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Entretanto, foi a partir do século XVI, que viu-se desenvolver com mais intensidade
uma série de tratados que não mais simplesmente apresentavam conselhos ao
príncipe, mas sim, apresentavam-se como arte de governar.
Logo, no cruzamento destes dois movimentos que se coloca o problema de “como ser
governado, por quem, até que ponto, com que fim, por que métodos?” Essa
problemática é a característica dominante dessa questão de governo no séc. XVI.
Foucault optou por opor a literatura emergente sobre a arte de governar a um único
texto que segundo ele “do séc. XVI ao séc. XVIII” constitui um ponto de repulsão,
implícito ou explícito, em relação ao qual – por oposição ou recusa – se situa a
literatura governo: O Príncipe, de Maquiavel”.
Antes de ser recusado, porém, o livro de Maquiavel foi reverenciado pelos seus
contemporâneos e imediatos sucessores e retomado também e ainda no início do
século XIX, quando desaparece a literatura da arte de governar e se coloca a questão
“como e em que condições se pode manter a soberania de um soberano sobre um
Estado”?
Nesse intervalo de tempo, porém, houve uma considerável produção de literatura anti-
Maquiavel, umas claramente explícitas, outras pouco explícitas; livros de origem
religiosa. Foucault escolheu trabalhar o viés positivo dessa literatura, seus objetivos,
conceitos e estratégias. Porém o aspecto negativo do pensamento de Maquiavel é o
que mais salta aos olhos. Essa literatura da arte de governar vai contra um Príncipe
caracterizado em Maquiavel como exterior a seu principado, transcendente, que
recebe seus súditos como herança, aquisição ou conquista. Os laços que une o
Príncipe a seus súditos são de violência, de traição; são artificiais, não existe uma
ligação fundamental, jurídica, natural entre as partes. A relação é tênue e pode ser
abalada por fatores externos e internos.
Na análise feita sobre o texto de La Mothe Le Vayer, Foucault ressalta a tipologia das
diferentes formas de governo que segundo aquele autor são três: “O governo de si
mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família; que
diz respeito á economia; a ciência de bem governar o Estado, que diz respeito á
política”.
Governar um Estado será, portanto, aplicar a economia no nível de todo o Estado, isto
é, em relação aos habitantes, riquezas, à conduta de todos e de cada um uma forma
de vigilância, de controle, no mesmo sentido da do pai de família sobre a casa e seus
bens.
Entretanto, para Foucault essa arte de governar não pôde adquirir sua amplitude antes
do séc. XVIII, por questões históricas, leia-se crises do séc. XVII como Guerra dos
Trinta Anos, as revoltas rurais e urbanas e a crise financeira que endividou os
monarcas ocidentais. A arte de governar só podia se consolidar em período de
expansão e não de retração. Também por questões institucionais e mentais, uma vez
que enquanto o exercício do poder foi pensado como exercício da soberania, a arte de
governar não podia se desenvolver de maneira autônoma. Neste aspecto, o
Mercantilismo foi o primeiro limiar de racionalidade nessa arte de governar, foi a
primeira racionalização do exercício do poder como prática do governo, mas que viu-
se bloqueado e detido em decorrência do poder do soberano: como fazer de modo
que não tanto o país seja rico, mas que o soberano possa dispor de riquezas, possa
ter tesouros, possa constituir exércitos com os quais poderá fazer sua política? O
objetivo do Mercantilismo é o poder do soberano e os instrumentos são as leis, os
decretos, os regulamentos, ou seja, as armas tradicionais da soberania. Assim a arte
de governar no séc. XVII ficou andando sem sair do lugar, atrelada em duas coisas: de
um lado um quadro mais amplo que era a soberania como problema e instituição. E
por outro lado, um quadro estreito que era o da família. Como fazer para que quem
governe possa governar o Estado tão bem quanto se pode governar uma família? E,
com isso mesmo, se estava bloqueado por essa idéia da economia que, ainda nessa
época, se referia unicamente à gestão de um pequeno conjunto constituído pela
família e pela gente da casa. A gente da casa e o pai de família, de um lado, o Estado
e o soberano, do outro: a arte de governar não podia encontrar sua dimensão própria.
A população vai aparecer como meta final do governo, melhorando a sorte das
populações, as riquezas, sua duração de vida, sua saúde. O instrumento que o
governo vai utilizar para obter esses fins será essencialmente a população, agindo por
meio de campanhas, ou através de técnicas que vão permitir estimular a taxa de
natalidade, ou dirigindo nesta ou naquela região, para determinada atividade, os fluxos
da população. É a população sujeito de necessidades, de aspirações, mas também
objeto nas mãos do governo.
A população vai ser o objeto que o governo deverá levar em conta nas suas
observações, em seu saber, para chegar a governar de maneira racional. É o que os
textos chamavam no séc. XVI de “paciência do soberano”.
A constituição de um saber de governo não pode ser pensada sem ter conhecimento
de todos os processos que giram em torno da população, no sentido lato, o que se
chama “economia”. E a economia política pôde se constituir a partir do momento em
que, entre os diferentes elementos da riqueza, apareceu um novo sujeito, que era a
população. Em suma, a passagem de uma arte de governar a uma ciência política, a
passagem de um regime dominado pelas estruturas de soberania a um regime
dominado pelas técnicas do governo se faz no séc. XVIII em torno da população e, por
conseguinte, em torno do nascimento da economia política. Entretanto, isso não quer
dizer que a soberania deixou de ter um papel a partir do momento em que a arte de
governar começou a se tornar ciência política. Ao contrário, para Foucault o problema
da soberania se colocou com mais acuidade.
Quanto á disciplina, ela também não é eliminada. Nunca a disciplina foi mais
importante e mais valorizada do que a partir do momento em que se procurava
administrar a população.
Certo é que as coisas não devem ser compreendidas como a substituição de uma
sociedade de soberania por uma sociedade de disciplina, e mais tarde de uma
sociedade de disciplina por uma sociedade de governo. Temos um triângulo –
soberania, disciplina e gestão governamental, gestão esta cujo alvo principal é a
população e cujos mecanismos são os dispositivos de segurança.