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Maria Lucia Karam

Parecer

1. A questão posta

Honram-me os ilustres advogados SALO DE CARVALHO, MARCELO


MAYORA, ALEXANDRE WUNDERLICH, ANTÔNIO TOVO LOUREIRO, FELIPE
FAORO BERTONI, NATÁLIA PIFFERO DOS SANTOS, RAFFAELLA
PALLAMOLLA e o acadêmico de direito EDUARDO GUTIERREZ, com consulta
relacionada ao direito fundamental do indivíduo à liberdade de informação e expressão,
manifestado em crítica a decisão judicial.

Os documentos, que instruem a consulta noticiam que o caso concreto trata de


ação penal condenatória proposta perante o juízo da 7ª Vara Criminal do Foro Central
de Porto Alegre/RS, contra PEDRO GIL WEYNE e LEONARDO GÜNTHER, estando
os réus submetidos ao cumprimento de condições impostas em decisão determinante de
suspensão do processo, nos termos do art. 89 da Lei 9099/95.

Fundam-se as pretensões punitivas deduzidas contra os réus em alegada prática,


em concurso de agentes, de crimes de difamação e injúria, qualificados pelas
circunstâncias das apontadas ofensas se dirigirem contra funcionário público em razão
de suas funções, veiculando-se por meio facilitador da divulgação (art. 139 e art. 140,
c/c art. 29 e art. 141, incisos II e III, na forma do art. 69, todos do Código Penal),
visualizadas as apontadas ofensas em textos publicados, em 15 e 22 de maio de 2010,
nos sítios www.principioativo.org e www.caar.ufrgs.br, em que comentada decisão
proferida pelo Juiz de Direito Ícaro Carvalho de Bem Osório, que indeferira pedido de
salvo conduto ajuizado pelo coletivo “Princípio Ativo” em favor da chamada “Marcha
da Maconha”.
Conforme narrativa contida na inicial da ação penal condenatória, os alegados
crimes de difamação e injúria foram visualizados, respectivamente, nos seguintes textos:

“Vejam só as idéias do Juiz conservador de 1º Grau que nos negou o livre direito
de manifestação. Será mal-informado? (sic) Acionista em alguma empresa de
armamentos, de segurança privada ou de leitos psiquiátricos? Ou seria mais um
mero leitor de Zero-Hora (sic), com um adesivo ‘crack-nem pensar’ no carro?
Decidam aí o naipe.”

“Aí estão os fatos: este juiz de posse de sua caneta, decide que a) Se um policial
achar que um cartaz verde é ‘apologia’, isto justificaria descer porrada n@s
manifestantes; que b) o nome ‘Marcha da Maconha’ faz apologia às drogas; e c)
As drogas sumiriam automaticamente do planeta caso não fossem ‘toleradas’.
Perguntamos: será que o juiz sentiu vontade de consumir psicoativos ao ler o
nome Marcha da Maconha? Temos certeza que não, mas nós até toleramos sua
pretensão aparente, de acabar com o problema contemporâneo das drogas
alimentando-se o tráfico de armas.”

2. O direito fundamental à liberdade de informação e expressão

O direito fundamental à liberdade de informação e expressão, consagrado em


normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições
democráticas, aí naturalmente incluída a Constituição Federal brasileira1, é inseparável
da própria ideia de democracia, surgindo como consequência lógica da liberdade de
pensamento, de consciência e de crença. O indivíduo que há de ser livre para pensar da
forma que quiser e acreditar no que bem entender há de ter igual liberdade de

1
Declaração Universal dos Direitos Humanos – Artigo 19. Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos – Artigo 19. Constituição Federal brasileira – Artigo 5º, incisos IV, IX e XIV.
exteriorizar seus pensamentos e crenças, manifestar suas ideias, suas opiniões, enfim, se
expressar sobre o que quer que seja2.

Qual outro lado da mesma moeda, o indivíduo há de ter também livre acesso às
informações transmitidas e divulgadas através dos pensamentos, ideias, crenças e
opiniões dos demais indivíduos, inclusive para poder avaliar e melhor elaborar seus
próprios pensamentos, ideias, crenças e opiniões.

Pressupondo a autorização dos indivíduos para o exercício do poder estatal, a


democracia implica o controle sobre os atos dos governantes. E a principal forma de
controle sobre quem exerce o poder estatal é a informação sobre seus atos. Assim já
advertia John Adams, em escrito datado de 1765, afirmando que para preservar a
liberdade é preciso que o povo tenha amplo conhecimento do caráter e dos atos dos
governantes, o que se constitui em um “direito inquestionável, inalienável, irrevogável,
divino”3.

O conhecimento e a avaliação dos atos estatais, naturalmente, implicam a


possibilidade de ampla crítica a esses atos. O exercício da capacidade de escolha – e,
portanto, o exercício da liberdade – na indicação e controle sobre os órgãos estatais
pressupõe o conhecimento e, consequentemente, a ampla informação sobre os atos
praticados no exercício do poder, mas pressupõe também a ampla possibilidade de todos
os indivíduos se expressarem sobre esses atos, aprovando-os ou desaprovando-os,
elogiando-os ou criticando-os, opinando, dizendo o que quer que pensem sobre eles.

A liberdade de informação e expressão implica a ampla possibilidade de


manifestação de qualquer opinião, de discussão de qualquer tema, de qualquer assunto.

2
Tive oportunidade de abordar o tema no volume 4 de meus Escritos sobre a Liberdade – Liberdade,
Intimidade, Informação e Expressão. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009, ao qual me reporto.
3
Estas as clássicas palavras de John Adams, no ensaio “A Dissertation on the Canon and Feudal Law” in
The Revolutionary Writings of John Adams (selected and with a Foreword by C. Bradley Thompson).
Indianapolis: Liberty Fund, 2000: “And liberty cannot be preserved without a general knowledge among
the people, who have a right, from the frame of their nature, to knowledge, as their great Creator, who
does nothing in vain, has given them understandings, and a desire to know; but besides this, they have a
right, an indisputable, unalienable, indefeasible, divine right to that most dreaded and envied kind of
knowledge, I mean, of the characters and conduct of their rulers. Rulers are no more than attorneys,
agents, and trustees, for the people; and if the cause, the interest and trust, is insidiously betrayed, or
wantonly trifled away, the people have a right to revoke the authority that they themselves have deputed,
and to constitute abler and better agents, attorneys, and trustees”.
Nenhum tema pode ser excluído do debate. Nenhum tema pode ser proibido. A garantia
do direito fundamental à liberdade de informação e expressão e a garantia da
democracia não conhecem temas tabus.

Por mais absurda que pareça uma opinião, por mais que a maioria repudie um
determinado pensamento ou uma determinada forma de ver qualquer aspecto da vida,
por mais chocante ou repugnante que seja uma ideia, o indivíduo tem o direito de
expressar tais opiniões, ideias, pensamentos, pontos de vista ou convicções. E mais do
que isso, todos têm o direito de conhecer e ser informados sobre tais opiniões, ideias,
pensamentos, pontos de vista ou convicções.

A democracia implica proteção às minorias. Em um Estado democrático,


opiniões, ideias, pensamentos, pontos de vista ou convicções majoritários hão de
sempre ser vistos como eventuais. Minorias ou pensamentos minoritários de hoje devem
ter asseguradas as condições de eventualmente se tornarem maiorias ou pensamentos
majoritários amanhã. As eleições periódicas servem também para inverter maiorias e
minorias.

O ataque à liberdade de informação e expressão com a proibição de divulgação


de determinadas manifestações do pensamento, através da censura, é uma marca dos
Estados totalitários de todos os tempos e de todos os matizes. Não é a toa que isso
acontece. A liberdade de informação e expressão é extremamente “perigosa” para quem
quer se manter no poder sem contestações. A proibição ou qualquer outro impedimento
à livre circulação de ideias é um dos principais ou talvez mesmo o principal instrumento
de dominação.

Naturalmente, o exercício do direito fundamental à liberdade de informação e


expressão pode desagradar terceiros. Críticas, por natureza, costumam lançar atributos
negativos ou apontar condutas desabonadoras. Críticas, por natureza, costumam trazer
aspectos depreciativos. Críticas eventualmente produzem ofensas, podendo afetar a
reputação ou a honra de terceiros. No conflito com o direito fundamental à liberdade de
informação e expressão, porém, a proteção à honra só pode limitá-lo em casos extremos,
quando o conteúdo ofensivo da manifestação do pensamento seja efetivamente
significativo, tendo dimensão tal que represente uma ameaça clara e presente de dano,
capaz de realmente resultar em uma desmoralização do atingido perante os demais
indivíduos, abalando objetivamente sua posição na sociedade, desmerecendo-o de tal
forma que, estigmatizando-o, impeça sua normal participação nas relações sociais,
assim concretamente ferindo sua dignidade.

3. A crítica a decisões judiciais e a função garantidora do Poder Judiciário

É da natureza de toda decisão judicial ser discutível e controvertida, pois é da


natureza do próprio Direito a controvérsia, a diversidade de interpretações. A própria
previsão, no direito processual, de recursos e ações autônomas de impugnação já está a
demonstrar essa natureza discutível e controvertida de toda decisão judicial. Por mais
fortes que sejam a convicção e a certeza com que juízes proferem decisões, é preciso
sempre admitir que outros indivíduos possam ter diferentes convicções e certezas,
cabendo ao próprio Poder Judiciário reconhecer-lhes e assegurar-lhes o direito de
confrontar, discordar, considerar erradas ou injustas, enfim, criticar aquelas decisões.

Decisões judiciais são atos emanados de órgão que exerce uma função do
Estado, uma função pública, devendo, como tal, receber a avaliação crítica dos
indivíduos. Como já assinalado, é da essência da democracia o controle dos indivíduos
sobre o poder do Estado, aí naturalmente incluído o Poder Judiciário. E, como também
assinalado, a crítica é uma das formas de exercício deste controle.

Magistrados intolerantes a críticas são um reflexo da postura do Poder Judiciário


de que falavam Francisca Sauquillo e Antonio Gomes Rufo, em antigo e interessante
trabalho, intitulado “El derecho y el deber de discrepar con las resoluciones judiciales”4.
Remarcavam os autores que ninguém se desespera quando são criticados o Poder
Legislativo e seus membros, ou mesmo se é ironizada sua capacidade legislativa.
Prosseguiam, lembrando que todos costumam concordar com a legitimidade ou mesmo

4
Francisca Sauquillo e Antonio Gomes Rufo. “El derecho y el deber de discrepar con las resoluciones
judiciales”, in Derecho Penal y Criminología, 30, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, 1986,
p.99-104).
a necessidade de se criticar o Poder Executivo, o que se vê a toda hora e a todo lugar,
enquanto, ao contrário, o Poder Judiciário se esconde atrás de uma couraça de proteção,
mantendo sua premissa de infalibilidade.

No entanto, um Poder Judiciário democrático e garantidor da democracia há de


romper com quaisquer couraças de proteção, abandonando suas torres de marfim. Um
Poder Judiciário democrático e garantidor da democracia não só há de saber ouvir
críticas, como mais do que isso, assegurar, ele próprio, a livre circulação dessas críticas.
Um Poder Judiciário democrático e garantidor da democracia há de ser o guardião da
mais ampla possibilidade de crítica, da livre expressão do pensamento, do curso
desimpedido da informação. Um Poder Judiciário democrático e garantidor da
democracia há de sempre assegurar a indispensável liberdade de imprensa.

No que concerne à liberdade de imprensa, a função garantidora do Poder


Judiciário adquire ainda maior relevância no tempo presente, em que os novos meios de
comunicação fruto do desenvolvimento científico-tecnológico estendem o alcance da
imprensa, não mais contida nos fechados redutos de grandes jornais e revistas ou nos
dispendiosos estúdios de rádios e televisões, mas democraticamente se espraiando,
global e descentralizada, pela Internet.

Rompendo as delimitações espaciais e temporais e revolucionando as formas e a


circulação da comunicação, nossa era digital amplia significativamente as possibilidades
de produção e acesso à informação. Quanto mais rápida e extensamente divulgados
acontecimentos, ideias, dados, maiores as possibilidades de efetivação dos direitos
fundamentais e da democracia.

Garantir uma Internet livre de censuras é essencial não só para assegurar a


liberdade de informação e expressão, como também para assegurar os frutos do
progresso e a expansão do conhecimento que pode ser proporcionada por esse fantástico
meio de troca de informações, de ideias, de opiniões, de saber.
4. O caso concreto

A reação do magistrado que se colocou na posição de ofendido, representando


contra os ora réus no caso concreto que suscitou essa consulta, contrasta com a função
garantidora da liberdade de informação e expressão especialmente exigível do Poder
Judiciário nessa nossa era digital, parecendo refletir aquela postura fundada na premissa
de infalibilidade, na busca da couraça de proteção, a conferir deslocada atualidade às
observações de Francisca Sauquillo e Antonio Gomes Rufo acima reproduzidas.

Somente tal superada postura, avessa ao direito à crítica – e, assim, avessa ao


direito fundamental à liberdade de informação e expressão; e, assim, contrastante com a
função do Poder Judiciário democrático e garantidor da democracia –, explicaria a
visualização de ofensa punível contra a honra do magistrado prolator da decisão
criticada nos irônicos e vagos comentários críticos transcritos na inicial da ação penal
condenatória.

Com efeito, a simples leitura dos textos transcritos na inicial da ação penal
condenatória logo revela a manifesta inocuidade das expressões utilizadas, já no plano
da tipicidade objetiva: não há naquelas meramente irônicas e vagas expressões
imputação de qualquer fato concreto e determinado ofensivo à reputação que pudesse se
adequar ao tipo objetivo da difamação, tampouco havendo atribuição de qualquer vício
ou defeito vexatório que pudesse se adequar ao tipo objetivo da injúria.

Mais: a simples leitura dos textos transcritos na inicial da ação penal


condenatória revela que as meramente irônicas e vagas expressões utilizadas na crítica à
decisão muito longe estão de apresentar aquela dimensão ofensiva apta a resultar em
uma desmoralização do magistrado seu prolator perante os demais indivíduos, nem de
longe abalando objetivamente sua posição na sociedade, nem de longe tendo aptidão
para desmerecê-lo em forma tal que pudesse estigmatizá-lo e impedir sua normal
participação nas relações sociais.

Como destacado na inicial da ação de habeas corpus dirigida ao egrégio Superior


Tribunal de Justiça que instrui esta consulta, o que se verifica da simples leitura da
inicial da ação penal condenatória é, na realidade, a ausência de uma correlação direta
com a pessoa do magistrado prolator da decisão criticada, tendo-se sim uma
manifestação pública, em nome de um coletivo, contra a política proibicionista de
“guerra às drogas”, apenas concretizando naquele magistrado uma série de argumentos
apontados pela criminologia e pela sociologia desde a década de 1980.

Com efeito, os comentários transcritos na inicial da ação penal condenatória,


expressados em crítica a decisão judicial que indeferira requerida garantia para
realização da chamada “Marcha da Maconha” – marcha essa que, posteriormente,
acabou por ter sua legitimidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal –, refletem
posicionamento questionador da atual política de “guerra às drogas”, na mesma linha de
inúmeras outras respeitáveis manifestações.

Tome-se, por exemplo, a referência à alimentação do tráfico de armas. Têm sido


inúmeras as manifestações que apontam o aumento da violência, aí naturalmente
incluído o estímulo ao mercado de armas, como consequência da política de “guerra às
drogas”, valendo mencionar dentre essas manifestações os documentos publicados pela
Comissão Global de Política sobre Drogas, integrada, dentre outros, pelos ex-
Presidentes do Brasil, da Colômbia e do México, Fernando Henrique Cardoso, Cesar
Gaviria e Ernesto Zedillo, pelo ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e
tendo como presidente de honra o ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos da
América, George Schultz.

Mas, além de objetivamente não se adequarem à definição de qualquer dos tipos


de crimes contra a honra, os comentários transcritos na inicial da ação penal
condenatória, concretizando o exercício da liberdade de imprensa, claramente se
inserem no âmbito do direito fundamental à liberdade de informação e expressão,
direito fundamental esse que mais se afirma pelo Poder Judiciário democrático e
garantidor da democracia exatamente quando seus órgãos o reconhecem e o asseguram
na crítica a decisões de seus pares.

Rio de Janeiro, 24 de maio de 2012.

Maria Lúcia Karam


Juíza de direito aposentada

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