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CARL DAHLHAUS
HANS HEINRICH EGGEBRECHT

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UE É A MÚSICA?

Título Original: Was ist Musik?


Autores: Carl Dahlhaus / Hans Heinrich Eggebrecht
Tradução: Artur Morão
Grafismo: Cristina Leal
Paginação: Vitor Pedro

Edição original: © 4th Edition Copyright 2001 by Florian Noetzel GmbH,


Verlag der Heinrichshofen-Bücher, Wilhelmshaven, Germany

Todos os direitos reservados para língua portuguesa para


Edições Texto & Grafia, Lda.

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.


1000-217 Lisboa
Telefone: 21 797 70 66
Fax: 21 797 81 30
E-mail: texto-grafia@texto-grafia.pt
www.texto-grafia.pt

Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda.
1.ª edição, Abril de 2009

ISBN: 978-989-95689-4-5
Depósito Legal n.º 291432/09

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor
será passível de procedimento judicial.

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É em torno da ideia de conhecimento articulado com as
necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que
se projecta a colecção “Biblioteca Universal”.
Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de
autores e temas – dos quais se destacarão as áreas das Ciências
Sociais e Humanas –, pretende-se que a colecção esteja aberta
a todos os ramos de saber, sejam de natureza filosófica, técnica,
científica ou artística.

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APRESENTAÇÃO AO LEITOR

S erá difícil encontrar guias mais adequados e competentes


para o universo misterioso, e ao mesmo tempo tão fami-
liar, da música do que os dois mestres responsáveis pelo
texto presente. São, de facto, dois dos mais insignes musicólogos
do século xx. Embora ambos já falecidos, o seu lugar na estética
musical está assegurado pelas numerosas obras que deixaram e
pelo intenso trabalho de investigação que da arte dos sons nos
legaram.
Estas breves páginas, agora propostas na nossa língua, deixam
transluzir alguns dos temas, obsessões e núcleos da sua pesquisa
e da sua interpretação da arte musical. Não se trata apenas de
opiniões esparsas de carácter histórico, mas sobretudo de um
juízo estético multiforme e polarizado em que se manifesta, por
um lado, o seu profundo conhecimento (aqui só em breves apon-
tamentos) do devir temporal da música europeia e, por outro,
também a sua grande familiaridade com o pensamento filosófico,
que os dois sabem explorar e aproveitar na fundamentação da sua
concepção da arte dos sons.

– Carl Dahlhaus (1928-1989), apesar da sua saúde frágil,


desenvolveu uma actividade intensíssima como homem de teatro,
historiador da música (sobretudo dos séculos xix e xx), crítico e
esteta musical, além de exímio hermeneuta da obra beethoveniana.
Caracteriza-o ainda uma cultura vastíssima, que é apanágio de
muito poucos, uma actividade febril de polímato e de polígrafo
que em nada diminui a profundidade da sua visão estética. Esta
foi, de facto, inovadora e deixou a sua marca sobretudo na segunda
metade do século xx. Adivinha-se, nos pressupostos do seu traba-
lho teórico, uma certa influência hegeliana, a assimilação da lição

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UE É A MÚSICA?

adorniana sobre o vínculo entre música e sociedade, mas também


a presença do método hermenêutico de H. G. Gadamer, que o
levou a considerar a música como uma componente básica da
vida cultural.
Os problemas fundamentais da sua inquirição musicológica
surgem enunciados na obra Princípios da história da música (Grun-
dlagen der Musikgeschichte, Colónia 1977). Da actividade global
de Carl Dahlhaus diz Hermann Danuser: “Os seus estudos sobre
estética, que – em vez de um sistema supra-histórico – visam antes
o conhecimento da pretensão normativa, sempre limitada no seu
valor histórico, dos projectos singulares, reuniu-os ele em dois
livros: Estética musical (Musikästhetik, Colónia 1967) e Estética
musical do classicismo e do romantismo (Klassische und romantische
Musikästhetik, Laaber 1988). Entrosando o conhecimento his-
tórico e estético, Dahlhaus, no seu livro Análise e juízo de valor
(Analyse und Werturteil, Mainz 1970), mostrou como os juízos
analíticos e normativos se combinam entre si e, nas suas análises
das obras, graças a uma compreensão homogénea da arte e da
história, chegou a exposições que continuam a ser uma fonte de
critérios. O seu trabalho, ao prolongar a tradição cultural alemã
no melhor sentido, abriu à musicologia, do ponto de vista histo-
riográfico e analítico, novos horizontes no final do século xx 1.”

– Hans Heinrich Eggebrecht (1919-1999), por seu lado, além


de eminente pedagogo musical e lexicógrafo – a ele se deve, entre
outros, o projecto do Handwörterbuch der musikalischen Termino-
logie (ainda em curso na Franz Steiner Verlag desde 1972), foi um
comentador excepcional da obra de J. S. Bach, ao qual consagrou
vários escritos. Na arte deste último encontrou, de certo modo, a
ideia fundamental da sua abordagem estética: a música pode, sem
dúvida, explicar-se mediante a análise técnica dos seus elementos
compositivos (o plano do ‘sentido’), mas é necessário avançar daí

1
H. DANUSER, “Carl Dahlaus”, in L. FINSCHER, hrsg., MGG – Die
Musik in Geschichte und Gegenwart, Personenteil 5, Kassel/Stuttgart, Bärenrei-
ter/Metzler, 2001, col. 266.

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APRESENTAÇÃO AO LEITOR

para a interpretação do ‘conteúdo’ das obras, as quais, no seu


corpo material, na sua estrutura formal, na sua intencionalidade,
nos seus recursos e efeitos, brotam da história e estão imersas na
história. Por isso, a atitude perante o objecto ‘música’ e a ciência a
seu respeito pressupõem o nexo entre a subjectividade e o perene
condicionamento histórico do nosso saber e da nossa vontade de
conhecimento.
Pode assim dizer-se, sem exagero, que ele oferece a síntese da
sua concepção estética no grande fresco histórico consagrado à
música europeia, Música no Ocidente. Processos e etapas desde a
Idade Média à actualidade (Musik im Abendland. Prozesse und Sta-
tionen vom Mittelalter bis zur Gegenwart, Munique 1991). H. H.
Eggebrecht revela-se aqui sensível à grande tradição musical, que
nos caracteriza como civilização, mas sem idolatria pelo passado
e generoso em face do devir surpreendente da arte dos sons, nas
profundas mutações que ela atravessou ao longo do século xx.

Tais são os dois mestres que introduzem o leitor nesta exigente


reflexão sobre a música. O discurso nem sempre é fácil. Está cheio
de alusões, semeado de elementos subentendidos ou apenas insi-
nuados; o texto concretiza assim, de facto, o seu étimo: apresenta
uma urdidura complexa e, por isso, força a atenção, requer a con-
centração. Mas oferece também uma recompensa: sai-se dele com
uma imagem mais apurada da arte dos sons e, sobretudo, com um
desejo de dela se querer saber mais – no fundo, a pergunta, que
se espraia ao longo destas páginas, não recebe uma resposta; é um
convite a mantê-la viva.

Artur Morão

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ADVERTÊNCIA PRÉVIA

O convite da Verlag Heinrichshofen para elaborar-


mos o volume comemorativo n.º 100 da colecção
«Taschenbücher zur Musikwissenschaft» [Livros de
bolso de musicologia] suscitou em nós a ideia de reflectirmos da
seguinte maneira sobre uma questão antiga: escolheríamos uma
série de temas e cada um escreveria sobre eles independentemente
do outro; só depois de tudo pronto faríamos uma apresentação
recíproca dos textos. Este modo – por razões de alternância –, foi
interrompido nos capítulos vi e viii pela forma da continuação e,
no capítulo vii, a favor da forma de diálogo.
A ideia do nosso ensaio é acercar-nos de uma questão que
ainda hoje existe em movimentos separados, mas entre si tematica-
mente vinculados, por assim dizer, com uma força dupla, embora
com diferente subjectividade. Ao leitor pode talvez afigurar-se não
só como exigência, mas porventura até como estímulo, verificar
as diferentes concepções dos temas e o seu distinto tratamento,
ponderá-las entre si e – se possível – pô-las igualmente em relação
umas com as outras.
Todo o leitor dos nossos textos, antes de os ler, já sabe o que é a
música – embora ainda não o tenha dito e jamais o venha a dizer a
si mesmo ou a outros. Durante a leitura dos textos, não deixará de
lhe ocorrer à mente. Compara o que por nós foi escrito com o seu
saber. E diz sim ou não, escreve interiormente ou até nas margens
pontos de exclamação e de interrogação, torna-se talvez maléfico
e afirma que esquecemos o essencial. Se assim for, já não seria de
todo vã a nossa tarefa, a tarefa de incitar o leitor a reflectir sobre
a música (– não só no pormenor, mas sobre «a» música, e se ela
em geral existe –) e a tornar-se assim, antes de mais, consciente
do que acerca dela já sabe.

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UE É A MÚSICA? C. DAHLHAUS / H. H. EGGEBRECHT

Pode também dizer «Ninguém sabe o que é a música», ou ainda


«Cada qual o sabe de outro modo e, em última análise, só para
si». Se o soubéssemos de modo idêntico e de uma vez por todas
– que aconteceria então?

Carl Dahlhaus
Hans Heinrich Eggebrecht
Berlim e Friburgo
Maio l985

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EXISTE «A» MÚSICA?
CARL DAHLHAUS

A ideia de uma história universal da música – ideia


subjacente a um plano da UNESCO do qual, ape-
sar das crescentes dificuldades internas e externas,
não nos conseguimos desprender – está duplamente lastrada pela
indeterminação do conceito «música» e pelas implicações ideoló-
gicas do conceito de «história universal». E uma dificuldade está
intimamente ligada à outra: o problema de se «a» música – no
singular – existe nem sequer é susceptível de uma formulação
precisa, sem a representação de se e em que sentido «a» história
constitui uma realidade ou uma simples teia de pensamentos, em
todo o caso, não de um modo que deixe parecer como previsível
uma solução.
A convenção, segundo a qual é incompatível na língua alemã
formar um plural para a palavra «música», tem sido, sempre com
maior frequência, infringida desde há alguns anos a esta parte sob
a pressão das dificuldades que brotam da fixação no singular, sem
que o mal-estar estilístico, ao mesmo tempo também real, esteja já
remediado. As diferenças sociais, étnicas e históricas – desde que se
perdeu ou, pelo menos, se atenuou a ingenuidade com que, ainda
no século xix, se consideravam os elementos musicais estranhos
ou como subdesenvolvidos ou se assimilavam inconscientemente
ao que era próprio – revelam-se tão grandes e agravadas que nos
sentimos forçados a diferenciar o conceito de música.
Os problemas terminológicos, na diferença estético-social que,
como dicotomia de música E [erudita, séria] e música L [ligeira]
constitui o tema de uma controvérsia conduzida desde há décadas
sempre com os mesmos argumentos, com concepções e decisões
que intervêm de imediato na práxis, encontram-se tão intima-
mente misturados que surgem até como o seu reflexo teórico. A
polémica em torno das funções sociais e dos critérios da música E
e da música L não seria possível se os fenómenos sonoros, que pela
etiquetagem são separados uns dos outros e mantidos à distância,

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UE É A MÚSICA? CARL DAHLHAUS

não estivessem, por outro lado, entre si entrosados, graças ao


conceito genérico de «música». Que uma canção e uma com-
posição dodecafónica pertençam à mesma categoria de nenhum
modo é, porém, evidente, como revela uma comparação com
outros domínios. Ninguém designa um jornal como «literatura»,
embora o uso linguístico insólito, já que um jornal é linguagem
impressa, não seja etimologicamente absurdo. (O conceito lin-
guístico geral para jornais e poemas, o termo «lugares textuais»,
não penetrou na consciência geral.) E a convenção linguística
é tanto fundamento como consequência do estado de coisas de
que não é habitual comparar entre si as funções sociais e os crité-
rios estéticos de jornais e poemas. Pelo contrário, as composições
dodecafónicas estão expostas à exigência de se confrontarem, nas
estatísticas dos «índices de audição» da rádio – em contagens de
que se tiram consequências práticas – com produtos da indústria
musical de entretenimento. A «sedução da linguagem» (Ludwig
Wittgenstein) – graças ao precário e discutível singular «a música»
– impede uma diferenciação que, na linguagem impressa, é evi-
dente (deveria, no entanto, tornar-se suspeita de ideologia por
meio da expressão «lugares textuais» – expressão que poderia, sem
dúvida, afigurar-se neutra, mas por detrás da qual se encontra
uma «ideologia contrária»: a da comparatividade em vez da inco-
mensurabilidade). A desigual categorização de linguagem e de
música pode explicar-se de um modo pragmático: na música não
há nenhuma linguagem corrente de modo que a canção e a com-
posição dodecafónica, enquanto produções igualmente subtraídas
à realidade quotidiana, sejam sem querer subsumidas no mesmo
conceito. Todavia, da fundamentação psicossocial e histórica da
convenção de falar indiferentemente «da» música só a custo se
pode derivar uma justificação estética; o plural, embora persistam
ainda as hesitações, estaria mais próximo da realidade.
Se, pois, as consequências que nascem do singular colectivo
interferem de imediato e com grande alcance na realidade social e
musical – uma realidade definida pela dicotomia entre música E
e música L, em que a palavra neutralizadora «música» representa
um problema mais gravoso do que as siglas duvidosas «E» e «L»,
então as consequências problemáticas da tendência para aplanar as
diferenças mediante um conceito universal e unitário de música,
nas diferenças étnicas ou regionais, revelam-se sobretudo no plano

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teórico, e menos no prático. Fenómenos sonoros, para os quais


um observador europeu tem já pronta a palavra «música» – uma
palavra para a qual não raro falta um equivalente linguístico nas
culturas extra-europeias – ficam alienados do seu sentido origi-
nário em virtude de serem arrancados ao seu contexto «extramu-
sical». E, tomado em sentido estrito, o contexto em que eles se
encontram enredados não é nem «musical» nem «extramusical»:
uma expressão dá ao conceito de música, que é de proveniência
europeia, uma tal extensão que, por último, já não diz respeito
à realidade europeia; a outra pressupõe um conceito de música,
não só europeu, mas europeu moderno, que provém em estrita
cunhagem só do séc. xviii e desfigura grosseiramente a realidade
musical extra-europeia – uma realidade não só do estado de coisas
sonoro, mas sobretudo da consciência que dele se tem.
Se, pois, a categoria «música», segundo cujos critérios se iso-
lam de complexos processos culturais determinadas características
como «especificamente musicais», é uma abstracção que em mui-
tas culturas se levou a cabo, e noutras não, encontramo-nos então
perante a infeliz alternativa ou de reinterpretar e alargar o conceito
europeu de música até à alienação quanto à sua origem, ou de
excluir do conceito de música as produções sonoras de muitas
culturas extra-europeias. Uma decisão seria, do ponto de vista da
história das ideias, precária, e a outra provocaria a censura de euro-
centrismo porque os Africanos, embora sublinhem a «négritude»
da sua cultura, não gostariam de renunciar à palavra prestigiosa
de «música». E uma saída do dilema só emerge quando a proble-
mática etnológica se relaciona com a histórica, por conseguinte,
quando se tenta resolver as dificuldades, amontoando-as.
As diferenças entre as épocas da história musical europeia, por
radicais que tenham sido, deixaram intacta no essencial a unidade
interna do conceito de música, enquanto se manteve determinante
a tradição antiga: uma tradição cuja parte essencial era o princípio
de um sistema tonal, imutavelmente subjacente aos diferentes esti-
los musicais, constituído por relações directas e indirectas de con-
sonância. (O princípio não é especificamente europeu, mas isso
nada altera o facto de que foi o momento essencial da continui-
dade histórica da Antiguidade, da Idade Média e da era moderna:
o específico – contra um preconceito a que induz o método de
determinação dos limites – nem sempre é o essencial.)

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UE É A MÚSICA? CARL DAHLHAUS

Só a música electrónica e a «composição de sons» inspirada


por John Cage suscitaram o problema de se fenómenos sonoros
que negam o sistema tonal serão ainda música, no sentido da
tradição europeia. A resposta segundo a qual a música electrónica
continua a tradição de cuja história problemática provém era, sem
dúvida, de supor: a ideia de «compor» timbres (organizar sons
sinusoidais ou articulá-los com sons brancos) pode interpretar-se
como manifestação extrema da tendência para a racionalização,
em que Max Weber julgou reconhecer a lei evolutiva da música
europeia: de uma tendência para o domínio da natureza, para o
poder ordenador do sujeito que compõe sobre o material sonoro,
do «espírito» sobre o «material susceptível de espírito» (Eduard
Hanslick). E ao aceitar originariamente a orientação pelos axiomas
seriais, suscitou-se uma imediata referência ao estádio justamente
alcançado de desenvolvimento da composição vanguardista, graças
à qual a música electrónica se tornou, de modo indubitável, um
afazer de compositores, e não de físicos e engenheiros, por con-
seguinte, caiu sob o conceito de música, enquanto por ela – no
sentido da era moderna europeia – se entende uma categoria his-
toricamente mutável, cunhada e incessantemente refundida pela
obra dos compositores.
Se, apesar das divergências sociais, étnicas e históricas dificil-
mente superáveis que parecem forçar uma cisão do conceito de
música, não se abandonar inteiramente a ideia que o singular
colectivo «a música» expressa ou deixa pressentir, é natural, numa
«tentativa salvadora» de dela sair, que a ideia da música «única»
se baseie em última instância na concepção hegeliana da histó-
ria universal: uma história universal que começou no Próximo
Oriente e, através da Grécia e de Roma, se deslocou até aos povos
românicos e germânicos. Censurar a Hegel o eurocentrismo, de
que a sua concepção indubitavelmente sofre, é tão ocioso como
– após século e meio – nada custa. Mais essencial do que a defi-
ciência manifesta é, todavia, o facto menos notório de que a ideia
antropológica, sustentada pela concepção filosófico-histórica de
Hegel, de nenhum modo envelheceu: a ideia de que uma cultura
– e também uma cultura musical – de épocas anteriores e de outras
partes do mundo «pertence à história universal», na medida em
que participa no desenvolvimento que, à volta de l800, se deno-
minou «educação para a humanidade». O conceito de história

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I – EXISTE «A» MÚSICA?

«única» ou de história universal – uma categoria rigorosamente


selectiva que exclui do conceito de «genuína» história a maior
parte do que aconteceu em épocas mais antigas como simples
ruínas do passado – só é compreensível, se se reconhecer que ele
se orientava pela ideia clássica de humanidade (em precária relação
com o desenvolvimento científico-natural e técnico-industrial, que
constitui igualmente «uma» história independente das diferenças
étnicas e sociais).
Do ponto de vista pragmático, o conceito de história uni-
versal, pelo menos quanto a épocas mais antigas, dificilmente se
justificará: entre a cultura japonesa, a indiana e a ocidental do
século xiv não é possível nem estabelecer uma relação externa,
empírica, nem construir uma conexão interna filosófico-histórica.
A «contemporaneidade» é cronologicamente abstracta, não histo-
ricamente concreta. Só no século xx é que os continentes, graças
à interdependência económica, técnica e política, se soldaram no
mundo «único», cuja estrutura confere um sentido historiográ-
fico à redacção de uma história universal em sentido pragmático:
uma história que inclui também a da música, porque a conexão
externa entre as culturas é entretanto inegável, se bem que o nexo
interno, por exemplo, na moda musical indiana, seja muitas vezes
discutível.
Por outro lado, não é necessário abandonar o conceito filosófico-
-histórico da história universal, contanto que ele se modifique de
raiz. Já não é possível – do ponto de vista de um «cidadão do
mundo» à volta de 1800, que surge como estilização do burguês
ilustrado enquanto ideal de homem – julgar e decidir dogmatica-
mente sobre o que constitui um passo rumo à «educação para a
humanidade». A humanidade «única» existe tão pouco quanto a
história «única». O que resta é a compreensão paciente, que não
só tolera o outro e, antes de mais, o estranho na sua alteridade – a
tolerância pode estar ligada ao desprezo –, mas o respeita.
Se, porém, segundo os critérios do século xx, que provavel-
mente não são os definitivos, a humanidade não consiste na assi-
milação do diferente, mas antes na aceitação recíproca em que
o elemento estranho surge como irremovível, então, na estética
musical enquanto derivado da ideia de humanidade, a busca de um
substrato comum, que pode estar contido nos fenómenos sonoros
de todas as épocas e continentes, é de menor significado do que o

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UE É A MÚSICA? CARL DAHLHAUS

conhecimento e o mútuo reconhecimento de princípios formati-


vos fundamentalmente diversos: mais essenciais do que os elemen-
tos e os padrões básicos são as consequências e as diferenciações.
Se o princípio da consonância e o ritmo alternante, como muitos
historiadores e etnólogos crêem, pertencem às «ideias inatas» e são
apenas «reformados» sempre de novo de um modo diverso, ou se
a medição de distância de intervalos além das relações de conso-
nância, bem como de um ritmo numérico ou quantitativo além
do alternante, devem vigorar como princípios autónomos, irredu-
tíveis e de iguais direitos, é menos significativo do que a reverên-
cia, sustentada pelo discernimento, de uma diversidade profunda
das formações ou «reformas», que se edificam sobre fundamentos
comuns ou divergentes. Ancorar o conceito da música «única»
nas estruturas musicais objectivas ou antropológicas «dadas pela
natureza» é um empreendimento difícil e provavelmente inútil,
contanto que não se abuse do termo «reforma» como esquema
interpretativo universal para, sem critérios, indicar de que modo
uma «reforma» de fundamentos comuns, mas irreconhecíveis, se
distingue então genuinamente da heterogeneidade desprovida de
relações. (Além disso, em vez de se confrontar Natureza e História,
haveria que distinguir entre si, segundo uma sugestão de Fernand
Braudel, apenas estruturas de longa, média e curta duração.)
O motivo estimulador que se encontrava por detrás da ideia
da música «única» – como resultado da história «única» – era a
utopia clássica de humanidade, que fundava na Crítica da Facul-
dade de Julgar de Kant uma estética em que o juízo de gosto é
«subjectivo» e, no entanto, «universal», e decerto na medida em
que o subjectivo aspira à convergência num «sensus communis»,
num «sentido comum». Porém, se a humanidade não encontra a
sua expressão na descoberta de uma substância comum, mas no
princípio da reverência de uma diversidade irremovível, perma-
nece então fiel à ideia da música «única», precisamente porque a
abandona enquanto conceito de substância, para a restituir como
princípio regulativo de entendimento recíproco.

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EXISTE «A» MÚSICA?
HANS HEINRICH EGGEBRECHT

E xiste a música? Sim, graças a Deus. Pelo menos a este


respeito existe acordo.
Aqui, porém, a palavrinha que a precede, o artigo
determinativo, está provido de aspas.
Mas a palavrinha em si não tem grande importância. Pode
aceitar-se como artigo determinativo e ignorar o seu carácter
demonstrativo: existe decerto a música, como existem também
outras artes, por exemplo a pintura e a poesia.
As aspas, porém, são importantes. Querem dizer que o artigo
determinativo é entendido expressamente de modo determinativo
e demonstrativo. E pode interpretar-se, em primeiro lugar, no
sentido do todo real: aquela música, em relação à pluralidade e à
totalidade, é «aquela que».
Esta afirmação tem a sua origem no facto de que, na realidade,
há muitos e variados fenómenos definidos como música, e um deles
foi escolhido como a quinta-essência de todos. Existe «a» música?
– Sim, Beethoven! De facto, a música de Beethoven é considerada
ainda hoje, em boa medida, a quinta-essência de toda a música, e isso
não sem boas razões. Todavia, esta escolha, juntamente com os seus
motivos, assenta no gosto pessoal que, como tal, está fora de discussão;
tem a característica de poder variar de pessoa para pessoa e de, com
o tempo, se modificar. Nessa medida «a» música não existe – pelo
menos não de forma universalmente válida, mas só no sentido do
«para mim». Creio que também neste ponto se pode chegar a acordo.
De resto, este aspecto não é muito interessante e não nos leva longe
(„excepto se não se tiver a convicção de que os juízos da recepção, na
sua constância, têm verdadeiramente um valor conceptual objectivo,
e portanto Beethoven, ao ser considerado com particular frequência
o superlativo musical, «é» efectivamente a quinta-essência da música;
ou pelo menos que não se tenha a opinião – alterando o pensamento
de Hegel – de que também na música existe um «classicismo» em
sentido único e irrepetível, e se vá à busca dele).

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UE É A MÚSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT

Mas a mesma pergunta – existe «a» música? – pode entender-


-se também de outro modo; não no terreno da realidade e da sua
essência, mas no plano do intelecto, da definição, da abstracção.
A pergunta visa uma definição que considere tudo e tenha em
conta o que existe, na história e no presente, como música; e neste
propósito pode concordar-se com limitar-nos – por moderação
– à música experimentável, no caso presente (e que me concerne)
à música «ocidental», mas incluindo nela intencionalmente todas
as suas manifestações documentadas. O objecto da investigação
não é, pois, uma quinta-essência realmente existente da música,
mas um conceito, mais precisamente «o» conceito de música, a
determinação do seu conteúdo – «a» música que, numa resposta
possível, existiria na realidade só enquanto a definição concerne a
toda a música real.
Quanto mais extenso é o horizonte da experiência e acentuada
a consciência histórica tanto mais se recuará perante semelhante
propósito. Pense-se em todas as definições ou enunciações defini-
tórias que já existem, como foi diferente a sua sorte, embora todas
visassem a essência e o fundamento daquilo que a música é. Eis
alguns exemplos:
Musica est scientia bene modulandi [A música é a ciência de bem
modular] (Santo Agostinho).
Musica est disciplina, quae de numeris loquitur [A música é a
disciplina que fala dos números] (Cassiodoro).
Musica est facultas differentias acutorum et gravium sonorum sensu
ac ratione perpendens [A música é a arte de examinar com os sen-
tidos e a razão as diferenças dos sons agudos e graves] (Boécio).
Musica est exercitium arithmeticae occultum nescientis se nume-
rare animi [A música é o secreto exercício aritmético do espírito
que a si não se sabe medir e ritmar] (Leibniz).
Música... significa sobretudo a arte dos sons, a saber, a ciência
de cantar, tocar e compor (Johann Gottfried Walther).
A definição justa e exacta da música, a que nada falta e nada
é supérfluo, poderia, pois, rezar assim: a música é a ciência e
a arte de dispor habilidosamente sons idóneos e agradáveis,
ligá-los de modo correcto e suscitá-los com graça, a fim de

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I – EXISTE «A» MÚSICA?

mediante a sua harmonia serem promovidas a glória de Deus


e todas as virtudes (Johann Mattheson).
Musique. Art de combiner les Sons d’une manière agréable à
l’oreille [Música. Arte de combinar os so ns de um modo agra-
dável ao ouvido] (Rousseau).
Vimos o que a música é na sua essência: uma sequência de sons
que surgem em virtude de uma sensibilidade veemente e, por
conseguinte, a representam (Sulzer).
Só desta forma matemática [da música], embora não seja
representada por conceitos determinados, deriva o prazer que
conecta a simples reflexão sobre tal quantidade de sensações
simultâneas ou sucessivas com o seu jogo, como condição uni-
versalmente válida da beleza da própria forma; e só de acordo
com esta última o gosto se pode arrogar um direito antecipado
sobre o juízo de cada um (Kant).
Música. Com esta palavra define-se, hoje, a arte de expressar
sentimentos por meio de sons (Heinrich Christoph Koch).
«A música é uma mulher.
A natureza da mulher é o amor: mas este amor é o amor que
recebe e que no receber se dá sem reservas» (Richard Wagner).
Formas sonoras em movimento são o único conteúdo e objecto
da música (Eduard Hanslick).
«A essência da música é expressão; expressão puríssima, elevada
ao mais nobre dos efeitos (Friedrich von Hausegger).
A música é «a natureza conforme à lei relativamente ao sentido
do ouvido» (Anton Webern).
«Que é, pois, a música? – A música é linguagem. Um homem
quer expressar pensamentos nesta linguagem; não pensamen-
tos que se deixam transpor para conceitos, mas pensamentos
musicais (Anton Webern).

No tocante ao presente, pedi aos compositores Karlheinz Sto-


ckhausen e Wolfgang Rihm uma definição da música, isto é, como
definiriam eles a música a partir do seu ponto de vista.

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UE É A MÚSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT

Stockhausen remeteu-me para uma passagem da sua Freibrief


an die Jugend [Carta à juventude, Texte zur Musik III, p. 293)]:
«A música não deveria ser só uma hidromassagem para o corpo,
um psicograma sonoro, um programa mental em sons, mas
sobretudo o fluxo tornado som pela hiperconsciente electrici-
dade cósmica.»

Wolfgang Rihm escreveu-me em Outubro de 1984:


«Toma-a como ponta do icebergue: a música é liberdade,
código simbólico-sonoro atado ao tempo, vestígio de impen-
sável plenitude de forma, coloração e moldagem do tempo,
expressão sensível de energia, imagem e encanto da vida, mas
também imagem contrária, projecto antagónico: o outro (do
qual – enquanto tal – não posso saber o que é).»

É evidente que todas estas asserções e definições, e outras do


género, são apenas proposições nucleares extraídas de um mais
amplo contexto do pensamento e da representação. Para as com-
preender, é necessário avaliar em que medida a ponta do icebergue
as ultrapassa em altura. Mas justamente nas formulações sintéticas,
definitórias e sempre visando o essencial, as distinções tornam-se
drásticas e parecem distender-se até à contraposição inconciliável.
Entre «Musica est disciplina, quae de numeris loquitur» e «a
música é um mulher» interpõem-se universos. – E a concepção
da música como «Art de combiner les Sons d’une manière agréa-
ble à l’oreille» colide em medida não irrelevante com aqueloutra,
embora não afastada no tempo, que a descreve como «sequência
de sons que irrompem de uma sensibilidade veemente e, por
conseguinte, a representam». – Esta última definição pertence,
por seu turno, àquelas que estiveram sob a mira mediante a cono-
tação essencial da música como «forma sonora em movimento».
– Por outro lado, a descrição da música como «ciência de cantar,
tocar e compor bem» parece inspirar-se directamente naquela que
entende a música como «scientia bene modulandi», apesar de entre
as duas se interporem cerca de treze séculos.
Hoje, cada um sabe que a diversidade das asserções aqui adu-
zidas está sujeita a um valor posicional. Não só pode ser diverso
o ponto de referência (por exemplo, a expressão latina musica e

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I – EXISTE «A» MÚSICA?

o termo hodierno de música não são a mesma coisa), mas tam-


bém no significar cada asserção possui uma determinação plural,
sobretudo devido à época histórica, à respectiva realidade musical,
à pertença a tradições, escolas, partidos e ideologias, à dependência
de orientações e sistemas filosóficos e estéticos.
Das três definições de música referidas da Idade Média latina,
a de Santo Agostinho (scientia bene modulandi) situa-se na tradi-
ção de Aristides Quintiliano, que definiu mousiké como «ciência
do melos», enquanto Boécio se religou a Ptolomeu, para o qual
o reconhecimento das qualidades sonoras fornecia o critério da
definição, e Cassiodoro representa o ponto de vista aritmético
dos «Pitagóricos», caracterizado pela mathesis e pela ratio. Leibniz
vinculou-se claramente a este último, ao entender a propriedade
aritmética da música como propriedade da alma, do sujeito recep-
tor. E sempre «a forma matemática» da música, graças à qual é
suscitada a «reflexão» do juízo estético, foi para Kant, por assim
dizer, a âncora de salvação que lhe permitiu encarar também a arte
musical como arte «bela» (não apenas «agradável»). Para Richard
Wagner, a sua concepção do drama musical é que o leva a ter a
música por «mulher», podendo ela realizar o seu próprio fim, o
parto criativo, mas só se «fecundada pelo pensamento do poeta».
Que a música, enquanto absoluta, «exija não só dar à luz, mas
também procriar» descreve «todo o mistério da esterilidade da
música moderna!». Para Webern, pelo contrário, a música – na
esteira da definição goetheana da cor – é «natureza autêntica»,
sobretudo porque ele quer entender também a nova música, por
ele justificada, em conformidade com a lei natural e, ao mesmo
tempo, interpretá-la como «o fruto inteiramente natural da his-
tória». Além disso, a música apresenta-se-lhe como uma «lingua-
gem», porque esta determinação conceptual o capacita ainda para
qualificar a música atonal na sua capacidade semântica.
Pode partir-se do facto de que os definidores, isto é, os que
modificaram, deram um novo matiz ou trouxeram também ao
mundo um novo conceito de música, estavam plenamente cons-
cientes de assim rejeitar, substituir as outras definições ou afo-
rismos deles conhecidos, de proclamar a sua invalidade ou até a
sua falsidade. Antes de apregoar «a [sua] descrição justa e meticu-
losa da música, na qual nada falta e nada é supérfluo» (redigida
segundo o modelo da definição: matéria, forma e fim último),

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Johann Mattheson censurou todos os outros, para se elevar acima


deles: «Muitíssimos homens ilustres acertaram tão pouco nisto
que, até hoje, quase nada se afigura mais difícil de fazer do que
uma correcta elucidação fundamental, que a tudo se ajuste bem e
tudo englobe. Cada qual louva a sua, e redige-a de acordo com a
intenção e o critério que o assiste».
«A intenção e o critério» circunscrevem o factor determinante,
do qual Mattheson não sabe que também a ele diz respeito e,
por assim dizer, o assedia. O factor determinante é, tanto nele
como em todas as proposições acima citadas, um elemento de
obstinação. E o presente tem sempre razão, assim por exemplo
na inserção da poiese, que na Idade Média marcada pela tradição
modificou com cautela as definições; ou na tomada de consciência
do «aumento» da música que justifica a nova definição na época
pós-medieval; ou ainda na apologética urdida pelas querelas e
pelas lutas de partido desde o século xvii -xviii, ou ainda na fé no
progresso musical que espreita por detrás daquilo que os nomes de
Wagner e Webern exprimem como conceito.
As definições ou proposições referem-se todas – de modo explí-
cito ou implícito – ao presente, ao «dia de hoje», como escreve
Koch; ao falarem de música têm em mente a música do presente,
segundo o ponto de vista do definidor. A questão atinente «à»
música aqui não se põe, não se pode nem se deve pôr.
Diferente é o quadro em que se situa o historiador, cuja refle-
xão e cujo juízo são caracterizados pela ciência e consciência his-
tóricas. Para ele, as determinações conceptuais da música, isto
é, as frases essenciais de um escrito sobre ela sob o perfil da sua
natureza, convivem na sua diversidade sem competirem – prescin-
dindo do seu grau de inteligência – nem se rejeitarem ou excluírem
reciprocamente. De facto, ele atende em cada definição ao sistema
dos pressupostos de que ela deriva e que nela se revelam. Para o
historiador, que uma definição da música dependa da posição de
quem a expressa é tão importante como a própria definição, mais
ainda, enquanto seu pressuposto, é até mais importante. E este
aspecto importante, o pressuposto, não é para ele nem correcto
nem erróneo, nem válido nem desprovido de validade, mas de
natureza histórica.
Pode dizer-se (penso até que se deve dizer) que, ao perguntar
o que é a música, a problematização que as aspas introduzem no

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artigo «a» ocorre apenas ao historiador. Ele personifica a consciên-


cia do facto de que não pode haver uma resposta sem pressupostos,
uma resposta anistórica a essa questão. E se alguém pretendesse,
todavia, ter encontrado «a» definição, o historiador contestá-lo-ia,
pondo à vista a sua posição.
Importa, pois, distinguir duas posições, a da consciência refe-
rida ao presente e a da consciência histórica. A primeira é posi-
cional e sabe que o é, sem problematizar a determinação. Se aqui
se disser: «música é…» ou «a música é…», implica-se tacitamente
uma posição e não se ventilam pretensões de historicidade. A
definição tem carácter exclusivo: só ela vale. O seu ponto de refe-
rência é o presente, o sujeito actual, a posição, e a história – se
for considerada – surge marcadamente distorcida, com frequência
de modo apologético, com uma interpretação que tem naquela
referência o ponto de partida e de chegada.
Para a consciência histórica, pelo contrário, as definições
actuais e subjectivistas da música convertem-se em material do
seu pensamento, que visa essencialmente determinar as posições.
Este pensamento tem um carácter inclusivo: todas as posições
(= definições) têm direito de cidadania. As suas determinantes são
oferecidas pela história, e o presente é essencialmente interpretado
a partir delas.
É claro que assim não se exprime (por agora) uma valoração.
Quando muito, para o autor de uma definição relativa ao presente,
sobretudo se ele for um compositor, o historiador é supérfluo.
Este, porém, sem as determinções posicionais da música, ficaria
sem trabalho.
Mas, por outro lado, o historiador (e, pode repetir-se, só ele)
terá ocasião – ao reflectir sobre a pergunta «existe ‘a’ música?»
– de transpor o limiar da posicionalidade, da validade relativa
de uma definição daquilo que é a música. Mas como poderá ele
chegar aí?
Se aqui nos limitamos a encarar – com uma limitação enten-
dida em sentido exemplificativo (portanto, por agora, de modo
conscientemente parcial) – as definições da música como material
primário, o historiador poderia pensar que nelas a «essência» da
música chegou à dimensão de conceito, linguagem e imagem do
ponto vista histórico ou, de modo mais exacto, à luz da história
das ideias. Os enunciados definitórios seriam, na sua variabilidade,

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a manifestação conceptual do que «a» música é quanto às suas


possibilidades, e deveria tentar-se, poder assim dizer, unificar na
reflexão os enunciados rumo aos princípios (e ao princípio) de
tais possibilidades. Tudo isto soa de uma maneira algo metafísica,
como se existisse a «ideia» da música, manifesta nos conceitos, e
pudesse, por assim dizer, reconstruir-se conceptualmente, a partir
do seu manifestar-se; mas assim, ao mesmo tempo, também as
condições da história social, espiritual e material, em virtude das
quais os conceitos são diferentes e têm história, deveriam ser intro-
duzidas e sistematizadas no «a» com um intento definitório.
Mas não entrará, porventura, o historiador também neste jogo?
Não procede sempre de modo a reforçar as suas afirmações sobre
a música (se afloram a problemática do que ela é) com citações
que vai buscar à linguagem especialista da música, da qual sabe
todavia que também ela está subordinada à posição e ao ponto de
vista? Por exemplo: se eu quisesse afirmar que a (ou «a») música
possui duas vertentes, uma matemática e outra emotiva, isso não
me impediria de recorrer às definições de Cassiodoro, Leibniz ou
Kant para a vertente matemática e às de Koch ou Friedrich von
Hausegger para o lado emotivo, e ao mesmo tempo relevar que
«já Kant» considerara justamente estes dois lados como essenciais.
E não deveria ser tão impossível fazer entrar o aspecto histórico
que vai buscar o seu fundamento à manifestação de uma ou outra
vertente, ou de ambas, no marco sistemático da definição que
examina o «a».
Em vez de aquilatar as definições na sua diversidade como a
manifestação conceptual da «ideia» da música, ao perguntar que
é «a» música, poderia também tentar-se destilar das definições
aquilo que elas têm em comum, a saber, os pontos em que não se
contradizem, embora mencionem e acentuem de modo diferente
os aspectos que exprimem, ou descuram, ou até contradigam um
aspecto que nas definições de outros autores está, por assim dizer,
documentado; mas também aqui as dependências posicionais que
estão na base tanto dos juízos de uniformidade ou comparabili-
dade dos aspectos, como dos juízos da sua deformidade ou confli-
tualidade, regressariam por si ao horizonte da definição.
Por exemplo: nas três definições medievais da música, antes men-
cionadas, expressa-se o elemento matemático (modulari – numerus
– ratio), em que as diferenças ou a parcialidade (Cassiodoro) são

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I – EXISTE «A» MÚSICA?

visívelmente condicionadas pela posição e se reduzem pontual-


mente, se se tomarem em consideração os contextos completos a
que as definições pertencem. Mas que faremos, a este respeito, com
Richard Wagner – para escolher um exemplo extremo? A compa-
ração contida na sua definição («A música é uma mulher») radica
no carácter aconceptual da música (que – segundo Wagner – pode
alcançar o seu fim só se «for fecundada pelo pensamento do poeta»).
As definições medievais não contradizem a aconceptualidade da
música; só que aí não se trata directamente dela, mas é p. ex. tema-
tizada expressamente nos últimos escritos de Santo Agostinho sob a
forma do «sonus jubilus» («in jubilatione canere»). – Hanslick, com
a sua definição, ataca os defensores da teoria dos afectos e os seus
continuadores. Mas nenhum dos seus adversários ignorara – pelo
menos nas obras escritas – a qualidade especificamente musical
da música. E Hanslick passa por cima do seu próprio ponto de
vista restrito mediante um arsenal de «conteúdos» musicais, ao
reconhecer o «carácter especificamente musical» (cuja beleza, «inde-
pendentemente de um conteúdo vindo do exterior e sem dele ter
necessidade», residiria «apenas nos sons e na sua ligação artística»)
nas «engenhosas relações intrínsecas de sonoridades aprazíveis, na
sua consonância e oposição, na sua evanescência e reunião, na sua
elevação e extinção».
Os dois procedimentos, um que parte das diferenças das defini-
ções com a tentativa de as fundir, se possível, numa única definição,
e outro que regista os elementos comuns para os elaborar como
constantes conceptuais, completam-se; têm entre si uma afinidade.
Poderia, a propósito, aventar-se a hipótese de trabalho de que as
diferenças se poderão reduzir a um número restrito de características
substanciais e de possibilidades de princípio, e que neste entrelaçado
de características e de possibilidades não há contradições insolúveis,
mas apenas um diferente modo de seleccionar, nomear e acentuar.
«A» música existiria, pois, por definição como aquilo que não tem
história e que, apesar de todas as dependências posicionais, se iden-
tifica com a música como conceito.
Mas é verdade que, também graças a semelhantes processos
mentais e de trabalho (que decerto é possível tentar aplicar ainda
a outros materiais da história da música), não se resolve a ques-
tão de se «a» música existe e qual a sua natureza. Responder «de
uma vez por todas» embate aqui no fiasco – graças a Deus! – em

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virtude não só da dependência posicional do historiador (embora


não seja tão desproporcionado pôr-se fora de jogo), mas também
da indisponibilidade da dimensão do futuro.
Creio todavia que, ultimamente, todo o pensamento sobre a
música se interroga sobre o que é a música, e que – enquanto a
reflexão virada para o presente suscita (ou pode suscitar) definições
situacionais – o pensamento histórico gira à volta do «a», embora
saiba que não consegue fornecer «a» resposta.
Porque é que então o historiador se preocupa assim tanto?
Não é de todo positivo o papel que ele aqui desempenha. Aplana
tudo; ao interpretar os enunciados em chave posicional, nivela-os,
uniformiza-os, atenua a sua vitalidade, sufoca o seu ardor.
A definição referida ao presente gera um valor: define a música
a partir da realidade, da vitalidade de um ponto de vista; na sua
relação com o objecto, ela é a auto-realização linguística de um
sujeito, de um Eu, mesmo que fosse de um único.
Reconheçamos: o historiador, desde que existe, só pode pro-
ceder de um modo relativizante. Ao interpretar os enunciados a
partir dos seus condicionamentos, não se faz valer a si mesmo, mas
deixa que eles sobressaiam. É isso que o define. Mas qual poderá
ser o valor da sua entrega à investigação, a este modo, do «a»?
Uma resposta poderá emergir do nosso escrito. Porém, uma coisa
– felizmente – é certa: também ele é um Eu.

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ÍNDICE

Apresentação ao leitor ........................................... 7

Advertência prévia ................................................ 11

I – Existe «a» música? ................................................. 13

II – Conceito de música e tradição europeia ............... 29

III – Que quer dizer «extramusical»? ............................. 45

IV – Música boa e música má ....................................... 63

V – Música antiga e música nova ................................ 79

VI – Significado estético e intuito simbólico ................. 95

VII – Conteúdo musical ................................................ 107

VIII – Do belo musical ................................................... 119

IX – Música e tempo .................................................... 131

X – Que é a música? ................................................... 143

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