Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Canto Do Violino - Otto Maria Carpeaux
O Canto Do Violino - Otto Maria Carpeaux
CATALOGRÁFICA
Carpeaux, Otto Maria. 1900-1978
O Canto do Violino e outros ensaios inéditos
Balneário Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora, 2016.
ISBN: 978-85-67801-07-0
1. Música - Apreciação I. Título.
CDD – 781.17
Coordenação Editorial: Diogo Fontana
Edição e revisão: Eduardo Zomkowski
Diagramação: Patricia Martyres
Capa: Daniel Carvalho
Copyright © do prefácio e notas: Dante Mantovani
Todos os direitos desta edição reservados à
Livraria Danúbio Editora Ltda.
Avenida Brasil, 1010, Centro. Balneário Camboriú, SC. 88330-045
E-mail: contato@livrariadanubio.com
Sítio: www.livrariadanubioeditora.com.br
Distribuição:
CEDET
Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas-SP
Imagem da capa:
Gerrit van Honthorst, “Musical Group on a Balcony”, 1622
Imagem digital cortesia do Getty´s Open Content Program
Agradecimentos
Esta edição não teria sido possível sem o apoio de nossos grandes mecenas:
Adriana Bohm
André Schaefer Pasold
Antonio Abel Pereira Leite
Aramis Fontana
Bruno de Oliveira Feu Rosa
Djalma Perin
Eduardo Augusto de Carvalho Belucio Alves
Eduardo Fernandes
Eduardo Henrique Mafra
Eric Primon
Fábio Furtado Pereira
Gio Fabiano Voltolini Jr
Jefferson Zorzi Costa
Leonardo Beraldin
Leonardo Domingos Fonseca
Marcelo Assiz
Marina Pessini
Mateus Cruz
Maurizio Casalaspro
Moreno Garcia
Rafael Manieiri
Silvio José de Oliveira
Tharsis Madeira
Os recursos para esta publicação são de origem privada e foram levantados por
meio de financiamento coletivo. Nenhum centavo de dinheiro público —
municipal, estadual ou federal — foi usado pela editora.
Sumário
Agradecimentos5
Nota do Editor1
Prefácio4
Cervantes e Beethoven7
Música e mentira14
Mestre de todos21
Bach27
Beethoven32
Música, doce música?37
Beethoven em Viena43
Così fan tutte48
Dvorák e o folclore musical52
Erik Satie58
Imortal Manon61
Óperas novas67
Schumann, trágico72
O outro Mozart77
Recital Ivy Improta82
Um crítico de música86
Hegemonia musical92
O Canto do Violino98
Stendhal e a música103
Romantismo de Beethoven109
O futuro da música115
Quarteto Húngaro (III)120
História da música124
Recordações de Mahler130
Miséria e esplendor dos músicos136
O estilo de Gluck142
Lista de músicos148
Nota do Editor
história deste livro e meus trabalhos editoriais começaram enquanto
Afolheava um antigo jornal do Paraná: numa única tarde de fins de 2014,
munido por acaso de tecnologia que me confirmava o ineditismo, encontrei ali
48 ensaios inéditos de Otto M. Carpeaux, dos quais dei logo notícia ao amigo e
editor Diogo Fontana, cujo vivo interesse incentivou-me continuar em pesquisas
e a reunir, após trabalhoso mês, outros 311 dispersos em 19 jornais de Norte a
Sul do Brasil – quantidade que, a julgar por Carpeaux em Vinte e cinco anos de
literatura (1968), representava menos de um terço entre os cerca de 1.300 ainda
inéditos em livro.
Ante um tal volume de textos encontrados (alguma coisa entre 1.500 e 2.000
páginas, como as de Ensaios reunidos), decidimos selecionar sem demora
aqueles que, anteriores à década de 1960, tratavam de música erudita, havendo
entre os 26 editados (1948-1958) ensaios musicais propriamente ditos, mas
também artigos de crítica a representações musicais do dia, biográficos e, enfim,
ensaios “literários-musicais”, em que Carpeaux serve-se ora de formas literárias
para desenvolver questões musicais, ora de formas musicais para resolver
questões literárias – uma novidade entre textos editados em livro, segundo o
prefaciador e comentador Dante Mantovani.
Como editor porém, familiarizado com os textos que reli vezes sem conta, sou
obrigado a alertar o leitor católico de que, nas palavras de Carpeaux em Vinte e
cinco anos, alguns desses ensaios, senão todos nalgum grau, encontram-se
“irremediavelmente marcados pela época em que foram escritos”, traço
apontado, ademais, em rodapés de nosso prefaciador e comentador, católico
apostólico e romano como nós outros, rodapés não só em que o leitor há de
prestar a atenção, como no texto mesmo de todos os ensaios.
Com exceção dos publicados nos jornais do Rio e, talvez, no de São Paulo,
constatei sejam todos republicações/reproduções em jornais de província, de
modo que, repetindo-se um ou outro em dois desses periódicos, pude cotejar
“versões” e fixar passagens ilegíveis ou truncadas: não havendo outro lugar para
informá-lo, aos meus rodapés segue-se a abreviatura N.E. (nota do editor).
Jornais, respectivas quantidades e datas são os seguintes:
Correio da Manhã (Rio de Janeiro), 7 ensaios, 1955-1957
Diário Carioca* (Rio de Janeiro), 4 ensaios, 1950, 1951, 1954
Diário do Paraná (Curitiba), 11 ensaios, 1955-1958
Diário de Pernambuco (Recife), 1 ensaio, 1956
Jornal de Notícias (São Paulo), 3 ensaios, 1948
Por fim: não sendo música erudita nossa área de estudos, convidamos o regente
e musicólogo Dante Mantovani para nos traduzir a carga de novidade dos textos,
prefaciando-os, e anotando em rodapé atualizações das pesquisas musicais
recentes, esclarecimentos, bibliografia complementar e, quando necessário,
refutações às passagens que julgasse controversas: seus rodapés são marcados
com a abreviatura D.M.; ao prof. Guilherme Zomkowski, cujas notas
distinguimos com a abreviatura G.Z., encarregamos da tradução de citações
latinas e francesas, como em parte fizera na edição revista de A cinza do
purgatório, em 2015; notas do editor Diogo Fontana marcaram-se com a
abreviatura D.F., e, para auxiliar o leitor, anexamos nas últimas páginas lista de
dados biográficos essenciais de compositores, libretistas e regentes citados no
livro.
Boas leituras.
Mãe do bom conselho, rogai por nós.
Eduardo Zomkowski
Curitiba, fev. 2016
Na seção do suplemento dominical Letras e artes.
Prefácio
por Dante Manovani*
N o Teatro Municipal será hoje levada à cena, pela primeira vez no Brasil,
Così fan tutte, opera buffa de Mozart.32
Ausente do Rio de Janeiro, por uns poucos dias, o responsável por esta seção
não terá oportunidade de assistir à estréia.33 Assistirá, sim, a uma das
representações posteriores, para oferecer, depois, aos leitores sua crítica
competente. Mas o fato de a obra-prima de Mozart ser nova para o público
brasileiro justifica, talvez, algumas palavras de apresentação prévia.
O fato é estranho, sim. Mas não precisamos sentir muita vergonha pelo atraso
de mais de um século e meio. Pois durante o século XIX inteiro Così fan tutte
também não foi, quase, representada na Europa, nem sequer no próprio país do
mestre. Ninguém duvidou jamais da abundante inspiração musical da obra, cheia
das mais encantadoras melodias mozartianas. Mas o moralismo da época não
agüentou o libreto.
Convenhamos: o texto do abade Da Ponte34 não peca por excesso de
sentimentos nobres ou de idealismo platônico. Ferrando e Guglielmo pretendem
pôr à prova a fidelidade das suas amantes Dorabella e Fiordiligi. Despedem-se,
antes de suposta viagem. Voltam logo, fantasiados de estrangeiros. E não lhes
custa muito conquistar os corações levianos das moças. Embora Mozart, mestre
da arte de caracterização musical, tenha conseguido criar quatro personagens
bem definidos, não fez esforço nenhum para aprofundar o enredo, a propósito do
qual já se falou de “baile de máscaras das afinidades eletivas’’. A realidade dos
sentimentos está conspicuamente ausente. Até as árias mais lindas de Dorabella
e Fiordiligi têm algo de mentiroso. Personagem real, deste mundo, só é o baixo
Alfonso, que comenta cinicamente os acontecimentos no palco: “Così fan tutte”.
Assim são todas elas.
O século da burguesia não podia deixar de ficar indignado, em face dessa
apoteose da frivolidade do Rococó aristocrático. O libreto, diziam, teria sido
digno do abade Da Ponte, aventureiro veneziano que depois de uma vida devassa
de jogador e alcoviteiro morreu na miséria, merecidamente, como lamentável
professor de italiano em Nova York (quarenta anos depois da Revolução
Francesa que acabara com os abades dessa espécie). Mas o libreto teria sido
indigno do artista celeste que foi Mozart. Sentença que parecia inapelável. E um
mundo de beleza musical estava condenado ao silêncio, por muito tempo.
Não tinham percebido a ironia que satura o libreto de Da Ponte. Este foi
aventureiro, sim, mas um dos melhores libretistas de todos os tempos. O próprio
Mozart, cuja vida não foi propriamente de um santo, parece ter participado de
mais de uma das aventuras do veneziano. Decerto participou ativamente do
trabalho literário de um homem que lhe oferecia versos de alta musicalidade e
enredos de perfeita lógica dramática. Só o libreto de Così fan tutte não é nem
dramático nem lógico. É de um absurdo que ao menos inteligente não pode
escapar. Só pode ter sido intencional essa falta de lógica. Così fan tutte, opera
buffa, é paródia da ópera séria do Rococó, que, por sua vez, não foi muito séria.
Em compensação, a estrutura das cenas adapta-se perfeitamente à lógica
musical, ao desenvolvimento formal das inspirações temáticas. É um libreto bem
mozartiano.
Pois, que é Mozart? Em primeira linha, um mestre da forma. Não nos falem em
artifício. Toda forma artística é, em certo sentido, artificial. Artificiais, nesse
sentido, são as criações mais perfeitas de Mozart, seus concertos para piano e
orquestra. A música para libreto tão deliberadamente artificial como o de Così
fan tutte só lhe podia sair perfeita, de beleza aristocrática.
Mas a música não é só forma.35 É, igualmente, formalógica e impulso-emoção.
E a emoção que domina a Obra toda de Mozart é a erótica. A perfeição formal de
sua música é um freio que impõe ao caos dos sentimentos e instintos a
compostura de uma civilização aristocrática. No entanto, o perigo de que fala
Othello36 num verso famoso (“Chaos is come again”) sempre estava presente. O
erotismo podia ser a força motriz de veleidades de revolta, em Le nozze di
Figaro, ou de inversão diabólica de todos os valores, em Don Giovanni. Mas
Così fan tutte situa-se exatamente no meio entre essas duas obras. Não é tão
sutilmente subversiva como a primeira nem tão febrilmente dramática como a
segunda. Só é bela. Leva-nos magicamente, por duas horas, para um outro
mundo: não é, decerto, um mundo melhor, mas, sim, mais lindo.
Encenada na cidade do Rio de Janeiro em 29 jul. 1955: com Hugo Balzer (regente), Frank de Quell
(régisseur), Santiago Guerra (maestro de coro) e artistas dos Teatros de Munique e Viena; cenários de
Tomás Santa Rosa. (N.E.)
Eurico Nogueira França (1913-1992), musicólogo, crítico, autor de biografias e histórias musicais, auxiliou
Villa-Lobos na fundação da Academia Brasileira de Música. (N.E.)
Foi profícua a parceria de Mozart com Da Ponte, que rendeu três de suas obras-primas: além da ópera Così,
as aclamadas Bodas de Fígaro (K. 492) e Don Giovanni (K. 527). (D.M.)
A explicação de Carpeaux sobre a relação entre forma musical e impulso artístico espiritual é mais completa
e conclusiva que quase a totalidade dos estudos acadêmicos brasileiros do século XXI, o que demonstra,
sem sombra de dúvidas, que seu legado como crítico e historiador da música ainda não foi absorvido no
país que o abrigou. (D.M.)
Otelo. Grafia inglesa no original. (N.E.)
Dvorák e o folclore musical
Diário do Paraná, 30 out. 1955
P assada a casa dos 80 anos, Bruno Walter não levantará mais sua batuta
mágica para inspirar nova vida a partituras de Gluck, Haydn, Mozart. Em
compensação dá-nos de presente nova edição do seu livro sobre seu mestre
Gustav Mahler.157
Nascido em 1860 na Morávia, Mahler foi entre 1897 e 1907 diretor da ópera
então imperial de Viena e regente da Orquestra Filarmônica dessa cidade. Saído
desse posto de comando por graves conflitos pessoais que o incompatibilizaram
com a orquestra, os cantores e o público, assumiu, já internacionalmente famoso,
a regência na Metropolitan Opera em New York. A doença incurável do coração
mandou-o, em 1911, de volta para Viena, onde morreu logo depois. Deixou,
entre eles que o conheceram, recordação que não se apagará nunca.
Mahler foi grande regente; afirmam que o maior de todos, opinião da qual
também foi Toscanini. No seu tempo o gramofone ainda não passou de
brinquedo, de modo que sua arte de reger está perdida para a posteridade. Mas
sua figura humana continua viva.
Foi o grande romântico E.T.A. Hoffmann que criou o personagem do regente
Kreisler158, apaixonado da música, afigurando-se louco aos que não lhe
compreendem o entusiasmo quase fanático, sofrendo profundamente pelo
antagonismo entre a Arte e o mundo da Prosa; humorista grotesco que,
desesperado, “acabou suicidando-se, cravando uma dissonância no coração”.
Gustav Mahler foi encarnação ou reencarnação desse personagem Kreisler.
Ouvi-o reger quando eu era menino: sem compreender-lhe nada da arte, só vi um
homem alto de magreza espantosa, gesticulando como um possesso, fazendo as
caretas mais burlescas; esse Paganini da batuta parecia ora ator humorístico, ora
louco demoníaco. Mas não era ator nem louco. Apenas um servidor fanático de
ideais inacessíveis.
Sua capacidade inédita de interpretação de obras alheias baseava-se em
imaginação criadora. Imaginava execuções tão perfeitas que não podia deixar de
irritar-se com a insuficiência material dos instrumentos e a impaciência do
material humano. Antes de uma estréia na ópera, antes de um concerto, Mahler
martirizou à gente. Os ensaios não terminavam: 20, 30, 60 vezes,159 durante
noites inteiras, até cantoras desmaiarem e os músicos se declararem em greve. O
regente possesso sacrificou os outros e a si mesmo. Criou inúmeros inimigos
apaixonados e prejudicou de maneira irremediável seu coração doente. Deu a
vida pelo ideal inatingível da execução perfeita. Mas aproximou-se dele na
medida do seu gênio de servidor fanático da arte. Criou um elenco e uma
orquestra nos quais sobrevive sua tradição até hoje: representações estupendas
de Gluck, Mozart, Wagner e uma tradição internacionalmente aceita da
representação de Fidelio160: em todas as casas de ópera do mundo segue-se-lhe o
exemplo de iluminar a sala, de repente, antes do último quadro da obra para
transformar o teatro em sala de concerto e executar a Abertura Leonore n.º 3.
Nesses momentos, onde quer que seja, o espírito de Gustav Mahler está entre
nós, deixando-nos ouvir a harmonia das esferas.
Não está tão onipresente a Obra que Mahler criou como compositor. Grandes
regentes como Bruno Walter e o holandês Willem Mengelberg foram servidores
fiéis dessa Obra. Em tempos recentes, depois de certo eclipse, percebe-se sinais
de interesse maior na Itália e na França, na Inglaterra e Holanda e, naturalmente,
na Áustria.161 Admiram-se as artes extraordinárias de instrumentação, de manejo
de orquestras enormes (e de coros) nas gigantescas sinfonias de Mahler;
sobretudo na VIII Sinfonia, para a qual se precisa de 1.000 executantes, e que é
na verdade uma grande cantata em dois movimentos: o primeiro, sobre o hino
Veni, creator Spiritus; o segundo, sobre a última cena de Faust, II, de Goethe.
Mas os críticos continuam a duvidar: se o aparato enorme é justificado pelos
resultados. A música sinfônica de Mahler, que raramente pode dispensar a
colaboração da voz humana, parece pertencer ao tempo em que a IX Sinfonia de
Beethoven passava pelo ponto mais alto da música, coisa em que hoje já não se
acredita. Os textos escolhidos por Mahler, homem de vasta cultura, incomum
entre os músicos, sempre são da mais sublime qualidade literária; mas os temas
musicais de Mahler nem sempre correspondem às suas ambições. Só raramente
se impõem. Às vezes, embora elaborados com um máximo de emoção e arte, são
de trivialidade desconcertante. Em momentos desses até um admirador como o
compositor americano Copland apenas fala em “sinceridade comovente”. Mas
também há os momentos que fazem pensar em Bruckner e no próprio
Beethoven. Esse homem das vitórias fulminantes e das derrotas irremediáveis,
esse “Kreisler” de gestos grotescos e aparência demoníaca foi uma figura
trágica.
Apesar de admirá-lo profundamente, não penso em compará-lo aos maiores.
Seria exagero imperdoável. Só por outro motivo convém citar, a respeito de
Mahler, o nome de Beethoven: este e aquele não eram só compositores, só
músicos. Suas ambições chegaram a ser extra ou superartísticas. Nenhuma obra
de Mahler suporta, nem de longe, a comparação com as últimas sonatas ou os
últimos quartetos de Beethoven. Mas o ponto comum é este: também são
grandes documentos humanos.
Mahler é homem de 1900, de 1910. Com emocionalismo saturado de
neurastenia participou das convulsões espirituais de sua época: neocatolicismo
(do qual ele se converteu), a psicanálise (do seu amigo e vizinho de casa,
Sigmund Freud), simbolismo e esteticismo requintados e bastante decadentes, e
o sentir emocionado com os sofrimentos do povo humilde, numa época do
socialismo já combativo mas ainda meio lírico. Talvez fosse este um dos motivos
para Mahler preferir tanto a poesia popular, ornamentando-a com as artes mais
sutis e mais violentas da orquestração maciça e da polifonia instrumental. Às
vezes os temas são deliberadamente triviais numa tentativa de aproximar-se da
simplicidade. Recordações da infância também contribuíram para as misturas
estranhas de ritmos de marcha militar, de dança campesina e de ladainha de
igreja de aldeia.
A música de Mahler sempre é autobiográfica; nesse sentido, o discípulo de
Bruckner foi o último romântico. Mas superou seu romantismo inato. A
polifonia da VI e da IX Sinfonia aproxima-se dos limites da tonalidade.
Prenuncia a arte do seu amigo e conterrâneo Schoenberg. Mas só chegou a ver
de longe a terra da promissão.
A ambição titânica de Mahler é capaz de lembrar o demoníaco Andreas
Leverkuehn, o personagem de Thomas Mann. Apenas: o pacto, Mahler não o
tinha concluído com o diabo, mas com Deus. Sobre seu exemplar do Te Deum de
Bruckner, escreveu: “Cantado pelos anjos para as almas atormentadas”.162 A
conversão desse judeu descrente ao catolicismo foi profundamente sincera. Mas
não encontrou na nova fé a paz. Natureza pascaliana, irresistivelmente atraído
pelo culto de beleza da sua época que se julgava rica e feliz; e adivinhando,
como ela, um fim próximo e terrível. Os extremos de afirmação estética163 da
vida e do pessimismo oriental encontram-se na última e maior das suas obras: o
Cântico da Terra, sinfonia cantada ou cantata profana sobre versos nostálgicos
do poeta chinês Litaipo164, começando com uma frenética canção, À miséria da
vida, e terminando com elegíaco canto de despedida: “Eu vou para longe e não
voltarei – mas eternas são as nuvens brancas, eternas, eternas”. Eis o tema
permanente da arte de Mahler. Sua II Sinfonia já terminara com um veemente
apelo: “Ressurgir, sim, ressurgir!” Desmentindo todas as explorações biográfico-
psicológicas, tinha escrito as comoventes Canções sobre uma criança morta
muitos anos antes de morrer sua filhinha. Sofreu de verdadeiro “complexo da
morte”. A doença do coração o matou cedo. Não chegou a ouvir a primeira
execução do Cântico da Terra, regida por Bruno Walter. Foi seu réquiem. Na
voz do contralto vibra a despedida: “...mas eternas são as nuvens brancas,
eternas, eternas”, e o violoncelo continua, sonoro, o tema ad infinitum, como
para toda a eternidade.
Gustav Mahler: Ein Porträt (nova ed., Berlim, Fischer, 1957). (N.E.)
No conto Kreisleriana. (N.E.)
Acrescentamos a palavra “vezes” a este trecho. (N.E.)
São de Beethoven a ópera Fidelio e a Abertura Leonore n.º 3 (citada a seguir), estudadas por Carpeaux em
“Cervantes e Beethoven”, p. XXX. (N.E.)
Hoje, porém, a popularidade da obra de Mahler é muito maior. Tanto entre conservadores quanto entre
“progressistas” do gosto musical, é praticamente unanimidade que sua obra ocupe papel central no
repertório sinfônico mundial. (D.M.)
Alma Mahler, Gustav Mahler: Erinnerungen und Briefe [... Cartas e memórias] (Amsterdam, De Lange,
1940). Citação de memória. (N.E.)
No original, “estática”. (N.E.)
Também chamado Li Bai ou Li Po. (N.E.)
Miséria e esplendor dos músicos
Diário do Paraná, 8 dez. 1957
crença comum que os grandes compositores, glorificados pela
É posteridade, sempre foram maltratados pelos seus contemporâneos. Alguns
teriam morrido de fome, outros de falta de compreensão, e o cadáver de Mozart
foi jogado na vala comum.
O mesmo também se acredita quanto aos poetas e pintores, e a imagem
sentimental do artista genial e infeliz, uma das heranças do romantismo, tem
pouco apoio nos fatos históricos. Justamente na música, o caso mais comum é o
do pleno reconhecimento do gênio em vida.
Haendel só tinha encontrado dificuldades ao querer impor aos ingleses o
gênero alheio da ópera italiana; mas seus Te Deums, Anthems e Oratórios
elevaram-no à categoria de porta-voz da Nação; enfim, foi sepultado na Abadia
de Westminster, em face dos túmulos dos reis da Inglaterra. Haydn já estava
famoso antes do convite triunfal para Londres, de tal modo que os cônegos da
longínqua cidade de Cádiz, na Espanha, lhe encomendaram uma obra; quando da
execução do oratório A Criação, em Viena, a imperatriz da Áustria quebrou a
rigorosa etiqueta espanhola, quase abraçando o velho mestre. Todo mundo sabe
que Beethoven foi reconhecido em vida como o maior compositor do tempo e
um dos maiores de todos os tempos. Stendhal achava que só um homem era
comparável ao ídolo Napoleão, por também ter subjugado a Europa inteira:
Rossini. Só aos sucessos espetaculares dos compositores de jazz de hoje foi
comparável o triunfo do Freischuetz, de Weber. Mas é preciso lembrar a alta
posição que Chopin conquistou na sociedade francesa; e Mendelssohn na
inglesa. Reis, princesas e cardeais, eis o cortejo habitual de Liszt. Três
doutorados honoris causa, altas condecorações, considerável sucesso financeiro:
assim foi Brahms recompensado. Dvorák conquistou dois continentes. Verdi, de
milagrosa capacidade de superar-se, renascer musicalmente, conseguiu impor ao
público suas mudanças de estilo.165
Alguns outros tinham de lutar contra hostilidades apaixonadas até vencer; mas
venceram: Gluck, reformando a ópera; Schumann, impondo um novo
romantismo ao estilo pianístico; Wagner, destruindo a tradição secular do teatro
musical para fundar outra;166 César Franck, reconhecido na velhice, em ambiente
parisiense que não lhe compreendera a arte sinfônica nem a religiosidade; até
Bruckner e Mahler, tão hostilizados, foram enfim reconhecidos; Debussy,
combatido no começo acabou idolatrado, como “Claude de France”.167 A glória
de Hugo Wolf foi póstuma só porque o gênio afundou tão cedo na loucura. Se
Alban Berg vivesse um pouco mais do que os 50 anos que o destino lhe
concedeu, teria assistido ao sucesso mundial do seu Wozzeck. E Schubert, cuja
biografia foi tão lamentavelmente sentimentalizada? Morreu com 31 anos, numa
idade em que o maior gênio não pode esperar pleno reconhecimento; no entanto,
sua fama já tinha atravessado o perímetro urbano de Viena; na mesa do falecido
encontraram-se cartas de editores de Leipzig e Paris.
Apesar de todos esses fatos, aquela tese romântica do gênio incompreendido
continua tenazmente. Porque os casos contrários à regra que acabo de
exemplificar são poucos, são menos numerosos do que em qualquer outra arte,
mas são dos mais importantes: é a incompreensão total e a miséria que foram o
destino de Mozart, Berlioz e Schoenberg; e a arte de Bach precisava ser
ressuscitada.
São problemas especiais, que podem ser resolvidos sem fazer concessões
àquele romantismo biográfico-sentimental.
A música é uma arte especificamente iterativa, repetitiva. Nenhuma obra de
arte literária poderíamos reler tantas vezes com prazer como podemos reouvir
um quarteto ou uma sonata. Ao contrário: o prazer será cada vez maior, a
compreensão mais profunda. Mas, por outro lado, precisamos ouvir mais que
uma vez uma obra nova para conhecê-la realmente. Daí certas dificuldades
iniciais que obras de feitura inusitada encontram. Beethoven já estava no auge da
sua glória quando o Concerto para piano n.º 5 e a VII Sinfonia foram recebidos
com estranheza. O Barbiere di Siviglia foi vaiado quando da estréia em Roma,
em 1816, assim como La Traviata, em 1853, em Veneza; mas o triunfo começou
logo depois. Pelléas et Mélisande, em 1902, foi vaiado durante o ensaio geral e
venceu, 24 horas depois, na estréia. No Doutor Fausto, de Thomas Mann, um
empresário parodia o verso de Goethe, dizendo: “No início foi o escândalo”.
Realmente, a história da música é, em parte, uma chronique scandaleuse, uma
história de públicos que na sala de concerto ou no teatro de ópera se revoltam
contra obras novas. Mas há escândalos e escândalos. Tannhaeuser foi vaiado em
Paris, em 1861, porque o público das frisas estava acostumado a ver, no segundo
ato, um ballet, e Wagner não podia fazer dançar os seus menestréis. Outros
escândalos foram de natureza política: o público de Leipzig vaiou em 1859 o
primeiro Concerto para piano de Brahms, porque o compositor era conhecido
como adversário de Wagner; em compensação, o público vienense, fortemente
brahmsiano, vaiou em 1877 a III Sinfonia do wagneriano Bruckner. Escândalos
autênticos porém, dirigidos contra a própria música, foram aqueles que em 1913,
em Paris, recebeu o Sacre du printemps, de Stravinsky; e os sucessivos
escândalos que acompanharam toda a carreira de Schoenberg em Viena;
sobretudo o barulho imenso que em 1913 obrigou os músicos a interromper a
execução da Sinfonia de câmara. Temos o direito de indignar-nos? Consolo
duvidoso é o fato de que houve mais outros escândalos silenciosos e maiores:
quando os originais dos Concertos do Brandemburgo foram vendidos como
papel de embrulho e quando Wilhelm Friedemann Bach, o filho mais velho do
Kantor168, vendeu também assim uma centena de cantatas, perdidas para sempre,
para comprar cachaça.
Também é possível e compreensível o caso contrário, do gênio que fica
incompreendido porque corresponde demais ao gosto da época. Depois da
sensação que Mozart fizera na Europa inteira como menino-prodígio de cinco
anos, esperavam-se dele feitos revolucionários; em vez disso, a música da
maturidade de Mozart é a expressão mais perfeita da mentalidade musical do
século XVIII. E os contemporâneos ficaram decepcionados, confundindo Mozart
com um Cimarosa.
A chave do problema não se encontra, nesses casos, na obra mas no público.
Não pode solucioná-lo a pesquisa biográfica, mas só uma disciplina até agora
pouco cultivada: a sociologia da música. Ao estudo sociológico dos fatos da
história da música não será difícil explicar as derrotas sucessivas de Berlioz: um
compositor essencialmente sinfônico estava perdido num ambiente que só
conhecia e só quis reconhecer a ópera: o ambiente de Paris em 1850, em 1860.
Mas não convém confundir sociologia com política. A música não teve sorte,
pelo menos em nosso tempo, com nenhum regime político. Hindemith foi
exilado da Alemanha nazista. Prokofiev estava sujeito a humilhações indignas na
Rússia soviética. A Atlântida de De Falla não podia ser executada na Espanha
franquista. E nos Estados Unidos democráticos teve Bartók, não molestado por
ninguém, o direito de morrer na miséria.
São casos por assim dizer acidentais. Só resta um: o de Schoenberg. Não se
pode duvidar de sua importância como uma das grandes inteligências-líderes
deste século. Pode-se duvidar, sim, de sua espontaneidade criadora, e concluir
que sua maior obra foi seu discípulo Alban Berg. Mas não é por esses motivos
que o condenaram e condenam. Talvez a música de nenhum outro compositor
tenha menor semelhança e afinidade com a mozartiana do que a de Schoenberg:
no entanto, seu caso lembra muito o de Mozart. A música de Schoenberg foi e
continua sendo condenada porque reflete fielmente demais a época. Conseguiu
ele sobrepor-se aos elementos da disciplina rigorosa do sistema dodecafônico.169
Mas não dissimula, não esconde a presença do caos. Sua arte é insuportável aos
contemporâneos porque lhes diz a verdade. Conforme a bela expressão de T. W.
Adorno, “a música de Schoenberg tollit peccata mundi”.170
Verdi conseguiu mais do que isso: – foi um dos maiores responsáveis pelo processo de unificação da Itália,
culminado em 1871 por Garibaldi e as tropas sob o seu comando. (D.M.)
Wagner exerceu notável controle psíquico sobre Luís II da Baviera, influência a que se opunha a corte e que
resultou na deposição e morte prematura do Rei. (D.M.)
Ainda hoje Debussy é a maior referência em música genuinamente francesa. (D.M.)
Na tradição luterana, cargo eclesiástico eminente nas cidades, pelo qual lideravam-se cantores e
instrumentistas e ensinava-se música. (N.E.)
No original, “Conseguiu ele sobrepor aos elementos ...” (grifamos). (N.E.)
Neste ponto, Carpeaux é levado ao erro por Adorno, que também influenciou a própria teoria dodecafônica
de Schoenberg ao estimular a negatividade destrutiva da tonalidade e das formas tradicionais, com o
objetivo deliberado de afastar o público das salas de concerto. A música mais radical de Schoenberg não é a
expressão da verdade de um tempo, mas o público é que a rechaçou por se afastar de seu universo e de suas
aspirações, disposição que Adorno e a Escola de Frankfurt consideravam essencial, como pretexto para
incriminar o capitalismo, culpado de todos os males da humanidade juntamente com a cultura ocidental. É
fácil compreender as motivações dessa luta estética sutil se tivermos em vista que o objetivo primordial da
Escola de Frankfurt era destruir ambos, isto é, a cultura ocidental e o capitalismo. Para servir à “revolução
social” (a revolução do gosto musical seria apenas uma etapa e força subsidiária), a arte musical deveria se
tornar propaganda ideológica e se esvaziar de seus conteúdos artísticos. Cf. Theodor W. Adorno, Filosofia
da nova música (trad. de Magda França, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2014). (D.M.)
O estilo de Gluck
Diário do Paraná, 19 jan. 1958