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Acadêmica: Inara Cerezoli Língua Portuguesa V

Cultura e poesia popular nordestina, representadas na obra da banda Cordel do Fogo


Encantado.

Introdução

O presente trabalho propõe uma análise estilística da obra pertencente à banda


Cordel do Fogo Encantado, mais especificamente a canção Chover (ou Invocação para um dia
líquido). Para desenvolver este trabalho serão adotadas as concepções de estilística de caráter
descritivo-interpretativo, a fim de identificar, por meio dos recursos estilísticos presentes na
obra, elementos pertencentes à cultura e poesia nordestina e a capacidade que estes recursos
estilísticos tem de transmitir ao leitor a expressividade e a afetividade propostas na
composição. Para enfim expor o intuito do uso da estilística e de composições artísticas como
meio de tornar mais atrativo e produtivo o ensino gramatical e despertar maior sensibilidade
estética nos alunos nas aulas de língua portuguesa.

Estilística e Estilo

A estilística possui ligação tanto com a estética da palavra como também com o
efeito que se quer produzir em quem lê por meio do estilo. Por estilo pode-se entender como o
modo pessoal de expressão utilizado pelo autor em que se manifestam conjuntos de aspectos
formais e recursos expressivos podendo caracterizar também um texto como pertencente a um
determinado período histórico, escola literária, grupo social, profissional ou regional.

Para Mattoso o estilo é "um conjunto de processos que fazem da língua


representativa um meio de exteriorização psíquica e apelo." (p. 136), o autor baseia-se na
dicotomia saussuriana: langue ou língua (lado social da linguagem) e a parole ou fala (o
discurso, lado individual), e as três funções básicas da linguagem de Bühler: representação,
expressão e apelo, que correspondem, respectivamente, às faculdades de inteligência,
sensibilidade e desejo ou vontade. É necessário ressaltar que para Mattoso, a representação é a
própria essência da comunicação linguística, pois é ela que estrutura e simboliza em nossa
mente a realidade material e sociocultural em que vivemos como falantes de uma língua.

Ao buscar as origens da estilística retornamos à Grécia antiga, pois foram os gregos


antigos que mais exerceram influência e contribuíram com as teorias da linguagem. Por esta
origem a estilística pode adquirir uma concepção tanto retórica quanto poética. Sendo assim
nos deteremos ao sistema aristotélico no qual há uma distinção entre as duas perspectivas.

A concepção de retórica é a de arte que abrange o discurso em todos os seus níveis, a


arte da palavra que visa à criação de um texto fortemente persuasivo, destacando o uso
expressivo da linguagem para reforçar o efeito sobre o público. Enquanto a poética
compreende os estudos literários relacionados ao processo de versificação dos textos e
constituição teórica destes.

A estilística descritiva ocupa-se dos aspectos afetivos da língua. Bally vê os


fenômenos relacionados à expressividade como resultado de motivações de cunho afetivo.
Enquanto a estilística idealista volta-se para a produção literária, levando em conta a reflexão,
de cunho psicológico, para explicar os desvios ocorridos na linguagem.

Para Bally, os estudos dos fenômenos expressivos contidos nas palavras provem da
necessidade de conceber a comunicação verbal como algo que transcende a transmissão de
conteúdos. Buscava-se identificar o que havia de afetivo na comunicação e foram justamente
esses os componentes afetivos que vieram a se tornar o objeto de estudo da estilística.

Será adotada a estilística de caráter descritivo-interpretativo para a análise de Chover


(ou Invocação para um dia líquido) de Cordel do Fogo Encantado.

A poesia popular nordestina do Cordel do Fogo Encantado

Em 1997 um grupo teatral da cidade de Arcoverde, no Sertão do Moxotó, em


Pernambuco, dá início ao espetáculo Cordel do Fogo Encantado, onde recitavam poesia
acompanhada de música. Tal espetáculo percorreu o interior do estado por dois anos com
sucesso. Foi então, em Recife, que outros dois percursionistas, com tambores de culto
africano, aderiram à trupe modificando o curso de simples espetáculo teatral para espetáculo
musical.

Com o carisma e a poesia de José Paes de Lira (Lirinha), o violão regional de


Clayton Barros, o rock de Emerson Calado e o peso dos tambores africanos de Rafa Almeida
e Nego Henrique, o Cordel do Fogo Encantado passou a percorrer o país e o mundo,
conquistando a todos com suas apresentações únicas e antológicas. Com tamanho sucesso o
grupo chegou a participar da trilha sonora de filmes como “Deus é Brasileiro” e “Lisbela e o
Prisioneiro” entre muitos outros trabalhos consagrando o grupo como um dos mais
representativos do cenário independente nacional e do movimento Manguebeat.

Uma observação com relação a conceituação de cordel e poesia popular nordestina


faz-se necessária.

Não se pode confundir literatura de cordel com a poesia popular nordestina, pois o
cordel é uma ramificação da poesia popular, assim como o repente, a poesia matuta, a
embolada, etc.

De fato o gênero cordel ganhou grande destaque na região a ponto de servir de


referência à poesia popular nordestina, mas tal popularidade se deve a fatores históricos, já
que o cordel passou a ser difundido no Brasil no século XVI, vindo com os colonizadores
europeus para a região nordeste, onde vivia a maior parte da população dos primeiros séculos
de colonização.

O próprio grupo assume que a utilização do termo cordel em seu nome não foi com o
intuito de restringir as composições e interpretações a esta vertente da poesia popular
nordestina, mas sim como meio de alcançar maior público possível, já que o termo cordel tem
se ressignificado, de modo desregrado, durante os últimos anos como sinônimo de história em
forma de poesia.

Chover (ou Invocação para um dia líquido) foi composta por Lirinha e Clayton
Barros e sua letra trata de um tema comum a região do nordeste brasileiro: a seca que se
encerra com a chegada da chuva. Vejamos:

Chover (ou Invocação para um dia líquido)

"O sabiá no sertão


Quando canta me comove,
Passa três meses cantando
E sem cantar passa nove
Porque tem a obrigação
De só cantar quando chove*

Chover chover
Valei-me Ciço o que posso fazer
Chover chover
Um terço pesado pra chuva descer
Chover chover
Até Maria deixou de moer
Chover chover
Banzo Batista, bagaço e banguê

Chover chover
Cego Aderaldo peleja pra ver
Chover chover
Já que meu olho cansou de chover
Chover chover
Até Maria deixou de moer
...Chover chover
Banzo Batista, bagaço e banguê

Meu povo não vá simbora


Pela Itapemirim
Pois mesmo perto do fim
Nosso sertão tem melhora
O céu tá calado agora
Mais vai dar cada trovão
De escapulir torrão
De paredão de tapera**

Bombo trovejou a chuva choveu

Choveu choveu
Lula Calixto virando Mateus
Choveu choveu
O bucho cheio de tudo que deu
Choveu choveu
suor e canseira depois que comeu
Choveu choveu
Zabumba zunindo no colo de Deus
Choveu choveu
Inácio e Romano meu verso e o teu
Choveu choveu
Água dos olhos que a seca bebeu

Quando chove no sertão


O sol deita e a água rola
O sapo vomita espuma
Onde um boi pisa se atola
E a fartura esconde o saco
Que a fome pedia esmola**

Seu boiadeiro por aqui choveu


Seu boiadeiro por aqui choveu
Choveu que amarrotou
Foi tanta água que meu boi nadou***

*Zé Bernardinho
**João Paraíbano
***Toque pra boiadeiro

1. Alegoria: Quando chove no sertão


O sol deita e a água rola
O sapo vomita espuma
Onde um boi pisa se atola
E a fartura esconde o saco
Que a fome pedia esmola
2. Na canção, encontram-se metaplasmo que faz referência à linguagem
coloquial nordestina, a oralidade. Como:

Síncope: “Um terço pesado pra chuva descer”

“O céu tá calado agora”

3. A presença de palavras de léxico Nordestino

Amarrotou: Levar de vencida; abater. Contundir com pancadas.

Atola: Enterrar(-se) no lodo.


Bagaço: Resíduo de frutos, ervas ou qualquer outra substância depois de se lhe tirar
o suco. Neste caso, de cana.

Bangue: Engenho de açúcar, de sistema antigo, movido a tração animal

Bucho: Estômago dos mamíferos ou ventre do homem.

Simbora: Vício de linguagem caracterizado como desvio da norma padrão (Vamos


embora).

Tapera: Casa velha e abandonada. Fazenda ou aldeia abandonada e invadida pelo


mato. Casa ou prédio desabitado.

Terço: A terça parte do rosário, ou conjunto de contas enfiadas numa linha, que se
costuma ir desfiando enquanto se recitam as orações. O conjunto dessas orações:
Rezar um t. para Santo Antônio.

Torrão: Porção de terra endurecida; terrão. Fragmento, pedaço.

Valei-me: Me ajude.

Zunindo: Produzir som agudo e sibilante.

4. Prosopopeia, também conhecida como personificação é a figura de linguagem


que atribui características humanas a seres inanimados:
“Já que meu olho cansou de chover”
“O céu tá calado agora”
“Água dos olhos que a seca bebeu”
“O sol deita e a água rola”
“E a fartura esconde o saco / Que a fome pedia esmola”
5. Aliteração: Repetição ou aproximação de fonemas consonantais:
“Chover chover”
“Choveu choveu”
“Banzo Batista, bagaço e banguê”,
“Bombo trovejou a chuva choveu” e
“Zabumba zunindo no colo de Deus”
A canção chover faz referência a diversos poetas e personalidades regionais desde
compositores à figuras lendárias. Não o bastante também há notáveis intertextualidades com
outras composições clássicas da região como, por exemplo:

Padre Cícero Romão, conhecido sacerdote católico de grande prestígio religioso e


social na região nordeste. O famoso padre Cícero, ou mesmo, o “Padim Ciço”:

“Valei-me Ciço o que posso fazer...


...Um terço pesado pra chuva descer”

Esta parte demonstra a presente religiosidade tanto na obra do Cordel do Fogo


Encantado, como na cultura local.

Cego Aderaldo, figura mítica do folclore sertanejo, cansou das lágrimas inúteis a
vazar dos olhos que não veem, mas choram a desgraça de seu povo.

O desamparo do nordestino diante da seca é o mesmo que se expressa em Súplica


Cearense, uma canção do cantor, radialista, humorista e artista de circo baiano Waldeck Artur
de Macedo, mais conhecido como Gordurinha, em parceria com o compositor Nelinho,
lançada em 1960 e gravada pelo próprio Gordurinha. Posteriormente a canção foi regravada
por artistas como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Elba Ramalho, Fagner, Casuarina,
Falamansa e o O Rappa.

João Paraibano, já falecido poeta repentista, também é lembrado nos versos em que
se pede para ter paciência, pois o sertão tem melhora, mesmo que esta seja uma mudança
repentina e drástica:

“Meu povo não vá simbora


Pela Itapemirim
Pois mesmo perto do fim
Nosso sertão tem melhora
O céu tá calado agora
Mais vai dar cada trovão
De escapulir torrão
De paredão de tapera”

Na segunda fase da música, há uma mudança no tempo verbal do verbo chover que
passa do infinito para o passado, pois agora já choveu. Em seguida é mencionado Lula
Calixto, mestre do Samba de Coco Raízes de Arcoverde, já saciado da abundancia que a
chuva trouxe consigo:

“Lula Calixto virando Mateus...

...O bucho cheio de tudo que deu ...

...suor e canseira depois que comeu”

A canção se encerra com o toque para boiadeiro de autoria anônima e uma alegoria
de uma forte chuva onde o sapo vomita espuma e o boi não se atola, ele nada nesta enchente,
pois esta não é de água, mas sim de representações imagéticas de situações, poetas e
personalidades da região do sertão de Arcoverde.
Bibliografia

Martins, Nilce Sant'Anna. 2000. Introdução à Estilística. 3. ed. São Paulo, T. A. Queiroz.

MONTEIRO, José Lemos. A Estilística: manual de análise e criação do estilo literário. Rio de
Janeiro: Vozes, 2005.

Castelar de Carvalho, Mattoso Câmara Estilística.

Dicionário Michaellis

Dicionário Porto Editora

Chover (ou Invocação para um dia líquido), Composição: Lirinha; Clayton Barros. Disponível
em: http://letras.mus.br/cordel-do-fogo-encantado/78515/

http://www.portugues.com.br/gramatica/estilistica/

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