Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MODALIDADE: COMUNICAÇÃO
Listening to John Cage Through Adorno: Compositional techniques and Subjective Relief
John Cage's String Quartet in Four Parts
Abstract: In this paper, we will introduce the concept of devices of subjective relief, employed by
the philosopher Theodor Adorno in his critique of post-WWII avant-garde music. Subsequently,
we discuss two composition techniques present in Cage's String Quartet in Four Parts - the
macromicrocosmic structuring of durations and the gamut technique. This works predates Cage's
use of chance, and thus belongs to a period of Cage's work that Adorno doesn't discuss. We shall
defend, however, that the techniques present in this piece can be understood as devices of
subjective relief.
1
XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019
2
XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019
3
XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019
4
XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019
'funcionar'", o que seria uma fantasia ideológica, posto que essa posição "considera o material
sonoro, que já é subjetiva e historicamente pré-formado, como existente em si" (ADORNO,
2018, p. 396-367). A fraqueza do eu, sua insegurança diante da crise da linguagem e dos
processos sociais mais amplos dos quais ela participa, é aliviada pela crença no som puro,
tornado absoluto. O material seria ele mesmo imediatamente expressivo, de modo que o
compositor pode abdicar do controle sobre ele. Para Adorno, trata-se de tentar "converter a
fraqueza psicológica do eu em força estética" (ADORNO, 2018, p. 392). Essencialmente,
Cage estaria em conformidade com as tendências sociais que dificultam a realização do ideal
de composição livre, propondo uma abdicação do eu num momento em que este já estaria
sendo esmagado pelo capitalismo tardio.
Cage compôs seu String Quartet in Four Parts em Paris, num período em que
estudava a obra de Erik Satie. O que lhe interessava no compositor francês era sobretudo a
suspensão do sentido teleológico do fluxo musical, assim como o uso das durações como
parâmetro central de organização das obras (CAGE, 1961, p.63 e p.81). Como veremos, esses
aspectos estão presentes no String Quartet em decorrência das estruturas
macromicrocósmicas e da gamut technique.
A gamut technique consiste em fixar de antemão o material a ser utilizado na
peça. No String Quartet, Cage determina na primeira página da partitura os eventos musicais
que cada instrumentista produzirá ao longo da obra. São cerca de quinze eventos para cada
instrumentista - uma economia de meios bastante extrema. Além disso, esses eventos sempre
reincidem do mesmo modo, sem variação alguma, e são sempre tocados na mesma posição no
instrumento (PRICHETT, 1993, p. 48). Os eventos de cada instrumento sobrepõem-se para
formar um total de 43 sonoridades possíveis (BERNSTEIN, 2002, p.190).
5
XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019
Fig. 2: As 43 sonoridades da gamut geral da peça, formada por sobreposições dos eventos das partes de cada
instrumento (BERNSTEIN, 2002, p. 190)
6
XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019
bastante rigoroso. O mesmo tipo de simetria determina as durações em níveis mais 'micro'. E,
é claro, o esquema é válido para os quatro movimentos da peça3.
Na impossibilidade de desenvolvermos uma análise mais detida da partitura,
iremos nos deter no que nos parece essencial. Há aqui um processo criativo baseado em um
extenso trabalho pré-composicional de determinação do material tanto no plano harmônico
como no rítmico. Trata-se de construir de antemão as 43 sonoridades da gamut e a sequência
que determina as relações rítmicas, do nível macro ao micro. Seguindo um programa de
anular o controle do eu sobre a composição, o trabalho composicional aparece aqui como uma
atividade de preenchimento da estrutura de durações com sonoridades pré-determinadas.
Conforme vemos na análise de Bernstein (2002, p. 193), a ordem de aparição das sonoridades
é também determinado por procedimentos independentes da reação do sujeito ao confronto
sensível com o material. Em particular no terceiro movimento do String Quartet, Cage ordena
de modo quase serial a ordem de aparição das sonoridades. Isto é, elas surgem em uma
sequência que poderá ser retrogradada, invertida, ou então retrogradada e invertida. Para
Bernstein (2002, p. 194), "as manipulações quasi-seriais no terceiro movimento do String
Quartet deram a Cage uma base racional e sistemática para a determinação da sucessão das
sonoridades da gama [gamut]".
Cage, antes mesmo de recorrer ao acaso e à indeterminação, já sentia necessidade
de criar sistemas que pudessem dispensar o controle subjetivo sobre o fluxo musical. De fato,
nessa peça há um tratamento menos livre do material do que em peças anteriores, e Cage
entendia esse desdobramento como algo positivo (PRICHETT, 1993, p. 55). A ausência de
controle por parte do compositor redunda em controle do material por um sistema estranho
tanto ao compositor como ao material. Cage procurava ordenar as sonoridades da gamut de
um modo que não sugerisse encadeamento harmônico no sentido tradicional. Como sua
escuta por si só seria supostamente incapaz de criticar essa tendência do material à
conformidade com a tradição, o compositor acaba optando por uma poética em que a escuta
se dá a posteriori: primeiro a obra é composta seguindo um conjunto de regras, e só depois o
compositor escuta o resultado, supostamente imaculado pela tradição reificada.
A recusa da linguagem convencional se realiza aqui através da construção de um
sistema que a substitui. Continua existindo uma referência externa que pode assegurar o
compositor de que os eventos musicais estão dispostos de modo 'correto'. A angústia do
desamparo, da ausência de referências fixas de validação, é aliviada. Assim, diante das
enormes dificuldades colocadas pelo desafio da composição livre no contexto de uma
sociedade totalmente administrada, Cage segue, de certo modo, o caminho de um retorno à
7
XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019
Referências:
ADORNO, T.W. Essays on Music. Trad. Susan H. Gillespie. Los Angeles: University of
California Press, 2002.
______. Filosofia da Nova Música. Trad. Magda França. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
______. Quasi una Fantasia. Trad. Eduardo Soccha. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
ALMEIDA, Jorge de. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte.
Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007.
BERNSTEIN, David W. Cage and High Modernism. In: NICHOLLS, David (org). The
Cambridge Companion to John Cage. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. pp.
186-213.
CAGE, John. Silence. 1. ed. Middletown: Wesleyand University Press, 1961.
___________. String Quartet in Four Parts. Leipzig: Peters Edition, 1950 (EP 6757). 1
partitura (32 p.). Quarteto de cordas.
FREITAS, Philippe Curimbaba. Antinomia e expressão: Adorno ante o sismógrafo de
Erwartung Op. 17 de Schoenberg. 2012. 152f. Dissertação (Mestrado em Música) -
Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, 2012.
HABERMAS, Jürgen. Philosophical-political profiles. Massachusetts: MIT Press, 1985.
PRICHETT, James. The music of John Cage. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
Notas
1
O conceito de música estabilizada remete à crítica musical de Adorno dos anos 1920, em particular a sua crítica
a Paul Hindemith. Acerca desse tema, cf. ALMEIDA (2007).
2
Cabe ressaltar que, no contexto da Alemanha Ocidental, Adorno e Gehlen eram figuras muito presentes no
debate público, representando campos politicamente opostos. Gehlen filiou-se ao Partido Nacional-Socialista em
1933, e participou do movimento de professores pró-Hitler. Além disso, Gehlen tornou-se professor da
Universidade de Frankfurt em 1933, após o filósofo Paul Tillich, orientador do doutorado de Adorno, ter sido
expulso por opor-se ao nazismo. A esse respeito, cf. HABERMAS (1985).
3
O segundo movimento tem no total 110 compassos divididos em 5 seções de 22 compassos, e sabemos que
110/484 = 5 (ou 2 +3)/22. Novamente, uma análise atenta revelará que a proporção 2/3 condiciona a forma em
diversos níveis. No terceiro movimento, o mais longo, temos 11 (ou 6 + 5) seções, totalizando 242 compassos (e,
claro, 242/484 = 11/22). No quarto, o mais curto de todos, temos 2 seções (44/484 = 2 (ou 0.5 + 1.5)/22).