prosa narrativa, no teatro, no repertório de
uma literatura ou ao longo de um ciclo histórico-cultural. Creio que os resultados
da sondagem seriam díspares.
Algumas amostras. O pobre tipificado pelo romance naturalista (por
exemplo, O Cortiço de Aluísio Azevedo) não é o pobre que sai de um conto
regionalista tocado de profunda simpatia pela cultura popular, como acontece no
conto gaúcho de Simões Lopes Neto ou no conto caipira de Valdomiro Silveira.
Tampouco certas personagens cheias de pathos e poesia que encontramos nos
Caboclos de Valdomiro se reduzem ao Jeca estigmatizado na pena do também
paulista Monteiro Lobato. Euclides da Cunha, por sua vez, nos introduz no
universo da escassez sertaneja lançando-lhe um olhar ambivalente, ao mesmo
tempo distanciado (de repórter e cientista) e compassivo (de homem humano),
determinista e indignado: o massacre de Canudos lhe aparece como uma
fatalidade étnica e histórica, mas é, afinal, denunciado como um crime contra uma
humanidade marginal; o que faz a grandeza e o paradoxo de Os Sertões.
O marginal de Lima Barreto não é o mesmo dos naturalistas, sempre à
beira do patológico: é o intelectual mulato, humilhado e ofendido; e do seu
ressentimento impotente nasce a potência da sua crítica social e política.
Passando à ficção dos anos 30 e 40: o pobre construído pelo Graciliano de
Vidas Secas tão só com as pedras da necessidade não se repetirá, tal e qual, nos
viventes do sertão mineiro plasmados pela fantasia poética de Guimarães Rosa. A
oposição entre os dois olhares é às vezes tão drástica que quase se poderia
exprimir, como tentei fazê-lo certa vez, recorrendo às figuras extremas do inferno
e do céu.
Chegando mais perto do presente e examinando a ficção brasileira dos
anos Setenta: apesar das afinidades ideológicas, Antônio Callado e Darcy Ribeiro
diferem entre si ao projetar em forma de romance o seu conhecimento do índio em
Quarup e em Maíra. Ainda mais recentemente, o regionalismo do sergipano
Francisco Dantas, em Coivara da Memória e em Os Desvalidos, trabalha certos
registros de estilo bastante diferentes dos modos de expressão que pontuaram os
romances do engenho e do cangaço de José Lins do Rego, embora ambos sejam
escavadores da memória popular e da sua condição de oralidade.
Se assim acontece quando há contigüidade de espaços sociais, imagine-se
quão sensível será a diferença que estrema, por exemplo, a experiência da vida
rural estilizada na prosa goiana de Bernardo Élis e as agruras do operário na
cidade grande transpostas pelas narrativas de Roniwalter Jatobá. E sem sair do
contexto da metrópole, o saudoso João Antônio soube trazer ao primeiro plano da
escrita uma fusão original de pobreza e boêmia que provavelmente não se
ajustaria à representação do dia-a-dia de um peão de fábrica.
A crítica sociológica, estimulada pelo assunto da exclusão e da
marginalidade, deve, portanto, acautelar-se quando enfrenta escritos ficcionais. A
mente ideologizante abstrai e reduz as diferenças na medida em que procede à
força de esquemas e tipos. Mas as vozes narrativas, quando vivas e densas,
reclamam a atenção para o que é complexo, logo singular. De resto, quem garante
que o chamado homem simples seja tão simples assim?

II
Há uma segunda maneira de lidar com a relação entre o excluído e a
escrita. Em vez de tomar a figura do homem sem letras como objeto, procura-se
entender o pólo oposto: o excluído enquanto sujeito do processo simbólico.
Este olhar pode parecer novo, como é o interesse pela cultura dos vencidos
e das minorias (interesse que vem dos anos 70 e preparou a noção de
“politicamente correto”); mas na verdade tem raízes antigas, raízes românticas, e
data do início do século XIX.
A Europa pós-napoleônica foi a Europa das nações e do despertar dos
povos. Então, infatigáveis eruditos-patriotas, primeiro alemães, depois provindos
de todos os países do continente, desentranharam as riquezas da memória e da
linguagem arcaico-popular. O termo folklore, literalmente “sabedoria popular”, foi
cunhado nos meados do século. A paixão pelo rústico e pelo ingênuo (“Todo gênio
é ingênuo”, dizia Schiller) empolgou não só intelectuais do Velho Mundo como
também os estudiosos das novas nações americanas, que se puseram à cata de
cantos e contos, provérbios e adivinhas, jogos e danças, ritos e mitos, enfim todas
as manifestações simbólicas capazes de traduzir uma identidade étnica ou
nacional: um caráter que fosse diverso da fôrma culta veiculada pelos estratos
oficiais, “altos”, do poder colonizador.
Romantismo, indianismo, nativismo e paixão pela cultura popular
vingaram no mesmo clima de emancipação do Antigo Regime. O processo
atravessou duas ou três gerações e, embora tenha sido mais agudo no período das
independências, persistiu até o século seguinte, resistindo bravamente às ondas
cosmopolitas do pensamento evolucionista, aqui ajustadas e filtradas de tal modo
que se misturaram generosamente com o folklorismo romântico...
No Brasil, trabalhos de levantamento e transcrição dos materiais de base
foram empreendidos por José de Alencar, Juvenal Galeno, Celso de Magalhães,
Couto de Magalhães, Sílvio Romero, João Ribeiro e, no século XX, por Amadeu
Amaral, Mário de Andrade, Renato Almeida, Lindolfo Gomes, Augusto Meyer,
Câmara Cascudo, Gustavo Barroso, Cavalcanti Proença, Oswaldo Elias Xidieh,
Theo Brandão, Ariano Suassuna e tantos outros. Colheram todos a relação entre os
agentes da cultura não-letrada, quase sempre anônimos, e a palavra oral, pois o
imaginário popular se exprimiu, durante séculos, abaixo do limiar da escrita.
No conjunto, o que aconteceu foi uma verdadeira operação de passagem,
pela qual o letrado brasileiro foi incorporando ao repertório do leitor culto os
signos e as imagens de um estilo de vida interiorano, rústico e pobre. Valorizando
estética e moralmente as tradições populares, carreava-se água para o moinho das
identidades regionais e, no limite, da identidade nacional.
Quanto ao uso ideológico dessa valorização do popular, dependia e
depende, em cada caso, da visada conservadora ou progressista do pesquisador e
dos seus leitores; e é por isso que a “questão da cultura popular”, em termos
ideológicos de regresso ou resistência, é ainda hoje uma questão aberta.
De todo modo, formalmente, e como sistema de comunicação, a oralidade
sempre esteve no cerne de toda expressão arcaico-regional. As presumidas
exceções constituem o que prefiro chamar cultura de fronteira. É a situação, bem
conhecida, dos narradores de cordel, que transpõem para a letra de fôrma as
histórias que foram outrora apenas recitadas ou cantaroladas por uma fieira de
repentistas anônimos. Só com o tempo, a partir dos fins do século XIX, é que
esses cantadores foram assumindo a condição de autores individualizados1.
Outro exemplo notável, e já plenamente urbano, de cultura de fronteira é o
de uma favelada, apenas alfabetizada, que registrou o seu cotidiano em um diário
pungente, publicado em 1960 com o título de Quarto de Despejo. Falo de
Carolina de Jesus, cuja obra foi traduzida para as principais línguas cultas do
mundo, reproduziu-se amplamente e atingiu um milhão de exemplares. O
romancista Alberto Moravia, um dos maiores deste século, prefaciou a edição
italiana. Sem dúvida, um tento difícil de repetir-se.

1 Na vasta literatura sobre o cordel eu chamaria a atenção para um livro precioso tanto pela
documentação apresentada quanto pela clareza das análises e a segurança da interpretação: Cordel
- Do encantamento às histórias de luta, de Maria José Londres. S. Paulo, Duas Cidades, 1983.
Proponho-me desenvolver apenas uma vertente desta segunda maneira de
ver a relação entre o excluído e a escrita.
Parto da hipótese de que é possível identificar, na dinâmica dos valores
vividos em contextos de pobreza, certas motivações que levem à atividade social
da leitura e da escrita. Trata-se de descobrir o leitor-escritor potencial. O que me
move é pensar o excluído como agente virtual da escrita, quer literária, quer não-
literária. Como o excluído entra no circuito de uma cultura cuja forma
privilegiada é a letra de fôrma?
Rastreando os passos desse itinerário (isto é, de um desses itinerários),
consigo ver melhor a zona de intersecção que se estende entre a situação-de-classe
e a escrita. Nesse horizonte, atos de ler e de escrever podem converter-se em
exercícios de educação para a cidadania.

III

Um encontro em Osasco

Permitam-me narrar uma experiência que vivi ao longo dos anos Setenta
com um grupo de operários de Osasco, periferia de São Paulo. Espero que esta
narrativa responda, em parte, à pergunta feita acima: como o excluído entra no
circuito de uma cultura cuja forma privilegiada é a letra de fôrma?
A referência ao momento histórico é indispensável. O período que vai de
1968 a 1974 assinala a fase negra da ditadura militar que se instalara com o golpe
de 31 de março de 1964. A partir desta data e, mais precisamente, com os Atos
Institucionais editados em 68 e 69 e durante todo o governo Médici, cessaram ou
caíram na clandestinidade as atividades de esquerda, incluindo partidos,
sindicatos, grupos culturais e religiosos de oposição. Foram extintos os partidos
que atuavam antes do golpe. Foi extinta a Ação Católica, que abrangia, entre
outros movimentos, a Juventude Operária, a Juventude Estudantil e a Juventude
Universitária. A censura se estabeleceu sobre jornais e revistas que propagassem
idéias socialistas ou de algum modo reformistas. A universidade perdeu alguns
dos seus maiores mestres, que foram aposentados compulsoriamente e tiveram de
exilar-se.
Lembro esses fatos não só porque a memória nacional é notoriamente
fraca, mas para mostrar quão penosa era a condição dos intelectuais que haviam
exercido algum tipo de militância antes de 64, e que se viram de repente
impedidos de discutir abertamente as suas idéias e propostas.
De minha parte, tendo participado, como tantos outros de minha geração,
na frente única pelas reformas de base, em 1963 e 64, junto com socialistas,
trabalhistas, comunistas e cristãos de esquerda que colaboravam no jornal Brasil
Urgente, fundado por Fr. Carlos Josaphat e fechado em abril de 64, enfrentei uma
situação de abafamento e silêncio, que só se aliviou nos meados dos anos 70 com
os prenúncios da abertura política.
Ora, chegar “nel mezzo del cammin di nostra vita” sem ter uma saída para
a vida pública depois de anos de engajamento e verdes esperanças, era uma
angústia difícil de suportar. Mas, por volta de 72, quando estavam no auge a
tortura e o desaparecimento de presos políticos, ouvi falar de uma comunidade de
base que se reunia na casa paroquial de Vila Yolanda, em Osasco, com a
assistência de padres operários franceses. Era uma luzinha no meio do breu da
inação forçada e do desalento. Lá fui eu sem saber muito bem o que poderia fazer
de útil, mas desejoso de exercer algum tipo de ação fora dos muros da
universidade. Não por acaso, eu acabara de defender uma tese de livre-docência
sobre mito e poesia em Leopardi; o ensaio terminava com a constatação de que no
poeta pessimista por excelência se entrevia um gesto de resistência simbolizado
na flor de giesta, a “ginestra” que vinga nas encostas do Vesúvio cobertas de lavas
e cinzas. De todo modo, eu sentia que fazer teses era bom e necessário, mas
certamente não bastava para um professor que pretendesse ser também cidadão.
Lá fui eu, e quem encontrei? Alguns adolescentes, cerca de quinze ou
vinte, que se reuniam em torno de dois militantes: um francês, Dominique Barbé
(que em 76 fundaria o Movimento de Não-Violência), e um nordestino, Manuel
Retumba. Quando os conheci, tinham acabado de publicar uma obra pioneira,
Retrato de uma Comunidade de Base.
Naquela casota de periferia tomei consciência de que os excluídos do
“milagre econômico” (negros e mestiços de subúrbio, filhos de migrantes com
baixa escolaridade, condenados a marcar passo na sua condição de pobreza)
ansiavam, em primeiro lugar, pelo acesso ao conhecimento. E mediante o
conhecimento, ter vez e voz em um mundo que se fecha para os que não
conseguiram transpor o limiar da escrita.
Apresentei-me um tanto encabulado como professor de Literatura
Brasileira, disciplina que passara a lecionar em 70. Conversei com cada um deles,
sondei os seus interesses, compreendi que todos desejavam ler e escrever bem,
enfim chegar àquela “cultura” de que meus alunos da USP por hipótese estavam
desfrutando, talvez inconscientes do privilégio que seguir um curso superior
representa em um país como o nosso. Mas aqueles jovens de subúrbio..., não
havia quem os orientasse, não havia quem fizesse com eles os primeiros desbastes
e com eles partilhasse as primeiras opções, o que tão só a escola desinteressada, e
não o mercado interesseiro, pode e deve fazer.
Por onde começar? Combinei que leríamos juntos Vidas Secas de
Graciliano Ramos. Foi uma revelação. A história de Fabiano, Sinha Vitória, os
dois meninos e Baleia era a história de seus pais e avós. Os excluídos tinham
mudado de chão e cumprido o destino que o fecho da novela lhes anunciara:
chegaram a uma cidade do Sul. Aqueles jovens apartados do mundo da cultura
letrada afinal reconheciam-se nas personagens que estavam servindo de tema para
essa mesma cultura nas faculdades de Letras! E eu, que viera de uma delas, topava
de cara não mais com personagens de papel e tinta, mas com pessoas de carne e
osso. O que era exercício escolar, trabalho de aproveitamento ou matéria de tese -
logo, mera exterioridade e objectualidade - se fazia, na alma daqueles mocinhos e
mocinhas sem letras, pura expressão, forma viva da experiência subjetiva e
interpessoal, e principalmente estímulo para falar de assuntos vitais como a
família, a pobreza, a violência, a migração, o trabalho como castigo, o destino de
um povo.
Aqueles jovens que no primeiro encontro guardaram um silêncio
constrangido em pouco tempo soltaram as suas vozes, tímidas sim, mas vibrantes
de promessas. Tendo vivido tantos anos apenas no limiar da escrita, aprenderam
em algumas horas que nem toda escrita se parece com aquela conta-de-menos
manipulada pelo patrão de Fabiano. Graciliano mostra como era aflitivo para o
sertanejo ter de enfrentar a caderneta do patrão no final de cada contrato. Fabiano
tinha receio da coisa escrita, e a obra inteira de Graciliano é um processo
paradoxal aos poderes da letra de fôrma. Mas os nossos jovens de Osasco
descobriram, lendo Graciliano, a força da letra viva pela qual sopra o vento da
crítica e se transmite um sentimento de perplexidade em face de um mundo
iníquo, opaco, difícil de compreender.
Mas o nosso encontro estava apenas começando. Durante alguns anos
conheci, ao lado das obrigações universitárias, uma outra convivência, paralela,
que me permitiu acompanhar o amadurecimento daquele grupo de trabalhadores
independentes. À medida que as discussões se aprofundavam, fui percebendo que
eles se batiam pela construção de um sindicato digno, engajado, e sentiam a
necessidade de uma formação que desse à sua militância um alicerce histórico,
político e (por que não?) filosófico.
A ascensão das oposições sindicais criava um clima favorável à retomada
de um projeto que já vinha resistindo, de forma intermitente e subterrânea, desde
o golpe de 64. Mas em vez de uma teoria que oferecesse, já pronta, a idéia de uma
vanguarda ao mesmo tempo intelectual e revolucionária - doutrina comum ao
leninismo e ao foquismo guerrilheiro de 68 a 74 - a tônica passou a ser dada no
ideal de uma construção comunitária do pensamento e da prática.
Um generoso espontaneísmo substituía o hábito enrijecido das palavras de
ordem. Nesse novo contexto, a filosofia de Gramsci foi lida entre nós por uma
ótica peculiar. Combinavam-se fecundamente alguns temas clássicos do
marxismo, como a crítica da economia capitalista, e certo voluntarismo
pedagógico, reproduzindo-se tensões na verdade presentes nos cadernos de
cárcere do pensador italiano.
Desenvolveram-se então, como resposta à crise das ortodoxias, hábitos
democrático-radicais que as palavras “basismo” e “assembleísmo”, usadas
pejorativamente pelos adversários, não deixam de resumir cabalmente. No fundo,
era sempre a vontade de inverter as hierarquias (o que se supunha estar
acontecendo com a revolução cultural chinesa) e incluir no côro político os
tradicionalmente emudecidos2.
A palavra-chave nesses anos foi “participação”. Outro termo, diretamente
ligado ao método Paulo Freire, era “desalienação”. Ao mesmo tempo, nos meios
cristãos progressistas, vicejava a Teologia da Libertação, criada por um místico
peruano sensível à pobreza do seu povo, Gustavo Gutiérrez. A nova corrente
pregava a opção preferencial pelos pobres tentando assim compensar a milenar
opção da Igreja pelos ricos. Os seus seguidores batiam fortemente na tecla do
retorno das instituições às bases, aos desvalidos, revertendo a tendência burguesa
de ignorá-los ou, pior, culpá-los pela sua exclusão e marginalidade.
Lembro que fui convidado a participar de uma série de reuniões com um
grupo de trabalhadores de Osasco que, como disse, sentiam a necessidade de
calçar a sua militância sindical com um fundamento cultural. Foi o que tentamos
fazer ao longo de numerosas sessões que ocupavam nossas manhãs de domingo
em um salãozinho no fundo da matriz de Osasco.
Pergunto agora: esses trabalhadores sindicalizados que militavam em uma
cidade industrial colada a São Paulo poderiam ser chamados de excluídos? Sim e

2 Sobre as atividades sindicais em todo esse período, ver a coletânea A Esquerda e o Movimento
Operário (1964-1984), organizada e apresentada por Celso Frederico (Belo Horizonte, Oficina de
Livros, 1990). Para conhecer as idéias e a prática das esquerdas radicais nos anos 60 e 70,
recomendo a leitura de O Combate nas Trevas de Jacob Gorender (Ática, 1987).
não. Sim, porque existe, de fato, uma situação-de-classe e um destino de classe,
ainda que alguns cientistas políticos pós-modernos finjam ignorar ambas as
realidades considerando ultrapassadas as expressões que as nomeiam. Estamos em
1997, faz quase vinte anos que se deram aquelas reuniões, faz quase vinte anos
que vi aqueles rostos sérios discutirem o futuro do trabalhador brasileiro, a
construção de um sindicato e, depois, de um partido que pudesse remir o operário
da sua situação de dependência e minoridade social. Hoje muitos já estão à beira
da aposentadoria ou “na caixa”, e é lícito perguntar qual é o seu grau de
“inclusão” na sociedade brasileira contemporânea. A rigor, nem o seu lugar social,
nem o seu status de cidadãos, nem a sua participação na cultura se alteraram
significativamente. Logo, a marca da classe persiste até mesmo naquela faixa do
operariado que, segundo critérios estritamente salariais, poderia ser rotulada como
um segmento privilegiado em relação aos sem-terra ou ao lumpen urbano.
Mas, vistas as coisas por outro ângulo, o que aconteceu? A militância em
entidades sindicais, em comissões de fábrica, nas CIPAs, em partidos, em igrejas,
em centros de direitos humanos, em associações de bairro, em movimentos contra
a carestia etc. acabou levando aquele trabalhador a esferas de cidadania e de
convívio político que, sem dúvida, acordaram a sua consciência e a sua vontade
de interferir na vida pública. O que resultou em inclusão, no mais nobre sentido da
palavra; não a inclusão passiva no mercado, onde cada um entra na qualidade de
um consumidor a mais, mas o ingresso voluntário no âmbito, em geral restrito,
dos que debatem, projetam, decidem e agem.
Aquelas conversas, em que íamos e vínhamos do particular ao geral, da
história vivida à história pensada, eram momentos de entrada dos operários em
uma linguagem da qual os privara o nosso indigente sistema escolar: a linguagem
do pensamento casado com a palavra. O ambiente era informal, mas o tom das
falas assumia às vezes a gravidade dos que não falam por falar, mas para
compreender. Compreender o que está, na realidade, acontecendo (operação
sempre custosa e demorada); e compreender para mudar, pois o que nos
aproximava ali era o sentimento de que o possível era tão real quanto aquela
mesquinha realidade que o conformismo da maioria decretara como a única
possível.
Desses encontros de domingo saíram alguns textos coletivos. São páginas
que tratam nada menos do que da história das civilizações, da formação da mais-
valia no capitalismo industrial e, em certo momento, do conceito mesmo de
dialética.
Nesse roteiro não tinha sido a leitura, isto é, a cultura letrada já
formalizada, que precedera ao debate. Foram o diálogo e o debate que motivaram
as leituras e estimularam o processo da escrita.
Gramsci estava definitivamente com a razão quando dizia que “todo
homem é um intelectual”, na medida em que todos os homens buscam alcançar o
sentido da própria existência e se interrogam sobre os porquês das desigualdades
que saltam à vista, e só não existem para aquele triste cego, o pior de todos, que
não quer ver.
Um operário de baixa escolarização não terá condições de absorver textos
técnicos sobre a composição química da matéria ou sobre o metabolismo celular,
em geral eriçados de fórmulas e de termos eruditos. Pelo menos, não em um
primeiro momento. Mas poderá apreender intuitivamente e, depois,
discursivamente, noções básicas de movimento, de relações estruturais, de sistema
e de processo que, por sua vez, poderão conduzi-lo a uma visão dinâmica da
História.
Esse aprendizado se constrói quando um grupo se dispõe a refletir sobre a
experiência que cada um tem dos fenômenos da natureza, do próprio corpo, do
trabalho, da comunicação com o outro.
Depois de várias sessões em que traçamos ambiciosamente uma visão
articulada da História mediante a sucessão dos grandes sistemas de produção (o
nosso marxismo possível...), desde as coletas da Idade de Pedra até o capitalismo
das multinacionais, emergiu clara a hipótese de um dinamismo dos processos
sociais que procede à força de continuidades e rupturas, avanços e retrocessos,
combinações às vezes surpreendentes de sim e de não. Pode-se dizer, um tanto
temerariamente, que descobrimos que “dialética” não é uma palavra vã...
Sentíamos juntos a verdade que madrugou no pensamento poético de
Heráclito (tudo se move) e aproximou natureza e espírito na síntese ideal de
Hegel. Era o sentido mesmo do movimento, cósmico e histórico, que buscava sua
formulação tacteante nas palavras de cada um daqueles operários, alguns
verdadeiramente inspirados e dotados de uma eloqüência natural:
“JOÃO [retomando uma afirmação do companheiro Celso] - Você disse
“movimento na história”. Por acaso, existe algum movimento que não se faça
dentro da História?
CELSO - Claro que sim, João. Milhões e milhões de anos antes de o
homem aparecer sobre a Terra já existia o movimento. As águas se moviam dos
rios para os mares, dos mares para as praias, da terra para o céu, em forma de
vapor, e do céu para a terra em forma de chuva. O ar se movia na carreira do
vento. As sementes germinavam, as plantas brotavam, as árvores cresciam, as
flores se abriam, os frutos maduravam, os animais nasciam e se multiplicavam. A
vida, que existe há milhões de anos, sempre esteve em movimento.
LUÍS - E a própria Terra gira em redor do Sol.
ANÍSIO - E a Lua em redor da Terra.
CELSO - E o Sol também se move com todas as estrelas!
JUVENAL - E os átomos se movem dentro dos corpos.
SALVATINA - Nossa! Quanto movimento! Minha mãe me contou que eu
me mexia dentro dela muito antes de nascer.
ANÍSIO - E eu também. É só pensar em nosso corpo, onde o sangue nunca
pára de correr. Do coração para as artérias. Das veias para o coração.
SALVATINA - E o coração nunca pára de bater.
JUVENAL - E o pulmão nunca pára de respirar.
ERIVAN - Nem a cabeça pára de pensar.
JUVENAL - Tudo se move. E parece que sempre foi assim.
CELSO - Sempre? Mas então não existiu um começo de tudo?
ANÍSIO - Como se pode saber? Foi há tanto tempo...
ERIVAN - Os cientistas devem saber.
A partir desse momento, a conversa poderia tomar um rumo estritamente
científico, no sentido moderno do termo. Esses operários estavam perfeitamente
motivados para ouvir as teorias dos físicos, do Big Bang e outras hipóteses sobre a
formação do universo. Em um ambiente de inspiração humanista cristã como era a
Pastoral Operária, núcleo da Oposição Sindical, levantava-se indefectivelmente o
problema do sentido do cosmos, da vida e do homem.
Mas o que importa é que a experiência do acesso à cultura mediante o
diálogo estava feita. Cada um, nos limites das suas inquietações intelectuais, iria
buscar onde pudesse alimento às suas perguntas. O mesmo estava sucedendo, em
maior grau, em relação ao sentido da história contemporânea, ao papel do
trabalhador, do sindicato e do partido na denúncia da exploração capitalista e na
organização da classe em face das novas tecnologias que já começavam a pesar
sobre a estrutura do emprego.
A necessidade, mãe da ciência, no dizer de Leonardo, estava gestando o
conhecimento. A situação econômica daqueles jovens os excluíra precocemente da
educação formal, tirando-os da escola; mas o convívio na construção de um
projeto comum lhes abria o mundo sem fronteiras da leitura e da escrita.

Alfredo Bosi* - escritor e crítico literário brasileiro. É editor da Revista de


Estudos Avançados da USP

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