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RESUMO

AULA DE 1º DE FEVEREIRO DE 1978

A aula do dia 1ª de fevereiro de 1978 destaca, através da análise de alguns dos


mecanismos de segurança, a questão referente aos problemas de governo.

Desde a Idade Média, até mesmo na Antiguidade greco – romana, já se falava em


tratados que dispunham conselhos ao príncipe, seja quanto à maneira de se conduzir
e exercer o poder, seja de se fazer aceitar e respeitar por seus súditos, conselhos para
amar a Deus ou introduzir na cidade dos homens a lei de Deus.

Entretanto, foi a partir do século XVI, que viu-se desenvolver com mais intensidade
uma série de tratados que não mais simplesmente apresentavam conselhos ao
príncipe, mas sim, apresentavam-se como arte de governar.

A problemática do governo surge no século XVI em razão de muitas e diferentes


questões e sob diversos ângulos. A volta do estoicismo, o problema do governo das
almas e das condutas, problema do governo dos filhos, e por último, o governo dos
Estados pelos príncipes. Como governar, como ser governado, como governar os
outros, por quem devemos aceitar ser governados, como ser o melhor governador
possível?

Enfim, todos estes problemas são característicos do século XVI em decorrência de


dois movimentos: o processo de transformação das estruturas feudais em grandes
Estados territoriais, administrativos, coloniais; e o outro movimento, referente à
dissidência e dispersão religiosa: como se quer ser espiritualmente dirigido na terra,
rumo à salvação pessoal.

Logo, no cruzamento destes dois movimentos que se coloca o problema de “como ser
governado, por quem, até que ponto, com que fim, por que métodos?” Essa
problemática é a característica dominante dessa questão de governo no séc. XVI.

Foucault optou por opor a literatura emergente sobre a arte de governar a um único
texto que segundo ele “do séc. XVI ao séc. XVIII” constitui um ponto de repulsão,
implícito ou explícito, em relação ao qual – por oposição ou recusa – se situa a
literatura governo: O Príncipe, de Maquiavel”.

Antes de ser recusado, porém, o livro de Maquiavel foi reverenciado pelos seus
contemporâneos e imediatos sucessores e retomado também e ainda no início do
século XIX, quando desaparece a literatura da arte de governar e se coloca a questão
“como e em que condições se pode manter a soberania de um soberano sobre um
Estado”?

Nesse intervalo de tempo, porém, houve uma considerável produção de literatura anti-
Maquiavel, umas claramente explícitas, outras pouco explícitas; livros de origem
religiosa. Foucault escolheu trabalhar o viés positivo dessa literatura, seus objetivos,
conceitos e estratégias. Porém o aspecto negativo do pensamento de Maquiavel é o
que mais salta aos olhos. Essa literatura da arte de governar vai contra um Príncipe
caracterizado em Maquiavel como exterior a seu principado, transcendente, que
recebe seus súditos como herança, aquisição ou conquista. Os laços que une o
Príncipe a seus súditos são de violência, de traição; são artificiais, não existe uma
ligação fundamental, jurídica, natural entre as partes. A relação é tênue e pode ser
abalada por fatores externos e internos.

Nesse contexto, o objetivo de poder é o de reforçar e manter os laços do príncipe com


o que ele possui, herdou ou adquiriu (território e súditos). É esse esquema proposto
por Maquiavel que a literatura da arte de governar quer substituir.

Foucault analisa um texto de Maquiavel, contendo diversas maneiras de governar, de


Guillaume de La Perrière, para o que inicia morfologicamente do que La Perrière
entende por governante e enfatiza que também se diz governar uma casa, um
estabelecimento, uma ordem religiosa. Nessa literatura da arte de governar, o príncipe
não é o único em seu principado, como é o príncipe “maquiavélico”. A arte de governar
mostra que há várias formas de governar, há várias pessoas que exercem essa
função, são práticas coletivas de exercício de poder, onde o Estado é apenas mais
uma modalidade. Maquiavel propõe uma pluralidade de formas de governo: governar
uma casa, governar crianças, uma província, um convento, etc...

Na análise feita sobre o texto de La Mothe Le Vayer, Foucault ressalta a tipologia das
diferentes formas de governo que segundo aquele autor são três: “O governo de si
mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família; que
diz respeito á economia; a ciência de bem governar o Estado, que diz respeito á
política”.

Governar um Estado será, portanto, aplicar a economia no nível de todo o Estado, isto
é, em relação aos habitantes, riquezas, à conduta de todos e de cada um uma forma
de vigilância, de controle, no mesmo sentido da do pai de família sobre a casa e seus
bens.

No mesmo texto de La Perrière de 1555, encontramos o seguinte conceito: “Governo


é a correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para conduzi-las a
um fim adequado”. Destaque-se que “coisas” são as relações sociais quer entre
homens (riquezas, objetos, instituições, territórios, costumes, culturas, acidentes,
desgraças, fome...).

Foucault faz um paralelo do conceito estabelecido em “O Príncipe” de Maquiavel: se o


objeto do poder são duas coisas: o território e as pessoas que nele habitam, a
soberania no séc. XVI, não se exerce sobre as coisas, mas sobre um território e sobre
os seus súditos. Logo, o território é o elemento fundamental tanto do principado de
Maquiavel como da soberania jurídica do soberano.

Voltando ao texto de La Perriére, Foucault analisa os elementos que constituem o


objeto do exercício de poder, apontando quais são os encargos do governo. Há uma
diferença de abordagem entre Guillaume de La Perrière, que percebe o governo como
o que conduz coisas a um fim conveniente, enquanto Maquiavel entende que governar
significa exercer poder sobre um território e seus habitantes. O essencial, portanto, é
esse complexo de homens e de coisas, sendo isso o elemento principal, e o território e
a propriedade, de certo modo, apenas uma variável.

Foucault destaca outra observação do texto de Perriére, acerca das virtudes de um


governador, já que para este, alguém que sabe governar bem, deve possuir paciência,
sabedoria e diligência. Paciência, pois o verdadeiro governador não deve necessitar
de instrumentos para matar para exercer seu governo. Ele deve ter paciência.
Sabedoria no sentido de conhecimento das coisas, dos objetivos que podem ser
alcançados. Diligência no aspecto que só deve governar na medida em que considere
e aja como se estivesse a serviço dos que são governados. Neste sentido, percebe-se
quanto essa caracterização do governo é diferente da caracterização do príncipe por
Maquiavel. De qualquer forma, nessa época, a noção de governo ainda era muito
grosseira, superficial.

Entretanto, para Foucault essa arte de governar não pôde adquirir sua amplitude antes
do séc. XVIII, por questões históricas, leia-se crises do séc. XVII como Guerra dos
Trinta Anos, as revoltas rurais e urbanas e a crise financeira que endividou os
monarcas ocidentais. A arte de governar só podia se consolidar em período de
expansão e não de retração. Também por questões institucionais e mentais, uma vez
que enquanto o exercício do poder foi pensado como exercício da soberania, a arte de
governar não podia se desenvolver de maneira autônoma. Neste aspecto, o
Mercantilismo foi o primeiro limiar de racionalidade nessa arte de governar, foi a
primeira racionalização do exercício do poder como prática do governo, mas que viu-
se bloqueado e detido em decorrência do poder do soberano: como fazer de modo
que não tanto o país seja rico, mas que o soberano possa dispor de riquezas, possa
ter tesouros, possa constituir exércitos com os quais poderá fazer sua política? O
objetivo do Mercantilismo é o poder do soberano e os instrumentos são as leis, os
decretos, os regulamentos, ou seja, as armas tradicionais da soberania. Assim a arte
de governar no séc. XVII ficou andando sem sair do lugar, atrelada em duas coisas: de
um lado um quadro mais amplo que era a soberania como problema e instituição. E
por outro lado, um quadro estreito que era o da família. Como fazer para que quem
governe possa governar o Estado tão bem quanto se pode governar uma família? E,
com isso mesmo, se estava bloqueado por essa idéia da economia que, ainda nessa
época, se referia unicamente à gestão de um pequeno conjunto constituído pela
família e pela gente da casa. A gente da casa e o pai de família, de um lado, o Estado
e o soberano, do outro: a arte de governar não podia encontrar sua dimensão própria.

O desbloqueio da arte de governar se deu por processos gerais: a expansão


demográfica do séc. XVIII, ligada por sua vez á abundância monetária, ligada por sua
vez ao aumento de produção agrícola. De uma forma mais precisa, pode-se dizer que
o desbloqueio da arte de governar esteve ligada à emergência do problema da
população e à ciência do governo, o recentramento da economia em outra coisa além
da família e, enfim, o problema da população estão ligados uns aos outros. Foi através
do desenvolvimento da ciência do governo que foi possível recortar o problema
especifico da população e que graças à percepção dos problemas específicos da
população e graças ao isolamento desse nível de realidade que se chama economia,
que o problema do governo pode ser pensado fora do marco jurídico da soberania. E
essa estatística, que no Mercantilismo nunca tinha podido funcionar, senão no interior,
vai se tornar o fator técnico principal, ou um dos fatores técnicos principais desse
desbloqueio.

Nesse raciocínio, Foucault indaga: como o problema da população vai possibilitar o


desbloqueio da arte de governar? A perspectiva da população e a realidade dos
fenômenos próprios da população vão possibilitar o afastamento do modelo de família
e recentrar essa noção de economia em outra coisa. A estatística mostra pouco a
pouco que a população tem suas regularidades próprias: seu número de mortos, seu
número de doentes. A estatística mostra que a população comporta efeitos próprios de
sua agregação e que esses fenômenos são irredutíveis aos da família: serão as
grandes epidemias, as expansões epidêmicas, a espiral do trabalho e riqueza. A
estatística ao possibilitar a quantificação dos fenômenos próprios da população, faz
aparecer sua especificidade irredutível ao pequeno âmbito da família. Assim, com
exceção de certo número de temas residuais, como morais e religiosos, a família como
modelo do governo vai desaparecer.

Em compensação, o que vai aparecer é a família como elemento no interior da


população e como apoio fundamental para governar esta. Portanto, ela não é mais um
modelo, e sim, um segmento privilegiado porque, quando se quiser obter alguma coisa
da população quanto à sua demografia, ao número de filhos, quanto ao consumo, é
pela família que se terá efetivamente de passar. De modelo a família vai se tornar
instrumento, instrumento privilegiado para o governo das populações e não modelo
quimérico para o bom governo. E é no séc.XVIII que a família aparece nessa
instrumentalidade em relação à população: serão as campanhas sobre a mortalidade,
as campanhas relativas ao casamento, vacinações, etc. Logo, o que faz que a
população possibilite este desbloqueio da arte de governar é que ela elimina o modelo
de família.

A população vai aparecer como meta final do governo, melhorando a sorte das
populações, as riquezas, sua duração de vida, sua saúde. O instrumento que o
governo vai utilizar para obter esses fins será essencialmente a população, agindo por
meio de campanhas, ou através de técnicas que vão permitir estimular a taxa de
natalidade, ou dirigindo nesta ou naquela região, para determinada atividade, os fluxos
da população. É a população sujeito de necessidades, de aspirações, mas também
objeto nas mãos do governo.

A população vai ser o objeto que o governo deverá levar em conta nas suas
observações, em seu saber, para chegar a governar de maneira racional. É o que os
textos chamavam no séc. XVI de “paciência do soberano”.

A constituição de um saber de governo não pode ser pensada sem ter conhecimento
de todos os processos que giram em torno da população, no sentido lato, o que se
chama “economia”. E a economia política pôde se constituir a partir do momento em
que, entre os diferentes elementos da riqueza, apareceu um novo sujeito, que era a
população. Em suma, a passagem de uma arte de governar a uma ciência política, a
passagem de um regime dominado pelas estruturas de soberania a um regime
dominado pelas técnicas do governo se faz no séc. XVIII em torno da população e, por
conseguinte, em torno do nascimento da economia política. Entretanto, isso não quer
dizer que a soberania deixou de ter um papel a partir do momento em que a arte de
governar começou a se tornar ciência política. Ao contrário, para Foucault o problema
da soberania se colocou com mais acuidade.

Sobre o tema, Michel Foucault seleciona dois textos de Rousseau: o primeiro o


verbete “Economia Política” da Enciclopédia. Ele diz: “a palavra “economia” designa
essencialmente a gestão pelo pai de família dos bens da família”, mas esse modelo
não dever mais ser aceito. Para ele, em nossos dias, a economia política não é mais a
economia familiar e registra que “economia política” tem um sentido novo, que não
deve ser mais entendido como ao velho modelo da família. O segundo texto
selecionado é o “Contrato Social” que diz em síntese que a soberania não é de forma
alguma eliminada pelo surgimento de uma nova arte de governar, uma arte de
governar que agora transpôs o limiar de uma ciência política. O problema da soberania
não é eliminado; ao contrário, é tornado mais agudo.

Quanto á disciplina, ela também não é eliminada. Nunca a disciplina foi mais
importante e mais valorizada do que a partir do momento em que se procurava
administrar a população.

Certo é que as coisas não devem ser compreendidas como a substituição de uma
sociedade de soberania por uma sociedade de disciplina, e mais tarde de uma
sociedade de disciplina por uma sociedade de governo. Temos um triângulo –
soberania, disciplina e gestão governamental, gestão esta cujo alvo principal é a
população e cujos mecanismos são os dispositivos de segurança.

Para Foucault o Estado deve ser entendido a partir de seu modelo de


governamentalidade e não de estatização, pois, “o Estado não é mais que uma
realidade compositória e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menor
do que se acredita”.

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