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FICHA

CATALOGRÁFICA
Carpeaux, Otto Maria. 1900-1978
O Canto do Violino e outros ensaios inéditos
Balneário Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora, 2016.
ISBN: 978-85-67801-07-0
1. Música - Apreciação I. Título.
CDD – 781.17
Coordenação Editorial: Diogo Fontana
Edição e revisão: Eduardo Zomkowski
Diagramação: Patricia Martyres
Capa: Daniel Carvalho
Copyright © do prefácio e notas: Dante Mantovani
Todos os direitos desta edição reservados à
Livraria Danúbio Editora Ltda.
Avenida Brasil, 1010, Centro. Balneário Camboriú, SC. 88330-045
E-mail: contato@livrariadanubio.com
Sítio: www.livrariadanubioeditora.com.br
Distribuição:
CEDET
Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas-SP
Imagem da capa:
Gerrit van Honthorst, “Musical Group on a Balcony”, 1622
Imagem digital cortesia do Getty´s Open Content Program

Agradecimentos
Esta edição não teria sido possível sem o apoio de nossos grandes mecenas:
Adriana Bohm
André Schaefer Pasold
Antonio Abel Pereira Leite
Aramis Fontana
Bruno de Oliveira Feu Rosa
Djalma Perin
Eduardo Augusto de Carvalho Belucio Alves
Eduardo Fernandes
Eduardo Henrique Mafra
Eric Primon
Fábio Furtado Pereira
Gio Fabiano Voltolini Jr
Jefferson Zorzi Costa
Leonardo Beraldin
Leonardo Domingos Fonseca
Marcelo Assiz
Marina Pessini
Mateus Cruz
Maurizio Casalaspro
Moreno Garcia
Rafael Manieiri
Silvio José de Oliveira
Tharsis Madeira
Os recursos para esta publicação são de origem privada e foram levantados por
meio de financiamento coletivo. Nenhum centavo de dinheiro público —
municipal, estadual ou federal — foi usado pela editora.
Sumário
Agradecimentos5
Nota do Editor1
Prefácio4
Cervantes e Beethoven7
Música e mentira14
Mestre de todos21
Bach27
Beethoven32
Música, doce música?37
Beethoven em Viena43
Così fan tutte48
Dvorák e o folclore musical52
Erik Satie58
Imortal Manon61
Óperas novas67
Schumann, trágico72
O outro Mozart77
Recital Ivy Improta82
Um crítico de música86
Hegemonia musical92
O Canto do Violino98
Stendhal e a música103
Romantismo de Beethoven109
O futuro da música115
Quarteto Húngaro (III)120
História da música124
Recordações de Mahler130
Miséria e esplendor dos músicos136
O estilo de Gluck142
Lista de músicos148
Nota do Editor
história deste livro e meus trabalhos editoriais começaram enquanto
Afolheava um antigo jornal do Paraná: numa única tarde de fins de 2014,
munido por acaso de tecnologia que me confirmava o ineditismo, encontrei ali
48 ensaios inéditos de Otto M. Carpeaux, dos quais dei logo notícia ao amigo e
editor Diogo Fontana, cujo vivo interesse incentivou-me continuar em pesquisas
e a reunir, após trabalhoso mês, outros 311 dispersos em 19 jornais de Norte a
Sul do Brasil – quantidade que, a julgar por Carpeaux em Vinte e cinco anos de
literatura (1968), representava menos de um terço entre os cerca de 1.300 ainda
inéditos em livro.
Ante um tal volume de textos encontrados (alguma coisa entre 1.500 e 2.000
páginas, como as de Ensaios reunidos), decidimos selecionar sem demora
aqueles que, anteriores à década de 1960, tratavam de música erudita, havendo
entre os 26 editados (1948-1958) ensaios musicais propriamente ditos, mas
também artigos de crítica a representações musicais do dia, biográficos e, enfim,
ensaios “literários-musicais”, em que Carpeaux serve-se ora de formas literárias
para desenvolver questões musicais, ora de formas musicais para resolver
questões literárias – uma novidade entre textos editados em livro, segundo o
prefaciador e comentador Dante Mantovani.
Como editor porém, familiarizado com os textos que reli vezes sem conta, sou
obrigado a alertar o leitor católico de que, nas palavras de Carpeaux em Vinte e
cinco anos, alguns desses ensaios, senão todos nalgum grau, encontram-se
“irremediavelmente marcados pela época em que foram escritos”, traço
apontado, ademais, em rodapés de nosso prefaciador e comentador, católico
apostólico e romano como nós outros, rodapés não só em que o leitor há de
prestar a atenção, como no texto mesmo de todos os ensaios.
Com exceção dos publicados nos jornais do Rio e, talvez, no de São Paulo,
constatei sejam todos republicações/reproduções em jornais de província, de
modo que, repetindo-se um ou outro em dois desses periódicos, pude cotejar
“versões” e fixar passagens ilegíveis ou truncadas: não havendo outro lugar para
informá-lo, aos meus rodapés segue-se a abreviatura N.E. (nota do editor).
Jornais, respectivas quantidades e datas são os seguintes:
Correio da Manhã (Rio de Janeiro), 7 ensaios, 1955-1957
Diário Carioca* (Rio de Janeiro), 4 ensaios, 1950, 1951, 1954
Diário do Paraná (Curitiba), 11 ensaios, 1955-1958
Diário de Pernambuco (Recife), 1 ensaio, 1956
Jornal de Notícias (São Paulo), 3 ensaios, 1948
Por fim: não sendo música erudita nossa área de estudos, convidamos o regente
e musicólogo Dante Mantovani para nos traduzir a carga de novidade dos textos,
prefaciando-os, e anotando em rodapé atualizações das pesquisas musicais
recentes, esclarecimentos, bibliografia complementar e, quando necessário,
refutações às passagens que julgasse controversas: seus rodapés são marcados
com a abreviatura D.M.; ao prof. Guilherme Zomkowski, cujas notas
distinguimos com a abreviatura G.Z., encarregamos da tradução de citações
latinas e francesas, como em parte fizera na edição revista de A cinza do
purgatório, em 2015; notas do editor Diogo Fontana marcaram-se com a
abreviatura D.F., e, para auxiliar o leitor, anexamos nas últimas páginas lista de
dados biográficos essenciais de compositores, libretistas e regentes citados no
livro.
Boas leituras.
Mãe do bom conselho, rogai por nós.
Eduardo Zomkowski
Curitiba, fev. 2016
Na seção do suplemento dominical Letras e artes.
Prefácio
por Dante Manovani*

P ela influência de sua obra em minha formação pessoal, falar de Carpeaux


me parecia ainda há pouco tarefa apenas fácil, porque extremamente
familiar: é como se eu falasse de mim comigo mesmo; mas a verdade é que,
como músico erudito que se profissionalizou por sua causa, não é lá coisa
simples apresentar com isenção e eficácia alguém cuja obra é simplesmente
fundamental para a cultura brasileira e para a própria trajetória pessoal de quem
o apresenta.
Otto Maria Carpeaux foi o nosso crítico por excelência. O europeu que se
tornou brasileiro e adotou o português para escrever obras máximas como a
História da literatura ocidental foi indubitavelmente um fruto perfeito do
glorioso Império Austro-Húngaro, assim como o foram Haydn, Mozart e
Beethoven, seus conterrâneos e compositores prediletos.
Tão vastos e inabarcáveis eram os conhecimentos de Carpeaux, que a sua
chegada ao Brasil em 1939 significou novo esplendor à nossa vida cultural, cuja
decadência, que ele ajudou a retardar em pelo menos 30 anos, iniciou-se a partir
da década de 1960 por ideologização gramscista, ainda hoje causa de frutos
nefastos, como o analfabetismo funcional, galopante entre nossas elites
universitárias.
O próprio Carpeaux foi vítima da atmosfera ideologizante da cultura brasileira,
porém apenas no final de sua vida, de modo que a qualidade dos seus trabalhos
anteriores não foi comprometida, como o demonstra na introdução dos Ensaios
reunidos (vol. 1) o filósofo Olavo de Carvalho, um dos principais responsáveis
pelo renovado interesse em torno de sua obra e pelo redimensionamento do seu
legado, de modo que, podemos dizer, justiça tem sido feita.
O Canto do violino é prova disso.
O livro que vos apresento não é um guia de história da música, nem poderia sê-
lo, mas é um instigante tratado que convida o leitor a repensar a história da
música e o situa no cerne das questões mais importantes dos últimos 15 séculos,
sem deixar de lado as polêmicas mais acaloradas.
Embora pareçam não se relacionar, estes ensaios de Carpeaux são expressão de
sua visão global privilegiada acerca da manifestação artística que mais o
assombrava e que considerava a mais elevada forma de arte: a grande Música
Universal.
Engana-se quem acha que este livro seja privilégio para iniciados ou
integrantes do métier musical, porque é obra indicada a todos os públicos, a
todas as idades e para todos os gostos musicais, indicada a quantos queiram
abrir-se à ampliação de sua cultura geral e aventurar-se por universos sonoros os
mais sublimes.
Apesar da linguagem esmerada, Carpeaux sabe dosar seus requintes de
expressão com clareza de raciocínio e inigualável capacidade de síntese,
tornando o livro um valioso alimento espiritual, porém de fácil e agradável
digestão.
As notas que redigi para os 26 ensaios têm o intuito de contextualizá-los com
informações ainda indisponíveis à época de sua redação (1948-1958) ou que
naturalmente escapavam a Carpeaux, como quando se pergunta se Stravinsky
teria se arrependido das críticas feitas a Beethoven, das quais o compositor russo
se retratou nove anos depois.
Para outros trechos, desdobrei questões rigorosamente sintéticas, e poucas
vezes, quando nenhuma, procurei esclarecer termos, idéias ou nomes de
compositores, motivo pelo qual foi anexado ao final deste volume um índice
com dados biográficos dos compositores citados ao longo dos ensaios.
O Canto do violino é uma janela não só para a Paidéia da Música Universal,
mas também para o estudo da obra crítica de Carpeaux, que aqui revela
singularmente muito do seu método crítico e do seu processo de escrita. Estou
certo de que o Brasil ganha com esta obra inédita um guia fundamental para
percorrermos com segurança o maravilhoso universo da Música Ocidental.
Com os ensaios reunidos e editados por Eduardo Zomkowski, a editora que
leva a cabo empreitada tão necessária à oxigenação de nosso cenário cultural não
poderia ter outro nome: Danúbio, rio que corta a cidade de Viena, a Atenas
moderna que deu ao mundo Otto Maria Carpeaux, celeiro não só do nosso maior
crítico literário e musical, como de grande parte dos maiores mestres da História
da Música.
Que este livro traga a vós leitores a inspiração e o oxigênio que o rio Danúbio
oferece à Viena, capital universal da grande música, terra onde floresceram os
mais perfeitos fenômenos musicais de todos os tempos!
Paraguaçu Paulista, SP,
dez. 2015
Dante Mantovani é maestro, doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina,
jornalista e apresentador dos programas de rádio Música Universal, pela Rádio Vox, e A Grande Música,
pela Rádio Mãe de Deus.
Cervantes e Beethoven
Jornal de Notícias, 27 jan. 1948

C ontam que outro dia um menino perguntou no colégio ao professor: “Se


Gonçalves Dias ressurgisse hoje, ele seria da UDN ou do PSD?”1 A
ingenuidade cômica da dúvida infantil transformar-se-ia em absurdo se nós
adultos quiséssemos perguntar assim com respeito aos grandes homens do
passado: “Shakespeare seria hoje partidário de Churchill ou trabalhista? Rabelais
ficaria com Bidault ou com Thorez?”2 Na verdade, porém, perguntamos sempre
assim. O caso de Nietzsche, reclamado pelos nazistas e pelos antinazistas ao
mesmo tempo, é significativo. Todos os regimes políticos gostam de invocar as
grandes sombras do passado nacional para enfeitar-se de glórias que não lhes
pertencem. Por que faria exceção o nome do grande escritor do qual celebramos
hoje o quarto centenário do nascimento?3
Cervantes não é apenas o criador de um dos grandes mitos-símbolos do
espírito humano. Também escreveu as Novelas ejemplares, mais magistrais
como realizações literárias do que o próprio Don Quijote: cervantina é a graça
pérfida dos dois pícaros Rinconete e Cortadillo, e cervantina é a dolorosa e
humorística sabedoria dos dois cachorros Cipion e Berganza que meditaram
durante a noite sobre o absurdo dos destinos caninos e humanos. E próprio do
grande humorista também é a profunda angústia de Persiles y Sigismunda. Já
vale a pena possuir como testemunha essa sombra. E, com efeito, é a Espanha
oficial de hoje que lhe comemora com festas barulhentas os primeiros 400 anos
duma imortalidade sem fim, como se ele fosse um franquista de 400 anos.
Mas seria tão absurdo considerá-lo como representante de uma Espanha
militarmente reacionária e clericalmente católica? Em todas as obras de
Cervantes não se encontra uma só palavra que seja incompatível com o
catolicismo mais ortodoxo. Nem ele desaprovou os excessos da Inquisição,
espécie de tribunal de segurança que se valeu de aparências eclesiásticas para
perseguir os chamados inimigos do Estado. Cervantes foi mesmo servidor leal
desse Estado, lutando na batalha de Lepanto como soldado da monarquia
espanhola, realizando façanhas como nem os generais. Cervantes, general! No
entanto...
Existe uma ópera de Beethoven, Fidelio – a única aliás que escreveu – cujo
enredo se passa na Espanha: no calabouço sombrio de uma fortaleza, o tirânico
governador Pizarro mandou encarcerar o nobre Florestán, que ousara manifestar
idéias de liberdade. O infeliz parece perdido. Nem o salvariam os heróicos
esforços de sua mulher Leonore que, disfarçada em homem, sob o nome suposto
de Fidélio, tentava libertar o marido. Só no último momento, quando na
escuridão noturna do cárcere já se preparava o assassínio, ressoam longe as
cornetas que anunciam a chegada do ministro e a libertação. Então, pergunta-se:
Cervantes preferiria hoje o papel de Florestán ou do carcereiro?
Talvez não fosse republicano, assim como não lhe cabe absolutamente o
apelido de livre-pensador. Mas foi, sim, um pensador muito livre, um soldado da
liberdade. Os comentaristas modernos do Don Quijote já não acreditam tão
unanimemente que Cervantes tenha zombado da cavalaria: zombou apenas dos
aristocratas degenerados de uma época em que o feudalismo já perdera a razão
de ser. Os antigos, os legítimos feudais espanhóis da Idade Média não eram
porém tão reacionários como se pensa. Opondo-se obstinadamente aos reis e ao
Estado, esses precursores do anarquismo ibérico defendiam, nos seus castelos
amurados, idéias de liberdade que seriam depois apanágio do povo inteiro; cada
espanhol, um fidalgo! Vale ler as páginas de Ortega y Gasset, no volume Notas4
sobre as Ideas de los castillos; são hoje ruínas em meio do deserto castelhano,
mas ainda gritam ao cinzento céu espanhol que “acima da Lei e do Estado está a
Liberdade”. Cervantes, homem nobre, também foi fidalgo assim, e sua cabeça,
um verdadeiro castelo de idéias livres. E na obra mais profunda que já se
escreveu sobre ele – El pensamiento de Cervantes, de Américo Castro – fica
bem demonstrada a origem das idéias cervantinas no humanismo livre de
Erasmo. Cervantes erasmiano! No entanto...
Em Erasmo havia um céptico, ficando entre ou antes acima dos partidos em
luta. E o cepticismo do grande humorista – todos os grandes humoristas são
cépticos – também parece permitir conclusões inquietantes de uma neutralidade
suspeita. Certa vez Don Quijote investiu com força contra um homem que,
montado num burro, trazia consigo um vaso redondo de metal resplandecente;
achava que a ele, ao nobre cavaleiro, e nunca a um homem de condição plebéia,
pertencia de direito o precioso troféu, o “Yelmo del famoso Mambrino”.5 Aquele
pobre homem dizia-se porém barbeiro, precisando para o seu oficio de uma
bacia; e aquilo que ao Don Quijote parecia “Yelmo de Mambrino”, apenas seria
uma modesta “bacía de barbero”. Quando, então, a luta entre os dois adversários
irreconciliáveis se tornou extrema, Sancho Pança pretendeu intervir, dizendo:
“Talvez o objeto em causa não fosse yelmo nem bacía, e sim um baciyelmo.”
Esse relativismo, esse perspectivismo dos pontos de vista, também é cervantino.
Então, Cervantes seria neutro? O seu humorismo céptico serviria de argumento
aos que não têm a coragem de tomar partido? Para rebater esse ponto de vista
pretendo escolher um recurso extremo, dir-se-ia esquisito, referindo-me mais
uma vez a Fidelio, a ópera de Beethoven.
O enredo já foi resumido. Primeiro ato: Leonore, disfarçada em homem, sob o
nome suposto de Fidélio, introduziu-se na fortaleza; chega a saber que o tirano
Pizarro pretende assassinar-lhe o marido. A primeira cena do segundo ato passa-
se na escuridão noturna do calabouço; assistimos à tentativa do crime quando, no
último momento, ressoam de longe, atrás do palco, as cornetas que anunciam a
chegada do ministro, a libertação. A segunda cena do segundo ato só é uma
espécie de epílogo, o coro de júbilo dos prisioneiros, enquanto se levanta o sol
da liberdade. É a única ópera de Beethoven. Custou-lhe muito. Escreveu uma
ouverture que os amigos acharam insignificante; a peça é hoje conhecida, pouco
conhecida aliás, como Leonore n.º 1, porque então a ópera ainda devia chamar-se
Leonore. E o “número 1” se explica pelo fato de que Beethoven escreveu logo
outra ouverture, a Leonore n.º 2, também desprezada pelos amigos e pelo próprio
mestre. Mais um esforço, e saiu a Leonore n.º 3, a ouverture das ouvertures; no
fundo, uma grandiosa sinfonia, intensamente agitada como a luta pela liberdade,
até ressoar o toque de corneta, tocada fora da sala de concerto, iniciando-se o
desfecho jubiloso. É uma sinfonia tão grande, que não serve bem para abrir uma
noite de ópera. Então Beethoven escreveu, mudando ao mesmo tempo o título da
obra, a ouverture de Fidelio, aquela peça bonita mas pouco significativa que hoje
se toca nos teatros líricos antes de se representar a única ópera de Beethoven.6
A Leonore n.º 3 entrou no repertório dos concertos de orquestra. Aconteceu
porém que os regentes de ópera não quiseram renunciar ao prazer honroso de
apresentar, por sua vez também, a grande obra. Mas como fazer? A solução mais
simples seria tocar a Leonore n.º 3 em vez da insignificante ouverture de Fidelio,
isto é, antes da representação. Mas é uma verdadeira sinfonia de programa,
representando musicalmente o enredo inteiro; as cornetas que na ópera
acompanham a peripécia, também voltam para Leonore n.º 3, como auge do
desenvolvimento. Depois dessa ouverture singular, já não seria preciso
representar a ópera. Por isso, preferiram tocar a Leonore n.º 3 depois da
representação, no fim da noite. Mas o público gostaria de ouvir mais uma vez na
orquestra o que já ouvira no palco? Como seria, pois, entre o primeiro e o
segundo ato? Mas então o público ouviria as cornetas na orquestra antes de tê-las
ouvido no palco, no cárcere onde anunciam a libertação; e ninguém
compreenderia a sinfonia. Enfim Gustav Mahler, naquele tempo diretor da Ópera
de Viena, achou a solução: representa-se a primeira cena do segundo ato, a noite
do crime escurece o palco, a tensão dramática chega ao auge, ouvem-se de
longe, dos bastidores, as cornetas que anunciam a liberdade, cai lentamente o
pano; depois, de repente, ilumina-se a sala escura do teatro, transformada em
sala de concerto, e a Leonore n.º 3 se desenrola com brilho enorme, até ressoar o
toque das cornetas, repetindo-se no palco ideal da música os acontecimentos da
vida real, terminando tudo no coro jubiloso do final; é só o pobre sol dos
maquinistas de teatro que então se levanta, mas o sol da liberdade já se levantara
antes nos acordes de Beethoven.
Que idéia genial, esta de Gustav Mahler! Mas no fundo só foi preciso colocar
as coisas nos justos lugares. Só é preciso tomar o justo ponto de vista para ver as
coisas como são, para saber o que é na verdade o baciyelmo.
Um vaso redondo de metal resplandecente pode ter, com efeito, vários usos; e
o olho insubornável do humorista vê-os todos. Nós outros não somos tão
soberanos; este só vê o “Yelmo de Mambrino” e aquele só a “bacía de barbero” –
não importa. O que importa é ver o baciyelmo do ponto de vista justo; importa
colocar-nos a nós mesmos do lado justo para que o lutador idealista não se arme
de uma inofensiva “bacía de barbero” e para que o precioso “Yelmo de
Mambrino” não seja colocado em cima da cabeça de um malandro. O problema
é como o das quatro ouvertures de Beethoven: problema de colocação justa. Se
Cervantes já tivesse pensado inteiramente como nós outros, gozando de plena
liberdade no tempo dos Felipes, não seria preciso representar a ópera. Se a ópera
fosse representada antes da sinfonia, não se precisava de Cervantes, que é mais e
melhor do que um ponto final. Entre o primeiro e o segundo ato da tragédia,
ninguém compreenderia a revelação da música e do humorista. Mas colocada no
único ponto justo, entre a primeira e a segunda cena do segundo ato, no
momento penúltimo, decisivo, então a luz de Cervantes ilumina a sala escura, as
cornetas anunciam a liberdade e em nossos corações levanta-se a aurora.
UDN e PSD, partidos políticos do período democrático entre 1945 e 1964, extintos pelo governo militar
através do Ato Institucional n.º 2 de 1965. A UDN (União Democrática Nacional) era um partido
conservador e antigetulista, que apoiou a eleição de Jânio Quadros; o PSD (Partido Social-Democrático) era
formado por apoiadores de Getúlio Vargas, contava com a maior bancada no Congresso e elegeu dois
presidentes: Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek. (D.F.)
Bidault e Thorez, políticos franceses. Georges Bidault (1889-1983) era católico e conservador; Maurice
Thorez (1900-1964) foi líder do Partido Comunista da França. (D.F.)
4.º centenário em 29 set. 1947. – Este ensaio de Carpeaux foi provavelmente reproduzido no Jornal de
Notícias (27 jan. 1948). (N.E.)
Notas de vago estío. (N.E.)
“Elmo do famoso Mambrino”. (N.E.)
Obra que transcendeu a esfera da ópera, também hoje Fidélio é muito tocada como peça de abertura em
concertos sinfônicos. (D.M.)
Música e mentira
Jornal de Notícias, 22 out. 1948

U m best-seller de espécie muito particular empolgou recentemente os


leitores americanos, conquistando agora o público europeu. O livro
chama-se Heritage of Fire7. O autor, Friedelind Wagner, filha de Siegfried, neta
de Cosima e Richard Wagner, apresenta revelações sensacionais. Durante os 25
anos passados, Bayreuth e a Casa Wahnfried foram consideradas como fortalezas
do nazismo, até como berço do poder de Hitler. Agora Friedelind inverte todos
os termos da questão: acusando de nazismo sua própria mãe Sieglinde8, a esposa
de Siegfried Wagner (que não era, portanto, de sangue wagneriano), revela que
todos os outros membros da família sempre foram antinazistas, mal suportando
as freqüentes visitas do Führer: este, procurando “apoio espiritual” na casa do
pangermanismo musical, teria sofrido as piores humilhações da parte de pai e
filha, só para poder passar, aos olhos do povo alemão, como amigo íntimo
daquela casa, como herdeiro legítimo do gênio de Bayreuth e executor político
das suas idéias filosófico-musicais sobre o “cristianismo heróico” e a
“regeneração” da raça teutônica. Daí, Friedelind devia, em 1939, fugir da
Alemanha, procurando exílio nos Estados Unidos, publicando agora aquele livro
sensacional de memórias. Não, Wahnfried não teria sido o berço do nazismo. Já
em 1921, quando certos círculos pediram a expulsão dos não-arianos de
Bayreuth, Siegfried Wagner teria escrito uma carta (citada por Friedelind sem
indicações exatas), defendendo os franceses, os latinos em geral e até os judeus.
E para tanto, Siegfried podia afirmar, com muita razão, que seu pai não era um
pangermanista e anti-semita tão terrível como Cosima, genial chefe de
publicidade do marido, fazia acreditar ao mundo (mais um caso de um membro
da família Wagner denunciar a própria mãe). Com efeito, também existe o
Wagner revolucionário de 1848, discípulo de Feuerbach e quase correligionário
de Marx; ainda escondeu idéias socialistas nos Nibelungen onde Shaw os
descobriu. Enfim, Wagner sai das páginas de sua neta como bom-moço ao gosto
de 1945, “liberal” no sentido norte-americano da palavra, fazendo o
acompanhamento musical da aliança entre as potências ocidentais e a Rússia
bolchevista. O “Wagner” que conhecíamos antes teria sido falsificação, mentira
– a não ser a situação internacional de 1948, já bastante modificada, exigir
novamente um Wagner da Direita.
Heritage of Fire inspira vertigem ao leitor. O fogo que Friedelind herdou do
grande avô parece o fogo de Loki, deus germânico da mentira; ou então, o
próprio Wagner foi o mentiroso. Ou então, mentirosos foram só os membros
femininos da família. Cosima, Sieglinde9 – menos, naturalmente, Friedelind que
parece mentir porque diz a verdade, uma verdade wagneriana.
O nome de Wagner evoca logo associações menos agradáveis: um mundo de
rostos pintados e gestos pseudo-heróicos, teatro no sentido pejorativo da palavra;
Gretchens colossais exibindo porta-seios de aço; Siegfrieds em armaduras
resplandecentes, combatendo certos demônios ao som de marchas militares;
“cristianismo heróico” para o uso da alta administração prussiana; um palavrório
enorme sobre O que é alemão?10, antecipando imediatamente a megalomania
hitleriana. Tudo isso já pertence ao reino dos pesadelos de ontem, de anteontem.
Ainda existem sujeitos como aquele fanático que achou Wagner maior do que
Beethoven e Goethe juntos? Também responderíamos que Wagner fez, sem
dúvida, melhores versos do que Beethoven e música melhor do que Goethe.
Fazemos um esforço para esquecer tudo isso, botando uns discos na vitrola. E
logo o feiticeiro nos fez, com efeito, esquecer tudo isso. Quem não suporta seis
horas de conversas musicais dos sapateiros de Nuremberg, e quatro horas de
gestos histéricos de uma cantora gorda, ainda sucumbe (Gide o confessou) no
concerto. Nietzsche, antiwagneriano exaltado chamou, no entanto, a ouverture
dos Mestres Cantores de “música magnífica, riquíssima, último fruto da nossa
civilização”, e os dois primeiros compassos do prelúdio de Tristão e Isolda já lhe
pareciam “abrir a porta de mundos transcendentais”. Os violinos do prelúdio ao
terceiro ato de Lohengrin elevam-se para alturas celestes em que já não há
contradições entre o Wagner revolucionário e o pangermanista, em que nem este
nem aquele existe, assim como a luta entre papa e imperador acaba no Paraíso
de Dante. A fascinação é irresistível.
Sobre a música de Wagner ainda não se dizia a última palavra: o grande
obstáculo é o teatro de Wagner. Procurar, nessa música, os famosos leitmotivs e
acompanhá-los através do “drama musical” inteiro é a delícia dos amusicais,
para os quais a música só tem sentido quando corresponde a imagens literárias,
gestos e movimentos psicológicos. Nós outros preferimos o critério de Lorenz:
os períodos ligados pela mesma tonalidade são os elementos sinfônicos da
música de Wagner11, espécie de falsificação da grande arte sinfônica alemã por
um gênio errado – “L’Allemagne e le génie de l’erreur” (Duhamel)12. Mas é um
gênio. Quanto mais curtos aqueles períodos são, tanto mais rico é o poder
fascinante das modulações cromáticas: no Tristão sobretudo, em que “a crise de
harmonia romântica”, conforme a expressão de Kurth13, chega ao auge, já se
adivinhando “o reino de novas” de Debussy, já se anunciando a atonalidade de
Schoenberg e Alban Berg. Mas Wagner não deu esse último passo.
Depois de Tristão Wagner recuou, tomou-se musicalmente reacionário. Voltou
ao romantismo do seu passado. A oficina do sapateiro Hans Sachs é um “navio
fantasma” chegando ao porto da pequena-burguesia. Siegfried é um Tannhaeuser
que não perde no monte de Vênus das Valquírias a energia militar de um
sargento. Parsifal é um Lohengrin oficializado, ingênuo como um doutor em
filosofia que acaba de colar grau e eficiente como um oficial de reserva
prussiana. Toda essa última fase de Wagner parece uma mentira enorme. Mas
não foi. Foi a própria realidade. O romântico Wagner é o musico oficial do Reich
dos Guilhermes e de Hitler porque esse Reich é a realização política dos sonhos
poéticos do romantismo. Apenas para nós outros o sonho virou pesadelo.
Wagner quis ficar romântico. Antes, sim, fora revolucionário, discípulo de
Feuerbach, amigo de Marx e Bakunin, lutando em 1848 nas barricadas de
Dresden, exilado na Suíça onde realizou a sua própria revolução, a erótica, da
qual Tristão e Isolda é o monumento. Mas depois recuou. Quis ficar romântico.
A sua atividade febril de compositor, poeta, escritor filosófico e político, diretor
de teatro, tudo ao mesmo tempo, é realização de outro sonho romântico; da fusão
de música e literatura, e filosofia e vida;14 da confusão entre a obra e o artista.
Em vez da arte viva, a vida artística. O vitalismo artístico de Wagner apenas é o
reverso daquele romantismo político. – “Acredito – afirmou Wagner – que não
precisamos da arte quando temos a vida verdadeira”; sua nação acabará
sacrificando a arte e a civilização inteira à “vida verdadeira”, ao poder. A mentira
começou na música e terminou nos campos de batalha.
A psicologia de Wagner, já esboçada por Nietzsche, é a de um grande ator
porque é preciso ser ator para representar na vida o que é da arte. Daí o campo
de ação de Wagner é o palco, reunindo-se os recursos da música e da poesia
(“Goethe e Beethoven ao mesmo tempo”). Bayreuth é o lugar de um fantástico
comício em que o ator subjuga as massas, seja mesmo pelo poder da mentira
sempre repetida (os leitmotivs). Na literatura de Wagner até aparece a mentira no
sentido cru da palavra: na sua autobiografia de 1842, Wagner confessou que um
trecho de Heine lhe fornecera o enredo do Navio fantasma; na segunda edição da
autobiografia, de 1871, o mesmo enredo aparece “encontrado por Heine numa
peça holandesa”, peça que não existe. De maneira semelhante Wagner chegou a
negar as suas relações artísticas com a ópera de Meyerbeer e a Grande Ópera
parisiense, que são no entanto os precursores imediatos do “drama musical”
wagneriano. A mentira introduzia-se no próprio coração da verdade musical de
Wagner, na sua heritage of fire que ele herdara dos Bach e Beethoven: a grande
arte sinfônica, a conquista suprema do espirito alemão, transformada pelo mestre
de Bayreuth em acessório das suas pompas teatrais, em mero instrumento das
falsidades de ópera. Vida falsa, arte falsa, catástrofe certa. Ao Crepúsculo dos
deuses, fora mero espetáculo, seguiu-se a realidade do crepúsculo dos ídolos.
Agora, o ar parece purificado, mas só parece. Enquanto o nazismo é
considerado como fenômeno exclusivamente alemão e portanto extinto pela
derrota militar dos alemães, a mentira continua, porque todo mundo é culpado.
Todo mundo aceitou o Wagner do “cristianismo heróico” e da “regeneração
racial” de Cosima, assim como agora gosta de aceitar o “bom-moço” de
Friedelind. E já estão surgindo de novo Siegfrieds, vestidos de armaduras
resplandecentes, oferecendo-se para lutar contra certos demônios; mas a música
que os acompanha não é boa. Para nós, não importa se Wagner foi um grande
ator da Direita ou um grande ator da Esquerda ou de Centro qualquer. Chega de
atores. É preciso distinguir nitidamente entre o artista e a obra, desfazendo-se as
perigosas confusões românticas. Queremos é música: música sinfônica,
verdadeira. Precisamos esquecer Bayreuth e Wahnfried e as marchas, Cosima e
os porta-seios de aço, Sieglinde15 e Friedelind e todo o resto: no resto a ouverture
dos Mestres Cantores é música riquíssima e os dois primeiros compassos do
prelúdio de Tristão e Isolda abrem a porta de mundos transcendentais.16 Eis a
verdade.
Ed. americana: (Nova York, Harper, 1945); ed. inglesa: The Royal Family in Bayreuth (Londres,
Spottiswood, 1948). (N.E.)
Equívoco do A. (repete-se): chamava-se Winifred, a mãe de Friedelind. Carpeaux provavelmente
confundiu-se com o nome de Sieglinde Wagner (1921-2003), cantora de óperas, sem parentesco com os
Wagner. “Sieglinde” é também o nome da heroína de A Valquíria, ópera de Richard Wagner. (N.E.)
I.é., Winifred. Cf. nota anterior. (N.E.)
Was ist deutsch?, ensaio de Wagner. (N.E.)
Alfred Lorenz, Das Formproblem in Richard Wagners Musik (Munique, s.ed., 1922). – Carpeaux escreve o
seguinte em Uma nova história da música (2ª ed. rev. e aum., Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1968), p.
210: “Lorenz demonstrou que os verdadeiros temas das ‘sinfonias teatrais’ de Wagner não são os leitmotivs,
mas os períodos musicais nos quais estão encerrados; exatamente assim como na sinfonia não são as
melodias que importam, mas seu desenvolvimento dramático.” (N.E.)
“A Alemanha tem o gênio do erro” (citação elíptica de Georges Duhamel, Tribulations de l’espérance
(Paris, Mercure de France, 1947), p. 30). (G.Z.)
Ernst Kurth, Romantische Harmonik und Ihre Krise in Wagners “Tristan” (ed. fs. da 3ª ed. 1923,
Hildesheim, s.ed., 1985). (N.E.)
No original, “... música e literatura e filosofia e da vida” (grifamos). (N.E.)
Isto é, Winifred. Cf. nota 8. (N.E.)
O ano de estréia de Tristão e Isolda, 1854, é considerado divisor de águas na história da música, porquanto
seus acordes iniciais abriram as portas da dissolução da tonalidade. Nesse sentido, Wagner foi mesmo um
revolucionário, o equivalente musical de Hegel e sua filosofia da dialética negativa, que por sua vez abriu as
portas do porvir revolucionário. (D.M.)
Mestre de todos
Jornal de Notícias, 26 out. 1948

N a segunda metade do século XVIII operou-se a maior revolução de que


se tem conhecimento na história da música: a voz perdeu o primado
milenar, cedendo aos instrumentos, reunidos na orquestra e governados pelas leis
da forma de sonata; instrumentos, objetos de madeira e metal, mas dotados agora
de todos os poderes de expressão da voz humana, da alma humana. Servirão ao
romantismo mais desenfreado e ao objetivismo mais exato, igualmente, quando a
música moderna, a partir daquela revolução, se encaminhará para descobrir
novos espaços invisíveis.
Um gigante miguelangelesco parece ter mudado os caminhos da arte, da
história íntima do gênero humano. Mas não foi tanto assim. O profeta Elias
também esperava ouvir a voz de Deus no vento forte que fende as montanhas,
despedaçando os rochedos, mas – diz a Bíblia – “o Senhor não estava no vento; e
depois do vento, veio um terremoto; mas o Senhor não estava no terremoto; e
depois do terremoto veio um fogo; mas o Senhor não estava no fogo; e depois do
fogo, havia um silêncio, e uma voz baixa e suave” – e nessa calma estava o
Senhor. O tocsin daquela revolução musical também era apenas um inofensivo
golpe de timbal, seguindo pelo acorde Dó Maior, o mais simples, o mais puro
dos acordes musicais. E quem deu o golpe parece-se muito com a imagem que as
crianças se fazem do Senhor: um velho afável cheio de bondade, um avô celeste
– e é assim que ele nos olha do céu das harmonias, o pai da música moderna, o
mestre de todos: papai Haydn.
Quase não se acredita. O filho de modestos camponeses austríacos e da época
aristocrática do Rococó, servindo durante 30 anos como “músico de câmara” ao
nobre príncipe Esterházy, vestindo sempre a farda de lacaio, decerto não foi
espírito revolucionário. Até nos dias de triunfo, quando o público de Londres o
celebrava, Haydn não se atreveu de surpresas maiores do que daquele
humorístico golpe de timbale, no movimento lento da sinfonia chamada La
Surprise, para acordar os ouvintes adormecidos no concerto. E mesmo esta
história parece anedota, assim como a história de outra sinfonia, chamada
Despedida: os músicos do príncipe Esterházy pediram férias para visitar suas
famílias; e quando o príncipe hesitava em concedê-las, Haydn compôs uma
sinfonia na qual um por um dos músicos, acabando sua parte, saiu da sala em
pontinhas de pés, até enfim o “mestre de câmara” se encontrar sozinho com o
príncipe, que então compreendeu. Mas há profunda significação nessas anedotas
inofensivas. Aquele golpe de timbale traduziu, para a linguagem da música do
Rococó, um sinal grande e terrível. E aqueles músicos fardados de lacaios que
saíram na pontinha de pés, entrando em férias sem lhes ter sido dada a licença,
não voltaram mais. Férias do ancien régime. Na música de Haydn, que parece a
Sinfonia de Despedida do Rococó, inicia-se uma nova época histórica.
Scarlatti e os filhos de Bach já elaboraram a forma de sonata; Sammartini já
escrevera pequenas sinfonias; a orquestra já se formara sob a regência de Stamitz
e dos outros “gênios prematuros” de Mannheim; é demorada a gestação das
revoluções históricas, e limitado o papel até dos maiores indivíduos. Mas ao pai
Haydn, só a ele, pertence o quarteto. Depois de dois séculos de solistas, da voz
humana concertante, do cravo e do violino concertantes, é o quarteto de Haydn a
primeira música na qual não há solistas: as quatro partes têm os mesmos direitos,
nenhuma delas goza de privilégios nessa conversa urbana na qual ninguém
levanta demais a voz, conversa alegre, às vezes humorística mas nunca grosseira,
sempre bem educada, às vezes sentimental à moda do século que gostava de
lágrimas, mas sempre serena, séria. Será música burguesa? Nietzsche definiu a
arte de Haydn como “obra de uma inteligência genial limitada pelo moralismo
tímido”. Seria o contrário da música limitada de Beethoven. E este, que fora
aluno do velho – que aluno! – dizia numa hora de mau humor: “Não aprendi
nada com Haydn”. Em face de um quarteto de Beethoven, todos os 77 quartetos
de Haydn se esquecem como se fossem de mero precursor. Até em comparação
com Mozart, em cuja música de câmara, tantas vezes trabalhada com mera
rotina, tantas outras vezes se abrem perspectivas para a profundidade do coração
e as angústias do mundo – a música de Haydn já parece pertencer a um passado
remoto, de uma idade idílica irremediavelmente perdida, de um paraíso de
crianças do qual já nos despedimos para sempre. Mas na verdade o pai daqueles
77 quartetos está sempre presente entre nós: não é o passado, e sim o futuro,
mestre de todos.
O equívoco produziu-se justamente em virtude do fato de que Haydn era um
artista revolucionário. O seu acorde Dó Maior que hoje nos soa tão puro, tão
inofensivo, quase primitivo, foi na verdade o acorde fundamental de uma nova
arte em que as qualidades da música italiana e da música alemã se reuniram de
maneira tão perfeita que o último cume da arte parecia atingido. Fala-se de
“Escola de Viena”. Haydn, Mozart, Beethoven constituem a trindade sacra dessa
religião musical, e dentro desse esquema, que entrou na rotina das histórias da
música, Haydn não é apenas o mais velho, mas também “o menos perfeito”,
ainda não plenamente consciente dos recursos instrumentais que ele mesmo
criara; espécie de precursor de coisas mais sérias, mais transcendentais. Mas esse
esquema já é insustentável. A observação do fato de que Haydn, tão sensível ele
mesmo aos encantos da música mozartiana, não influenciou na música do amigo,
que no entanto, mais novo de 24 anos, já o venerava como pai – o fato basta para
invalidar aquele esquema historiográfico. Depois, a redescoberta de Bach e dos
velhos italianos abalou o monopólio da “Escola de Viena”; há outros nomes,
igualmente dignos da nossa admiração e talvez mais. Desse modo chega-se a
distinguir nitidamente duas linhas de evolução diferentes. Em Bach realizou-se
pela primeira vez a síntese da música alemã e da italiana; neste sentido (mas só
neste) seu filho Carl Philipp Emanuel é seu herdeiro; e este é o precursor
imediato de Mozart, cume insuperável da música vocal. A outra linha, a da
música instrumental, nasceu com um filho de camponeses numa modesta casa de
aldeia da Áustria Baixa. Um quadro, representando esta casa, encontrava-se na
parede do quarto de dormir do homem que afirmou não ter aprendido nada com
Haydn; mas quando ele, que acabara de escrever os últimos quartetos, acordou
por um instante da agonia, se lembrou de dias passados e, fitando aquele quadro,
dizia aos presentes: “Vejam essa modesta casa na qual nasceu um homem tão
grande, o mestre de todos nós”.
Casa modesta, homem modesto, mas a sua música foi maior do que ele
mesmo. Não foi modesta, e sim revolucionária. Um golpe de timbal, e que
modificou o aspecto do nosso mundo. Mas foi uma revolução construtiva, talvez
a mais construtiva de todas. O manifesto dessa revolução está escrito em estilo
geométrico; é a mais rígida, a mais exata de todas as formas artísticas, a forma
de sonata, porém capaz das modificações mais imprevistas, de extensões
surpreendentes. No início, soava na sonata moderna, na haydniana, só um
instrumento: o cravo. Depois dois instrumentos, depois três, depois quatro, no
quarteto, enfim um coro de instrumentos, a orquestra, da qual Haydn excluiu
(mais um feito revolucionário) o cravo para se evitar qualquer exibição
privilegiada do solista. “Arte geométrica”?, sim, porque possuía a qualidade
inata de estender-se sem limites assim como os espaços infinitos da geometria
euclidiana. Enfim, era a imagem musical do próprio Universo. O velho afável,
cheio de bondade, que descobriu esses espaços infinitos do espírito, fora
realmente criado à imagem de Deus, não do Deus das crianças, mas de todos
nós.
Contudo, muitos não encontram a dimensão do transcendental nessa conversa
urbana de instrumentos na qual ninguém levanta demais a voz. Acontece assim,
porque o transcendentalismo de Haydn não se encontra lá onde o procuram: na
sua música religiosa. Ali ele é realmente o representante do espírito burguês,
sincero, mas sem profundidade. A mais bonita das suas missas, a In tempore
belli (em dó maior) já exprime sentimentos menos angustiados do que
preocupados. A Criação, enfim, é o evangelho musical de um deísmo moderado.
Música sacra, prudentemente laicizada. No entanto, a música de Haydn tem uma
coisa em comum com a música eclesiástica da idade polifônica, coisa pela qual
ambas se distinguem da época italiana: nem na igreja de Palestrina e Lasso nem
no quarteto e na sinfonia de Haydn há solistas; as vozes dos cantores, lá e cá dos
instrumentos, são todas iguais perante Deus. O quarteto de quatro vozes é a
forma laicizada do coral de quatro vozes.
Às vezes é uma conversa de quatro sujeitos prosaicos. Outra vez, é a
transfiguração das coisas terrestres, como naquele quarteto chamado Imperador
(op. 76, n.º 1, em dó maior), em cujas variações sobre o hino austríaco cantam
todos os anjos. E os largos e andantes já pré-beethovenianos do mestre! Aí já
está superado o sentimentalismo burguês do bom velho que gostava de chorar, à
moda do seu tempo; no Andante da Sinfonia em sol maior, no Largo do Quarteto
op. 76, n.º 3 se antecipam os acordes transcendentais dos movimentos lentos de
Beethoven, e mais do que isso todos os frissons misteriosos da música
romântica. Haydn fica sempre sereno, objetivo. Em século futuro, depois de
excessos de subjetivismo, um Alban Berg, um Prokofiev voltarão à forma de
sonata; o grande acorde Dó Maior de Haydn não é uma lembrança do passado
perdido, mas sim o sinal da possibilidade de uma nova ordem. De Schubert,
Schumann até Berg e Prokofiev, todos eles foram, como Beethoven, discípulos
seus.
Assim o próprio Beethoven o viu na hora da agonia: partindo da modesta casa
de aldeia da Áustria Baixa, para o reino das harmonias permanentes. A sua obra
teria sido uma grande “Sinfonia de despedida”. Mas lá, no céu, o velho afável,
cheio de bondade, fica presente: mestre de todos nós.
Bach
Letras e Artes17, 3 dez. 1950

O dia regente do coro de S. Tomás morreu às 9 horas e 15 minutos da noite, no


28 de julho de 1750. Nos últimos tempos fora grande sua solidão de
cego. Tinham-no apreciado como o maior organista e pianista do século. Ainda
há pouco o rei Frederico II, da Prússia, interrompera uma sessão do Conselho de
Estado para receber “o velho Bach”. Mas o rei já não gostava da arte
contrapontística que os próprios filhos do mestre achavam seca, matemática,
“sem sentimento”. O velho Bach fora solitário como, no seu Concerto n.º 1 em
ré menor, a voz do pianoforte em meio das ondas do acompanhamento que
parece o próprio Universo, transformado em música.
Agora, 29 de julho de 1750, esses dedos tão admirados não tocarão mais. Só
ficarão uns ossos. O próprio túmulo em cima desses ossos será esquecido; não
puseram lá o nome. Ficou apenas uma palavra incompreendida, um flatus vocis,
o nome Bach.
Mas o nome B-A-C-H, igual a Si bemol-Lá-Dó-Si, é mesmo um tema musical.
Para reviver só precisa de um ritmo, talvez daquele ritmo de marcha que
caracteriza as invenções melódicas do mestre, símbolo da caminhada do homem
por esse vale de lágrimas e também da vida póstuma de João Sebastião Bach.
A glória do virtuose Bach, como de todos os virtuoses, mal poderia sobreviver
à hora de morte. A do compositor nem tinha nascido, por motivos musicais e
outros. Aos alunos o mestre ditara no caderno: “A glória de Deus é o único fim e
objetivo da música e do baixo contínuo em especial”. Mas junto com o regente
de S. Tomás desapareceu também o baixo contínuo18, esse recurso supremo da
música barroca. Na nova arte sinfônica de Haydn o tema cantabile já não
precisava de contrapontos, ficando os instrumentos livres para acompanhá-lo,
desaparecendo o baixo contínuo e com ele todas as obras que dele se serviram,
caindo no abismo do esquecimento revolucionário assim como o século XVIII
inteiro foi devorado pela Revolução. Outros tempos. Por pouco Bach, visitando
o rei em Potsdam, teria lá encontrado Voltaire. Anacrônica a idéia do mestre de
reformar a música eclesiástica. Em vez de renová-la tinha conferido dignidade
sacral à música profana da sala de concerto (v. os estudos de L. Schrade, no
Journal of the History of Ideas, VII/2,19 e de H. Keller, in: Universitas, IV20). O
herdeiro, muito dissemelhante, dessa Ars Nova dirá, literalmente: “Baixo
Continuo e Religião são coisas acabadas sobre as quais não discuto” – disse isso
o maior poeta musical, Beethoven.
A vida póstuma de João Sebastião Bach não é assunto para divagações
poéticas. Bach não foi poeta, antes um arquiteto que calculava suas catedrais
invisíveis. Para escrever-lhe a biografia post mortem é preciso ficar tão sóbrio
como ele mesmo na famosa carta a Erdmann (28 de outubro de 1730), na qual,
expondo suas atividades musicais, não se esquece de calcular as gratificações
que recebe por “serviços fúnebres ordinários” e por “cadáveres extraordinários”.
Seu próprio funeral foi apenas ordinário. Os originais dos Concertos de
Brandemburgo, então ainda inéditos, só foram salvos pela intervenção de um
esquisitão: tinham-nos vendido por 30 tostões como papel de embrulho.
Esquisitões também foram os que editaram, no começo do novo século, as
Variações de Goldberg e o Magnificat. “Enfin, Mendelssohn vint”, regendo pela
primeira vez, em 1829, a Paixão de São Mateus. Descobriu-se, no “matemático
seco”, um mundo de sentimentos. Alguns sub-românticos honestos, Adolf Marx,
Rochlitz e outros, dedicaram-se à edição das Cantatas: depois das fugas vieram
as árias, a dramaticidade do mestre. Esse Bach do século XIX leva diretamente à
dramaturgia sinfônica de Wagner. É o Bach dos alemães.
Duvidaram se ele “estava consciente do seu gênio”. O Bach à maneira do
século passado é, como Hegel, um gênio universal vestido de filisteu alemão,
pequeno-burguês. Em 1894, destruindo o cemitério de São Tomás em Leipzig
para construir no lugar um edifício monstruosamente moderno, descobriram o
esqueleto. Peritos em medicina legal e menos peritos em escultura fabricaram,
conforme o crânio, um busto que serviu, por sua vez, de modelo a um retrato.
Surgiram retratos, esquecidos, da época. Pela primeira vez desde o 28 de julho
de 1750 o olhar intenso, “quase hostil” (Manuel Bandeira) do gênio fitou o
mundo. Acabara a época do sentimentalismo.
Só no século XX o “velho Bach” começou a influenciar diretamente a
produção musical. O dinamismo dos concerti grossi21 barrocos renasceu em
Hindemith. Stravinsky mandou tocar os Concertos de Brandemburgo “com a
precisão de uma máquina de costura”. Até a grã-finagem ficou interessada
quando Huxley citou, em Contraponto, a Suite n.º 2.22 É o Bach dos modernos.
Mais do que moderno, futuro, foi o jovem suíço Wolfgang Graeser, gênio que
acabou com 21 anos suicidando-se: coordenou e instrumentou a esquecida Arte
da fuga, a arquitetura imensa que termina com a fuga trina sobre Si bemol-Lá-
Dó-Si (B-A-C-H), interrompida no meio para ceder ao coral: “Perante o trono de
Deus apareço ...”.
Mas o assunto não é próprio para divagações poéticas. Bach é como aquele
disco da Columbia no qual estão gravadas, em um lado, a infinita espiral gótica
do coro Jesus, alegria dos homens e no outro a alegria profana da Badinerie
(Suite n.º 2). O Bach sacral também é o virtuose que ele foi em vida, da
Chaconne, das Variações de Goldberg. Virtuose sem virtuosismo. Nosso Bach,
além dos tempos, é o virtuosíssimo dos prelúdios-corais quando os toca no
órgão, congenialmente, o teólogo-médico Albert Schweitzer. O Bach cujas
complexidades contrapontísticas refletem a complexidade do Mundo criado.
Então, o mestre está outra vez sentado no pianoforte, como no terceiro
movimento do Concerto n.º 1 em ré menor – a voz do homem solitário em meio
do acompanhamento; a vida póstuma de João Sebastião Bach, continuando nas
ondas do Universo.
Suplemento dominical do Diário Carioca. (N.E.)
Acompanhamento típico do período barroco, em que um instrumento grave realiza uma seqüência de
acordes (blocos de sons tocados simultaneamente), que acompanha uma melodia solo, geralmente cantada
ou tocada por um instrumento solista, o que gera a textura (combinação de sons) da melodia acompanhada
ou homofonia, invenção característica do período. (D.M.)
‘Bach: The Conflict between the Sacred and the Secular’, __ (abr. 1946), pp. 151-194; disponível em:
http://www.jstor.org/stable/2707070. (N.E.)
‘J.S. Bach und die Säkularisation der Kirchenmusik’, __ (Stutgart, ano 2, n. 12, dez. 1947), pp. 1425-1434;
disponível em: http://www.hermann-
keller.org/content/aufsaetzeinzeitschriftenundzeitungen/1947jsbach.html. (N.E.)
Plural de concerto grosso (literalmente, “concerto grande”): idéia concebida pelo músico italiano
Alessandro Stardella (1645-1682) e posta em prática em 1675, consiste em alargar uma sonata-trio (sonata
para três instrumentos) com vistas à inclusão de um diálogo musical com um grupo maior de instrumentos
de cordas. (D.M.)
“Ficou interessada”: no original, “virou interessada”. (N.E.)
Beethoven
Letras e Artes, 17 dez. 1950
acaso da data – 17 de dezembro de 1770, dia do nascimento – lembra
O apenas um dever. A imensa popularidade de Beethoven, ao lado de Chopin
e Tchaikovsky (!), sugere imediatamente a profundidade dos equívocos. “Gostar
de Beethoven”, quer dizer, ficar comovido pelo aspecto mais superficial de sua
Obra, pela emoção romântica, não é a homenagem devida ao grande homem: é
uma ofensa ao grande mestre. Todos os dias, e não só hoje, uma personalidade
como a de Beethoven exige, de nós outros, um exame de consciência e uma
profissão de fé. Não quero fugir da exigência.
Não quero dizer, sinceramente, que Bach me parece mais puro, mais perfeito;
nenhuma criatura humana jamais se aproximou tanto de Deus. Também Mozart
habita regiões de perfeição superior. Mas Beethoven, menos puro, menos
perfeito, está mais perto de nós, de todos nós. Cada um tem de interpretar isso a
seu modo. Quem escreve estas linhas nasceu na cidade de Beethoven.23 Não
consegue afastar certas associações de um passado que ninguém nos pode
roubar: o Teatro de Ópera de Viena, escurecido depois da sinistra cena de
cárcere, em Fidelio, a orquestra começa grave, de repente a sala ilumina-se,
sobem irresistivelmente os violinos da Leonore n.º 3; as variações da Sonata de
Kreutzer parecem estilizar, sublimar velha canção vienense; em torno do túmulo,
no Cemitério Central de Viena, parecem soar os acordes líricos do Quarteto op.
132; mas foi preciso abandonar tudo isso. Com Beethoven não se chora, nem no
Andante do Trio Arquiduque que só pode ter uma significação; depois segue o
Allegro final, uma despedida alegre, embora para sempre.
No dia do enterro de Beethoven pronunciou-se, perante aquele túmulo, o
discurso fúnebre, redigido pelo poeta Grillparzer, em que se destaca a frase
seguinte: “Artista, ele foi: e quem poderia superá-lo?” Essas palavras, de 29 de
março de 1827, logo servem para destruir uma das muitas lendas sentimentais:
Beethoven não teria sido reconhecido pelos seus contemporâneos
incompreensivos. Na verdade, já em vida ele foi considerado como o maior de
todos. Os contemporâneos perceberam que essa poderosíssima personalidade
tinha realizado uma revolução como nunca houve uma em qualquer outra arte:
Beethoven tinha abolido o domínio da voz, estabelecendo o primado da música
instrumental, infinitamente mais rica apesar de ou porque lhe faltam as palavras.
Criou novo Universo sonoro, o nosso.
Mas existem, hoje, adversários de Beethoven. Não sei se Stravinsky continua
obstinado, condenando a “emoção barata dos violinos”.24 Mas ainda há quem
condenasse toda a evolução musical do século XIX, o romantismo, o
emocionalismo, a arte sinfônica, tudo isso, como caminho errado que levou a
música ocidental ao esgotamento completo; e, embora admirando-se a força
sobre-humana do iniciador desse caminho, está Beethoven sendo
responsabilizado pelo desastre.
A acusação nos deixa perplexos. Ele poderia ser o maior de todos e no entanto,
sub specie historiae, errado. Miguel Ângelo, que é a única personalidade
artística comparável a Beethoven, também desgraçou um século de sucessores e
imitadores. Ao meu ver, só há um recurso para aproximar-se da grandeza
permanente do mestre: através do reconhecimento franco do que há nele de
relativamente fraco e imperfeito.
Antes de tudo seria preciso restabelecer a hierarquia dos valores, perturbada
por preferências pouco motivadas. Conforme opinião unânime dos
conhecedores, a IX Sinfonia não é a maior das beethovenianas: preferem a V ou a
VII; preferem, em geral, às sinfonias, as sonatas e os quartetos; e a obra máxima
desse compositor instrumental por excelência é para vozes humanas, é a Missa
Solemnis.
Já estamos longe de apreciar este último fato, estupendo, à maneira tola dos
wagnerianos que consideravam a música vocal do último Beethoven como
embrião, ainda “imperfeito”, do drama sinfônico do mestre de Bayreuth; ao
contrário, esse caminho que levou à dissolução da harmonia no cromatismo de
Tristão e Isolda, já se revelou como beco sem saída. Mas tampouco teve futuro o
caminho contrário, o de Brahms, que sacrificou a inspiração a um formalismo
rígido, apenas pseudo-beethoveniano.25 Mas seria injusto responsabilizar
Beethoven pelas dificuldades dos seus sucessores. A conclusão tem de ser outra.
O exemplo de Brahms apenas revela a incompatibilidade entre as formas
clássicas, haydnianas, mozartianas, e a psicologia beethoveniana das emoções. O
finale vocal da IX Sinfonia apenas foi uma das muitas tentativas de Beethoven
para fugir daquele formalismo. Depois de ter dito tudo, num primeiro Allegro,
num Scherzo, num movimento lento, não foi possível, para Beethoven, voltar ao
état d’âme primeiro, assim como fizeram sem escrúpulo seus predecessores. Em
muitas grandes obras de Beethoven, o último movimento é a parte mais fraca; às
vezes, um Rondo que não suporta o peso dos movimentos anteriores. Então, quis
fugir do esquema. Na IX Sinfonia, escolheu o coro; na Sonata op. 106, a fuga; na
Sonata op. 3, variações. Os finais de Beethoven, em sua última fase, viraram
abstratos: representam uma supermúsica que já não é deste mundo. Naquele
discurso fúnebre de 1827, o contemporâneo já o disse bem: “Beethoven
exprimiu tudo, tudo. Seu sucessor não poderá continuar; deverá começar de
novo. Pois o mestre só acabou no ponto em que acaba a arte”.
Sabemos que os sucessores não obedeceram a essa advertência. Em vez de
começar de novo, continuaram. Mas não tem culpa disso aquele cuja Missa,
últimas sonatas e últimos quartetos constituem um corpus musicum metafísico,
superior a tudo que o espírito humano já imaginou. Por isso, parece-nos tão
sinistra a frase seguinte de Spengler: “Virá o dia em que uma página de
Beethoven será mero pedaço de papel, tão indecifrável e incompreensível como
são os fragmentos de música grega”. Mas a advertência é boa: até o maior dos
homens ainda é criatura, com todas as fraquezas humanas.
Embora Beethoven tenha nascido em Bonn, na Alemanha, Carpeaux se refere a Viena, onde ele próprio
nasceu, como a cidade de Beethoven porque o compositor ali viveu a maior parte de sua vida e maturidade
artística, onde também faleceu envolto em glórias de herói nacional. (D.M.)
Nove anos após a publicação deste ensaio de Carpeaux, Stravinsky admitiu em Conversas com Igor
Stravinsky (1959) que Beethoven foi o maior orquestrador de todos os tempos e sua principal fonte de
inspiração. (D.M.)
Hoje sabe-se que a obra de Brahms está acima desse “formalismo rígido”, julgamento impreciso em grande
parte difundido por wagnerianos que, alimentando polêmicas contra Brahms, reivindicavam a herança de
Beethoven para Wagner, já que muito os incomodava a crítica unânime de que a primeira sinfonia de
Brahms fora considerada a décima sinfonia de Beethoven quando de sua estréia triunfal em 1876. (D.M.)
Música, doce música?
nm
Letras e Artes, 14 out. 1951

S ão inúmeros os que amam a música, a verdadeira, a que os vendedores


de discos chamam, com soberano desprezo às diferenças cronológicas e
estilísticas, de “música clássica”. No entanto, assim como a mão direita não tem
de saber o que está fazendo a esquerda, assim os ouvidos parecem constituir um
departamento estanque na economia intelectual e espiritual da pessoa: a música é
coisa à parte. Da pessoa?, que digo, se na economia da própria civilização
observa-se o mesmo fenômeno? Já não se estudam, na historiografia, só as
batalhas e os destinos de reis, generais e ministros; os próprios manuais didáticos
também dedicam, à margem por assim dizer, um pouco de espaço à história da
economia, das ciências, das letras, das artes plásticas – mas nem sequer nessa
margem têm lugar para as cinco linhas em que possam abrigar-se as notas de um
Beethoven ou Debussy. Taine falou-nos da sociedade, da arquitetura, das letras
que constituem o estilo Luís XIV: de Colbert e Madame de Sévigné, Le Brun e
Le Nôtre, Racine e La Fontaine. Mas quem já ouviu a música que acompanhou,
na capela real de Versalhes, as missas do rei? Ou a que enfeitou as farsas de
Molière? Dizem que a Alemanha, entre 1680 e 1750, experimentou seu período
da mais profunda decadência, sendo o país, intelectualmente, um deserto; mas
essas duas datas também encerram a vida de João Sebastião Bach. Ninguém
compreenderia plenamente o romantismo sem ter ouvido Schumann, Chopin e
Berlioz. Mas a quem já ocorreu reconhecer no rompimento pessoal entre
Nietzsche e Wagner um ponto crítico da história moderna? E a temporada do
ballet russo em Paris terminou quando começavam a troar os canhões no Marne,
“finie la douceur de vivre”...26 No entanto, a música continua considerada coisa à
parte.
Esse isolamento explica o destino adverso de dois dos maiores monumentos
literários do nosso tempo: Glasperlenspiel27 e Doutor Fausto.
O nome da primeira dessas obras é quase intraduzível. Realmente, o Prêmio
Nobel concedido a Hesse – costuma ser a mais eficiente publicidade no reino das
letras – não levou ninguém, em parte alguma, a traduzir a última e maior das
suas obras; e esse romance trata, embora de maneira muito especial, da música.
Pode-se afirmar o mesmo com respeito ao Doutor Fausto, de Thomas Mann: nos
Estados Unidos foi um fracasso completo. Nem se venderam 30.000 exemplares.
Os reviewers comuns chamavam o livro indigerível. Mas a vanguarda não se
comportou melhor. Nem quero falar de um Philip Blair Rice que tomou ao pé da
letra a comparação irônico-simbólica do herói do romance com Fausto, tecendo
comentários em torno de mitologia e feiticeiros.28 Até um crítico tão inteligente
como Blackmur falou de tudo, a propósito de Doutor Fausto,29 menos daquilo
que constitui o próprio assunto do livro: da música.
A história de Andreas Leverkuehn, do novo Fausto, é a epopéia da decadência
social e espiritual da Alemanha, entre 1880 e 1940. Os dois, o artista genial e seu
país, enlouquecem juntos, caindo no abismo da perversão diabólica. Mann
aproveitou largamente, para a história imaginária do seu herói, a biografia de
Nietzsche. Mas ao representar o problema tipicamente alemão – a confusão
inextricável entre o gênio e o demoníaco – transformou seu modelo, o pensador,
em compositor. Pois arte especificamente alemã lhe parece a música.
Teria sido inacessível o livro, por isso, aos estrangeiros? Os problemas alemães
apenas costumam ser casos extremos de problemas gerais. Nossa civilização
inteira fez progressos espantosos ao preço de tornar-se demoníaca. Mas, num
outro sentido, a incompreensão demonstrada pelos leitores e críticos americanos
é caso especial de certos preconceitos tipicamente modernos. Cada vez mais se
desconhece hoje a substância da cultura; e sobretudo os americanos acreditam
poder substituir a disciplina espiritual pela disciplina organizadora. Mas a
organização, sobretudo quando muito eficiente, é maravilhosamente capaz de
pôr-se a serviço das forças elementares, irracionais e incalculáveis. Thomas
Mann, instruído pela experiência do fascismo, sabe isso muito bem: – e chega a
constatar que a expressão própria daquelas diabólicas forças elementares é a
música.
Num episódio do romance de Mann aparece o retrato do velho Meyerbeer, hoje
esquecido, que foi considerado, na época, como expressão artística do
liberalismo, arrancando ao compositor conservadoríssimo Hiller o suspiro:
“Meyerbeer? Mas eu não gosto de falar de política.” A frase aplica-se muito
melhor ao sucessor de Meyerbeer (que o renegou), a Wagner, compositor
político por excelência. Este Wagner que arrancou a Nietzsche a confissão
dolorosa: “A música, minha arte predileta, me parece algo de suspeito.” No
sentido mais largo da palavra, toda música é suspeita, pelas suas relações
subterrâneas com a “confusion de la bestialité et de la métaphysique, de la force
et du droit, de la foi et des intérêts, du positif et du théatral, des instincts et des
idées”30 que é, conforme Valéry, a política. Parece lema do romance de Mann a
antiqüíssima sabedoria do filósofo chinês Mencius: “Quando se perturbam as
harmonias musicais, está na hora para anunciar a queda dos impérios.” Música,
doce música? Antes é terrível essa música.
Mann também acha. Para ele, formado em ambiente wagneriano, a música é,
antes de tudo, fortíssima emoção. E, com efeito, a música seria símbolo de
enchentes que rompem os diques da civilização humana, se a exaltação mística
ou submística não fosse dominada pela exatidão matemática dos ritmos, das
formas contrapontísticas, de esquemas como o da sonata. A música é emoção,
sim, mas emoção intelectualmente disciplinada: supremo modelo de toda
disciplina. A música é Inferno, Purgatório e Paraíso ao mesmo tempo.
Essa “multidimensionalidade” da música não entra nas definições de Mann,
cujo conceito de arte sonora oscila entre os pólos Beethoven e Wagner. No
universo musical de Mann não há lugar para Bach.
O nome de Bach define, sem que fosse pronunciado, a música de que trata a
obra de Hesse: o Glasperlenspiel.
O romance passa-se num futuro longínquo, daí a mil anos, quando nossa
“civilização jornalística” já terá destruído raças e continentes inteiros. Salvou-se
a cultura numa província isolada, na Castália, onde espécie de confraria se
dedica ao “Glasperlenspiel”. Talvez seja possível traduzir: jogo de vidrilhos. O
aparelho, imensamente complicado, parece-se com brinquedo: inúmeros
vidrilhos enfiados como numa máquina de calcular para crianças, representando
uma infinidade de combinações a exemplo das que existem na matemática, na
gramática, nos misteriosos arabescos do Oriente antigo. Esse jogo é símbolo do
mundo das abstrações. Por isso mesmo, aquela confraria, embora vivendo daí a
mil anos, não tem nada de utópico: é tão velha como o pensamento humano.
Existiu sempre: e sua “língua sacra”, a língua litúrgica do “jogo de ladrilhos”, é a
música.
A arte das combinações contrapontísticas é permanente, inalterável. Não está
sujeita à lei da morte. Nada poderia destruí-la porque existe, como a música de
Bach, separada da vida. O símbolo desse isolamento é, no livro de Hesse, o fato
de que o “mestre do jogo”, ao chocar-se com o mundo lá fora, perece. Seria fácil
dizer que reside nesse desfecho simbólico a fraqueza irremediável da grandiosa
obra: o ar, no romance de Hesse, é tão rarefato que nem se pode respirar. Mas
ninguém, com exceção daqueles “mestres do jogo”, está com a obrigação de
viver permanentemente em Castália. É o país dos domingos da nossa alma. Cuja
existência nos garante que o demônio está preso, em baixo deste nosso mundo-
purgatório. E que existe, à parte mas não inacessível, o céu da música.
“Finda a doçura de viver...”. (G.Z.)
Publicado no Brasil como O jogo das contas de vidro. (N.E.)
‘The Merging Parallels: Mann’s ‘Doctor Faustus’’, The Kenyon Review (Gambier, vol. 11, n. 2, 1949), pp.
199-217; disponível em: http://www.jstor.org/stable/4333036. (N.E.)
Richard Palmer Blackmur, ‘Parody and Critique: Notes on Thomas Mann’s Doctor Faustus’, The Kenyon
Review (vol. 12, n. 1, 1950), pp. 20-40; disponível em: http://www.jstor.org/stable/4333111. (N.E.)
“Confusão da bestialidade e da metafísica, da força e do direito, da fé e dos interesses, do positivo e do
teatral, dos instintos e das idéias” (em Regards sur le monde actuel, citação de memória). (G.Z.)
Beethoven em Viena
Letras e Artes, 24 jan. 1954
Otúmulo de Beethoven no Cemitério Central de Viena, obelisco baixo
distinguido apenas pelo nome, é o centro de uma espécie de panteão ao ar livre:
velhas árvores ensombram as últimas jazidas de Gluck e Haydn, Schubert e
Brahms, Bruckner, Wolf, Mahler e o cenotáfio de Mozart. Em junho do ano
passado tive oportunidade de demorar-me perante aquele obelisco sem
ornamentos; e enquanto me passava insistentemente pela cabeça, não sei por
que, o trio queixoso do segundo movimento da Sonata para violoncelo, op. 69,
pensei na imensa solidão daquele homem, separado, como por um abismo, dos
seus grandes sucessores e dos seus maiores precursores; e dos seus
contemporâneos.
A solidão de Beethoven em Viena e na sua época desmente todas as fraquinhas
tentativas de explicar a obra de arte como produto do “momento histórico”. O
grande musicólogo inglês Tovey, homem de temperamento humorístico,
costumava enfurecer-se quando lhe falavam de “Beethoven como filho da
revolução francesa”.31 Com efeito, é um absurdo. No entanto, quase escandalosa
é a exclusão da música dos quadros da chamada “história da civilização”; pois
justamente essa arte sem conteúdo registra com sensibilidade de sismógrafo as
imperceptíveis modificações do gosto de uma época: do gosto e da estrutura da
sociedade que o cultiva.
As mais felizes tentativas, talvez, de ler a música como expressão (não como
produto) do momento histórico encontram-se na Decadência do Ocidente, de
Spengler. Memorável, sobretudo, é o trecho, no primeiro volume, sobre a feição
musical das artes plásticas do Rococó, sobre a progressiva musicalização da vida
entre o tempo de Bernini e o de Tiepolo, sobre o allegro fugitivo das
arquiteturas, móveis e espelhos; sobre a música de câmara, luminoso outono de
uma civilização que morreu em Viena, no tempo do Congresso... Mas qual teria
sido, nessa Viena, o lugar de Beethoven? Nem sequer sua música de mocidade
se enquadra bem no rococó das pastoras de porcelana. Maduro, o compositor
antes parece, realmente, “filho da Revolução” e o maior mestre do estilo Empire,
heróico e grandioso. Enfim, só depois do Congresso de 1814 criou as obras,
inteiramente diferentes, do seu último estilo.
Uma velha convenção da historiografia musical manda distinguir três fases na
evolução de Beethoven. Primeira fase, meio graciosa, meio patética: o Septeto e
a Sonata Patética, os primeiros quartetos, a segunda sinfonia e o terceiro
concerto, as sonatas opp. 26 e 27. Segunda fase: a das grandes sinfonias e
sonatas, concertos e aberturas e dos quartetos Rasumovsky, até o Trio
Arquiduque. Terceira fase, a abstrata, espiritualizada: a Missa Solemnis e a IX
Sinfonia, as quatro últimas sonatas, as Variações de Diabelli, os últimos
quartetos.
Com exceção de uma adorável obrinha de ocasião, que é o Septeto, Beethoven
nunca foi um compositor Rococó. Abstraindo de reminiscências ligeiras, quase
inevitáveis, nunca teve nada com o gênio musical do Rococó: com Mozart. Na
mocidade, Beethoven é, quase contra sua vontade, discípulo de Haydn.
Nenhuma das obras de Mozart poderia ser atribuída ao jovem Beethoven; mas
sim os quartetos op. 76, n.º 2 e op. 77, n.º 2, dos últimos de Haydn. Quem não
aprecia (ou pior: não conhece bastante) o gênio que uma historiografia absurda
considerava como pai ou avô alegre e meio imbecil, não tem o direito, quase, de
admirar Beethoven.
Felizmente, já mudaram as coisas. Hoje, estamos melhor informados sobre o
fundo espiritual da Obra de Haydn, criador de formas nas quais se conseguiram
exprimir um Beethoven, um Schubert e um Brahms. O velho mestre foi mistura
encantadora de requinte artístico e ingenuidade esperta de camponês, tradição
católica e formalismo quase científico, ostentação aristocrática e racionalismo
burguês. É um conjunto que define a Viena de 1790. Mas não é um conjunto de
artes do Rococó. Talvez não tenha sido acaso o abandono em que Mozart, o
gênio Rococó, ficou nessa cidade e nessa época, nem seu espírito de oposição
contra os aristocratas feudais com os quais Beethoven, o “filho da Revolução”,
se daria tão bem. Aquele conjunto de tradições aristocrático-católicas, bom senso
burguês e espírito de exatidão matemática corresponde melhor ao estilo que até
hoje domina todos os aspectos de Viena: ao barroco.
De outro mundo barroco, da Renânia católica, veio o jovem Beethoven para
Viena; e logo se sentia em casa. Mas esse barroco já não é, evidentemente, o do
século XVII: está profundamente modificado; não por influências do Rococó,
mas sim pelo racionalismo ilustrado do monarca, do imperador José II, por certa
sobriedade quase heróica que gosta de citar, nas letras e na escultura, os velhos
romanos. O estilo vienense de 1790 antecipa o Empire de Napoleão. O maior
músico desse estilo morrera em Viena, antes de Napoleão, antes mesmo da
Revolução: é Gluck. Parece que Beethoven não gostava muito dele. Mas sua arte
passou mesmo por esse filtro, para dar as obras heróicas de sua segunda fase.
Com razão, os historiadores falam, lembrando-se da V e VII Sinfonia, de Egmont
e Coriolano e do Concerto op. 73, em classicismo vienense.
Essa época acabou com a queda de Napoleão. Viena, depois do Congresso de
1814, vira idílio pequeno-burguês, berço de uma arte intensamente popular,
dignificada pelos reflexos do humanismo goethiano. Assim se define Schubert, o
gênio da nova era.
Nesse ambiente não havia lugar para Beethoven. Isolado, criou as obras
abstratas, espiritualizadas, dos seus últimos anos, obras como a Sonata op. 111,
as Variações de Diabelli, o Quarteto op. 132, que não têm relação alguma com
qualquer estilo anterior, contemporâneo ou posterior.
Nada seria mais fácil, agora, do que abusar das qualidades metafísicas daquelas
obras para lembrar, com sentimentalismo barato, a solidão do túmulo no
cemitério de Viena. Justamente por isso será preferível focalizar-se as questões
metodológicas, de crítica crociana e post-crociana, não bastante conhecidas fora
da Itália e ainda não discutidas, ao que saiba, com respeito à música. A
indignação de Tovey, contra os que pretendem explicar a liberdade de Beethoven
pela Revolução, atinge o determinismo do método histórico. Determinístico
também é, aliás, o biografismo que explica o abstracionismo do velho Beethoven
pela surdez. Esse determinismo, próprio dos críticos do século XIX, indica, na
aparência, as causas dos fenômenos artísticos; na verdade, os desvaloriza,
rebaixando-os a meros efeitos, parte de passado morto. Não assim o método
historicista: procurando o momento histórico da época e o da evolução do
artista-indivíduo nos pontos em que se encontram; pois assim, apenas, entram na
composição da obra de arte que tem existência autônoma.
Cf. o ensaio “Um crítico de música”, p. XXX, dedicado a Tovey. (N.E.)
Così fan tutte
Correio da Manhã, 29 jul. 1955

N o Teatro Municipal será hoje levada à cena, pela primeira vez no Brasil,
Così fan tutte, opera buffa de Mozart.32
Ausente do Rio de Janeiro, por uns poucos dias, o responsável por esta seção
não terá oportunidade de assistir à estréia.33 Assistirá, sim, a uma das
representações posteriores, para oferecer, depois, aos leitores sua crítica
competente. Mas o fato de a obra-prima de Mozart ser nova para o público
brasileiro justifica, talvez, algumas palavras de apresentação prévia.
O fato é estranho, sim. Mas não precisamos sentir muita vergonha pelo atraso
de mais de um século e meio. Pois durante o século XIX inteiro Così fan tutte
também não foi, quase, representada na Europa, nem sequer no próprio país do
mestre. Ninguém duvidou jamais da abundante inspiração musical da obra, cheia
das mais encantadoras melodias mozartianas. Mas o moralismo da época não
agüentou o libreto.
Convenhamos: o texto do abade Da Ponte34 não peca por excesso de
sentimentos nobres ou de idealismo platônico. Ferrando e Guglielmo pretendem
pôr à prova a fidelidade das suas amantes Dorabella e Fiordiligi. Despedem-se,
antes de suposta viagem. Voltam logo, fantasiados de estrangeiros. E não lhes
custa muito conquistar os corações levianos das moças. Embora Mozart, mestre
da arte de caracterização musical, tenha conseguido criar quatro personagens
bem definidos, não fez esforço nenhum para aprofundar o enredo, a propósito do
qual já se falou de “baile de máscaras das afinidades eletivas’’. A realidade dos
sentimentos está conspicuamente ausente. Até as árias mais lindas de Dorabella
e Fiordiligi têm algo de mentiroso. Personagem real, deste mundo, só é o baixo
Alfonso, que comenta cinicamente os acontecimentos no palco: “Così fan tutte”.
Assim são todas elas.
O século da burguesia não podia deixar de ficar indignado, em face dessa
apoteose da frivolidade do Rococó aristocrático. O libreto, diziam, teria sido
digno do abade Da Ponte, aventureiro veneziano que depois de uma vida devassa
de jogador e alcoviteiro morreu na miséria, merecidamente, como lamentável
professor de italiano em Nova York (quarenta anos depois da Revolução
Francesa que acabara com os abades dessa espécie). Mas o libreto teria sido
indigno do artista celeste que foi Mozart. Sentença que parecia inapelável. E um
mundo de beleza musical estava condenado ao silêncio, por muito tempo.
Não tinham percebido a ironia que satura o libreto de Da Ponte. Este foi
aventureiro, sim, mas um dos melhores libretistas de todos os tempos. O próprio
Mozart, cuja vida não foi propriamente de um santo, parece ter participado de
mais de uma das aventuras do veneziano. Decerto participou ativamente do
trabalho literário de um homem que lhe oferecia versos de alta musicalidade e
enredos de perfeita lógica dramática. Só o libreto de Così fan tutte não é nem
dramático nem lógico. É de um absurdo que ao menos inteligente não pode
escapar. Só pode ter sido intencional essa falta de lógica. Così fan tutte, opera
buffa, é paródia da ópera séria do Rococó, que, por sua vez, não foi muito séria.
Em compensação, a estrutura das cenas adapta-se perfeitamente à lógica
musical, ao desenvolvimento formal das inspirações temáticas. É um libreto bem
mozartiano.
Pois, que é Mozart? Em primeira linha, um mestre da forma. Não nos falem em
artifício. Toda forma artística é, em certo sentido, artificial. Artificiais, nesse
sentido, são as criações mais perfeitas de Mozart, seus concertos para piano e
orquestra. A música para libreto tão deliberadamente artificial como o de Così
fan tutte só lhe podia sair perfeita, de beleza aristocrática.
Mas a música não é só forma.35 É, igualmente, formalógica e impulso-emoção.
E a emoção que domina a Obra toda de Mozart é a erótica. A perfeição formal de
sua música é um freio que impõe ao caos dos sentimentos e instintos a
compostura de uma civilização aristocrática. No entanto, o perigo de que fala
Othello36 num verso famoso (“Chaos is come again”) sempre estava presente. O
erotismo podia ser a força motriz de veleidades de revolta, em Le nozze di
Figaro, ou de inversão diabólica de todos os valores, em Don Giovanni. Mas
Così fan tutte situa-se exatamente no meio entre essas duas obras. Não é tão
sutilmente subversiva como a primeira nem tão febrilmente dramática como a
segunda. Só é bela. Leva-nos magicamente, por duas horas, para um outro
mundo: não é, decerto, um mundo melhor, mas, sim, mais lindo.
Encenada na cidade do Rio de Janeiro em 29 jul. 1955: com Hugo Balzer (regente), Frank de Quell
(régisseur), Santiago Guerra (maestro de coro) e artistas dos Teatros de Munique e Viena; cenários de
Tomás Santa Rosa. (N.E.)
Eurico Nogueira França (1913-1992), musicólogo, crítico, autor de biografias e histórias musicais, auxiliou
Villa-Lobos na fundação da Academia Brasileira de Música. (N.E.)
Foi profícua a parceria de Mozart com Da Ponte, que rendeu três de suas obras-primas: além da ópera Così,
as aclamadas Bodas de Fígaro (K. 492) e Don Giovanni (K. 527). (D.M.)
A explicação de Carpeaux sobre a relação entre forma musical e impulso artístico espiritual é mais completa
e conclusiva que quase a totalidade dos estudos acadêmicos brasileiros do século XXI, o que demonstra,
sem sombra de dúvidas, que seu legado como crítico e historiador da música ainda não foi absorvido no
país que o abrigou. (D.M.)
Otelo. Grafia inglesa no original. (N.E.)
Dvorák e o folclore musical
Diário do Paraná, 30 out. 1955

S empre me admirei porque Dvorák não se encontra entre os compositores


preferidos dos ouvintes brasileiros. Decerto, o tema do segundo
movimento de sua Quinta Sinfonia (Do Novo Mundo) tornou-se tão popular que
já caiu no domínio da própria música popular. Mas parece que só isto. O
qüinquagésimo aniversário de sua morte também passou, entre nós, quase
despercebido.37 Mas Dvorák é um grande nome; e com razão.
Poucos se lembram hoje das linhas em que Oscar Wilde o celebrou, falando de
sua música “apaixonadamente colorida”.38 Entendendo pouco de música, o
grande causeur só sacrificou, provavelmente, à glória que naqueles dias, no
mundo anglo-saxônico, aureolou o nome do compositor tcheco. Perguntado, não
saberia precisar a natureza daquele “colorido apaixonado”. Mas é fácil: é a
conseqüência de muitas modulações inesperadas e de uma grande vitalidade
rítmica. São duas qualidades que caracterizam a música folclórica.
A música folclórica é tão apreciada entre nós. Os nossos compositores
consideram o folclore como a verdadeira base da música brasileira. O
nacionalismo musical é hoje vitorioso em toda parte, inclusive e sobretudo nas
Américas. Vejam-se todos os russos, os húngaros Bartók e Kodályi, o tcheco
Weinberger, o norte-americano Gershwin, o mexicano Carlos Chávez, os nossos
Villa-Lobos, Mignone, Camargo Guarnieri. Mas Dvorák foi um dos pioneiros do
folclore musical e, especialmente, do folclore musical americano.
Não é, decerto, o maior dos folcloristas. Entre os seus próprios conterrâneos,
há quem prefira ao romântico algo reacionário o wagneriano Smetana ou o
moderno Janácek. Mas Dvorák é, talvez entre todos os folcloristas de todas as
nações, o músico mais despreocupado, o mais elementar; menos original, porque
mais perto das fontes. Suas obras principais, a Segunda, Quarta e Quinta
Sinfonia, as Variações Sinfônicas, o Concerto para violoncelo e orquestra, o
Trio Dumky, o Quinteto em lá maior, op. 81, o Quarteto para cordas em lá
maior, op. 105, e muita outra música de câmara, são experiências inesquecíveis
para quem já as ouviu. Não as prejudicou, parece, a fraqueza congênita do
mestre: quase sempre escreveu em formas clássicas, que nunca chegou, porém, a
dominar perfeitamente, porque sempre venceu sua natureza íntima de rapsodo
popular. A mais divulgada das suas obras continua aquela Quinta Sinfonia, Do
Novo Mundo, na qual o tcheco, trabalhando como regente de orquestra nos
Estados Unidos, aproveitou, como todo mundo sabe, pela primeira vez, melodias
dos pretos americanos, os depois tão famosos Negros Spirituals.
Todo mundo sabe disso. Mas, infelizmente, não é verdade. Acontece que as
melodias populares aproveitadas por Dvorák naquela sinfonia nunca podiam ser
identificadas. Alguém, desesperado, já pensou em canções de índios norte-
americanos. Stanford acreditava reconhecer melodias irlandesas, apenas
modificadas por ligeiro colorido africano.39 Outros negam. O musicólogo
americano W. R. Spalding, professor da Universidade de Harvard, afirma ter
ouvido a sinfonia em várias cidades européias e na própria Tchecoslováquia,
tendo ninguém duvidado da natureza eslava dos temas principais. Enfim, Adolfo
Salazar chamou a atenção para uma carta na qual o próprio Dvorák explica: a
sinfonia foi escrita na América, por um homem cheio de saudades da sua aldeia
tcheca.
Essa estranha história inspira-nos uma dúvida terrível: como foi possível
confundir música de pretos, índios, irlandeses e eslavos? Spalding, o musicólogo
citado, fala em “características comuns de toda música popular”. Posso
acrescentar a experiência de ter assistido, há anos, a um congresso internacional
de música folclórica, no qual, no segundo dia das audições, os peritos mais
experimentados já não foram capazes de distinguir música búlgara, chilena,
norueguesa, croata e certas canções dos árabes e berberes do norte da África.
Que é, afinal, o folclore musical?
A distinção que se impõe é entre música popular e música nacional.
O folclore popular, em sentido amplo, é uma fonte permanente de inspiração
musical. Domina toda a música antiga, dos velhos flamengos do século XV até
Bach, e especialmente Bach. A música aristocrática do século XVIII não passa
de um intervalo; e nele, a exclusão do folclore não é total. Depois, todo mundo
sabe como é forte a inspiração folclórica em Haydn, Schubert e Brahms (este
último tido como mestre formalista, antipopular, pelos que menos o conheciam).
Citei três compositores alemães, respectivamente austríacos. Mas eles não se
limitam ao aproveitamento do folclore musical alemão. Todos os três gostavam
intensamente de música eslava e especialmente de música húngara. Em Haydn e
Schubert, trata-se de falta de preconceitos nacionais, de parte de mestres
ingênuos (o que não tem, aqui, sentido pejorativo). Em Brahms, o interesse pela
música popular estrangeira é herança do romantismo.
Pois ao romantismo e pós-romantismo se devem a conquista do folclore
musical popular de todas as nações: o polonês Chopin, o húngaro Liszt, depois o
norueguês Grieg, os espanhóis Albéniz e Granados, e sobretudo os russos. Mas
esses compositores, e muitos outros, também gostavam de fazer excursões para
países estrangeiros. De Schumann ou Mendelssohn podem-se tirar lições de
geografia musical. Mas não passam do exotismo. O mesmo se diria quando o
francês Chabrier escreve obras para orquestra como Espagne40 e Fête polonaise.
Não seriam autênticas. E quando o russo Glinka, um dos pioneiros do folclore
musical russo, escreve, depois de Kamarinskaia, uma abertura Jota aragonesa?
Então, os espanhóis protestam, assim como protestam contra Carmen. Quer
dizer: quando o russo escreve música russa, é autêntico. Quando escreve música
espanhola, mente. O folclore virou nacionalismo.
Falando sobre assunto muito diferente, às novelas de Cervantes, diz o crítico
Joaquín Casalduero:
Que los extranjeros vayan a cualquier país en busca de lo pintoresco, encontrándolo, como es
natural, en lo menos elaborado que un país puede ofrecer, o en lo más estereotipado, es un hecho
comprensible; pero que los nacionales hayan rechazado las manifestaciones nobles para
reconocerse en lo grosero, es difícil de comprender.41
É esse protesto contra o estereotipado e o grosero que nos ajuda a distinguir
entre folclorismo e nacionalismo.
O folclorista Dvorák, incapaz de separar o folclore eslavo e o dos pretos norte-
americanos, não era nacionalista. Aproveitando a música popular só quis
escrever, pelo amor de Deus, música erudita e universal; ou, para falar com
aquele crítico espanhol, a música desse filho de camponeses tchecos é uma
“manifestación noble”.
Por isso Brahms lhe admirava o concerto para violoncelo, dizendo: “Por que
ninguém me disse que se pode escrever um concerto assim?”, também pensando,
sem dúvida, nas fraquezas de construção musical dessa obra confusa e no
entanto impressionante. Há pouco o crítico inglês Richard Gorer, a propósito da
execução de todas as obras de música de câmara de Dvorák na BBC, chamou a
atenção para certas aparentes incongruências tonais e de instrumentação do
famoso Trio Dumky, op. 90; chama a obra “misteriosa”: pois debaixo da
superfície folclórica revela-se, incompleta e por isso misteriosamente, a alma do
artista.42
Comove-nos imensamente, nas obras de Dvorák, o choro melancólico da
estepe eslava, o que Rilke, em seu pequeno poema Smichov, chamou de “canção
triste do povo tcheco”.43 Mas não é um manifesto nacionalista. É uma
manifestación noble.
50.º aniversário em 1.º maio de 1954. (N.E.)
‘The Critic as Artist, Part I’, em Intentions (1891): “He writes passionate, curiously-coloured things.”
(N.E.)
Charles Villiers Stanford & Cecil Forsyth, A History of Music (Nova York, Macmillan, 1916), p. 338;
disponível em: https://archive.org/stream/cu31924022441871#page/n7/mode/2up. (N.E.)
A rapsódia sinfônica España (1883). (N.E.)
Sentido y forma de las “Novelas Ejemplares” (citação elíptica). (N.E.)
‘The Chamber Music of Dvorak’, The Listener (Londres, vol. 52, n. 1.322, 1 jul. 1954), p. 37: “All in all,
the Trio is one of the most mysterious of the composer’s works.” (N.E.)
Equívoco do A.: o poema Hinter Smichov não contém a passagem; Carpeaux parece referir-se a ‘Die
Geschwister’ [Os irmãos], em Zwei Prager Geschichten [Duas histórias de Praga]. (N.E.)
Erik Satie
Correio da Manhã, 16 nov. 1955

P assou sob silêncio a primeira oportunidade de lembrar-se, à maneira das


comemorações oficiais, de Erik Satie. Morreu em 1925. Há precisamente
30 anos.44 Em vida, tinha provocado tanto escândalo. Agora, já virou verbete dos
menos extensos, nos dicionários de música. Esse silêncio em torno do seu nome
é significativo: dá a chave para apreciação justa de sua estranha obra e de sua
mais estranha personalidade.
Já não há escândalo em torno de Satie, porque seus esforços são reconhecidos
como infrutíferos: não se realizou. Mas também por outro motivo: porque certas
idéias suas, que escandalizaram os contemporâneos, são hoje aceitas por todos
como se fossem lugares-comuns da música.
Satie é um fenômeno sui generis: um artista sem gênio, até sem talento, até
sem competência para fazer música, entrou como influência profunda na história
da música.
Foi diletante em todas as profissões que exerceu: compositor, pianista, escritor,
escultor, desenhista. Em nenhuma delas criou obras permanentes; em todas,
provocou escândalo; em todas, deixou vestígios. Foi o tipo dos vanguardistas
irreverentes e, digamos a verdade toda, dos mistificadores da belle époque, do
tempo em que os boulevards eram o centro do mundo. O último desses
mistificadores é, hoje, Cocteau45. Mas este sabe fazer tudo, porque é hábil e
insincero. Satie foi sincero e impotente.
Satie nasceu pouco depois de Debussy e pouco antes de Ravel. Mas quando
Debussy ainda estudava com Massenet, e Ravel estava fazendo os primeiros
exercícios de dedos, Satie já tinha inventado o impressionismo musical, de que
suas Sarabandes e Gymnopédies talvez sejam os primeiros exemplos. Inventado
seria expressão justa: pois em Satie foi aperçu, o que cresceu organicamente em
Debussy e Ravel, fregueses assíduos, naquela época, do café Nouvelle Athènes,
em que Satie ocupava a posição oficial, mas pouco elevada de pianista.
Rompeu Satie com Debussy quando o impressionismo triunfou, com Pelléas et
Mélisande, no palco de ópera. Os dois homens chegaram a odiar-se, a insultar-se,
ao passo que Ravel sempre ficou admirador de Satie, “et pour cause”. Pois eram
incompatíveis o impressionismo neo-romântico de Debussy e o realismo
neoclássico, ao qual Satie se dedicou em seguida. Como todos os
revolucionários apóstatas, o ex-impressionista virou contra-revolucionário.
Chegou a matricular-se na conservadoríssima Schola Cantorum. Mas seu
classicismo também foi sui generis: por um lado, antecipou conquistas de Ravel;
por outro lado, antecipou certo realismo moderno. Assim as peças humorísticas
para piano, Descriptions automatiques, Embryons desséchés, etc. Assim o
melodrama Socrate, cuja lição se sente hoje nas obras de um Carl Orff.
Socrate é a obra-prima de Satie. Os contemporâneos teriam considerado mais
importante o bailado Parade, que causou grande escândalo antidebussyano. Mas
para essa obra já escreveu Cocteau o libreto, desenhou Picasso os cenários. Satie
entra em pleno modernismo. É, agora, contemporâneo de Apollinaire, dos
cubistas, de Dada. Começa a exercer influência no grupo dos seis46. Há mais: na
sua orquestra inclui sirenas, um revólver, uma máquina de escrever, um grupo de
garrafas. Antecipação da novíssima música concreta.
Enfim, no bailado Relâche, Satie se aproveitou do folclore. Mas, por mais
moderno que pareça isto, esse folclorismo significa sua saída do mundo das
permanentes novidades. Satie tirou as conclusões. Retirou-se para a solidão de
Arcueil. Ele, que fora compositor, pianista, escritor, desenhista, escultor,
encerrou a vida como carteiro rural...
Agora, está morto há 30 anos. Sobrevivem algumas das pequenas peças para
piano e o Socrate, cada vez mais raramente representado. Também
desaparecerão, provavelmente. Mas daí em outros 30 anos e ainda muito mais
tarde, o nome de Satie ficará inesquecido como hoje.47
30 anos em 1 jul. 1955. – Este texto de Carpeaux foi possivelmente reproduzido no Correio da Manhã (16
nov. 1955). (N.E.)
(1889-1963). (N.E.)
“Les Six”, grupo dos compositores Poulenc, Milhaud, Honegger, Auric, Durey e Sra. Tailleferre. (N.E.)
A obra de Satie não é desprovida de alto valor artístico, mas para ser organicamente apreciada é necessário
conhecer as intenções cáusticas do compositor, que, como ninguém antes dele, logrou estabelecer perfeita
homologia entre música e humor satírico. Erik Satie foi antes de tudo um satírico; contudo os apologetas da
chamada “arte de vanguarda” aproveitaram apenas o lado destrutivo das idéias estéticas da sua sátira, e as
usaram para contrapor-se à tradição da música erudita ocidental. (D.M.)
Imortal Manon
Correio da Manhã, 14 jan. 1956

“ On revient toujours a ses premières amours”.48 Não me escapam as


fraquezas musicais da Manon, de Massenet. Mas foi a primeira ópera que
vi e ouvi na minha vida. Abri os ouvidos e ela me abriu os olhos. A gavota da
Manon, com aquela advertência do “profiter de la jeunesse”,49 pode ser uma
imitação vulgar das canções francesas do século XVIII, mas já virou lembrança,
portanto preciosa, da própria jeunesse. O solo do violoncelo que acompanha os
momentos mais graves da ópera só é um pequeno achado melódico: mas
comove. Naturalmente, nem todos fizeram a mesma experiência. Nem todos
precisam gostar assim. Em todo caso, o próprio livro, o romance do abbé
Prévost50, fica rejuvenescido pelas associações musicais. Precisa mesmo disso.
Pois a Manon de Massenet já seria, hoje, uma dama veneranda, mas a de
Prévost, uma múmia. O romance saiu em 1731. Quase é o mais velho romance
da literatura universal entre os que ainda são lidos. E alguns já o acham ilegível.
Pelo menos, um amigo meu, que entende muito de literatura, não conseguiu ler
até o fim: “Inteiramente antiquado!”51 E realmente, que nos pode dizer hoje um
romance de amor, de há 220 anos?52
Na verdade, não apenas a História de Manon Lescaut e do chevalier Des
Grieux parece antiquada a muita gente, mas sim todos os romances de amor e,
enfim, o próprio assunto “amor”. Desde os tempos dos trovadores da Provença e
de Petrarca, alguns milhares de poetas, dramaturgos e novelistas têm batido
nessa tecla com tanta insistência que o público chegou a perder a fé nos seus
amores sublimes e, às mais das vezes, infelizes. Sobre o amor já não é possível
dizer mais nada de novo. É um assunto ultrapassado.
Sendo assim, ainda é possível ler a história de Manon? Ou antes, como se
deveria lê-la? A pergunta tem importância mais ampla: como deveríamos ler as
obras literárias de passado remoto para ainda poder gostar delas? Como
documentos históricos, ou então, com esforço de modernizá-las um pouco? O
mesmo problema apresenta-se, aliás, ao músico. Devemos executar fielmente as
obras de Bach assim como foram executadas em seu tempo, com orquestras
pequeninas e com instrumentos hoje antiquados?53 Ou devemos modernizá-las,
“arranjando-as” para a orquestra moderna que o mestre desconhecia, mas que
talvez lhe realize melhor as intenções? Fidelidade histórica ou fidelidade à vida
de hoje?54 A dúvida lembra outra vez o fato de que o velho romance já inspirou
muitos compositores; a Manon de Massenet é a mais conhecida, mas também há
várias outras. Talvez a música e sua base, o libreto da ópera, também possam
ensinar algo à critica literária.
A comparação entre o romance e o libreto, este um trabalho de Meilhac e Gille,
realmente esclarece muito. No romance, Manon, tendo sido raptada pelo jovem
Des Grieux, vira logo infiel; só alguns dias depois entra em relações íntimas com
um rico financista, e para se livrar do amante jovem mas pobre, participa da
intriga de denúncia ao pai dele, que manda levar para casa o filho pródigo. No
libreto da ópera, porém, Manon não sabia, antes, da denúncia; e só aceita os
presentes e carícias do financista depois de ter perdido o jovem cavalheiro. Seria
possível continuar a comparação, sempre com o mesmo resultado. Também das
quedas morais do jovem Des Grieux ouve-se muito mais no romance do que no
libreto. Enfim, vira jogador profissional com cartas falsas e, para dizer a
verdade, rufião da bela prostituta Manon que, no libreto da ópera, apenas é uma
leviana. Os libretistas, boulevardiers parisienses de 1880, embora
contemporâneos de Toulouse-Lautrec, abrandaram muito as coisas.
O velho abbé Prévost, que fugira do convento para levar uma vida de
aventuras tempestuosas, foi mais verdadeiro. Talvez, quem sabe, tenha ele
próprio vivido o romance de Des Grieux com uma Manon qualquer. O livro tem
muito de autobiográfico. Mas isto não pediu que Manon se transformasse em
personagem especificamente literária. A pecadora inocente, espécie de Fedra
rejuvenescida, é a primeira “mulher fatal” da literatura européia, arruinando os
homens que ama. Depois, haverá a Carmen, de Mérimée (inspirando a música de
Bizet); depois, a Dama das camélias, de Dumas (inspirando a música de Verdi);
depois, a Hedda Gabler de Ibsen, as mulheres terríveis de Strindberg, os
“vamps” do Cinema. O parceiro dessa mulher fatal sempre é um homem fraco,
caindo por dedicação ao seu amor irresistível. Como os heróis da tragédia antiga,
com os quais têm aliás em comum o destino terrível, Manon e Des Grieux são
nobres e criminosos ao mesmo tempo. Ela se vende sem trair seu amor. Ele é
redimido pela tristeza infinita que acompanha, como aquele solo do violoncelo,
seus atos mais vis. Rehm55 considera Des Grieux como o primeiro romântico
europeu, como precursor de todas aquelas vítimas de amores infelizes, Werther,
René56, até os desesperados da literatura novíssima, da poetry of despair do
século XX.
O abbé Prévost, que escreveu muito (e muita coisa ilegível) para viver disso,
como literato profissional que era, criou, como por acaso, uma obra que significa
um momento histórico. Até então, o amor sempre fora visto através dos óculos
do velho Petrarca: o amor que enaltece a alma. Com Prévost, entra na literatura o
amor que avilta e acanalha. Está claro, pois o amor dos sonetistas era (pelo
menos diziam assim) platônico; até o de Romeu e Julieta é mistura de atração
instintiva e exaltação poética, mas o amor de Manon e Des Grieux é puramente
ou impuramente sexual. Também é a Histoire de Manon Lescaut o primeiro
romance da literatura universal em que desempenha papel decisivo a questão de
ter ou não ter dinheiro. Com essa pequena obra começa o movimento literário
que chegará ao primeiro cume em Balzac. Aquele pequeno romance é o primeiro
em que se exprime francamente a atitude tipicamente francesa em relação ao
sexo, e por isso Maupassant, prefaciando uma reedição de Manon, falou em
“obra que define um momento na história de um povo”.
Agora já chega da importância histórica de Manon Lescaut. Mas que dizer do
seu valor literário? Da sua atualidade permanente? Novamente ocorre o fato de
que o romance continua inspirando música. Já foi transformado em libretos de
ópera para os compositores Halévy, Balfe, Auber, Massenet, Puccini,
sucessivamente. O próprio romance de Prévost parece-se com um pedaço de
música que a gente pode ouvir sempre de novo sem cansar-se; o que não
acontece com as obras literárias, que ninguém pode reler cinco, dez, vinte vezes.
Talvez seja preciso ler Manon Lescaut como uma obra musical? Não é um
paradoxo. A crítica italiana moderna tem aconselhado, expressamente, a “leitura
musical” de certas obras que só assim revelam seu valor. Francesco Flora leu
assim o Paradiso. Há mais outros exemplos, como o Jacopo Ortis57, de Foscolo,
que é, como seu modelo imediato, o Werther, um descendente da história de Des
Grieux; e do Ortis descende o Fabrice de Chartreuse de Parme58, do
musicalíssimo Stendhal.
A “leitura musical”, facilitada pelo ambiente Rococó do romance, dá mesmo o
resultado esperado. Pela música, a caída Manon recupera a inocência: sua
gavotte já não é, então, uma chanson vulgar, mas uma lembrança da jeunesse
perdida; e a tristeza do solo do violoncelo sugere o sofrimento romântico de Des
Grieux e o sofrimento e a tristeza da vida inteira, com a certeza, no entanto, que
Goethe exprimiu: “A vida, como quer que tenha sido, foi boa.”59
“Voltamos sempre aos nossos primeiros amores.” (G.Z.)
“Aproveitar a juventude”. (G.Z.)
Publicado no Brasil como Manon Lescaut. (N.E.)
Carpeaux refere-se a Álvaro Lins. Cf. Otto M. Carpeaux, ‘Oblomov’, em Ensaios reunidos [vol. 1] (Rio de
Janeiro, Topbooks, 1999), p. 324; Álvaro Lins, Jornal de Crítica (7 vols., Rio de Janeiro, José Olympio,
1941-1951), vol. 3, p. 119. (N.E.)
No original, “120 anos”. (N.E.)
No original, “Devemos as obras de Bach executar fiel¬mente ...”. (N.E.)
É questão atualíssima em musicologia a contraposição entre correntes de interpretação musical: uma
defende a interpretação historicamente informada, isto é, que se devam executar obras com máximo de
fidelidade ao compositor, à sua época e ao seu estilo, até mesmo por instrumentos da época ou reproduções;
outra defende maior liberdade interpretativa, ou seja, admite que o músico não só aja com liberdade na
execução, como também lhe acrescente trechos inteiros, notas, reformulações harmônicas. Reúnem fortes
argumentos e grandes interpretações ambas as correntes; porém, debates apaixonados à parte, saem
ganhando os melômanos, que assim dispõem de grande diversidade de interpretações do grande repertório
nos mais variados estilos. (D.M.)
Walther Rehm (1901-1963), crítico literário alemão. (N.E.)
Protagonista da novela homônima de Chateaubriand. (N.E.)
Publicado no Brasil como As últimas cartas de Jacopo Ortis. (N.E.)
Publicado no Brasil como A cartuxa de Parma. (N.E.)
No poema Der Bräutigam. (N.E.)
Óperas novas
Diário do Paraná, 13 mai. 1956
grande acontecimento das festas musicais, deste ano, em Veneza, foi a
O representação de uma nova ópera: cantaram no Teatro La Fenice a obra
póstuma de Prokofiev, O anjo de fogo.60
Inspira-se o libreto no romance homônimo do genial escritor russo Briussov. O
enredo passa-se na Alemanha do século XVI: magia negra, necromancia,
aparecimento do diabo. Embora só agora representada, porque o compositor
trabalhou até a sua morte na obra, essa ópera data, em suas partes principais, de
1922. Nesse ano, Prokofiev passou a residir em Ettal, na Baviera, porque nas
populações rurais daquele lugar lhe parecia sobreviver a fé no diabo. Justamente
ao lado do velho mosteiro dos beneditinos, em Ettal, acreditava sentir a presença
do demônio. Levou, como se vê, a sério o assunto. Também era sério o empenho.
Prokofiev pretendia desmentir o grande Diaghilev que naqueles anos andava
declarando a morte da ópera.
Mas a opinião de Diaghilev não foi desmentida. Por ocasião da representação
do Anjo de fogo escreveu, há pouco, o mais autorizado crítico de Milão, Teodoro
Celli: “A ópera morreu. As casas de ópera já não passam de museus”. E isto se
diz na cidade do Scala!
Muitíssimos são hoje da mesma opinião: a ópera morreu ou, pelo menos, está
agonizante, morrendo junto com a burguesia. É verdade que a ópera era, no
século XVIII, um gênero especificamente aristocrático. Mas sobreviveu ao
ancien régime, porque a burguesia romântica e liberal imitava o estilo de vida
dos aristocratas (veja a conferência de Ortega y Gasset, na inauguração do
Museu Romântico em Madri)61. Mas depois, a burguesia deixou de ser romântica
e liberal. E a ópera, apesar das injeções de cânfora do nacionalismo wagneriano
e do esteticismo à Debussy, morreu. As obras-primas de Mozart viverão sempre,
como se fossem escritas para a sala de concertos; Gide desejava, também,
sobrevivência dessas para as obras de Wagner. Mas o resto? O teatro de ópera é
hoje um museu, cheio de peças brilhantes e falsas para o gosto de um público
pouco musical e cada vez mais suburbano.
Quem não quer desistir são os compositores. Insistem em escrever óperas.
Pretendem superar a estagnação, renovando o velho gênero pelas novas técnicas
musicais, o dodecafonismo, etc., mas o público resiste. Uma grande ópera como
Carlos V, de Krenek, não encontra oportunidades de representação. Até a obra-
prima do novo estilo musical, o Wozzeck de Alban Berg, tem de lutar contra a
mais forte resistência da platéia.62 Diz-se, para explicar essas dificuldades, que
“a música moderna ainda não venceu”. Mas onde acontecem as vitórias
definitivas, no terreno musical, senão na casa de ópera? É um círculo vicioso.
Como sair dele? Pelo libreto.
A ópera dos séculos XVIII e XIX é uma tentativa quase heróica de fazer
esquecer, pela qualidade da música, a absurdidade dos libretos. É conhecida a
luta de Verdi contra a estupidez dos seus libretistas (menos o último, Boito).
Wagner preferiu escrever, ele próprio, seus libretos: mas não saiu coisa muito
edificante. Em geral, ainda vale a frase de Voltaire: “Canta-se o que é absurdo
demais para ser dito”. No entanto, todas as grandes renovações do gênero
começaram no libreto.
Afinal de contas, a ópera inventada em 1600, pelos eruditos florentinos, não foi
tentativa de criar um novo gênero musical, mas a de restabelecer um perdido
gênero literário: a tragédia grega. Quem primeiro se lembrou dessas origens foi o
criador de Orfeu, Alceste, Iphigénie en Aulide, Iphigénie en Tauride: Gluck, o
reformador da ópera. Depois, Weber recorreu à literatura do romantismo alemão.
Verdi renovou a esgotada ópera séria pelo contato com Shakespeare. Wagner e
Debussy acompanharam os neo-romantismos literários da sua época. Todas as
grandes reformas da ópera partiram do libreto. A agonia da ópera, hoje, é
sintoma da impossibilidade, da ênfase romântica dos libretos do século XIX. Daí
as muitas óperas novas de caráter irônico-humorístico.
Basta mencionar duas que tinham muito sucesso no inverno musical de 1954-
55. Em Penélope, de Rolf Liebermann, Ulisses é um soldado que volta em 1945
da guerra. Não é tentativa de representar a epopéia grega em trajes modernos
sem alterar o sentido íntimo; é francamente caricatural. Ainda de maior
atualidade é Astutuli, de Carl Orff: um charlatão muito eloqüente chega a
dominar e explorar uma aldeia bávara; o papel do homem que fala muito e muito
depressa é grande achado para a música.
O sucesso dessas duas óperas irônico-humorísticas confirma a tese do
esgotamento apenas da ópera patético-enfática do século XIX (a obra-prima de
Puccini também não é Tosca, como acreditam os ouvintes musicais, mas Gianni
Schicchi). Mais uma prova é a maior dificuldade de renovar a ópera séria. A obra
melhor sucedida é o Cônsul, de Gian-Carlo Menotti, com sua atmosfera kafkiana
de guerra iminente, perseguições políticas e corrupção burocrática. Mas o
compositor ítalo-americano virou infiel ao assunto moderno, escrevendo música
pucciniana. Exemplo mais puro, embora muito menos conhecido, é O sacrifício,
de Winfried Zillig. O assunto é a expedição de Robert Scott e sua morte em meio
às tempestades da Antártica. Toda a ópera é uma sucessão de tempestades
musicais, o que adapta o libreto aos recursos da música concreta.
Assim a ópera se renovará; e com ela vencerá a nova música. Pois bem disse
Tovey63 que no palco de ópera se ratificam as grandes inovações musicais.64
Encenada em 14 e 15 set. 1955. – Este ensaio de Carpeaux foi reproduzido no Diário do Paraná (13 mai.
1956). (N.E.)
‘Para un museo romántico’, em Obras completas; tomo II; El espectador (1916-1934) (6ª ed., Madri,
Revista de Occidente, 1963), pp. 514-524. (N.E.)
A suposta renovação da linguagem musical, referida por Carpeaux, na verdade consistiu em premeditada
deterioração do métier, em especial pela transplantação de ideologias revolucionárias às técnicas
composicionais, que resultou em contínuo afastamento do grande público das salas de concerto:
acostumados a obras de altíssimo nível estético, os freqüentadores dos meios artísticos e intelectuais
notaram imediatamente a esterilidade das “novas” idéias musicais “revolucionárias”. Não é de se espantar,
portanto, que o movimento descendente da alta cultura musical esteja em sintonia com a estratégia
revolucionária da Escola de Frankfurt, que não só exaltou as vanguardas musicais como propagandeou a
necessidade de destruição integral da cultura ocidental. (Cf. T. W. Adorno, Dialética negativa e Filosofia da
nova música.) Portanto, não é a ópera que morreu, mas sim a capacidade de renovação do gênero pelas
novas gerações de compositores. (D.M.)
Cf. o ensaio “Um crítico de música”, p. XXX, dedicado a Tovey. (N.E.)
Influenciado por teorias estéticas vanguardistas, Carpeaux falhou em seu vaticínio: nos dias atuais, teatros
de ópera de todo o mundo lotam-se na encenação das grandes óperas consagradas pelo público ao longo dos
séculos, ao passo que óperas vanguardistas são fracasso contínuo de público. (D.M.)
Schumann, trágico
Diário de Pernambuco, 20 mai. 1956

E ste ano mozartiano não é propício às comemorações do primeiro


centenário da morte de Robert Schumann. É verdade que ninguém
conseguiria eliminar-lhe do repertório as obras: nos programas dos nossos
concertos ocupam lugar garantido as obras para piano de Schumann, suas
sinfonias, seus lieds65. Pertencem à rotina da vida musical. E muitos pensam só a
rotina. Ora, com as necessidades de repertório dos pianistas não se preocupam os
que só admitem a música pura. 1756, nascimento de Mozart – 1856, morte de
Schumann: as datas são contraditórias. A música do mestre romântico,
realmente, não é pura. É literária. E a literatura nem sempre é boa. Gide,
querendo ser justo, confessou: “Eu não precisava rebaixar Schumann para
elogiar Chopin”.66 No entanto, já o tinha rebaixado. O crítico americano Huneker
chegou a dizer sobre Schumann: “Um caso patológico, um literato que fez
música”.67 E que literato! A prosa poética de Schumann é exemplo de
sentimentalismo absurdo. Gostava de tudo que a posteridade detesta. Esse
“saxão adocicado” (a expressão é de Nietzsche) não compreendeu bem o
verdadeiro romantismo, do qual só cultivou, nos lieds, nas cenas infantis, etc., o
lado doméstico e domesticado. Muito menos teria compreendido seu ídolo: o
grande trágico Beethoven. Pois a música de Schumann, quando muito, é triste;
mas nunca seria trágica.
Eis o libelo de acusação. Mas são muitos e muito bons os argumentos de
defesa.
Na França, centro da pintura moderna, sempre foram íntimas as relações entre
a literatura e as artes plásticas. Mas a música alemã nunca teve um Baudelaire
nem um Apollinaire. O único grande escritor-músico da literatura alemã, E.T.A.
Hoffmann, foi injustamente esquecido. Mais tarde, o diletantismo literário de
Wagner, o diletantismo musical de Nietzsche e Thomas Mann não chegam a
estabelecer a ligação entre as duas artes. Visto assim, o caso de Schumann não é
patológico, mas excepcional: não foi um literato que fez música, mas um músico
que sabia exprimir-se em termos literários. Sua prosa poética não tem
importância. Mas ninguém parece dar-se conta do que devemos a Schumann
como crítico musical.
Foi o primeiro que reconheceu o gênio de Chopin. Foi o primeiro que ousou
censurar, asperamente, o então idolatrado Meyerbeer. Disse palavras justas, nem
de exaltação nem de desprezo, sobre a música de Berlioz. Isto quanto aos
contemporâneos.
A Schumann se deve a descoberta póstuma das desconhecidas obras-primas de
Schubert. A Schumann se deve a entronização das sinfonias de Beethoven no
centro do repertório. A Schumann se deve verdadeira renascença das obras
instrumentais de Haydn e Mozart, então meio desprezadas. A Schumann se
devem as primeiras execuções modernas dos oratórios de Haendel. A Schumann
se deve a primeira execução pública dos Concertos de Brandemburgo.
Mas o que importa mais: essas valorizações e revalorizações, realizadas pelo
crítico Schumann, integram um sistema. Assim como Sainte-Beuve, seu
contemporâneo, estabeleceu o sistema de valores da história literária francesa,
assim Schumann organizou aquela tábua de valores da música alemã que até
hoje aceitamos: Bach e Haendel; Haydn, Mozart e Beethoven; Weber, Schubert e
Mendelssohn; enfim, já no fim da vida, adivinhou e proclamou generosamente o
gênio do então jovem Johannes Brahms. Só em relação a Wagner, o crítico ficou
céptico.
Os contemporâneos desconheciam, aliás, esse ceticismo: na música de
Schumann acreditavam os conservadores descobrir os germes perniciosos do
magnetismo. Essa hipótese parece-nos, hoje, incompreensível e impossível.
Compreendemos melhor a aversão de Wagner contra a música de Schumann, do
neo-romântico contra o romântico autêntico. Talvez seja esta a chave para a
compreensão do fenômeno schumanniano.
O verdadeiro romantismo alemão é poético; mas é antiteatral. Schumann, que
nunca teve muita sorte com as grandes formas musicais, fracassou sobretudo na
ópera (embora na Genoveva haja muita música boa, injustamente esquecida).68
Antes de tudo é ele, como todo mundo sabe, um mestre do lied e o mestre, só
comparável a Chopin, das pequenas formas de música do piano. Os ciclos de
lieds, as Cenas infantis, as Peças de fantasia, os Estudos sinfônicos – esse poeta!
Essa mestria na música poética devia levá-lo, nas grandes formas, à música de
programa. Mas Schumann não deu esse passo; e essa sua atitude negativa é a
melhor prova da autenticidade do seu romantismo. Sua música não tem nada que
ver com a poesia sinfônica dos Berlioz, Liszt, Richard Strauss. Suas tentativas de
dar base poética ao esquema da sonata-forma deu outros resultados e, pelo
menos, uma obra-prima de valor permanente: o imortal Quinteto para piano e
cordas, cujo segundo movimento é o mais emocionante, em toda a história da
música, depois dos segundos movimentos de Beethoven. Na mesma altura não
estão, apesar de todas as belezas, suas sinfonias e oratórios. Mas sim a música
melodramática para introduzir e acompanhar a tragédia Manfred, de Byron.
Sem exagero pode-se afirmar que nessa obra, e talvez só nessa obra, o
romantismo musical alcançou as alturas da tragédia; sem qualquer ponto de
contato com a teatralidade wagneriana.
E ainda falam em sentimentalismo? O próprio Schumann foi personalidade
trágica. Com exceção de um trabalho, menos importante aliás, de Henry
MacMaster69, não me consta que tenha sido estudado o “caso Schumann”, a
evolução de um homem de temperamento alternadamente fogoso e melancólico
até a tentativa de suicídio e a morte na loucura. Mas justamente esse Schumann
patológico pertence ao romantismo, no sentido profundo da palavra, assim como
Albert Béguin70 o entende: Schumann é de estirpe dos Novalis, Hoffmann a
Nerval.
O surrealismo podia inscrever o nome de Schumann entre os santos do seu
Panteão de visionários enlouquecidos. O compositor dos Kreisleriana é de
modernidade estupenda. Como chegou a tanto o autor de tantas obras
indispensáveis, no repertório, aos artistas e ao grande público? A literatura alemã
não teve um Baudelaire, para descrever e explicar a evolução dessa música de
spleen temperamental ou melancólico para a grande arte trágica.71
É lieder o plural de lied em alemão. Carpeaux provavelmente grafou lieds como concessão à cultura local
ou para abrasileirá-lo. (D.M.)
Diário íntimo de 18 dez. 1931 (citação de memória). (N.E.)
James Huneker, Old Fogy, his musical opinions and grotesques (Filadélfia, PA., Theodore, 1913), p. 96;
disponível em: https://archive.org/stream/oldfogyhismusic00hune#page/n3/mode/2up. (N.E.)
A grandeza de Schumann no lied e em sua obra pianística dispensa o sucesso nas grandes formas sinfônicas,
como sucede ao próprio Chopin, que, apesar das poucas obras para outros instrumentos, figura no primeiro
escalão dos grandes compositores ocidentais. (D.M.)
La folie de Robert Schumann (Paris, Maloine, 1928). (N.E.)
Crítico e editor suíço (1901-1957). (N.E.)
Carpeaux é demasiado severo na valoração da obra sinfônica de Schumann: aliando forma a conteúdo pelas
novas propostas estéticas, a sua primeira sinfonia é uma das maiores conquistas do romantismo, pelo que
demonstra rigoroso domínio, a um só tempo, tanto das formas clássicas quanto da explosão de
expressividade romântica, igualmente presente em outras obras sinfônicas e nas formas menores como o
lied. (D.M.)
O outro Mozart
Diário do Paraná, 24 jun. 1956

T ão pouco foi feito, entre nós, para comemorar o bicentenário72 do gênio


que se tem a obrigação de contribuir para lembrá-lo, escrevendo conforme
os recursos de cada um; mas sobre nenhum compositor é tão difícil escrever
como sobre este. Não oferece pontos de referência literários. E se chegarmos a
descontar a lenda sentimental em torno da sua vida, estamos obrigados a
verificar o nobre e desconcertante détachement emocional do mestre que nunca
se confessa, nunca abre seu coração nem sequer faz poesia.73 Suas sinfonias não
são poemas sinfônicos. Até suas óperas não afirmam isto nem proclamam
aquilo. Myriad-minded como Shakespeare, esse Shakespeare do teatro lírico só
diz o que seus personagens têm de dizer. Não é Mozart que fala: é Dona Ana e é
Don Giovanni, é Fígaro e é Cherubino, é Sarastro e é a Rainha da Noite, e cada
um deles diz sua verdade e não estamos autorizados a considerá-la como a
verdade de quem os criou; Mozart é mesmo o único compositor que chegou, em
certas árias de Così fan tutte e na serenata de Don Giovanni, a realizar o incrível,
a pôr em música a mentira, dando a entender, em sons, que os personagens
mentem. Não. Assim não é possível aproximar-se de Mozart. Sua verdade nos
escapa.
Restam as definições triviais e quase tautológicas, como esta: “Mozart é o mais
eufônico de todos os compositores”. Realmente, é ele o gênio da eufonia.
Ninguém como ele soube, nos concertos para piano, resolver o problema difícil
de fundir o som do piano e o da orquestra. O Quinteto com clarineta é a obra
mais harmoniosa de toda a literatura musical. Mas não basta entregar-se
voluptuosamente a essas ondas sonoras. A perfeição perfeitíssima dos concertos
para piano, dos quartetos de cordas, do acompanhamento orquestral das árias só
se revela plenamente a quem os concebe como o non plus ultra da construção
musical e da instrumentação. Quem torna difícil compreender essa revelação é a
história da música que nos ensina a considerar Mozart como membro médio de
uma tríade progressiva: Haydn, o começo; Mozart, melhor; Beethoven, ótimo.
Mas é um absurdo.
Ouvimos, ou antes, fomos ensinados a ouvir Mozart como algo “antes de
Beethoven”. Por isso, pela tirania da perspectiva beethoveniana, parecia Mozart
ao século XIX, em comparação com o titã, um pouco “pequeno”, “suave”,
“ameno”, senão infantil. Wagner, o oráculo, chamou-o de “gênio suave da luz e
do amor”, elogio que diminui. Fizeram o resto os biógrafos, ressaltando o
menino-prodígio, vestido de calças curtas de veludo, uma estatueta de porcelana
de pastorzinho de rococó, um anjo da infância.
Mas também se cometeu o erro contrário, o de adaptar Mozart ao gosto
romântico do século XIX. Além de transformar o gênio infeliz em gênio
incompreendido (o que é diferença essencial), torceu-se o sentido de obras
inteiras, sobretudo do Don Giovanni: o grande sedutor como personagem
demoníaco, Dona Ana como heroína trágica, eis a interpretação fascinante de
E.T.A. Hoffmann, confirmada por Kierkegaard e reaparecendo, em nossos dias,
no belo comentário de Jouve74, que encontrou na obra sua própria filosofia do
amor e da morte. Admitimos: essa interpretação romântica tem contribuído para
ressaltar a profundidade da música; mas essa interpretação não resiste à análise
das suas premissas. Conforme estas últimas, Mozart teria sido um artista
originalíssimo, no sentido em que eram originais os grandes românticos do
século XIX. Mas Mozart não foi “original” assim; e se conhecesse o conceito,
teria recusado a honra.75
O crítico inglês Eric Blom, admirador entusiasta do mestre, teve a coragem de
observar que compositores de estatura infinitamente menor, um Bizet, um
Tchaikovsky, até um Puccini são melodistas mais originais, mais pessoais, mais
inconfundíveis que Mozart; Mozart que pode ser confundido, pelo leigo, com
qualquer dos mestres menores de sua época. Estes últimos estão esquecidos. Se
os conhecêssemos, não tomaríamos por “tipicamente mozartiano” o que só é o
estilo, comum de todos, do século XVIII.76 Outros críticos também já tiveram a
coragem de chamar a atenção para a freqüência de “lugares-comuns” musicais,
de “cláusulas” vazias e triviais na música de Mozart, especialmente nas
sinfonias. O mestre não teve, evidentemente, nenhuma vontade de surpreender,
de ser original. Poderia dizer como Picasso: “Je ne cherche pas, je trouve”.77 Mas
essa confissão é tipicamente anti-romântica.
Nesse sentido, no de aceitar sem hesitação o estilo de sua época, imprimindo-
lhe apenas (apenas!) uma perfeição sem par, é Mozart um artista clássico. Não
precisa ser original a todo preço. As “trivialidades” fazem parte necessária da
sua melodia inesgotável.
Muitos estarão de acordo com essas verificações. Mas quase todos não
deixarão de opor ao Mozart clássico o Mozart demoníaco, citando Goethe: “O
espírito demoníaco de Mozart tinha-se apoderado dele, de modo que o mestre
estava obrigado a realizar o que aquele lhe mandou realizar”.78 O que Goethe
definiu assim, não é um Mozart romântico. Ao contrário. O daimónion de
Goethe não é o de Schumann ou Berlioz. É socrático. É o demônio da perfeição,
seja moral, seja artística. É o demônio que exige que cada nota seja necessária e
que só haja notas necessárias e que todas elas se coordenem de tal maneira que a
obra em conjunto parece que deve ser assim como é e que não poderia ser
diferente; enfim, a obra se apresenta clara no sentido de evidente, sem precisar
de explicação nenhuma. Até pode parecer trivial. Mas é perfeita e clássica.
Mozart é a suprema expressão da civilização aristocrática do século XVIII, que
ainda ignora o romantismo. Mas o século não ignora aqueles pressentimentos de
qualquer coisa de sinistro ou lúgubre ou melancólico ou fantástico a que se deu o
nome de tendência pré-romântica.
Pré-romântico é o outro Mozart: o das energias rítmicas, da Sinfonia em sol
menor e do Quarteto com piano em sol menor; da melancolia do Trio com
clarineta, das tempestades sentimentais do Concerto para piano em ré menor; da
agitação febril, no segundo movimento do Quinteto em sol menor e no último
movimento do Quarteto em ré menor: obras, todas elas, em menor, desmentindo
a suavidade amena do retrato convencional. Esse retrato de Mozart está todo
falsificado. Timidez pequeno-burguesa passou sob silêncio a revolta audaciosa,
em Le nozze di Figaro, música que é mais revolucionária que a comédia
impertinente de Beaumarchais. Hipocrisia puritana não quis perceber a ironia
subversiva em Così fan tutte. A interpretação romântica de Don Giovanni
falsifica as perspectivas: a obra é trágica porque nela se pressente o fim da
civilização aristocrática. E enfim, a síntese de todos os estilos musicais, na
Flauta mágica, não acompanha um enredo de absurdidade infantil, e sim a
proclamação da fraternidade universal.
Mozart não é infantil. Anjo ele é no sentido em que Rilke afirma que “todos os
anjos são terríveis”. Por que terríveis? O próprio Rilke explicou: “Porque sua
perfeição humilha o esforço humano, ferindo-o mortalmente”. Talvez aconteça
isso com freqüência menor naquela arte, na música, que conta com maior
número de obras perfeitas do que qualquer outra. Neste sentido, Mozart nem
sequer é o maior. Há Bach. Mas a hierarquia dos valores pode ser representada,
variando-se conhecida frase de Nietzsche: “Bach é o homem que chega a notar o
que um anjo do céu lhe dita. Mozart é esse anjo”.
Bicentenário em 27 jan. 1956.
Há, contudo, uma série de cartas endereçadas a seu pai, sua esposa, parentes e amigos. (D.M.) – A melhor
seleção brasileira está esgotada: Cartas vienenses (trad. Gabor Aranyi, Mairiporã, Veredas, 2004). (N.E.)
Pierre-Jean Jouve (1887-1976), poeta e romancista francês. (N.E.)
O mito da originalidade começou no século XIX, época do romantismo, e não fazia parte das preocupações
de compositores das épocas anteriores: valia infinitamente mais agradar ao público do que ser “original”.
(D.M.)
Eric Blom & Henry Cope Colles, The Growth of Music (3 t. em 1 vol., Oxford-Nova York, Oxford UP,
1956), t. 2. (N.E.)
“Eu não procuro, eu encontro”. (G.Z.)
Conversações com Eckermann. (N.E.)
Recital Ivy Improta
Correio da Manhã, 7 nov. 1956

Ase primeira sabedoria é a de saber organizar o programa. Certas falhas que


observam em recitais de virtuoses explicam-se pela organização de
programas inorgânicos, incoerentes, que não permitem ao intérprete a plena
manifestação das suas capacidades técnicas e do seu entendimento musical. A
essas falhas do intérprete79 corresponde, então, fatalmente, a falha da crítica,
julgando com severidade interpretações a que, dentro de outro conjunto
programático, talvez tivesse aplaudido. Muito elogiável é, portanto, o programa
que a Sra. Ivy Improta80 organizou para seu recital de segunda-feira81 no Golden
Room do Copacabana Palace. Foi a condição básica do sucesso obtido e
merecido.
Há, grosso modo, duas possibilidades de organizar o programa de um recital de
piano: a alternativa barrocaclássica, com Bach, Domenico Scarlatti, Couperin e
Rameau; e a alternativa romântica, solidamente baseada em Beethoven e
Chopin. O mal é a mistura, pois não se pode tocar igualmente bem, dentro de
duas horas, uma pièce de Rameau e um noturno de Chopin, uma sonata de
Beethoven e uma suite de Bach.
Tendo escolhido a segunda alternativa, a romântica, a Sra. Ivy Improta sentiu,
não sei se instintiva ou conscientemente, a dificuldade a que a maior parte dos
virtuoses, menos bem instruídos, fica insensível. Por mais que fosse costumeira a
combinação dos dois mestres no mesmo programa, é preciso observar que
Beethoven e Chopin se colocaram em pólos opostos. Nunca convém justapô-los.
No meio entre eles fica o lugar certo do romântico chopiniano, fortemente
nutrido em Beethoven: escolheu a Sra. Ivy Improta a melhor oportunidade para
comemorar o centenário de Schumann.
Depois de Chopin bifurca-se o caminho. Pode-se escolher a linha, partindo de
Chopin, das inovações harmônicas, que leva a Debussy: mas este, delicadíssimo,
não se presta para fim de programa. A outra linha, a do nacionalismo romântico,
leva aos russos, húngaros, escandinavos, aos ibéricos representados no programa
da Sra. Ivy Improta: Granados e Albéniz, ao lado do nosso Villa-Lobos.
Foi este o programa, tão bem organizado, da recitalista de segunda-feira:
Beethoven (Sonata op. 109), Schumann (Carnaval de Viena), Chopin (dois
prelúdios e a Balada n.º 4), e Villa-Lobos, Granados e Albéniz.
Para começar com o fim: essa música espanhola tem encanto irresistível, a
Maja y el ruiseñor, de Granados, talvez mais que Triana, de Albéniz, apesar do
maior requinte musical deste último. Mas quem não morre de amores pela
música de base deliberadamente folclórica (Bach, o maior folclorista musical de
todos os tempos, nunca pensou em escrever música tipicamente alemã),
apreciará naquelas peças principalmente a oportunidade, para o pianista, de
evidenciar técnica límpida, cristalina – mas então, ao fim do recital, a Sra. Ivy
Improta já não precisava demonstrar suas qualidades técnicas. Sem estas, não
conseguiria convencer na interpretação da quarta balada de Chopin, difícil em
todos os sentidos; mas saiu convincente.
Do romantismo heróico de Chopin para o romantismo íntimo de Schumann:
pois bem, confesso que o Carnaval de Viena não me parece figurar entre as
obras-primas do mestre tão querido, apesar da frescura juvenil que distingue toda
a literatura pianística de Schumann, apesar da citação espirituosa da Marselhesa,
etc. Talvez por isso não me tenha sido possível acompanhar com o mesmo
entusiasmo a interpretação dessa obra pela recitalista. Mas fui recompensado, no
fim, quando ouvimos, como extra, o Aufschwung. A palavra alemã não é bem
traduzível para as línguas neolatinas. Na França costuma-se dizer élévation, o
que é coisa muito diferente. Aufschwung, em alemão, tampouco tem o sentido do
inglês rapture; nada de extático. É um esforço sério, quase (mas só quase)
heróico, para voltar à vida ativa depois de longa submersão em meditação
ansiosa e sombria. Todo o lado noturno, dir-se-ia sinistro, byroniano e
hoffmanniano de Schumann está nessa página admirável que a Sra. Ivy Improta
tocou com a necessária energia para nos deixar sentir a elevação, isto sim, da
esfera ideal inacessível ao esforço do espírito romântico, seriamente perturbado.
Essa esfera foi atingida nas estupendas variações que rematam a Sonata em mi
maior, op. 109, de Beethoven. Foi a pièce de résistance da noite. Subindo até
esse céu abstrato do terceiro estilo beethoveniano82, a pianista desmentiu, mais
uma vez, a velha lenda da intocabilidade das últimas sonatas. Fez como a própria
música que, no conhecido e inesquecível lied de Schubert, “leva-nos para um
mundo melhor”.83 Tínhamos de agradecer devidamente. E o público agradeceu
devidamente à Sra. Ivy Improta.
Como o cansaço interfere na qualidade das execuções, deve-se equilibrar em recitais diferentes níveis de
dificuldade das obras selecionadas, ajustando-se obras de grande exigência técnica a outras de menor
dificuldade, de modo a possibilitar o relaxamento muscular intermediário. (D.M.)
Pianista e intérprete de Villa-Lobos, foi esposa do crítico Eurico Nogueira França (cf. nota 33). (N.E.)
5 nov. 1956. (N.E.)
O terceiro estilo de Beethoven insere-se na divisão clássica de sua obra em três partes bem delimitáveis – a
saber: a primeira, chamada de fase inicial (1770-1792), é de estilo clássico e fortemente influenciada por
Haydn; na segunda (1792-1812), de estilo romântico, Beethoven começa a superar a estética clássica; a
terceira (1813-1827), de estilo próprio e inigualável, é referida por Carpeaux com precisão, porquanto o
élan de suas últimas obras se aproximem da transcendência, princípio que ele próprio registrou como a sua
busca mais constante. Essa classificação encontra eco em Lewis Lockwood, Beethoven: a música e a vida
(trad. Lúcia Magalhães e Graziella Somaschini, São Paulo, Códex, 2004). (D.M.)
No original, “levando-nos para um mundo melhor” (grifamos). (N.E.)
Um crítico de música
Diário do Paraná, 18 nov. 1956

N as Conversas com Casals84, que José Maria Corredor acaba de publicar,


o grande músico catalão manifesta admiração especial pelo compositor
inglês Donald Francis Tovey (1875-1940), que seus contemporâneos não teriam
bastante apreciado. Nem todos serão da mesma opinião. Mas todos estarão de
acordo em reconhecer Tovey como um grande crítico de música; talvez o maior.
A crítica musical debate-se permanentemente entre dois pólos opostos e
impossíveis: a crítica técnica das obras musicais fica incompreensível aos leigos,
sem dizer algo de novo aos profissionais; a crítica chamada poética é um horror
aos músicos, enquanto ilude o público, fazendo-lhe crer que compreendeu o que
não compreendeu. Tovey escolheu outro caminho: iniciar o público na arte
musical, sem fazer concessões aos preguiçosos, mas sem perder-se em minúcias
técnicas. Foi do métier: pianista, regente, compositor. Mas ganhou fama como
autor de explicações nos programas de concerto. Mais tarde, o cargo de
professor de musicologia na Universidade de Edimburgo fortaleceu-lhe a
tendência pedagógica. Escreveu seis volumes de Essays in Musical Analysis85,
mais os Essays and Lectures on Music86 e, enfim, os verbetes musicais de
Encyclopaedia Britannica que, reunidos depois em volume87, são verdadeiro
breviário da crítica musical.
Tovey foi, antes de tudo, um grande escritor, escrevendo com clareza quase
francesa. Mas foi o mais típico dos ingleses, dono de um humor bem britânico,
que contribui muito para vivificar-lhe88 as explicações. Numa exposição da
famosa guerra entre os adeptos de Wagner e os de Brahms lamentava que os
grandes mestres também tenham sucumbido à tentação de insultar um ao outro;
mas, acrescenta, “não se pode esperar que os leões virem vegetarianos”.89
Também foi leão, e dos mais ferozes. Conta-se que um violinista, enquanto
tocava em concerto, percebendo o mau humor na cara do crítico na primeira fila
das poltronas, desmaiou. Sendo leão, Tovey preferiu, porém, devorar
compositores. Seu gosto era dos mais exclusivos. Certa vez, confessou admirar,
sem restrições, só 13 mestres em toda a história da música: Josquin de Prés,
Orlandus Lassus, Palestrina, Victoria, Bach, Haendel, Gluck, Haydn, Mozart,
Beethoven, Schubert, Wagner e Brahms.90 Mas esse exclusivismo não era
estreiteza de espírito acadêmico. Não admirava aqueles mestres porque
consagrados. Entusiasmavam-no. Quando alguém, em sua presença, ousava
falar, com desprezo, de Haydn como “homem de poucas letras”, respondeu:
“Introduzir novo tema num movimento sinfônico requer tanta inteligência como
a introdução de novo personagem numa tragédia de Racine ou Shakespeare”.
Também estava bem fundada sua aversão contra certos compositores preferidos
pelo grande público. Costumava dizer que o público inglês prefere Tchaikovsky
a Brahms, porque gosta mais do dramalhão que o drama.91 Mas Tovey não foi
surdo a inspirações altas em compositores, cujo gênero e maneira lhe
repugnavam. Dizia: “Apesar de tudo, Verdi é um gênio”.92
Invencível só foi a aversão de Tovey contra o desprezo da forma. A
acumulação de inspirações temáticas sem nexo lógico93 parecia-lhe brincadeira
de criança, querendo fazer estátuas com areia da praia. Por mais que admirava os
lieds e as pequenas obras pianísticas de Schumann, desprezava-lhe, como sendo
mosaicos, as obras de maior envergadura; a propósito do quarto movimento do
Quinteto94 de Schumann, em que volta o tema principal do primeiro movimento,
declarou sentir um frisson. “É como se voltasse de um modo morto”. E o maior
mestre em formas pequenas, Chopin, foi caracterizado por Tovey assim: “É um
gênio dentro do seu estreito quarto de doente; ao ar livre, desfalece”. Também
foi Tovey contra todas as inovações sem conseqüências: não reconheceu
importância alguma nas novas harmonias de Debussy, o que não o impediu,
aliás, de admirar fervorosamente Pelléas et Mélisande. Em geral, tinha Tovey a
coragem de não sentir nem manifestar respeito obrigatório pelos “consagrados”
ou “preferidos”: encontrou palavras de desrespeito contra Berlioz (“maior
escritor do que compositor”),95 contra as composições (“sem fundo”)96 de Liszt e
contra quase todos os compositores russos.
Estes últimos quase lhe inspiravam repugnância física. Rimsky-Korsakov, em
seu tratado de instrumentação97, afirma que a execução das idéias é, em
Beethoven, inferior às próprias idéias musicais; sim, observa Tovey, talvez tenha
Rimsky sido capaz de instrumentar melhor aquele estreitíssimo setor das idéias
beethovenianas que pode entrar pela cabeça de um compositor de bailados
russos.98
Essa observação não é apenas maliciosa. Também destrói o anacronismo que
quis julgar uma sinfonia de Beethoven conforme critérios técnicos de um
profissional post-wagneriano. Foi forte em Tovey o senso histórico, que lhe
inspirou. Falando do tempo em que Monteverde criou em Mântua a ópera99,
acrescenta que ao mesmo tempo foram construídos, na cidade vizinha de
Cremona, os primeiros violinos modernos: o estilo do canto monolítico100,
operístico, encontra-se com o instrumento que fará vencer o mesmo estilo na
música instrumental. E quando se lamentava de Schubert não tenha vivido
bastante tempo para desenvolver sua nova maneira de escrever música de
câmara, Tovey respondeu com intuição verdadeiramente genial: “As obras da
música de câmara que Schubert teria escrito, se fosse mais velho, foram escritas
por Brahms”. Mas o crítico foi, em virtude mesmo de seu senso histórico,
inimigo da mania de tecer analogias: a explicação da música beethoveniana pela
Revolução Francesa inspirou-lhe acessos de furor. Para demonstrar o absurdo de
analogias assim, escreveu: “No ano em que Bach visitou em Potsdam o rei
Frederico, o Grande, encontrou lá outro hóspede do monarca: Voltaire.”101 Com
efeito, Bach e Voltaire são contemporâneos; mas essa contemporaneidade não
nos ensina nada sobre a filosofia deste ou a música daquele.
Intolerante também foi Tovey em seu culto à sonata-forma. Quem ignora a
lógica do desenvolvimento temático é como um homem que pretende ler um
romance, começando no meio, pulando depois 100 páginas e terminando a
leitura antes do fim. Quem aprecia só temas ou melodias isolados é como um
homem que pretende vender uma casa, levando consigo, como amostra, um
tijolo. Quem prefere à música instrumental a ópera, desconhece a suprema
dramaticidade das modulações. A relação entre uma ópera e uma sinfonia é
como entre coisas artificialmente iluminadas e a realidade das coisas à luz do
dia.102 Mas Tovey estava longe de desprezar a música dramática. Já ouvimos da
sua admiração por Verdi, e por Pelléas et Mélisande. Ensinara-lhe a experiência
que novos estilos musicais nunca chegam a vencer na sala de concertos, mas só
no palco da ópera. Concluiu: “A ópera será a pedra de toque da música
moderna”.
Não conheço julgamento de Tovey sobre Alban Berg. Sei que escreveu, já
muito velho, com entusiasmo juvenil sobre Hindemith. Não era um conservador
petrificado. No entanto, acredito que para ele a História da Música estava mais
ou menos terminada com Wagner e Brahms, sendo Debussy só um apêndice, ou
antes, um interessante beco sem saída, e Schoenberg, apenas um grande teórico.
Sua opinião sobre a vocação musical do nosso tempo talvez se encontre na frase
seguinte: “Vivendo na época de Bach, Beethoven teria posto em música o livro
do Apocalipse; vivendo em nosso tempo, Bach teria emigrado para a África,
chamando-se Dr. Albert Schweitzer”.103
Nos escritos de Tovey encontramos abundância de ensinamentos profundos e
luminosos sobre a arte musical. Mas, sendo ensinamentos verbais, racionais,
lógicos, não podem esgotar o conteúdo da música que é, além de emocional,
principalmente formal. A música é a única arte na qual conteúdo e forma
coincidem completamente. Por isso, é na música maior do que em qualquer outra
arte o número de obras perfeitas. E essa perfeição não é completamente acessível
ao raciocínio: a audição dos Concertos de Brandemburgo nos faz participar,
como na religião, de uma paz da alma que está acima de toda razão.
Conversations avec Pablo Casals (Paris, Michel, 1954). (N.E.)
(ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1935-1944). (N.E.)
(ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949). (N.E.)
Duas edições: Musical Articles from the Encyclopaedia Britannica (ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP,
1944); The Forms of Music (ed. Hubert J. Foss, Nova York, Meridian, 1956). (N.E.)
No original, “virificar-lhe”. A julgar pela seqüência, Carpeaux talvez escrevera: “virilizar-lhe”. (N.E.)
Citação de memória de ‘Music’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss, Nova York,
Meridian, 1959), p. 131; disponível em:
https://archive.org/stream/formsofmusic000129mbp#page/n3/mode/2up. (N.E.)
The Classical Concerto: it’s nature and purpose (Londres, Williams, [1902]). (N.E.)
‘Music’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss, Nova York, Meridian, 1959), p. 134. (N.E.)
Paráfrase de ‘Music’, ibid., p. 133. (N.E.)
Equivalente a “versos livres” em poesia, ou seja, versos sem métrica ou sem conexão lógica entre idéias.
(D.M.)
Quinteto para piano e cordas em mi bemol maior, op. 44. (N.E.)
‘Overture to King Lear’, em Essays in Musical Analysis. (N.E.)
Essays and Lectures on Music (ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949), p. 122. (N.E.)
Princípios da orquestração (1922). (N.E.)
‘Instrumentation’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss, Nova York, Meridian, 1959), p.
73. (N.E.)
Essays and Lectures on Music (ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949), p. 191. (N.E.)
No original, “monolico”. (N.E.)
Essays and Lectures on Music (ed. Hubert J. Foss, Londres, Oxford UP, 1949), p. 347. (N.E.)
No original, “[...] é como entre artificialmente iluminadas, e a realidade das coisas à luz do dia” (grifamos).
(N.E.)
Citação de memória de ‘Music’, em The Forms of Music (5ª reimpr., ed. Hubert J. Foss, Nova York,
Meridian, 1959), p. 126. (N.E.)
Hegemonia musical
Diário do Paraná, 20 jan. 1957

N os círculos musicais do mundo ocidental aparece de vez em quando um


espectro: o da hegemonia musical desta ou daquela nação. Em 1952 foi
celebrado o cinqüentenário da estréia de Pelléas et Mélisande, de Debussy, como
da vitória definitiva da música francesa, quebrando a hegemonia musical dos
alemães; e sempre encontro assim citada a data. Mas esse conceito merece ser
examinado.
Acredita-se geralmente que os alemães exerceram entre 1750 e 1900 a
hegemonia musical. É verdade que, durante esse período, também houve um
Berlioz, um Chopin, um César Franck, um Verdi, um Mussorgsky e alguns
outros, muitos outros. Mas que adiantam esses nomes? 1750 até 1900, isto é a
época de Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Weber, Mendelssohn,
Schumann, Wagner, Brahms, Bruckner, Wolf; e nenhuma outra nação foi capaz
de comparar-se, nessa época, aos alemães.104 Querem mais uma prova? Em 1916,
em plena primeira guerra mundial, escreveu Jules Combarieu105 os três volumes
de sua conhecida História da Música106, também muito lida no Brasil. Embora
reconhecendo com imparcialidade o gênio daqueles compositores alemães (com
exceção de Brahms, que não compreendeu), o musicólogo fanaticamente
nacionalista quis escrever a história musical do século XIX sem admitir a
hegemonia alemã.107 O resultado foi que, na obra de Combarieu, Schumann
pertence à época de Auber e Brahms, à época de Gounod e Massenet. Com
razão, um crítico inglês falou em “ponto de vista da ópera parisiense”.
Hoje em dia, Combarieu já não precisava de tantos artifícios. Poderia deixar
aos alemães o século XIX, contentando-se com o século XX.108 Pois, realmente,
a música francesa é hoje muito maior influência no mundo do que a música
alemã. No entanto, pode-se falar hoje em hegemonia francesa? Ninguém o
afirmaria. É preciso considerar a contribuição dos eslavos, dos escandinavos, dos
ingleses, dos espanhóis, dos latino-americanos. Hoje, não há nação que exerça
soberanamente a hegemonia no mundo do musical.
Mas já houve predominâncias assim. Antes da hegemonia alemã, foi a vez dos
italianos, donos da música entre 1600 e 1750. E antes dos italianos foi a
hegemonia musical exercida, como se sabe, pelos mestres flamengos. Só hoje
não existe nada disso. É estranho.
Estranhas, também são outras coisas. Diz-se geralmente que a hegemonia
musical dos alemães começou por volta de 1750. Mas precisamente em 1750
morreu Bach. Não é esquisito? A hegemonia musical dos alemães teria
começado com a morte do maior dos compositores alemães! Deve haver alguma
confusão de cronologia.
Ao invés de falar em ‘‘época de 1750 até 1900”, será melhor falar em “época
de 1600 até 1880”109. Essa época passa, em parte, por período de hegemonia
italiana. Mas também é a época de Bach, Haydn e Mozart. Como sair do beco?
Na verdade, entre 1650 e 1800 a música foi cosmopolita. É a época na qual o
alemão Haendel podia mudar de nacionalidade, tornando-se inglês. É a época na
qual Gluck mudou três vezes de nacionalidade musical: começando como
alemão, continuando como italiano e terminando como compositor francês: para
morrer, enfim, em Viena. Naquela época, o austríaco Mozart teria ficado, por um
triz, compositor italiano. E se tivesse fixado residência em Paris? Na verdade, a
linguagem musical de Mozart é a da aristocracia européia do século XVIII. Se
Mozart parece em certas obras alemão, é porque se comporta como um
aristocrata austríaco que, quando bem humorado, fala durante uma hora em
dialeto vienense. Estranha hegemonia alemã, que o século XVIII não sentiu.
O conceito tem suas raízes no nacionalismo do século XIX. O nacionalismo
musical apenas foi, no início, reação contra a incômoda concorrência de
numerosos regentes e cantores italianos nos teatros de ópera de Viena e Berlim,
Dresden e Munique. Essa concorrência italiana foi quebrada pelos triunfos de
Weber. Isto foi por volta de 1820. Mas depois dessa data ainda não se sente nada
de hegemonia alemã. Pois então, o palco operístico alemão começou a ser
dominado pelos franceses e por compositores afrancesados como Meyerbeer.
Contra isto reagiu o nacionalista Wagner. Mas seu triunfo só ficou110 completo
por volta de 1880, isto é, quando a chamada hegemonia alemã ia acabando. Na
verdade, ela nunca existiu.
Pode-se, ao contrário, afirmar que os próprios alemães fizeram tudo para
excluir possíveis hegemonias. Foram eles que chamaram a atenção para a música
de outras nações, além da tradicional trindade italiano-franco-alemã.
Descobriram a música escocesa e escandinava; procuraram inspirações na
Espanha. Os compositores austríacos, especialmente, apoderam-se de motivos
húngaros e eslavos. Esse exotismo também foi adotado pelos outros. O russo
Glinka, compositor da primeira ópera russa, também escreveu a primeira
abertura “em estilo espanhol”. O francês Chabrier é autor de uma rapsódia
España e de uma Fête polonaise. E o espanholismo de Debussy? Exotismo
também foi o magiarismo epidérmico de Liszt, húngaro de nascimento, mas
alemão-francês de formação e vida. Enfim venceu, porém, o nacionalismo
musical que os próprios alemães tinham inspirado: com os grandes compositores
russos, com os espanhóis Albéniz, Granados e De Falla, com os tchecos
Smetana, Dvorák e Janácek, com o finlandês Sibelius, com o húngaro Bartók,
com os brasileiros Villa-Lobos e Camargo Guarnieri. O século XX, então, é a
época do nacionalismo musical por isso mesmo sem hegemonia desta ou daquela
nação.
É ou foi? Não perceberam o sentido da conversão do Stravinsky? O mestre
mais típico do nacionalismo musical russo converteu-se ao cosmopolitismo até
(em The Rake’s Progress) ao cosmopolitismo do século XVIII e agora mesmo ao
de Bach.
Hoje, não tem sentido falar em hegemonia musical. O verdadeiro fato é a
existência de dois pólos opostos, aos quais podemos dar, para defini-los
rapidamente, os nomes de Stravinsky e Schoenberg.
Não acredito poder finalizar melhor do que citando conceitos do maior teórico
da música moderna, Theodor W. Adorno, em sua obra Filosofia da música nova
(1949; infelizmente já esgotada e inacessível).111 Stravinsky seria individualista,
coerentemente reacionário: em sua arte, o indivíduo isolado pretende
desempenhar o papel do “Espirito objetivo” da nossa época. A música de
Schoenberg também está socialmente isolada, mas não porque sendo a-social, e
sim justamente porque reflete a desarmonia do mundo contemporâneo.112 Diz
Adorno que a música de Schoenberg tollit peccata mundi113... Mas esta atitude,
podemos acrescentar, não é a da hegemonia; é a da humildade.
A origem austríaca de Carpeaux não interfere em sua partidarização em favor da tradição germânica: – é
praticamente consenso entre estudiosos que ela é inigualável em tamanho e importância, em profundidade
artística e em permanência nas salas de concerto. (D.M.)
No original, “Jean Combarieu” (grifamos). (N.E.)
Histoire de la musique (Paris, Colin, 1913-1919). (N.E.)
Seria o mesmo que contar a história da filosofia sem admitir a importância da filosofia grega. (D.M.)
No original, “[...] contentando-se com XX”. (N.E.)
No original, “época de 1600 até 188”. (N.E.)
No original, “virou”. (N.E.)
Publicado no Brasil como Filosofia da nova música. (N.E.)
Roger Scruton, em Beleza (trad. Hugo Langone, São Paulo, É Realizações, 2013) e no documentário Why
Beauty Matters (Reino Unido, BBC, 2009), desfaz o mito de que as vanguardas reflitam em suas obras o
“horror do mundo”. Scruton argumenta que a beleza foi suprimida da arte com o objetivo deliberado de
enfear o mundo e que, embora a feiúra não seja “invenção” da modernidade, ou seja, tenha sempre existido,
nunca antes foi realçada nem trazida ao primeiro plano. Ainda segundo o filósofo, até por volta de 1930 a
arte ainda tinha a função de consolar as dores da existência, justamente pelo cultivo da beleza, que
possibilita à humanidade o contato com o sagrado e o aspecto transcendente da existência. Nesse sentido,
uma arte que procura aproximar-se do cotidiano traz a conseqüência de afastar o público da beleza e do
sagrado simultaneamente, o que faz todo sentido, vez que o objetivo declarado de “artistas” como Michel
Duchamp sempre foi afastar a humanidade de Deus, não só da beleza. (D.M.)
No latim, “que tira os pecados do mundo”, da oração Agnus Dei, qui tollis peccata mundi [Cordeiro de
Deus, que tirais os pecados do mundo], em referência à obra salvífica de Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus
no livro do Apocalipse. Theodor W. Adorno, por sua vez, um dos principais expoentes da Escola de
Frankfurt, tinha fé verdadeiramente religiosa na revolução marxista, para cuja concretização foi fundada a
referida Escola e para cujo propósito confluíram todos os esforços de Adorno e Horkheimer. A citação de
Carpeaux é bastante reveladora, pois demonstra como o marxismo e o hegelianismo – pressupostos do
pensamento frankfurtiano – são, no fundo, uma tentativa secularista de estabelecer o paraíso na Terra, o que
vai em sentido diametralmente oposto à Verdade Revelada e às promessas de Nosso Senhor Jesus Cristo,
em especial de que o Paraíso não é nem nunca será neste mundo, mas junto de Deus na eternidade (D.M.)
O Canto do Violino
Diário do Paraná, 17 fev. 1957

N o livro de um erudito bispo francês sobre música litúrgica encontrei a


afirmação de que “a voz humana é o mais perfeito de todos os
instrumentos”.114 Com todo o respeito pela erudição e a alta dignidade do autor, e
sabendo bem que o bispo pensava no caso especial da liturgia, é preciso, no
entanto, responder: “Em geral, não é tanto assim”. Quando Beethoven,
escrevendo a Missa Solemnis, chegou às palavras: “Benedictus qui venit in
nomine Domini”, desesperava de exprimir o sentido emocional desse texto pelo
canto: introduziu um solo de violino. O mais perfeito dos instrumentos musicais
é o violino.115
A categoria (o rank, como dizem os ingleses) do violino é extraordinariamente
ampla: estende-se da alegria cerimoniosa dos concertos de Bach até o monólogo
(na Sonata opus 96) de Beethoven consigo mesmo antes de entrar na noite da
surdez completa e do estilo abstrato; do lirismo popular das sonatas de Brahms
até o hino fúnebre do concerto de Alban Berg. Não se limita ao papel de solista,
em concertos e sonatas. O violino é o instrumento leader do quarteto: Quarteto
do Largo e Imperador de Haydn; os três Rasumovsky e os últimos de Beethoven;
A morte e a donzela, de Schubert; Saudades eslavas, de Dvorák; Êxtase, de
Debussy; Segredos, de Bartók. Enfim, em toda a música instrumental, de Haydn
e Mozart até Berlioz e Wagner, é o violino o instrumento base da orquestra.
Nem sempre os leigos se dão conta dessa ubiqüidade do violino. Apreciam-no
como instrumento do maior virtuosismo. Talvez haja nisso recordações –
resíduos do tempo em que Paganini enfeitiçou o mundo. É um equívoco que
também contribui para que as extraordinárias sonatas e suítes para violino solo,
de Bach, sobretudo a famosa Ciaccona da Partita n.º 2, sejam apreciadas como
obras-primas de dificuldade técnica, consagrando virtuoses-vencedores. Há,
aliás, nessas vitórias irresistíveis dos grandes violinistas, um elemento erótico.
Até uma obra simples e amável como a juvenil sonata Primavera, de Beethoven,
quando tocada por Heifetz, arrancou a uma senhora, certa vez, a exclamação: –
“Tem razão o Papa, proibindo o uso do violino nas igrejas” (o que já não
corresponde, aliás, aos fatos). Daí é só um passo para aquela interpretação bufa
da Sonata de Kreutzer, por Tolstói, como obra-prima de sedução erótica. O
grande e amusicalíssimo escritor russo não sabia que essa sua tese absurda foi a
última manifestação de uma tradição dos séculos.
Pois durante séculos o violino estava banido não somente das igrejas, mas
também das salas de música profana. Ainda no começo do século XVII passava
por instrumento vulgar, plebeu e obsceno, só digno para acompanhar danças de
camponeses, marujos e mulheres de vida fácil. É claro que essa desconfiança
contra o violino sobreviveu, mais que em outro lugar, na igreja; e ainda hoje
existem ascetas rigorosos que não foram convencidos por aquele hino de alegria
religiosa que é a Sonata para violino do catolicíssimo César Franck. Na atração
irresistível que o violino exerce, vislumbra-se algo da força sedutora do
demônio.
O som sonoro dos velhos violinos italianos – segredo de construção que anda
perdido para sempre – foi explicado, pelo folclore musical, como presente do
diabo ao qual Amati e Stradivari teriam vendido a alma. Do primeiro grande
compositor para o instrumento, Arcangelo Corelli, conta o inglês Hawkins que,
ao tocar o violino, teria apresentado todos os sinais de possessão diabólica.116 Do
maior violinista do século XVIII, Tartini, contava-se (lenda por ele mesmo
divulgada) que recebera no sonho pelo próprio diabo o tema do último
movimento de sua famosa sonata Trille du Diable. Violinista também foi o
grande Vivaldi, que teria sido excomungado porque abandonou o altar durante a
missa, no momento da transubstanciação, para notar na sacristia um tema que lhe
ocorrera. Enfim, Paganini: suas inexplicáveis artes da mão esquerda; o boato de
que as teria aprendido na prisão, fazendo exercícios furiosos durante muitos
anos, quando expiando crimes sinistros; seu aspecto extraordinário de homem
esquelético – tudo isso fez ver, a espectadores ingênuos, a sombra do demônio
ao seu lado. Mas Heine, ao qual devemos a melhor descrição de um recital de
Paganini, já afirma ter realmente visto o demônio um homem baixinho que não
foi senão o empresário e chefe de publicidade do virtuose.117 Desde então, a
lenda entrou na decadência. Hoje, os grandes violinistas são admirados e pagos
como grandes cantores, sem intervenção do diabo.
A comparação com os virtuoses do canto lembra nosso ponto de partida: voz
humana – voz do violino. A relação parece-me a mesma como a que existe entre
as paisagens na natureza e as paisagens nos quadros dos grandes paisagistas.
Durante séculos, o homem passava pela paisagem sem perceber os encantos
estéticos. Só os pintores nos ensinaram a beleza da planície holandesa, dos Alpes
remotos vistos de Veneza e dos arredores do Paris. Só a pintura nos ensinou a ver
a paisagem. Só o violino nos ensinou a ouvir a voz humana.
Realmente esta não se ouviu até 1609, mais ou menos: a época da polifonia só
conhecia as massas sonoras dos coros, ignorando a voz isolada do indivíduo.
Esta descoberta foi feita em 1607, em Mântua, quando Monteverde fez
representar sua primeira ópera; ao mesmo tempo foram na cidade vizinha de
Cremona construídos os primeiros violinos modernos. E pouco tempo depois da
morte de Monteverde nasceu Corelli.
Mas o violino não se contentou com imitar e acompanhar a voz humana
isolada. Com base no violino elaborou Haydn a nova polifonia instrumental do
quarteto de cordas, fundamento da arte sinfônica de Beethoven e da arte
dramática de Wagner. E quando Stravinsky, inimigo da expressividade
romântica, excluiu de sua orquestra o violino, terminou uma época.118
Outra vez, em Alban Berg, em Bartók, o violino está hoje isolado. A última
obra de Bartók é mesmo uma sonata para violino solo, descendente daquelas
obras para violino solo de Bach. E agora compreendemos melhor o canto
polifônico da grande chaconne: não uma peça de virtuosismo técnico, mas um
hino religioso.
Joseph Pothier, Les Mélodies grégoriennes d’après la tradition (Tournay, Desclée, 1880), p. 155; disponível
em: https://archive.org/stream/lesmlodiesgr00poth#page/n3/mode/2up. (N.E.)
A tese de Carpeaux é de difícil sustentação: além de carro-chefe do repertório dos maiores compositores de
todos os tempos, a voz humana é inigualável em termos de expressividade e empatia com os públicos de
todos os povos e nações – muito embora o violino também seja instrumento de grande penetração e sucesso
no coração do grande repertório sinfônico e camerístico ocidental, constatação pela qual Carpeaux formulou
sua ousada tese, comparando o violino à voz humana para em seguida engrandecê-lo como instrumento
superior a todos os demais. (D.M.)
Carpeaux deduz a possessão: John Hawkins, General History of the Science and Practice of Music (2 vols.,
Londres, Novello, 1853), vol. 1, p. 675; disponível em: https://books.google.com.br/books?
id=BwcVAAAAQAAJ. (N.E.)
Heinrich Heine, Noites florentinas (trad. Marcelo Backes, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1998). (N.E.)
Sua obra de maior sucesso, Le Sacre du printemps (“A sagração da primavera”), conta porém com larga
seção de cordas, em que o violino desempenha papel substancial na condução das massas sonoras. (D.M.)
Stendhal e a música
Correio da Manhã, 23 fev. 1957

C erta vez, um amigo queixou-se, em conversa, das dificuldades que


encontra na leitura de Stendhal. Admira muito Le Rouge et le Noir119. O
romance combina bem com o retrato de Stendhal assim como o apresentam os
biógrafos e os críticos: um psicólogo de inédito poder de penetração,
desmascarando os pretextos morais e revelando o maquiavelismo dos atores no
palco político e no palco da família; um livre-pensador revolucionário, no
sentido do aristocrático século XVIII, que antecipa o aristocratismo do livre-
pensador Nietzsche. Mas depois disseram àquele amigo: – a maior obra é La
Chartreuse de Parme120. E neste outro romance não reconheceu mais o Stendhal
de Le Rouge et le Noir. Na Chartreuse de Parme, Stendhal não teria analisado e
iluminado, pelos raios-x de sua psicologia, a realidade social; teria criado um
mundo fantástico, uma Itália totalmente irreal, país em que – as mais agudas
observações psicológicas não alteram o fato – se desenrola um inverossimílimo
romance de aventuras. A impressão definitiva da leitura foi de ordem musical:
Tema con variazioni121.
Os stendhalianos ortodoxos estariam escandalizados, embora a definição da
Chartreuse de Parme como romance de aventuras combine com a do grande
stendhaliano Léon Blum: “une autobiographie chimérique”.122 O próprio
Stendhal teria, porém, gostado daquele termo musical, usado para caraterizar-lhe
o supremo esforço literário.
Sobre Stendhal devant la musique123 existe um ensaio do professor A.
Caraccio, da Universidade de Grenoble: bem documentado, sem tentativa de
penetrar mais fundo no assunto. No resto, a crítica resolveu ignorar o tema. As
grandes obras sobre os romances de Stendhal nunca falam da música, sendo que
os livros do romancista sobre Haydn e Mozart124 e sobre Rossini125 pertencem à
época antes das obras-primas. Claude Roy, no recente Stendhal par lui-même126,
reúne textos de Stendhal sobre os mais diversos assuntos; menos sobre música. É
uma omissão imperdoável.
Pois Stendhal foi melômano apaixonado. Disse: “Musique, mes uniques
amours...”127 Escreveu aquelas duas obras sobre música, que também ocupa
muito espaço nos livros de viagens e na correspondência. Diz que os momentos
mais felizes da sua vida foram os que passou nos camarotes do teatro da Scala,
em Milão. E isto diz um homem cuja suprema aspiração era a felicidade dos
sensos, de todos os sensos. Como podem os críticos ignorar-lhe esse aspecto da
personalidade artística?
Há dois motivos: a pouca familiaridade dos críticos literários com a música,
especialmente com aquela música de que Stendhal gostava tanto; e certo
embaraço em face dos erros grosseiros do romancista com respeito à arte tão
amada.
O conhecimento da música não faz parte da cultura geral. Seria difícil exigir
tanto, sendo que a tão grande número de homens inteligentes e cultos a Natureza
negou o ouvido musical. Mas parecem existir, além disso, certas
incompatibilidades. A França é a nação mais literária do mundo; mas entre os
literatos são Baudelaire, Proust e Gide, homens musicais, as exceções que
confirmam a regra. O tipo antes é aquele para quem a música foi “o mais
suportável dos ruídos”. Até estetas como os irmãos Goncourt só apreciavam
marchas militares. A ignorância, em matéria de música, de escritores que fizeram
tanta questão de documentar-se bem, como Balzac e Zola, é grotesca. Mas há
aquelas e mais outras exceções: e estes críticos ficam embaraçados em face dos
evidentes erros do próprio Stendhal.
O romancista admirava Haydn; mas não deu o passo mais adiante, para
Beethoven, sobre o qual escreveu as seguintes palavras inacreditáveis: – “Trop
de bruit pour avoir du talent”.128 Stendhal amava Mozart. Mas confundiu-lhe,
levianamente, a arte com a de Rossini, cuja glória universal comparou à de
Napoleão. Preferiu, em geral, à música instrumental a ópera, erro que é de todos
os franceses de sua época, assim como os elogios absurdos que prodigalizou a
Meyerbeer. Mas não se pode dizer que seu ponto de vista fosse o de um habitué
do Théâtre des Italiens. Sua italofilia musical era mais autêntica. Seu posto de
observação das coisas musicais era um camarote do Teatro della Scala. A música
foi para ele, como para os italianos do século XVIII (ao qual pertence
espiritualmente), um assunto social, de sociedade.129
É diletante em música. Na Vie de Haydn diz: “Nous parlons beaucoup de
musique, et rien dans notre éducation ne nous prépare à en juger”.130 Na
mocidade tomou lições de violino e clarineta; mais tarde, quando subtenente em
Bérgamo, repetiu a tentativa inútil de estudar esses dois instrumentos. Tampouco
conseguiu satisfazer à ambição de estudar canto. No entanto, achou que só “le
hasard a fait que j’ai cherché à noter les sons de mon âme par des pages
imprimées”.131
Os críticos não encontraram, depois, nas páginas impressas de Stendhal
aqueles sons musicais; porque para nós a música já é coisa diferente. Somos,
todos nós, querendo ou não, filhos e herdeiros do romantismo. Pensando na
música, não podemos deixar de pensar em Beethoven, em quem Stendhal não
encontrou talento. Sua compreensão da música não era emocional, mas social. É
a diferença toda entre os séculos XIX e XVIII. A música, para ele, não era
edificação quase religiosa nem divertimento de domingo e feriados; mas enchia-
lhe a vida.
Depois daqueles primeiros livros deixou de incluir conversas sobre música,
etc., nos seus romances. Até acredito que excluiu a música deliberadamente de
Le Rouge et le Noir, romance da vida francesa de 1820, porque a música não era
elemento da vida francesa de 1820: era incompatível com a prosa da psicologia e
com o maquiavelismo dos arrivistas à maneira de Julien132. No romance italiano,
na Chartreuse de Parme, tampouco dá espaço ao diletantismo musical. Mas a
música lhe forneceu o princípio de composição da obra: “les sons de mon âme”
em “pages imprimées”.
Já não existe aquela aversão dos críticos literários contra a música. Ao
contrário, temos tido uma enchente de estudos do tipo: “A música em Fulano”.
Mas os termos continuam imprecisos: “estilo musical”, “atmosfera musical”,
essas observações não dizem grande coisa. No entanto, há possibilidades de
encontrar em obras literárias fenômenos que não só metaforicamente se podem
chamar: polifonia, contraponto, modulação, etc.
Não quero ir até o extremo de demonstrar a presença da sonata-forma na
composição da Chartreuse de Parme. Seria exagero. Mas pode-se falar, sim, de
tema con variazioni133 com respeito às aventuras de Fabrice; e de polifonia134 dos
assuntos políticos e eróticos; o estranho desfecho eclesiástico não passa de
cadenza135 na qual se resolvem, enfim, as últimas dissonâncias.
Assim como a monarquia do ancien régime francês foi definida como
“absolutisme tempérée par des chansons”,136 assim o maquiavelismo político-
erótico, que caracteriza o ancien régime restabelecido em Parma, é bem
temperado pela música.137 É um caso único na literatura. O único pendant que
me ocorre, é mesmo musical: Le nozze di Figaro, de Mozart. Ou, talvez, Così
fan tutte; com alguns ritmos de opereta, naquele alto sentido da palavra em que o
velho papai Offenbach fez operetas, caricaturas deliberadamente absurdas da
sinistra e grotesca realidade.
A Itália da Chartreuse de Parme é um país de ópera; às vezes, de opereta. O
desfecho é sacro. Pois aos italianos não repugna ouvir belas árias durante a
missa.
Publicado no Brasil como O vermelho e o negro. (N.E.)
Publicado no Brasil como A cartuxa de Parma. (N.E.)
“Tema com variações”: forma clássica que consiste na invenção de sucessivas variações acerca de um tema
inicial. (D.M.)
Paráfrase de L’Oeuvre (9 vols., Paris, Michel, 1954-1972), vol. 2, pp. 503, 506. (N.E.)
Em Omaggio a Stendhal (Parma, La Bodoniana, 1950), pp. 130-152. (N.E.)
“Mozart”: publicado no Brasil como A vida de Mozart. (N.E.)
Publicado no Brasil como Vida de Rossini. (N.E.)
(Paris, Du Seuil, 1951). (N.E.)
Vie de Henri Brulard. (N.E.)
“Barulhento demais para ser talentoso” (em Vie de Rossini). (G.Z.)
A ópera ocupava lugar central na vida social italiana no século XIX e seus bastidores eram objeto de grande
curiosidade para o público, tal como hoje se observa no Brasil em relação às produções de teledramaturgia.
(D.M.)
“[Na França] falamos muito de música, mas nada em nossa educação nos prepara para julgá-la.” Citação
elíptica. (G.Z.)
“O acaso fez que eu procurasse anotar os sons da minha alma em páginas impressas” (em Vie de Henry
Brulard). (G.Z.)
O protagonista Julien Sorel. (N.E.)
Cf. nota 121. (D.M.)
Técnica musical que consiste na condução simultânea de melodias independentes e harmônicas. Carpeaux
emprega o termo musical para designar a sobreposição e a condução simultânea de temas literários no
romance. (D.M.)
Trecho solo de concerto musical ou ária vocal de caráter livre e improvisado em que o intérprete demonstra
todo o seu virtuosismo. (D.M.)
“Absolutismo temperado por canções” (citação de memória de Nicolas Chamfort, Caractères et anecdotes).
(G.Z.)
No original, “[...] em Parma, são ‘bem temperados’ pela música” (grifamos). (N.E.)
Romantismo de Beethoven
Correio da Manhã, 9 mar. 1957
a primeira vez, salvo engano, que nesta fase deste suplemento138 sai um
É artigo sobre assunto musical. Será preciso justificá-lo? Desde os tempos da
Renascença, em que a música figurava obrigatoriamente no programa
educacional de quem pretendia ser homem culto, essa arte deixou de fazer parte
da chamada “cultura geral”. As “Histórias da Civilização” para fins didáticos
mencionam os nomes de estadistas, eruditos, poetas, artistas plásticos, etc., mas
não perdem palavra sobre Bach. Isto especialmente a partir do começo do século
XIX: do século de Beethoven, em que a música conquistou uma ascendência
sobre os espíritos como nunca antes. A arte de Beethoven tem de ser
reenquadrada entre os fatores determinantes da evolução cultural, ao lado da
literatura. Um estudo do romantismo de Beethoven talvez possa contribuir para
esclarecer melhor o conceito do romantismo, de tanta importância em terreno
literário.
Pois toda a literatura moderna, inclusive os modernismos com seus fortes
impulsos românticos, reage desta ou daquela maneira contra o romantismo do
século XIX. A música moderna acompanha esse movimento: é anti-romântica.
E, enquanto considera Beethoven como o protótipo da música do século
passado, é antibeethoveniana.
Muita gente experimenta um choque quando fica sabendo que há inimigos de
Beethoven. Mas há vários, alegando os mais variados motivos, opondo-lhe ora o
neo-realismo musical dos Hindemith, Toch, etc., ora a volta às formas da música
barroca, bachiana ou pré-bachiana. Assim houve no século XVIII reação contra
Miguel Ângelo, cujo titanismo, comparável ao de Beethoven, tinha dominado o
barroco. Mas foi Miguel Ângelo artista barroco? Nossos avós consideravam-no
como auge da Renascença; hoje, antes é chamado precursor do maneirismo.
Dúvidas semelhantes existem com respeito ao romantismo de Beethoven.
A crítica musical francesa e, dependente dela, a italiana, nunca tiveram
dúvidas: para os latinos, Beethoven é romântico. Assim ele aparece nos manuais
e nas manifestações, sobre música, de escritores franceses. A atitude
antibeethoveniana de alguns críticos franceses, especialmente da escola de
Debussy, está ligada ao anti-romantismo dos neoclassicistas e nacionalistas à
maneira de Maurras: o romantismo seria importação estrangeira, germânica.
Realmente, os germânicos são ou foram genuinamente românticos. Adoram os
grandes compositores do romantismo: Schubert, Weber, Schumann; depois, o
neo-romântico Wagner. A todos estes o anti-romantismo alemão dos anos de
1920 opôs o neo-realismo e o neobarroco musicais; mas, não a Beethoven. Pois
se o próprio Beethoven já tivesse sido romântico, qual seria a novidade dos
Schubert, Weber, Schumann, Wagner? Estes foram românticos, sim; mas
Beethoven, não.139 Ao contrário, obras como a V e VII Sinfonia, os grandes
concertos, os quartetos Rasumovsky aparecem nos manuais da história musical
alemã como exemplos de classicismo.
É extremamente difícil decidir-se entre essas duas teses antagônicas. Se
considerarmos a evolução histórica – Beethoven; depois Schubert, Weber,
Schumann; depois Wagner – então a crítica alemã tem razão: comparado com
aqueles mestres do mais autêntico romantismo musical, Beethoven não é
romântico. Mas se considerarmos a essência da arte beethoveniana – o
subjetivismo radical da grande personalidade, manifestando-se pela reintegração
intensamente pessoal das formas tradicionais – então é Beethoven romântico e
até o maior de todos os românticos.
A diferença entre a tese francesa e a tese alemã é conseqüência de duas
evoluções históricas, divergentes. Na França do século XVIII a fase final do
classicismo é racionalista; irracionalista é, no fim do século, o pré-romantismo
especificamente francês de Rousseau, que deve pouca coisa aos ingleses e nada
aos alemães; de origem alemã só é, pelo menos em parte, o romantismo católico
dos anos de 1820 (primeira fase de Lamartine, primeira fase de Victor Hugo); foi
logo superado pelo romantismo liberal (e, depois, revolucionário) em literatura,
ao qual corresponde em música a obra de Berlioz; e este já se julgava discípulo
de Beethoven.
Na Alemanha corresponde, grosso modo falando, Haydn ao classicismo
francês do século XVIII. Certas veleidades românticas só se observam nos
movimentos lentos das suas últimas obras, como do quarteto denominado Largo
(op. 76, n.º 5), do Quarteto op.77, n.º 2; da sinfonia denominada London (n.º
104): obras evidentemente influenciadas por Mozart. Pois no classicíssimo
Mozart não se pode deixar de perceber a veia romântica (Concerto para piano
em ré menor, K. 466; Trio com clarineta, K. 498; Quinteto para cordas em sol
menor, K. 516, etc., etc.); mas muito antes de o romantismo ter dado o menor
sinal de vida na Alemanha. Esse Mozart romântico, compositor internacional
aliás, corresponde ao pré-romantismo francês.
A influência de Mozart nas obras da mocidade de Beethoven é estranhamente
insignificante, sensível só em casos de importância menor; ou limitando-se a
elementos técnicos e formais (Trio para cordas, op. 3; Concerto n.º 3 para piano
e orquestra em dó menor, op. 37). O subjetivismo tempestuoso do jovem
Beethoven tem outras fontes.
Ao pré-romantismo corresponde na Alemanha o movimento Sturm und Drang,
revolucionário em matéria literária e em matéria social: exemplos são o Werther,
de Goethe, e Os bandoleiros, de Schiller. Depois, os dois grandes poetas viraram
neoclassicistas; época de Weimar. E contra esse neoclassicismo rebelou-se,
enfim, o romantismo alemão, medievalista, católico ou catolizante, místico,
fantástico e irônico no início, depois deliberadamente popular. É o romantismo
dos Brentano140, Tieck141, Novalis e E.T.A. Hoffmann, dos Schubert, Weber,
Schumann. Não é o romantismo de Beethoven.
O pré-romantismo de Beethoven, entre 1795 e 1800 (Sonata para piano em ré,
op. 10, n.º 3; Sonata patética, op. 13; Quarteto op. 18, n.º 6), corresponde
exatamente ao Sturm und Drang de 1770, com aquele característico atraso com
que, conforme Nietzsche, a música costuma acompanhar a evolução geral do
Espírito. Depois, Beethoven é clássico como os weimarianos; do seu pré ou ante-
romantismo subsistem poucos resíduos (Abertura Coriolano; Trio com piano em
ré, op. 70, n.º 1). A fase final do mestre, a das últimas sonatas para piano, da
Missa Solemnis, da IX Sinfonia, dos últimos quartetos, não tem nada que ver
com romantismo nem com classicismo. É música de um outro mundo.
Primeira conclusão: se o ouvido dos latinos percebe sons românticos em todas
as fases e obras de Beethoven, o motivo não é o romantismo inato do alemão
nem o classicismo instintivo dos franceses, mas o fato de que a música é,
intrinsecamente, uma arte mais romântica que a literatura. E a música é para os
alemães a preocupação principal; é para eles o que é a literatura na França.
Segunda conclusão: o conceito do romantismo é relativo. Não tem a mesma
significação além e aquém do Reno. Muita coisa parece romântica a um francês,
que não se afigura assim a um alemão. Goethe, o grão-mestre do classicismo
alemão, também é classificado como romântico nos manuais franceses...
Mas que adiantam as explicações históricas, se não fazem compreender o
presente, se não iluminam o caminho para o futuro? A influência de Beethoven
foi esmagadora; mas não fomentou o romantismo. Por isso os movimentos
antibeethovenianos, o neo-realismo musical e o neobarroco, revelaram-se como
becos sem saída; como tentativas de evitar decisões que o próprio Beethoven já
tinha superado. É a última fase beethoveniana que indica o caminho para o
futuro: quem enveredou por esse caminho, um Bartók, podia continuar
beethoveniano até o fim sem ficar esmagado pelo mestre.
O suplemento Literatura. (N.E.)
Embora musicólogos o identifiquem como o primeiro dos românticos, Beethoven nunca abandonou as
formas estritamente clássicas, senão antes as elevou aos píncaros da expressividade musical, fenômeno que
é inclusive responsável pelo aparecimento das novas formas do romantismo, porquanto fosse de senso
comum que superar Beethoven no manuseio das formas clássicas se tornara tarefa intransponível para a
nova geração romântica. (D.M.)
Clemens Brentano (1778-1842), poeta e romancista alemão. (N.E.)
Ludwig Tieck (1773-1853), romancista e dramaturgo alemão. (N.E.)
O futuro da música
Diário do Paraná, 5 mai. 1957
público que freqüenta os concertos costuma queixar-se do repertório
O antiquado dos teatros de ópera: sempre Verdi, sempre Puccini; quando as
coisas melhoram, são interrompidos por Mozart e Wagner. Realmente, é um
repertório histórico, de museu.
Mas tem o público dos concertos o direito de reclamar? De que se compõe seu
repertório preferido? De Bach e Mozart até, digamos, Brahms e Debussy. Só
vive a música de entre 1700 e 1900. Também é um repertório histórico. Prova: a
maior ampliação desse repertório até hoje não foi conquista da música moderna,
mas a redescoberta e reconquista da música barroca.
Existe um abismo entre os interesses do público, dos concertos e da ópera
igualmente, e, por outro lado, os interesses dos compositores modernos. O
perigo é evidente: a música poderá petrificar-se como uma peça de museu.
Eis um dos assuntos principais do importante livro Music in American Life142,
de Jacques Barzun, crítico que entende igualmente bem de música, de literatura e
dos fenômenos sociais.
Barzun considera como um dos fatos fundamentais a democratização da
música, nos Estados Unidos, pelo disco e pelo rádio. Em 1954 os americanos
compraram discos long-play de música clássica no valor de 70.000.000 de
dólares. Só da IX Sinfonia de Beethoven venderam-se 130.000 exemplares. Isto
significa, evidentemente, forte comercialização da vida musical, de modo que se
podem empregar termos econômicos: apesar de tudo, a oferta é maior que a
procura. A música persegue o americano em todos os momentos de sua vida e
em todos os lugares. Um dia, acredita Barzun, a gente se revoltará. A música
antiga será radicalmente abandonada; e então haverá lugar para a música nova;
mas não pela abolição da antiga, que seria uma catástrofe, a perda de um mundo.
Os motivos serão outros.
Para Barzun, crítico da vida musical americana, a história da música começa
por volta de 1900. Mas nenhum crítico da vida musical européia poderá
concordar com esse anacronismo. Nem aquele repertório histórico data de 1900;
o mal começou muito antes.
Paganini, Chopin e (em parte) Liszt foram os últimos grandes virtuoses que
tocavam, em concerto, principal ou exclusivamente suas próprias obras, escritas
para esse fim. Os grandes pianistas e violinistas de hoje só têm repertório
histórico. O único que fez composições próprias, Kreisler, fantasiou-as de
transcrições de música antiga. Mas até 1800 os virtuoses só tocavam suas
próprias obras, isto é, tinham de escrever permanentemente obras novas para não
cansar o público pela repetição das velhas.
Eis a mentalidade do século XVIII, do século musical por excelência: a música
é escrita para determinada ocasião, as mais das vezes para uma única execução;
depois, cai no esquecimento. Até uma obra tão excepcional como a Missa de
Benevoli para a consagração da catedral de Salzburgo (1628), obra excepcional
pela estrutura colossal e complicada (54 vozes instrumentais, três coros, 16
solistas e órgão), só foi executada uma vez; depois, dormiu nos arquivos durante
três séculos. O desperdício de força criadora foi imenso. Por isso, as cantatas de
Bach não foram publicadas; por isso, toda a música sacra e operística italiana do
século XVIII foi radicalmente esquecida.
Com uma única exceção que confirma a regra (o culto inglês pelos oratórios de
Haendel), ninguém teria no século XVIII pensado em repetir periodicamente
obras antigas.
A redescoberta da música antiga é um fato do romantismo de 1800: E.T.A.
Hoffmann e Thibaut143 entusiasmaram-se pela música sacra dos velhos italianos;
pouco depois, Mendelssohn inaugura o culto de Bach. Salvou-se do
esquecimento um mundo.
Sem dúvida: esse culto do passado é a raiz daquele mal. Mas na
“historificação” da vida musical também se encontra o remédio. O processo
então iniciado não admite limites. Os românticos de 1800 incorporaram Bach e
Pergolese ao repertório. Apesar de todos os esforços, não foi possível
reconquistar, para o repertório comum, as obras de Palestrina, Orlandus Lassus e
Victoria. Mas estamos hoje acostumados a ouvir Monteverde e Schuetz, Vivaldi,
Couperin e Domenico Scarlatti. A própria música moderna está profundamente
influenciada pela reconquista da música barroca.
Essa reconquista é considerada, por muitos, como sinal de reacionarismo.
Thomas Mann, no Doutor Fausto, escreveu algumas páginas profundas sobre o
sentido reacionário desse barroquismo musical e suas relações com a decadência
da sociedade burguesa. Mas por que justamente o barroco (que na música
também compreende a primeira metade do século XVIII)?
Um dos “reconquistadores” foi Hindemith, então (por volta de 1925) o líder da
Gebrauchsmusik, isto é, da música escrita para determinados fins e ocasiões. A
volta para o barroco procura reconquistar também a função vital da música.
O compositor dos séculos XVII e XVIII nunca escreveu obras pensando na sua
“eventual” execução no concerto ou no teatro. As óperas eram, todas elas,
encomendadas. Toda a outra música destinava-se para determinados e bem
definidos fins: para o uso litúrgico na igreja, para a diversão dos monarcas na
corte e da aristocracia nos palácios e castelos durante as refeições, nos bailes e
até para a caça. Os Concertos de Brandemburgo também eram Gebrauchsmusik;
e Bach não teria, provavelmente, escrito cantatas se o seu contrato não obrigasse
a tanto.
Mas o compositor moderno só escreve para edificar, ou para divertir um
público anônimo o possível, com a secreta esperança de suas obras ficarem, um
dia, incorporadas ao museu que é o repertório histórico.
O futuro da música reside na reconquista de funções vitais da arte. Mas quando
a música deixar, um dia, de servir à edificação e à diversão indeterminadas,
então poderá dispensar as cláusulas e cadências harmoniosas que despedem em
paz o ouvinte. Então o público também redescobrirá a profunda tese de
Nietzsche: que, em vez de ser a consonância a regra e a dissonância a
interrupção anormal, na verdade – na arte e na vida – a dissonância é a regra e a
consonância a exceção. Mas este também é um dos princípios da música
moderna, cujo dia terá assim chegado.
(Garden City, N.Y., Doubleday, 1956). (N.E.)
Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840), jurista e músico alemão. (N.E.)
Quarteto Húngaro (III)144
Correio da Manhã, 10 set. 1957

I mpedido de assistir à terceira noite do ciclo do Quarteto Húngaro145, por


exercer a alta função de membro do júri do I Concurso Internacional de
Piano, o responsável146 por esta seção confiou-me a honrosa incumbência de
registrar aquele notável acontecimento musical, desfecho de um ciclo da maior
importância.
A primeira palavra tem de ser de agradecimento à Pró Arte. Embora estivesse
cheio, pela terceira vez, o auditório da ABI, não se pode fugir à observação de
que o gosto pela arte camerística ainda não está profundamente enraizado no
Brasil. Nessas circunstâncias, a intervenção da Pró Arte e de sua benemérita
presidente merece a gratidão de todos os que sabem o que é o quarteto: o meio
de expressão preferido de mestres como Haydn, Beethoven e Bartók. Sapienti
sat.147
O Quarteto Húngaro já tinha, nas duas noites precedentes, superado todas as
expectativas. Não fora possível executar com maior elegância e, no segundo
movimento, com mais íntima emoção reservada o Quarteto op. 76, n.º 5,
chamado Quarteto do Largo, de Haydn; nem fazer sentir melhor a força áspera
do Quarteto n.º 2 de Bartók; nem as melancolias eslavas do Quarteto op. 96 de
Dvorák; nem a serenidade duramente conquistada do Quarteto op. 51, n.º 2 de
Brahms. Nem abrir os mistérios do último quarteto, op. 135, de Beethoven.
Parecia, sobretudo, insuperável a execução do Quarteto de Debussy, capaz de
comover e converter os últimos impenetráveis à mestria do grande francês. No
entanto, a terceira noite manteve-se na mesma altura das outras.
O Quarteto em dó maior, K. 465, de Mozart, seria o mais alto exemplo de
impecável perfeição formal – que é em Mozart quase uma rotina – se não fosse a
introdução, na qual o mestre parece fugir, durante tantos e tantos compassos, à
obrigação de declarar a tonalidade, até resultarem aquelas dissonâncias
estridentes que deram o apelido à obra: Quarteto dissonante. Na execução do
Quarteto Húngaro tudo isso, a perfeição e a heresia, pareciam normais; teria
merecido o aplauso de Stravinsky que pede a um quarteto de cordas a precisão
de uma máquina de costura. Mas só assim é possível desromantizar Mozart.
O mesmo estilo de execução ficaria errado em Schubert. Mas quem esperaria
dos quatro húngaros esse erro? Tocaram com a mais profunda emoção romântica
o Quarteto em ré menor, com seus acessos de energia beethoveniana, com suas
licenças harmônicas que, pelo menos em um determinado lugar, antecipam o
cromatismo de Tristão e Isolda, e com aquelas variações sobre o “lied” A morte
e a donzela que são o opus metaphysicum de Schubert: ali, os quatro homens
solitários debaixo da lâmpada nos abrem, com as chaves dos seus instrumentos,
os mistérios da vida e da morte.
A surpresa da noite foi, porém, o Quarteto n.º 2, op. 10, de Zoltán Kodályi.
Não tem, decerto, a alta categoria dos quartetos do seu amigo e colaborador
Bartók. Mas à robustez de sua estrutura, aos acentos dramáticos do Andante
quase recitativo não foi possível resistir; e o Allegro giocoso foi uma explosão de
temperamento, sem transgredir jamais as fronteiras dessa arte severa que é a
música de câmara. Um assombro.
Temos lido, nos últimos tempos, criticas européias – francesas e belgas – do
mesmo ciclo de quartetos a que acabamos agora de assistir: com a admiração
misturou-se ligeira melancolia, inspirada pela opinião de que o gênero
“quarteto” já não corresponde às necessidades de expressão musical da nossa
época. Estaria fechado o ciclo.148
Fechado, sim; mas em outro sentido. O desenvolvimento do gênero foi
rigorosamente coerente: daquela introdução “herética” do Quarteto K. 465 de
Mozart até as harmonias novas de Bartók. Observou Hegel que na língua alemã
a palavra aufheben tem duas acepções: a de abolir e a de conservar; e que a
abolição da tese e da antítese pela síntese significa sua conservação, na síntese,
para sempre. Nesse sentido, o modernista Bartók julgava-se, com plena razão, o
último e mais ortodoxo dos tradicionalistas.
A música de câmara é o santuário mais íntimo daquela arte que, como
nenhuma outra, é própria e característica da nossa civilização ocidental.
Corresponde às nossas necessidades de expressão, enquanto essa civilização não
tiver definitivamente naufragado. Todos os que participaram daquelas três noites
do Quarteto Húngaro – quem as organizou, quem as executou e quem lhes
assistiu – pertencem à communio sanctorum dos mestres apresentados: herança
pela qual a responsabilidade é nossa.149
O número “III” designa a terceira representação do grupo musical ‘Quarteto Húngaro’. (N.E.)
Grupo de renome mundial (1935-1972), à época deste ensaio formado por Zoltán Székely, Alexandre
Moszkowsky, Denes Koromzay e Gabor Magyar. (N.E.)
Eurico Nogueira França (1913-1992). Cf. nota 33. (N.E.)
“Para o sábio basta.” (G.Z.)
O quarteto de cordas continua a ser um dos gêneros mais praticados por compositores sérios e foi um dos
poucos que trouxe à luz boas obras a partir da segunda metade do século XX. (D.M.)
Carpeaux tinha consciência de que a alta cultura musical irradia compreensão, qualidades e dons para outras
áreas da existência humana. Escrevendo em tom profético, sugere poderoso antídoto ao declínio da cultura
ocidental: preservar-se a elevada tradição do gênero quarteto de cordas, um dos núcleos mais importantes
da música erudita ocidental e seu gênero mais intelectualizado. (D.M.)
História da música
Diário do Paraná, 15 set. 1957

A penas uns 50 compositores, e mesmo estes só com um número restrito


das suas obras, integram o repertório das nossas casas de ópera e sala de
concertos. Mas a história da música, em vez de explicar o estranho fenômeno
dessa seleção, registra centenas de nomes e muitos milhares de obras. Confunde
mais do que esclarece. Os manuais, ainda por cima, começam com capítulos
sobre a música chinesa e indiana, às quais somos impenetráveis; e continuam
com digressões eruditas sobre a perdida música da Grécia antiga que – muito
diferente da literatura e das obras plásticas da Antiguidade – não sobrevive na
nossa.
Limitamos, antes de tudo, o campo. A música, assim como hoje a entendemos,
é produto exclusivo da civilização ocidental (inclusive, naturalmente, os eslavos
da Europa oriental) e de uma época relativamente curta: do século XIV até hoje.
Dentro desses limites tem a historiografia musical de explicar a evolução cujo
resultado foi aquele pequeno número de obras-primas. Mas a verdade é que não
querem saber de evolução.
Alguns contentam-se com o fio cronológico. Mesmo assim... Uma das histórias
da música mais lidas (é de 1948 a oitava edição)150 é a do francês Combarieu.
Pois bem, no segundo volume da sua obra aparecem, por motivo inexplicável,
Rossini antes de Haydn e Mozart, e Weber e Schubert antes do maior,
Beethoven. No terceiro volume, o capítulo de maior extensão chama-se
“D’Auber à Berlioz”:151 Berlioz e Chopin são tratados em pé de igualdade com
os Auber e Halévy. Gounod ocupa espaço cinco vezes maior que Brahms. É a
história da música vista pelo binóculo de um habitué da Ópera de Paris. Mesmo
assim e apesar do nacionalismo fervoroso do autor, a infeliz divisão da matéria
em école française, école italienne, etc., impede-o de salientar a influência de
Carmen sobre Mascagni e Leoncavallo.152 A obra é uma desgraça. Mas é mais
desastrosa a preponderância, em todos os livros dessa natureza, do elemento
biográfico. Vítimas prediletas são Beethoven e Chopin, como se a luta contra a
surdez e a melancolia do tísico fossem seus maiores méritos artísticos. É mais
fácil falar sobre pessoas do que sobre a arte. Ainda no recente livro de Luiz
Heitor153 sobre a evolução da música brasileira encontra o leitor muitas histórias
sobre Carlos Gomes e Villa-Lobos e muito pouco sobre o que lhes caracteriza a
arte.
De uma história da música não se pode esperar explicação completa do
aparecimento periódico de obras perfeitas. As pesquisas intermináveis sobre a
evolução dos gêneros – p.ex., sobre o nascimento da sinfonia de Haydn, seja da
música instrumental vienense, seja da música de orquestra de Mannheim – só
levaram à exumação de inúmeras obras interessantes e completamente mortas. O
que pedimos é outra coisa: situar historicamente as obras vivas. Para tanto,
invertemos a cronologia. Partimos da música mais viva: da contemporânea.
À sensibilidade musical de um cidadão formado pelas audições de Mozart e
Beethoven a música chamada moderna só afigura horrivelmente dissonante,
contrária a leis eternas da harmonia. Mas a verdade histórica é que os conceitos
da dissonância e consonância não são imutáveis. A aparente insensibilidade de
Schoenberg à cacofonia é desenvolvimento lógico do cromatismo de Tristão e
Isolda e do sistema harmônico de Debussy (enquanto nele se pode falar de
sistema). É possível acompanhar para trás esse fenômeno de aparente dissolução
de Schubert: há dissonâncias perfeitamente heterodoxas na introdução do
Quarteto em dó maior, K. 465, de Mozart; há todos os cromatismos possíveis em
madrigais como Tra pianto e duolo de Monteverde ou O voi che sospirate de
Marenzio. Uma obra como a Missa da Coroação (1367) de Machaut soa
estranhamente moderna; é, porém, de uma época na qual o inofensivo intervalo
da Quarta era proibido como dissonante.
No entanto o dodecafonismo de Schoenberg continua encontrando firme
resistência. Opõem-lhe, como o movimento mais significativo da atualidade, o
nacionalismo musical; música especificamente romena ou eslovaca, mexicana
ou chilena, islandesa ou croata. Mas não é a primeira vez. Muito nacionalismo
musical já se inspirou em Debussy e seus discípulos, com a arrière-pensée do ter
encontrado arma eficiente contra a harmonia musical dos alemães; e esquecendo
a origem do nacionalismo musical no neo-romantismo alemão e no próprio
romantismo de Weber. Contrário é o erro de perspectiva histórica que considera
a música como arte especificamente romântica: só porque no romantismo (e em
todos os neo-romantismos) a tendência da literatura e a da música se
encontraram.
Esse outro erro de perspectiva histórica é a conseqüência do fato de que a
história da música foi excluída da história da civilização, como se fosse coisa
inteiramente à parte. Adolfo Salazar quis remediar esse estado de coisas; mas na
sua obra La música en la sociedad europea154 contentou-se com alguns capítulos
sobre Renascença, Barroco, Romantismo, etc., intercalados numa história da
música como todas as outras. Assim aparece o chamado classicismo vienense, de
Haydn, Mozart e Beethoven, como pendant do idealismo alemão de Kant,
Goethe, Schiller e Hegel: as relações da música de Haydn e Mozart com o
iluminismo aristocrático do século XVIII não ficam esclarecidas. Outros
salientam, em Haydn, a herança barroca: esta é, no caso, espiritualmente
evidente; mas não musicalmente. Pois Haydn, talvez o mais original dos
compositores de todos os tempos, é um recomeço depois de uma revolução de
conseqüências desastrosas.
Alguns entre nós ficam satisfeitos por terem assistido à revolução musical dos
anos de 1910: Sacre du printemps155, primeiras obras atonais de Schoenberg.
Mas esta não foi tão radical como outras revoluções precedentes: sobretudo a
dos anos de 1760, dos primeiros quartetos e sinfonias de Haydn. Sua nova
polifonia instrumental tornou dispensável o basso continuo156; e toda a música
dos séculos XVII e XVIII, baseada no basso continuo, inclusive a de Bach, devia
submergir no esquecimento; assim como a “revolução de Monteverde”, do
começo do século XVII, tinha enterrado a polifonia vocal de Palestrina e
Victoria.
A história da música tem de distinguir nitidamente: a polifonia instrumental de
um quarteto de Haydn ou da abertura dos Mestres Cantores não tem nada que
ver com a polifonia vocal de uma missa de Palestrina; e esta última, por sua vez,
não tem nada que ver com a polifonia barroca dos Concertos de Brandemburgo
ou de uma cantata de Bach. A arte de Palestrina pertence a um outro mundo de
música; é, para nós, pré-histórica. Por isso, a frase que se pode ler numa
divulgada história brasileira da música – “Palestrina é o Bach do catolicismo” –
é absurda. Bach é compositor barroco; mas é preciso continuar logo: “...não é só
barroco”. A música do século XVII foi inaugurada por aquela revolução
antipolifônica de Monteverde. A maior parte da música barroca é essencialmente
homofônica e, por isso, está tão irremediavelmente morta; só sobrevive um
descendente degenerado dela, a ópera italiana. Bach é, entre os compositores do
seu tempo, quase uma exceção: um polifonista de espírito barroco. Pois a arte
polifônica veio-lhe diretamente da música gótica da qual ele é, nas obras para
órgãos, o último representante. A música de Bach é uma síntese de estilos; é
Rococó em grande parte das obras para piano; e antecipa evoluções posteriores
em obras como o Concerto para piano em ré menor e a Fantasia cromática. Não
me consta que os historiadores já tenham estudado essa multiplicidade estilística
de Bach: é ela que o coloca no centro da história da música, embora o impedisse
de exercer influência imediata na evolução posterior. Mas o que nos interessa,
não é a própria evolução: só nos importam os resultados, as obras permanentes.
Jules Combarieu, Histoire de la musique (3 vols., Paris, Colin). – Cf. “Hegemonia musical”, nota 106.
(N.E.)
Na verdade, a parte de maior extensão, composta de 11 capítulos. (N.E.)
As influências, interpolações e múltiplas determinações entre compositores e intérpretes das mais variadas
nacionalidades é bem mais sutil e matizada do que pode supor o método historiográfico positivista, que
procura cristalizar períodos históricos em bloco, com datas-referência, o que na realidade sempre gera
grotescas simplificações do processo histórico. É evidente que o autor citado por Carpeaux é influenciado
pela escola sociológica positivista, muito em moda na França na época da publicação do referido volume.
(D.M.)
150 anos de música no Brasil (1800-1950) (Rio de Janeiro, José Olympio, 1956). (N.E.)
(4 vols., México, El Colegio de México, 1942-1946). (N.E.)
De Stravinsky. (N.E.)
“Baixo contínuo”: cf. nota 18. (D.M.)
Recordações de Mahler
Diário do Paraná, 6 out. 1957

P assada a casa dos 80 anos, Bruno Walter não levantará mais sua batuta
mágica para inspirar nova vida a partituras de Gluck, Haydn, Mozart. Em
compensação dá-nos de presente nova edição do seu livro sobre seu mestre
Gustav Mahler.157
Nascido em 1860 na Morávia, Mahler foi entre 1897 e 1907 diretor da ópera
então imperial de Viena e regente da Orquestra Filarmônica dessa cidade. Saído
desse posto de comando por graves conflitos pessoais que o incompatibilizaram
com a orquestra, os cantores e o público, assumiu, já internacionalmente famoso,
a regência na Metropolitan Opera em New York. A doença incurável do coração
mandou-o, em 1911, de volta para Viena, onde morreu logo depois. Deixou,
entre eles que o conheceram, recordação que não se apagará nunca.
Mahler foi grande regente; afirmam que o maior de todos, opinião da qual
também foi Toscanini. No seu tempo o gramofone ainda não passou de
brinquedo, de modo que sua arte de reger está perdida para a posteridade. Mas
sua figura humana continua viva.
Foi o grande romântico E.T.A. Hoffmann que criou o personagem do regente
Kreisler158, apaixonado da música, afigurando-se louco aos que não lhe
compreendem o entusiasmo quase fanático, sofrendo profundamente pelo
antagonismo entre a Arte e o mundo da Prosa; humorista grotesco que,
desesperado, “acabou suicidando-se, cravando uma dissonância no coração”.
Gustav Mahler foi encarnação ou reencarnação desse personagem Kreisler.
Ouvi-o reger quando eu era menino: sem compreender-lhe nada da arte, só vi um
homem alto de magreza espantosa, gesticulando como um possesso, fazendo as
caretas mais burlescas; esse Paganini da batuta parecia ora ator humorístico, ora
louco demoníaco. Mas não era ator nem louco. Apenas um servidor fanático de
ideais inacessíveis.
Sua capacidade inédita de interpretação de obras alheias baseava-se em
imaginação criadora. Imaginava execuções tão perfeitas que não podia deixar de
irritar-se com a insuficiência material dos instrumentos e a impaciência do
material humano. Antes de uma estréia na ópera, antes de um concerto, Mahler
martirizou à gente. Os ensaios não terminavam: 20, 30, 60 vezes,159 durante
noites inteiras, até cantoras desmaiarem e os músicos se declararem em greve. O
regente possesso sacrificou os outros e a si mesmo. Criou inúmeros inimigos
apaixonados e prejudicou de maneira irremediável seu coração doente. Deu a
vida pelo ideal inatingível da execução perfeita. Mas aproximou-se dele na
medida do seu gênio de servidor fanático da arte. Criou um elenco e uma
orquestra nos quais sobrevive sua tradição até hoje: representações estupendas
de Gluck, Mozart, Wagner e uma tradição internacionalmente aceita da
representação de Fidelio160: em todas as casas de ópera do mundo segue-se-lhe o
exemplo de iluminar a sala, de repente, antes do último quadro da obra para
transformar o teatro em sala de concerto e executar a Abertura Leonore n.º 3.
Nesses momentos, onde quer que seja, o espírito de Gustav Mahler está entre
nós, deixando-nos ouvir a harmonia das esferas.
Não está tão onipresente a Obra que Mahler criou como compositor. Grandes
regentes como Bruno Walter e o holandês Willem Mengelberg foram servidores
fiéis dessa Obra. Em tempos recentes, depois de certo eclipse, percebe-se sinais
de interesse maior na Itália e na França, na Inglaterra e Holanda e, naturalmente,
na Áustria.161 Admiram-se as artes extraordinárias de instrumentação, de manejo
de orquestras enormes (e de coros) nas gigantescas sinfonias de Mahler;
sobretudo na VIII Sinfonia, para a qual se precisa de 1.000 executantes, e que é
na verdade uma grande cantata em dois movimentos: o primeiro, sobre o hino
Veni, creator Spiritus; o segundo, sobre a última cena de Faust, II, de Goethe.
Mas os críticos continuam a duvidar: se o aparato enorme é justificado pelos
resultados. A música sinfônica de Mahler, que raramente pode dispensar a
colaboração da voz humana, parece pertencer ao tempo em que a IX Sinfonia de
Beethoven passava pelo ponto mais alto da música, coisa em que hoje já não se
acredita. Os textos escolhidos por Mahler, homem de vasta cultura, incomum
entre os músicos, sempre são da mais sublime qualidade literária; mas os temas
musicais de Mahler nem sempre correspondem às suas ambições. Só raramente
se impõem. Às vezes, embora elaborados com um máximo de emoção e arte, são
de trivialidade desconcertante. Em momentos desses até um admirador como o
compositor americano Copland apenas fala em “sinceridade comovente”. Mas
também há os momentos que fazem pensar em Bruckner e no próprio
Beethoven. Esse homem das vitórias fulminantes e das derrotas irremediáveis,
esse “Kreisler” de gestos grotescos e aparência demoníaca foi uma figura
trágica.
Apesar de admirá-lo profundamente, não penso em compará-lo aos maiores.
Seria exagero imperdoável. Só por outro motivo convém citar, a respeito de
Mahler, o nome de Beethoven: este e aquele não eram só compositores, só
músicos. Suas ambições chegaram a ser extra ou superartísticas. Nenhuma obra
de Mahler suporta, nem de longe, a comparação com as últimas sonatas ou os
últimos quartetos de Beethoven. Mas o ponto comum é este: também são
grandes documentos humanos.
Mahler é homem de 1900, de 1910. Com emocionalismo saturado de
neurastenia participou das convulsões espirituais de sua época: neocatolicismo
(do qual ele se converteu), a psicanálise (do seu amigo e vizinho de casa,
Sigmund Freud), simbolismo e esteticismo requintados e bastante decadentes, e
o sentir emocionado com os sofrimentos do povo humilde, numa época do
socialismo já combativo mas ainda meio lírico. Talvez fosse este um dos motivos
para Mahler preferir tanto a poesia popular, ornamentando-a com as artes mais
sutis e mais violentas da orquestração maciça e da polifonia instrumental. Às
vezes os temas são deliberadamente triviais numa tentativa de aproximar-se da
simplicidade. Recordações da infância também contribuíram para as misturas
estranhas de ritmos de marcha militar, de dança campesina e de ladainha de
igreja de aldeia.
A música de Mahler sempre é autobiográfica; nesse sentido, o discípulo de
Bruckner foi o último romântico. Mas superou seu romantismo inato. A
polifonia da VI e da IX Sinfonia aproxima-se dos limites da tonalidade.
Prenuncia a arte do seu amigo e conterrâneo Schoenberg. Mas só chegou a ver
de longe a terra da promissão.
A ambição titânica de Mahler é capaz de lembrar o demoníaco Andreas
Leverkuehn, o personagem de Thomas Mann. Apenas: o pacto, Mahler não o
tinha concluído com o diabo, mas com Deus. Sobre seu exemplar do Te Deum de
Bruckner, escreveu: “Cantado pelos anjos para as almas atormentadas”.162 A
conversão desse judeu descrente ao catolicismo foi profundamente sincera. Mas
não encontrou na nova fé a paz. Natureza pascaliana, irresistivelmente atraído
pelo culto de beleza da sua época que se julgava rica e feliz; e adivinhando,
como ela, um fim próximo e terrível. Os extremos de afirmação estética163 da
vida e do pessimismo oriental encontram-se na última e maior das suas obras: o
Cântico da Terra, sinfonia cantada ou cantata profana sobre versos nostálgicos
do poeta chinês Litaipo164, começando com uma frenética canção, À miséria da
vida, e terminando com elegíaco canto de despedida: “Eu vou para longe e não
voltarei – mas eternas são as nuvens brancas, eternas, eternas”. Eis o tema
permanente da arte de Mahler. Sua II Sinfonia já terminara com um veemente
apelo: “Ressurgir, sim, ressurgir!” Desmentindo todas as explorações biográfico-
psicológicas, tinha escrito as comoventes Canções sobre uma criança morta
muitos anos antes de morrer sua filhinha. Sofreu de verdadeiro “complexo da
morte”. A doença do coração o matou cedo. Não chegou a ouvir a primeira
execução do Cântico da Terra, regida por Bruno Walter. Foi seu réquiem. Na
voz do contralto vibra a despedida: “...mas eternas são as nuvens brancas,
eternas, eternas”, e o violoncelo continua, sonoro, o tema ad infinitum, como
para toda a eternidade.
Gustav Mahler: Ein Porträt (nova ed., Berlim, Fischer, 1957). (N.E.)
No conto Kreisleriana. (N.E.)
Acrescentamos a palavra “vezes” a este trecho. (N.E.)
São de Beethoven a ópera Fidelio e a Abertura Leonore n.º 3 (citada a seguir), estudadas por Carpeaux em
“Cervantes e Beethoven”, p. XXX. (N.E.)
Hoje, porém, a popularidade da obra de Mahler é muito maior. Tanto entre conservadores quanto entre
“progressistas” do gosto musical, é praticamente unanimidade que sua obra ocupe papel central no
repertório sinfônico mundial. (D.M.)
Alma Mahler, Gustav Mahler: Erinnerungen und Briefe [... Cartas e memórias] (Amsterdam, De Lange,
1940). Citação de memória. (N.E.)
No original, “estática”. (N.E.)
Também chamado Li Bai ou Li Po. (N.E.)
Miséria e esplendor dos músicos
Diário do Paraná, 8 dez. 1957
crença comum que os grandes compositores, glorificados pela
É posteridade, sempre foram maltratados pelos seus contemporâneos. Alguns
teriam morrido de fome, outros de falta de compreensão, e o cadáver de Mozart
foi jogado na vala comum.
O mesmo também se acredita quanto aos poetas e pintores, e a imagem
sentimental do artista genial e infeliz, uma das heranças do romantismo, tem
pouco apoio nos fatos históricos. Justamente na música, o caso mais comum é o
do pleno reconhecimento do gênio em vida.
Haendel só tinha encontrado dificuldades ao querer impor aos ingleses o
gênero alheio da ópera italiana; mas seus Te Deums, Anthems e Oratórios
elevaram-no à categoria de porta-voz da Nação; enfim, foi sepultado na Abadia
de Westminster, em face dos túmulos dos reis da Inglaterra. Haydn já estava
famoso antes do convite triunfal para Londres, de tal modo que os cônegos da
longínqua cidade de Cádiz, na Espanha, lhe encomendaram uma obra; quando da
execução do oratório A Criação, em Viena, a imperatriz da Áustria quebrou a
rigorosa etiqueta espanhola, quase abraçando o velho mestre. Todo mundo sabe
que Beethoven foi reconhecido em vida como o maior compositor do tempo e
um dos maiores de todos os tempos. Stendhal achava que só um homem era
comparável ao ídolo Napoleão, por também ter subjugado a Europa inteira:
Rossini. Só aos sucessos espetaculares dos compositores de jazz de hoje foi
comparável o triunfo do Freischuetz, de Weber. Mas é preciso lembrar a alta
posição que Chopin conquistou na sociedade francesa; e Mendelssohn na
inglesa. Reis, princesas e cardeais, eis o cortejo habitual de Liszt. Três
doutorados honoris causa, altas condecorações, considerável sucesso financeiro:
assim foi Brahms recompensado. Dvorák conquistou dois continentes. Verdi, de
milagrosa capacidade de superar-se, renascer musicalmente, conseguiu impor ao
público suas mudanças de estilo.165
Alguns outros tinham de lutar contra hostilidades apaixonadas até vencer; mas
venceram: Gluck, reformando a ópera; Schumann, impondo um novo
romantismo ao estilo pianístico; Wagner, destruindo a tradição secular do teatro
musical para fundar outra;166 César Franck, reconhecido na velhice, em ambiente
parisiense que não lhe compreendera a arte sinfônica nem a religiosidade; até
Bruckner e Mahler, tão hostilizados, foram enfim reconhecidos; Debussy,
combatido no começo acabou idolatrado, como “Claude de France”.167 A glória
de Hugo Wolf foi póstuma só porque o gênio afundou tão cedo na loucura. Se
Alban Berg vivesse um pouco mais do que os 50 anos que o destino lhe
concedeu, teria assistido ao sucesso mundial do seu Wozzeck. E Schubert, cuja
biografia foi tão lamentavelmente sentimentalizada? Morreu com 31 anos, numa
idade em que o maior gênio não pode esperar pleno reconhecimento; no entanto,
sua fama já tinha atravessado o perímetro urbano de Viena; na mesa do falecido
encontraram-se cartas de editores de Leipzig e Paris.
Apesar de todos esses fatos, aquela tese romântica do gênio incompreendido
continua tenazmente. Porque os casos contrários à regra que acabo de
exemplificar são poucos, são menos numerosos do que em qualquer outra arte,
mas são dos mais importantes: é a incompreensão total e a miséria que foram o
destino de Mozart, Berlioz e Schoenberg; e a arte de Bach precisava ser
ressuscitada.
São problemas especiais, que podem ser resolvidos sem fazer concessões
àquele romantismo biográfico-sentimental.
A música é uma arte especificamente iterativa, repetitiva. Nenhuma obra de
arte literária poderíamos reler tantas vezes com prazer como podemos reouvir
um quarteto ou uma sonata. Ao contrário: o prazer será cada vez maior, a
compreensão mais profunda. Mas, por outro lado, precisamos ouvir mais que
uma vez uma obra nova para conhecê-la realmente. Daí certas dificuldades
iniciais que obras de feitura inusitada encontram. Beethoven já estava no auge da
sua glória quando o Concerto para piano n.º 5 e a VII Sinfonia foram recebidos
com estranheza. O Barbiere di Siviglia foi vaiado quando da estréia em Roma,
em 1816, assim como La Traviata, em 1853, em Veneza; mas o triunfo começou
logo depois. Pelléas et Mélisande, em 1902, foi vaiado durante o ensaio geral e
venceu, 24 horas depois, na estréia. No Doutor Fausto, de Thomas Mann, um
empresário parodia o verso de Goethe, dizendo: “No início foi o escândalo”.
Realmente, a história da música é, em parte, uma chronique scandaleuse, uma
história de públicos que na sala de concerto ou no teatro de ópera se revoltam
contra obras novas. Mas há escândalos e escândalos. Tannhaeuser foi vaiado em
Paris, em 1861, porque o público das frisas estava acostumado a ver, no segundo
ato, um ballet, e Wagner não podia fazer dançar os seus menestréis. Outros
escândalos foram de natureza política: o público de Leipzig vaiou em 1859 o
primeiro Concerto para piano de Brahms, porque o compositor era conhecido
como adversário de Wagner; em compensação, o público vienense, fortemente
brahmsiano, vaiou em 1877 a III Sinfonia do wagneriano Bruckner. Escândalos
autênticos porém, dirigidos contra a própria música, foram aqueles que em 1913,
em Paris, recebeu o Sacre du printemps, de Stravinsky; e os sucessivos
escândalos que acompanharam toda a carreira de Schoenberg em Viena;
sobretudo o barulho imenso que em 1913 obrigou os músicos a interromper a
execução da Sinfonia de câmara. Temos o direito de indignar-nos? Consolo
duvidoso é o fato de que houve mais outros escândalos silenciosos e maiores:
quando os originais dos Concertos do Brandemburgo foram vendidos como
papel de embrulho e quando Wilhelm Friedemann Bach, o filho mais velho do
Kantor168, vendeu também assim uma centena de cantatas, perdidas para sempre,
para comprar cachaça.
Também é possível e compreensível o caso contrário, do gênio que fica
incompreendido porque corresponde demais ao gosto da época. Depois da
sensação que Mozart fizera na Europa inteira como menino-prodígio de cinco
anos, esperavam-se dele feitos revolucionários; em vez disso, a música da
maturidade de Mozart é a expressão mais perfeita da mentalidade musical do
século XVIII. E os contemporâneos ficaram decepcionados, confundindo Mozart
com um Cimarosa.
A chave do problema não se encontra, nesses casos, na obra mas no público.
Não pode solucioná-lo a pesquisa biográfica, mas só uma disciplina até agora
pouco cultivada: a sociologia da música. Ao estudo sociológico dos fatos da
história da música não será difícil explicar as derrotas sucessivas de Berlioz: um
compositor essencialmente sinfônico estava perdido num ambiente que só
conhecia e só quis reconhecer a ópera: o ambiente de Paris em 1850, em 1860.
Mas não convém confundir sociologia com política. A música não teve sorte,
pelo menos em nosso tempo, com nenhum regime político. Hindemith foi
exilado da Alemanha nazista. Prokofiev estava sujeito a humilhações indignas na
Rússia soviética. A Atlântida de De Falla não podia ser executada na Espanha
franquista. E nos Estados Unidos democráticos teve Bartók, não molestado por
ninguém, o direito de morrer na miséria.
São casos por assim dizer acidentais. Só resta um: o de Schoenberg. Não se
pode duvidar de sua importância como uma das grandes inteligências-líderes
deste século. Pode-se duvidar, sim, de sua espontaneidade criadora, e concluir
que sua maior obra foi seu discípulo Alban Berg. Mas não é por esses motivos
que o condenaram e condenam. Talvez a música de nenhum outro compositor
tenha menor semelhança e afinidade com a mozartiana do que a de Schoenberg:
no entanto, seu caso lembra muito o de Mozart. A música de Schoenberg foi e
continua sendo condenada porque reflete fielmente demais a época. Conseguiu
ele sobrepor-se aos elementos da disciplina rigorosa do sistema dodecafônico.169
Mas não dissimula, não esconde a presença do caos. Sua arte é insuportável aos
contemporâneos porque lhes diz a verdade. Conforme a bela expressão de T. W.
Adorno, “a música de Schoenberg tollit peccata mundi”.170
Verdi conseguiu mais do que isso: – foi um dos maiores responsáveis pelo processo de unificação da Itália,
culminado em 1871 por Garibaldi e as tropas sob o seu comando. (D.M.)
Wagner exerceu notável controle psíquico sobre Luís II da Baviera, influência a que se opunha a corte e que
resultou na deposição e morte prematura do Rei. (D.M.)
Ainda hoje Debussy é a maior referência em música genuinamente francesa. (D.M.)
Na tradição luterana, cargo eclesiástico eminente nas cidades, pelo qual lideravam-se cantores e
instrumentistas e ensinava-se música. (N.E.)
No original, “Conseguiu ele sobrepor aos elementos ...” (grifamos). (N.E.)
Neste ponto, Carpeaux é levado ao erro por Adorno, que também influenciou a própria teoria dodecafônica
de Schoenberg ao estimular a negatividade destrutiva da tonalidade e das formas tradicionais, com o
objetivo deliberado de afastar o público das salas de concerto. A música mais radical de Schoenberg não é a
expressão da verdade de um tempo, mas o público é que a rechaçou por se afastar de seu universo e de suas
aspirações, disposição que Adorno e a Escola de Frankfurt consideravam essencial, como pretexto para
incriminar o capitalismo, culpado de todos os males da humanidade juntamente com a cultura ocidental. É
fácil compreender as motivações dessa luta estética sutil se tivermos em vista que o objetivo primordial da
Escola de Frankfurt era destruir ambos, isto é, a cultura ocidental e o capitalismo. Para servir à “revolução
social” (a revolução do gosto musical seria apenas uma etapa e força subsidiária), a arte musical deveria se
tornar propaganda ideológica e se esvaziar de seus conteúdos artísticos. Cf. Theodor W. Adorno, Filosofia
da nova música (trad. de Magda França, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2014). (D.M.)
O estilo de Gluck
Diário do Paraná, 19 jan. 1958

C om o disco têm popularidade entre nós todos os grandes mestres que


ainda não estiveram tão queridos e conhecidos como Beethoven e
Chopin: os Bach e Brahms, Haydn, os Schumann, até um mestre só há pouco
ressuscitado como Vivaldi.171 Mas o disco não conseguiu popularizar a música
de Gluck. Sua arte precisa do palco; e, com a rara exceção de Orfeo ed Euridice,
suas óperas não são representadas entre nós; nem no mundo inteiro. Só lhe
guarda fidelidade a ópera de Paris.
É uma fidelidade enobrecedora, mas um pouco paradoxal. Pois Gluck, longe
de ser francês, foi um alemão gordo, às vezes grosseiro, com acessos de
sentimentalismo choroso. Sua cultura, que não era pouca, também era alemã, a
desse ex-estudante da Universidade de Praga e compositor da corte de Viena,
onde repousa, aliás, seus restos mortais. No entanto, os franceses consideram o
autor da Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride como francês, como um dos
maiores compositores da França. Pronunciam “Glick”.
Esse paradoxo lembra-me uma história que o mestre e amigo Aurélio Buarque
de Holanda costuma contar de maneira mais engraçada, história de um
improvisado “professor” de francês em Maceió, pobre diabo completamente
inculto: que chamava os exercícios primários de “filosofia portuguesa” e os
exercícios mais difíceis, de “filosofia francesa”. Eis a regra para a pronúncia do
nome daquele grande mestre: conforme a filosofia francesa, “Glick”, conforme a
filosofia alemã, “Gluck”.
A música do século XVIII não conhecia fronteiras nacionais. O próprio Bach é
meio italiano na música instrumental, enquanto Steffani em Hannover e Caldara
em Viena passavam por alemães. Mozart é alemão e italiano ao mesmo tempo; e,
se tivesse ficado em Paris, também seria francês. Gluck aprendeu a arte da ópera
na Itália, de onde trouxe o conhecimento perfeito da língua de Metastasio e a
pequena vaidade de ostentar o título de cavaleiro de uma condecoração papal.
Mas foi em Viena, certamente sob a influência da nova música instrumental de
Haydn, que Gluck começou a reformar a ópera, escrevendo Orfeo ed Euridice, a
mais comovente de todas as elegias musicais, e Alceste, a solene invocação das
“Divinités du Styx, ministres de la mort”.172 E à plenitude do seu gênio chegou,
com Iphigénie en Aulide e Iphigénie en Tauride, em Paris. Foi a França que
entronizou no Parnaso da imortalidade o mestre “Glick”.
Sua música é a mais nobre que jamais se ouviu no palco dos teatros de ópera.
E, no entanto, tão raramente executada. Não mereceria destino póstumo melhor
aquele que subordinou a música à poesia dramática, o precursor de Wagner?
Talvez não seja precursor de nada e de ninguém, mas o último representante de
uma nobreza, mais de espírito que de sangue, que soçobrou nas tempestades da
Revolução Francesa. Gluck morreu em 1787, antes da Revolução. Mas ninguém
lhe pudera descobrir traços do estilo Rococó. Que têm suas Eurídices, Alcestes,
Ifigênias com as damas do palacete de Trianon? Mas quem diz que a Música
esteja tão sincronizada com as outras artes? Nietzsche, ao contrário, acreditava
que a música sempre chega atrasada, adotando o estilo que as outras artes já
acabam de abandonar. Também parece esta a tese de Richard Benz, que define
Gluck como o último mestre da música barroca.173 Seu teatro seria intimamente
religioso. Nas suas tragédias musicais estaria, pela última vez, viva a
Antiguidade grega, antes de transformar-se em museu de figuras de gesso para o
uso escolar do classicismo.
É uma tese nova. Pois Gluck não nos parecia ter nada com o barroco. Foram
suas obras que mataram a ópera barroca de Alessandro Scarlatti e Haendel. Sua
arte nos parece de serena simplicidade grega. Não a sentiram, porém, assim, os
contemporâneos. Rousseau, ao ouvir a primeira Iphigénie, chorou copiosamente.
O maior crítico musical daquela época, Heinse174, achou a arte de “Gluck”
“tempestuosa, sacudindo as profundidades da alma”. Ainda não se usava, então,
o termo ‘romântico’. Mas menos de 30 anos depois da sua morte escreveu o
grande romântico E.T.A. Hoffmann, em 1809, o conto que melhor define a
personalidade do mestre desaparecido: O cavaleiro Gluck:
Num parque de diversões em Berlim conheceu Hoffmann um velho algo
esquisito, vestido conforme a moda do século passado, que se queixava da
execução lamentável de músicas clássicas pelas orquestras populares; mas nas
casas de ópera também maltratariam as obras do grande Gluck, porque “não
compreendem as melodias que pertencem ao reino dos sonhos e que não se deve
roubar impunemente”. Ao anoitecer, o velho levou o poeta para sua casa,
aparentemente abandonada. Sentou ao piano. Tocou de cor as partituras de
óperas inteiras de Gluck, introduzindo variantes engenhosas, admiráveis. De
repente se levantou; foi, com a vela, para outro quarto, deixando o poeta na
escuridão. Durante longos minutos ansiosos, sentiu Hoffmann os frêmitos da
morte, do reino do Styx que Alceste invoca – quando o velho voltou em trajes de
gala do século XVIII, ostentando vistosa condecoração papal; levando a vela,
disse com gravidade solene e sorriso enigmático: “Sou o cavaleiro Gluck.”
Esse conto, um dos mais admiráveis da literatura universal, já foi muito
discutido. Teria Hoffmann pensado em apresentar-nos um espetáculo ou um
louco? Não importa. Importa a interpretação romântica de Gluck, compositor de
sons misteriosos que lhe chegam de reinos transcendentais além do rio que
separa os vivos e os mortos. Um poeta romântico no palco da ópera: o precursor
de Wagner, que tanto deve às idéias de Hoffmann; e às idéias de Gluck.
Mas essa linha que sempre se costuma traçar, de Gluck a Wagner, falsifica a
perspectiva histórica. As intenções dramatúrgicas podem ter sido semelhantes. A
música aristocrática e grecizante de Gluck não tem nada com a arte romântica e
teutônica de Wagner. As analogias entre o romantismo e o barroco também são,
pelo menos no setor da música, enganadoras. Restabelecemos os fatos musicais.
Gluck parecia aos contemporâneos “tempestuoso” porque alcançou alturas da
expressão dramática que a ópera barroca evitara deliberadamente. Basta ouvir,
antes de uma ópera de Gluck, o Giulio Cesare ou a Rodelinda, de Haendel, para
verificar a presença de um novo ritmo, de uma nova retórica. Mas a forma dessa
retórica é a da nova arte instrumental de Haydn. Em Gluck, a orquestração
inclui, pela primeira vez, as vozes como se fossem partes do tecido sinfônico.175
O crítico italiano Rossi-Doria nos revelou que os três atos de Orfeo ed Euridice
são construídos como três movimentos de uma sinfonia.176 O princípio sinfônico
dos temas contrastantes domina a “planta” de Iphigénie en Tauride: a vitória da
nobre humanidade sobre os instintos bárbaros, da luz sobre a escuridão. Do
palco de ópera, Gluck devia expulsar, pela sua reforma, as vaidades dos cantores,
as estupidezes dos libretistas para transformá-lo em templo: “Introite, nam et hic
dii sunt.”177
Essa disciplina sinfônica de Gluck corresponde à arte arquitetônica dos seus
modelos literários: Corneille e Racine. O erro de Benz foi o de, esquecendo-se
do cosmopolitismo musical do século XVIII, considerar a arte de Gluck só como
fenômeno da história do espírito alemão. Visto assim, o classicismo de Gluck é,
de fato, radicalmente diferente do grecismo algo artificial de Weimar. Mas Gluck
não pertence, todo, à Alemanha. Foi um cavaleiro italiano e um compositor
austríaco; e a pátria das suas maiores obras é a França. Até hoje. Da arte de
Gluck há tão pouco na de Wagner como nas “grandes” óperas de Meyerbeer. Há,
sim, uma sombra do seu gênio nos Troyens à Carthage, de Berlioz. E o
verdadeiro sucessor de Gluck, poeta em sonho no palco, é, com gestos menos
solenes e em atmosfera mais íntima, o autor de Pelléas et Mélisande: Debussy.
Convém mesmo pronunciar “Glick”. Filosofia francesa.
Benz barroquizou o mestre, assim como Hoffmann o romantizara. Mas a
imensa inteligência musical deste último definiu-o bem: como espectro de
tempos idos, mais nobres. O quarto escuro em que Hoffmann, batendo-lhe o
coração, espera a volta do gênio luminoso, é o mesmo lugar das “Divinités du
Styx, ministres de la mort”. A vela acesa ilumina um templo: Ifigênia,
procurando na alma o país dos gregos.
Completamos o início da frase com as palavras: “Com o”. (N.E.)
“Divindades do Estige, ministros da morte”. (G.Z.)
Deutsches Barock (Stuttgart, Reclam, 1949). (N.E.)
Johan Jakob Wilhelm Heinse (1749-1803). (N.E.)
Qualidade evidente na ópera Alceste. (D.M.)
Gastone Rossi-Doria, Enciclopedia italiana di scienze, lettere ed arti (36 vols., Instituto G. Treccani, Roma,
1929-1937), vol. 25, s.v. ‘Opera’; verbete disponível em:
http://www.treccani.it/enciclopedia/opera_(Enciclopedia-Italiana)/. (N.E.)
“Entrai, que aqui também há deuses.” (G.Z.)
Lista de músicos
ALBÉNIZ, Isaac [I. Manuel Francisco A. y Pascual] (Camprodon, 1860 – Cambo-les-Bains, 1909),
espanhol, romântico nacionalista.
AUBER, Daniel-François-Esprit (Caen, 1782 – Paris, 1871), francês, romântico.
AURIC, Georges (Montpellier, 1899 – Paris, 1983), francês, neoclássico, integrante do “grupo dos seis”
parisiense.
BACH, Carl Philipp Emanuel (Weimar, 1714 – Hamburgo, 1788), alemão, clássico.
BACH, Johann Sebastian (Eisenach, 1685 – Leipzig, 1750), alemão, barroco.
BACH, Wilhelm Friedemann (Weimar, 1710 – Berlim, 1784), alemão, barroco.
BALFE, Michael William (Dublin, 1808 – Hertfordshire, 1870), irlandês, romântico.
BARTÓK, Béla [B. Viktor János B.] (Sânnicolau Mare, 1881 – Nova Iorque, 1945), húngaro, modernista.
BEETHOVEN, Ludwig van (Bonn, 1770 – Viena, 1827), alemão; romântico, clássico.
BENEVOLI, Orazio (Roma, 1602-1672), italiano, barroco.
BERG, Alban (Viena, 1885-1935), austríaco; expressionista, dodecafonista.
BERLIOZ, Hector (La Côte-Saint-André, 1803 – Paris, 1869), francês, romântico.
BIZET, Georges [Alexandre César Leopold B.] (Paris, 1838 – Bougival, 1875), francês, romântico.
BOITO, Arrigo [Enrico Giuseppe Giovanni B.] (Pádua, 1842 – Milão, 1918), italiano, libretista.
BRAHMS, Johannes (Hamburgo, 1833 – Viena, 1897), alemão, romântico.
BRUCKNER, Anton (Ansfelden, 1824 – Viena, 1896), austríaco, romântico.
CALDARA, Antonio (Veneza, 1670 – Viena, 1736), italiano, barroco.
CHABRIER, Emmanuel [Alexis E. C.] (Ambert, 1841 – Paris, 1894), francês, romântico.
CHÁVEZ, Carlos [C. Antonio de Padua C. y Ramirez] (Poplota, 1899 – Cidade do México, 1978),
mexicano; modernista, neoclássico.
CHOPIN, Frédéric [F. François C.] (Zelazowa Wola, 1810 – Paris, 1849), francês, romântico.
CIMAROSA, Domenico (Aversa, 1749 – Veneza, 1801), italiano, clássico.
COPLAND, Aaron (Nova Iorque, 1900 – Mount Pleasant, 1990), americano; modernista, neoclássico.
CORELLI, Arcangelo (Fusignano, 1653 – Roma, 1713), italiano, barroco.
COUPERIN, François (Paris, 1668-1733), francês, barroco.
DA PONTE, Lorenzo (Vittorio Veneto, 1749 – Nova Iorque, 1838), italiano, libretista.
DE FALLA, Manuel [M. D. F. y Matheu] (Cádiz, 1876 – Alta Gracia, 1946), espanhol; modernista,
nacionalista pós-romântico.
DE PRÉS, Josquin (c. 1450-1521), francês, mestre franco-flamengo.
DEBUSSY, Claude-Achille (Saint-Germain-en-Laye, 1862 – Paris, 1918), francês; modernista, simbolista,
impressionista.
DUREY, Louis (Paris, 1888 – Saint-Tropez, 1979), francês; modernista, neoclássico, integrante do “grupo
dos seis” parisiense.
DVORÁK, Antonín [A. Leopold D.] (Nelahozeves, 1841 – Praga, 1904), tcheco, romântico.
FRANCK, César [C.-Auguste-Jean-Guillaume-Hubert F.] (Liège, 1822 – Paris, 1890), francês, romântico
pré-impressionista.
GERSHWIN, George (Nova Iorque, 1898 – Hollywood, 1937), americano; modernista, neoclássico,
jazzista.
GILLE, Philippe (Paris, 1831-1901), francês, libretista.
GLINKA, Mikhael Ivanovitch (Novospaski, 1804 – Berlim, 1857), russo, romântico.
GLUCK, Willibald [Christoph W. Ritter von G.] (Erasbach, 1714 – Viena, 1787), alemão, clássico.
GOMES, Carlos [Antônio C. G.] (Campinas, 1836 – Belém, 1896), brasileiro, romântico operista.
GOUNOD, Charles [C.-François G.] (Paris, 1818 – Saint-Cloud, 1893), francês, romântico.
GRANADOS, Enrique [E. G. y Campiña] (Lérida, 1867 – [Canal da Mancha], 1916), espanhol;
nacionalista, romântico tardio.
GRIEG, Edvard [E. Hagerup G.] (Bergen, 1843-1907), norueguês, romântico nacionalista.
GUARNIERI, Camargo [Mozart C. G.] (Tietê, 1907 – São Paulo, 1993), brasileiro; modernista,
neoclássico.
HAENDEL, George Friedrich (Halle an der Saale, 1685 – Londres, 1759), alemão, barroco.
HALÉVY, Fromental [Jacques-François-F.-Elie H.] (Paris, 1799 – Nice, 1862), francês, romântico.
HAYDN, Joseph [Franz J. H.] (Rohrau, 1732 – Viena, 1809), austríaco, clássico.
HILLER, Johann Adam (Osiek Luzycki, 1728 – Leipzig, 1804), alemão, romântico.
HINDEMITH, Paul (Frankfurt, 1895-1963), alemão, neoclássico.
HOFFMANN, E. T. A. [Ernst Theodor Amadeus H.] (Königsberg, 1776 – Berlim, 1822), alemão,
romântico.
HONEGGER, Arthur (Le Havre, 1892 – Paris, 1955), franco-suíço; neoclássico, neobarroco, integrante do
“grupo dos seis” parisiense.
JANÁCEK, Leos (Hukvaldy, 1854 – Ostrava, 1928), tcheco, operista nacionalista e modernista.
KODÁLYI, Zoltán (Kecskemét, 1882 – Budapeste, 1967), húngaro; folclorista, nacionalista, modernista.
KREISLER, Fritz (Viena, 1875 – Nova Iorque, 1962), austríaco, neoclássico.
KRENEK, Ernst (Viena, 1900 – Palm Springs, 1991), austro-americano, dodecafonista.
LASSUS, Orlandus (Roland de Latre) (Mons, c. 1530 – Munique, 1594), holandês; Ars Nova, polifonia
medieval.
LEONCAVALLO, Ruggiero (Nápoles, 1858 – Montecatini Terme, 1919), italiano; operista, romântico.
LIEBERMANN, Rolf (Zurique, 1910 – Paris, 1999), suíço, eclético (neoclássico, modernista,
dodecafonista).
LISZT, Franz (Raiding, 1811 – Bayreuth, 1886), húngaro, romântico.
MACHAUT, Guillaume (Machault?, c. 1310 – Reims, 1377), francês; Ars Nova, polifonia medieval.
MAHLER, Gustav (Kalischt, 1860 – Viena, 1911), austríaco; expressionista, pós-romântico.
MARENZIO, Luca (Coccaglio, c. 1550 – Roma, 1599), italiano, renascentista.
MARX, Adolf [Friedrich Heinrich A. Bernhard M.] (Halle an der Saale, 1795 – Berlim, 1866), alemão,
romântico.
MASCAGNI, Pietro (Livorno, 1863 – Roma, 1948), italiano; operista, romântico.
MASSENET, Jules [J. Émile Frédéric M.] (Montaud, 1842 – Paris, 1912), francês, romântico.
MEILHAC, Henri [H. Majak] (Paris, 1831-1897), francês, libretista.
MENDELSSOHN-BARTHOLDI, Felix [Jakob Ludwig F. M.-B.] (Hamburgo, 1809 – Leipzig, 1847),
alemão, romântico.
MENGELBERG, Willem [Joseph W. M.] (Utrecht, 1871 – Sent, 1951), holandês, regente (e compositor).
MENOTTI, Gian-Carlo (Cadegliano-Viconago, 1911 – Monte Carlo, 2007), ítalo-americano; libretista e
compositor de óperas neoclássico, neo-romântico, modernista.
METASTASIO, Pietro [P. Antonio Domenico Trapassi] (Roma, 1698 – Viena, 1782), italiano, libretista.
MEYERBEER, Giacomo (Berlim, 1761 – Paris, 1864), alemão, romântico.
MIGNONE, Francisco [F. Paulo M.] (São Paulo, 1897 – Rio de Janeiro, 1986), brasileiro; nacionalista,
modernista, neoclássico.
MILHAUD, Darius (Marselha, 1892 – Genebra, 1974), francês; modernista, neoclássico, integrante do
“grupo dos seis” parisiense.
MONTEVERDE [MONTEVERDI], Claudio [C. Giovanni Antonio M.] (Cremona, 1567 – Veneza, 1643),
italiano; renascentista, barroco.
MOZART, Wolfgang Amadeus (Salzburgo, 1756 – Viena, 1791), austríaco, clássico.
MUSSORGSKY, Modest Petrovitch (Karevo, 1839 – São Petersburgo, 1881), russo, romântico.
OFFENBACH, Jacques (Colônia, 1819 – Paris, 1880), franco-alemão, romântico.
ORFF, Carl [C. Heinrich Maria O.] (Munique, 1895-1982), alemão; neoclássico, modernista.
PAGANINI, Nicolo (Gênova, 1782 – Nice, 1840), italiano, romântico.
PALESTRINA, Giovanni Pierluigi da (Palestrina, c. 1525 – Roma, 1594), italiano, renascentista.
PERGOLESE, Giovanni Battista (Jesi, 1710 – Pozzuoli, 1736), italiano, barroco.
POULENC, Francis [F. Jean Marcel P.] (Paris, 1899-1963), francês; neoclássico, modernista, integrante do
“grupo dos seis” parisiense.
PROKOFIEV, Serge [S. Sergeievitch P.] (Krasne, 1891 – Moscou, 1953), russo; neoclássico, modernista.
PUCCINI, Giacomo [G. Antonio Domenico Michele Secondo Maria P.] (Lucca, 1858 – Bruxelas, 1924),
italiano; operista, romântico.
RAMEAU, Jean-Philippe (Dijon, 1683 – Paris, 1764), francês, barroco.
RAVEL, Maurice [Joseph M. R.] (Ciboure, 1875 – Paris, 1937), francês, impressionista.
RIMSKY-KORSAKOV, Nikolai Andreievitch (Tíhvin, 1844 – Lubensk, 1908), russo, romântico.
ROSSINI, Gioachino Antonio (Pésaro, 1792 – Paris, 1868), italiano, romântico.
SAMMARTINI, Giovanni Battista (Milão, c. 1700-1775), italiano, barroco.
SATIE, Erik [Éric Alfred Leslie S.] (Honfleur, 1866 – Paris, 1925), francês, modernista.
SCARLATTI, Domenico [Giuseppe D. S.] (Nápoles, 1685 – Madri, 1757), barroco.
SCHOENBERG, Arnold (Viena, 1874 – Los Angeles, 1951), austríaco; atonalista, dodecafonista.
SCHUBERT, Franz [F. Peter S.] (Viena, 1797-1828), austríaco, romântico.
SCHUETZ, Heinrich (Bad Köstritz, 1585 – Dresden, 1672), alemão, barroco.
SCHUMANN, Robert (Zwickau, 1810 – Bonn, 1856), alemão, romântico.
SIBELIUS, Jan [Johan Julius Christian S.] (Hämeenlinna, 1865 – Järvenpää, 1957), finlandês, romântico.
SMETANA, Bedrich (Litomysl, 1824 – Praga, 1884), tcheco, romântico.
STAMITZ, Johann [Jan Václav Antonín Stamic] (Havlíckuv Brod, 1717 – Mannheim, 1757), tcheco,
barroco.
STANFORD, Charles Villiers (Dublin, 1852 – Londres, 1924), irlandês; romântico, nacionalista.
STEFFANI, Agostino (Castelfranco Veneto, 1655 – Frankfurt, 1728), italiano, barroco.
STRAVINSKY, Igor [I. Fiodorovitch S.] (Lomonosov, 1882 – Nova Iorque, 1971), russo; modernista,
neoclássico, dodecafonista.
TAILLEFERRE, Germaine (Saint-Maur-des-Fossés, 1892 – Paris, 1983), francesa; modernista,
neoclássica, integrante do “grupo dos seis” parisiense.
TARTINI, Giuseppe (Piran, 1682 – Pádua, 1770), italiano, barroco.
TCHAIKOVSKY, Peter (ou Piotr) Ilitch (Votkinsk, 1840 – São Petersburgo, 1893), romântico.
TOCH, Ernst (Viena, 1887 – Santa Mônica, 1964), austríaco; modernista, neoclássico.
TOVEY, Donald Francis (Éton, 1885 – Edimburgo, 1940), inglês, romântico.
VERDI, Giuseppe [G. Fortunino Francesco V.] (Roncole Verdi, 1813 – Milão, 1901), italiano, romântico.
VICTORIA, Tomás Luis de (Sanchidrián, c. 1540 – Madri, 1611), espanhol, renascentista.
VILLA-LOBOS, Heitor (Rio de Janeiro, 1887-1959), brasileiro; modernista, nacionalista.
WAGNER, Richard [Wilhelm R. W.] (Leipzig, 1813 – Veneza, 1883), alemão, ultra-romântico.
WALTER, Bruno [B. Schlesinger] (Berlim, 1876 – Beverly Hills, 1962), alemão, regente (e compositor).
WEBER, Carl Maria von [C. M. Friedrich Ernst v. W.] (Eutin, 1786 – Londres, 1826), alemão, romântico.
WEINBERGER, Jaromir (Praga, 1896 – São Petersburgo, 1967), tcheco; neoclássico, nacionalista.
WOLF, Hugo [H. Phillip Jacob W.] (Slovenj Gradec, 1860 – Viena, 1903), austríaco, romântico.
ZILLIG, Winfried (Wurtzburgo, 1905 – Hamburgo, 1963), alemão, dodecafonista.

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