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Diálogos da Historia
i;30M A Literatura
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Diálogos da Histórl^
COM A Literatura
S.-v\'DR\ JAT.Ain- Pesam-N-ro
Ol<Ci.\NIZ.\130R\
© dos autores
1^ edição: 2000
CDU 869.0(81):93
ISBN 85-7025-536-^
Sumário
Apresentação / 7
Parte 1
Discussão em torno o'O retrato, de Erico Veríssimo
O retrato de Rodrigo Cambará / 13
JacquesLeenhardt
A temporalidade da perda /31
(leitura de O retrato, de Erico Verissimo)
SandraJatahy Pesavento
Campo e cidade em O retrato / 49
Ligia Chiappini
Parte 2
Discussão em torno o'Os ratos, de Ch'^oNÉLio Machado
Ratos cordiais e raízes daninhas: formas da formação / 77
Roberto Vecchi
Raten/ratten. A cidade obsessiva em Os ratos j101
Ettore Finazzi-Agrò
Ratos mansos, cidades sem raízes / 117
Mônica Raisa Schpun
Papel-moeda/papel engraxado; o dinheiro nas relações sociais
Uma leitura de Os ratos e de Raízes do Brasil/ 143
Chiara Vangelista
Parte 3
Discussão em torno da obra de Sérgio Buarque de Hoi^anda
Teoria e método históricos em Raízes do Brasil/ 169
Edgar Salvadori de Decca
A fortuna crítica de Sérgio Buarque de Holanda / 191
Walnice Nogueira Galvão
Parte 4
Diálogos na e sobre a década de 30:
Antônio Cândido, Sérgio Buarque de holanda.
Giro dos anjos, Gassiano Ricardo e Monteiro Lobato
Brusco lampejo. Digressão sobre a presença de Erico Verissimo
em Brigada ligeira, de Antônio Cândido /215
Flávio Aguiar
Um burocrata lírico
(sobre OAmanuense Belmiro, de Ciro dos Anjos)/225
Sandra Guardini T. Vasconcelos
Sérgio Buarque e Gassiano Ricardo:
confrontos sobre a cultura e o estado brasileiro /237
Cláudio Bertolli Filho
Jeca Tatu contraposto aos Parceiros do Rio Bonito:
diálogos entre Lobato e Cândido /255
ZildaMárcia Grícolilokoi
O seqüestro do regionalismo caboclo
ou Antônio Cândido e a sublimaçâo da década de 1930/271
José Carlos Sebe Bom Meihy
I /
Apresentação
SandraJatahy Pesavento
/ /
Sandra Jatahy Pesavento
Universidade Federal do Rio Grande'X)Sul
A tempop^idade da perda
(leitura de oretrato, de Erico Veríssimo)
Negrinho do Pastoreio
Acendo esta veia prá ti
E peço que me devolvas
A querência que eu perdi...
31
Reza a tradição popular do Rio Grande do Sul que o negri'
nho lendário é infalível na recuperação de causas, objetos e
amores perdidos: basta acender-lhe uma vela, com toda a devo
ção, e fazer o pedido, que, com o auxílio de Nossa Senhora,
sua madrinha, o "perdido" se "acha"...
O retrato é um livro que trata de perdas e de derrocadas-
Ao tratar da mudança, inverte as temporalidades, pondo ceti
cismo no novo e colocando a questão da possibilidade ou nao
de salvar o tempo passado. É por este viés que encaminhamos
a leitura desta segunda parte de O tempo e o vento, publicado
em 1948, por Erico Verissimo.
Quando do lançamento da primeira parte - O Continente
Sérgio Buarque de Holanda dizia ter seu autor realizado o
milagre, não acessível a qualquer cronista, de "reconstituir ^
atmosfera histórica onde há de banhar-se o mundo que a imagi'
nação criou"(Holanda, 1996, p.229), assim como também as-,
severou que seu "plano arquimédico" não "pertencerá nem aO
mundo da história nem ao da ficção"(Holanda, 1996, p.231)-
A obra O retrato persegue a trajetória dos Terra-Cambara,
que,na seqüência do livro anterior, contribuiu para compor um
panorama da formação histórica do Rio Grande. Retorna EricO
Verissimo com os seus tempos intercalados, trazendo o passa
do de volta pela memória dos personagens ou pela voz do naf'
rador. Estes recortes temporários, no caso, são emblemáticos
como signos de mudança e assinalam, cada um deles, não so
um começo, mas também um fim.
Nesse processo de estruturação/desestruturação que acorn-
panha o fluir da narrativa e que assinala a temporalidade da
mudança, há uma linha que persegue a trama e que e marcada
pela tragédia,fazendo com que cada elemento do novo conte
nha em si os germes da sua destruição e que cada avanço impli
que uma perda.
Escritor que recria a "atmosfera"- para usar a expressão
de Sérgio Buarque de Holanda-,os seus compromissos com a
história vão além da criação de uma mera "ambiência" de épo-
32
ca, que confere um "efeito de real" à temporalidade narrada e
que se escora, por vezes, nos preciosismos de detalhe que evi
denciam pesquisa de arquivo.
A obra de Erico é uma reflexão sobre o Rio Grande e sobre
o seu tempo,e representa um ensaio que pensa não só a parte
mas o todo. Ou seja, Erico encontra na literatura uma forma de
dizer o Brasil a partir do Rio Grande, e é por essa perspectiva
que seu texto é intercambiável, nesta conjuntura dos anos que
se seguem a 30, com o de Sérgio Buarque de Holanda,em Raí
zes do Brasil.
Há uma visão de história que aprecia a mudança, que en
cara o processo como uma construção de múltiplos atores e,
ceticamente, aponta para o peso do passado que molda um ethos
c que se apresenta como desafio. Há uma certa melancolia na
trajetória, pois o anjo da morte - da queda, da decadência, da
falência- atrela-se aos domínios de Clio. São fortes os elemen
tos que tolhem e dificultam a marcha da história. Entendemos
que este é um fio condutor da leitura e que se apresenta ao
longo de toda a obra.
Se o título do primeiro capítulo-"Rosa dos ventos" nome
do avião pilotado por Eduardo Cambará,o filho comunista de
Rodrigo, que sobrevoa Santa Fé, aponta não só para uma nova
direção, mas para um novo tempo. Há muitas outras mudanças
Cm jogo neste contexto, a assinalar rupturas e quedas.
O livro se abre em 1945,com a deposição de Vargas, a derro
cada do Estado Novo e a volta precipitada de Rodrigo Cambara do
Rio deJaneiro para Santa Fé. O encerramento do primeiro perío
do Vargas marca,por sua vez, um outro fim para a trajetória políti
ca de uma segunda geração republicana, na qual se enquadrava o
próprio Rodrigo. Na seqüência castilliista-borgista-getulista, a pro-
Posta do autoritarismo ilustrado,que do regional ao nacional gau-
chizava o Brasil, tinha um freio. Isto não impediria o retomo de
^etúlio ao poder em 1951, mas sob novas bases,que delimitaram
ym recuo dos políticos rio-grandenses no Catete. Os anos cinqüenta
iríam marcar a perda de espaço político do Rio Grande no cenário
33
nacional e acentuar a deíiasagem entre a economia gaúcha e a nova
etapa de acumulação capitalista que o Brasil inaugurava. O velho
Aderbal Quadros — o Babalo —,falido na estância, a contemplar o
avião pilotado pelo neto,que sobrevoa a cidade,é uma figura em
blemática da decadência do campo.
Mesmo que o início do romance se apresente por um qua
dro cômico-a altercação, que acaba em bofetões e ao som de um
tango de Gardel, motivada pela retirada do retrato de Getúlio da
parede de um estabelecimento comercial de Santa Fé -, é sob o
signo da tragédia que a narrativa se instala: derrocada de um mun
do e de uma geração, assim como derrocada pessoal de Rodrigo
Cambará,envolto na politicalha e nos escândalos do governo de
posto e combalido fisicamente pelos ataques do coração.
A velha geração não mais existe (Licurgo, Fandango) ou
está prestes a desaparecer, derrotada pela vida (Babalo, Liro-
ca); o próprio Dr. Rodrigo Cambará vive sua decadência políti
ca e física. Sua descendência náo promete muito: a sensibilida
de de um Floriano não supre a sua falta de energia,e a militân-
cia combatente de Eduardo impede-o de ser indulgente para
com o próprio pai. Ou seja, não há futuro que suplante o que já
foi um dia Rodrigo Terra-Cambará e que fora eternizado num
magistral retrato pelo pintor anarquista Pepe Garcia.
Mas Santa Fé não reservaria milagres para este Dorian Gray,
salvo o do pincel de Dom Pepe,que conseguiu capturar a alma
do então jovem Dr. Rodrigo,eternizando o instante. Contudo,
enquanto o Rodrigo de carne e osso ia se despojando com a
maturidade daquilo que fora fixado magicamente no quadro —
não só a beleza, mas o idealismo, a generosidade, a vontade —,
o retrato lá ficara, preservando o que fora perdido.
Numa inversão entre o real a sua representação,o bêbado
Dom Pepe afirma ser verdadeiro o retrato que aprisionava o
Rodrigo tal como ele fora um dia,sendo,o outro, um fantasma:
O Retrato é profético, é mágico, porque dentro dele está tudo:
Dom Rodrigo aos vinte e quatro anos, seu passado, seus antepas-
34
sados e também o futuro com todas as suas vitórias e derrotas.
(Verissimo, 1996, v.l, p.31)
36
Essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem, por
sua vez, os fundamentos personalistas e, por menor que o pa
reçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social.(Ho
landa, 1969, p.l35)
37
caminha inexoravelmente para o seu fim e trai aos poucos tudo
aquilo que pudera ser fixado no retrato. Dom Pepe Garcia acre
dita na sua representação de vida e não mais no personagem
que dele se afasta.
Rodrigo-retrato mostra em si o passado do qual ele é a sín
tese moderna,e desafia o futuro, mas nele já se antevê o princí
pio da corrosão,como se o corpo jovem já denunciasse o cadá
ver que seria. Como diria Dom Pepe, bêbado:
38
1945 assistia à derrocada mais ampla de uma ordem social. Neste
momento se acentuam as perdas, mas, no processo de deca
dência, Erico insinua um reiativismo na condenação da oligar
quias. O autoritarismo à gaúcha tem um papel de dureza e de
ternura: aquele que degola é capaz de alisar a cabeça do pobre,
a violência é sinal de hombridade, e ser mulherengo é não só
desculpável, mas charmoso... Como diz Liroca,os "defeitos" de
Rodrigo eram lindos!(Veríssimo, 1996,v.l, p.46)
Se a realidade é pluridimension^ no universo do que as
pessoas pensam,as diferentes versões sobre o personagem têm
a sua validade. Todos estes "Rodrigos Cambarás" existiram a
partir das visões construídas,e em todas há uma argumentação
em cima de "provas irrefutáveis", que arrastam o personagem
para um perfil negativo ou positivo. Rodrigo é complexo, tal
como é o processo histórico, e é em si, como ator social, porta
dor de múltiplos sentidos.
Primeiro Cambará doutor, moderno,refinado,lendo e fa
lando francês, admirador de ópera e do bom vinho, Rodrigo
entusiasma-se com o que poderá fazer pelo progresso de Santa
Fé,quando retoma à capital, naquele final do ano de 1909,com
o seu diploma de médico na mão,amado e festejado por todos.
Do consultório ao jornal, passando pela farmácia, pelo gra
mofone,pelo automóvel, pela luz elétrica e pelo cinema,Rodri
go é o típico exemplo do que se chamou a segunda geração
republicana, formada no espírito do republicanismo gaúcho
saído da melhor tradição castilhista. Mas há distinções, e elas
são significativas.
Há uma proposta mais ampla destes jovens bacharéis,que
vão marcar uma inflexão na seqüência castilhista-borgista na di
reção da política do Rio Grande do Sul. Para os primeiros,trata
va-se de sufocar a oposição "maragata" (federalista) e dotar o
estado de um "modelo regional" inspirado na matriz positivis-
ta-castilhista. Isto implicava o estabelecimento de um modus
vivendi com as oligarquias que dirigiam o País, num tácito acor
do que assentava a não pretensão do Rio Grande à presidência
39
L
da Nação e o apoio à política dos governadores, com a subse
qüente legitimação do esquema "café-com-leite", em troca da
preservação da autonomia estadual e a concessão de cargos
específicos para gaúchos na esfera federal.
Este acordo não se daria sem "quebras", como nas raras
eleições presidenciais que foram disputadas(como no caso da
civilista que apresentou Rui Barbosa e que comparece no livro),
mas a verdadeira "virada" se dá com a entrada em cena desta
segunda geração republicana, que propõe uma reorientação da
política nacional e que passa a postular a presidência do País.
Quer parecer que Erico Veríssimo situa Rodrigo no seio
desta geração. Reinterpretando o castilhismo e a herança posi
tivista, criticando, velada ou abertamente, Borges de Medeiros
ou a ele se unindo para tomar depois o controle da situação.
Sua proposta é mais ampla e visa ao nacional, incorporando
estratégias outras que não as da ortodoxia positiva- nacionali
zando o Rio Grande -, eles irão depois "gauchizar" o Brasil.
O recém-formado doutor Rodrigo, nas suas evocações, re
memora os passos de suajeunesse dorée na Porto Alegre da
primeira década do século, percorrendo os espaços da boêmia
acadêmica da época e fixando detalhes que Erico fez questão
de frisar.
Assim é que vemos o jovem Rodrigo a declamar versos na
poética praça da Harmonia,como outros tantos estudantes da
época, ou fazer "farras" no cabaré do célebre "Lulu dos Caça
dores",ou de como ele,o moço rico, namorava as meninas mais
pobres da Cidade Baixa... Suas leituras são as de sua geração e
constam nos catálogos da livraria Americana, ponto de encon
tro da elite culta e elegante, na Rua da Praia dofooting local.
Rodrigo respira o clima de uma geração politizada e se es
teve do lado civilista em 1909, ano de seu retorno a Santa Fé,
contrariando o apoio do Partido Republicano Rio-grandense a
Hermes da Fonseca,ficamos depois sabendo, pelo que se nar
ra na obra, que freqüentou o Catete e foi um dos grandes ho
mens do governo getulista no Rio, no põs-30...
40
Este Rodrigo Cambará moderno e que toma o passo das
coisas do seu tempo é alguém, contudo, que traz consigo as
marcas do passado. Particularmente o atrai a figura carismática
de seu bisavô, morto na conquista do Sobrado,em 1836. É em
tomo desta figura e de um Rio Grande que existiu-seja nafama,
na lenda, no mito, na tradição ou mesmo nas ações concretas,
retrabalhadas pela memória-,que Rodrigo-doutor se situa,como
herdeiro e continuador da estirpe, reatualizando o modelo.
E em função desta imagem referencial que ele volta os seus
pensamentos para fixar correspondências. Rostand lhe aponta
o caminho, e é na figura de Cyrano de Bergerac que Rodrigo
encontra a identificação daquele valor mais alto que deve lhe
pertencer:
41
cedor. os sinais das perdas, de final de uma época,irrompem a
todo momento na narrativa.
É na virada do século que o menino Rodrigo abandona a
infância e se torna homem,levado pelo irmão Toríbio à casa da
prostituta Noca, marcando assim a emergência de uma nova
temporalidade. Trânsito este marcado ainda pelo incidente do
cemitério, no qual os meninos presenciam a violação de um
túmulo e que renova a idéia da morte no pesadelo de Rodrigo,
que, neste momento,inicia uma nova etapa de sua vida (Verís
simo, 1996,v.l, p.67).
A volta do diplomado Rodrigo a Santa Fé, em 1909, é per
passada mais uma vez pela emergência do onírico que fala da
morte: diante do cemitério por onde o trem passa, a visão fan
tasmagórica da cabeça de um degolado faz emergir o Rio Gran
de bárbaro no mundo culto e civilizado do jovem doutor (Ve
ríssimo, 1996,v.l, p.68).
Sua estréia na política,endossando a campanha civilista pela
eleição de Rui Barbosa e denunciando o fraudulento e viciado
sistema eleitoral, se faz acompanhar de um desejo intenso de
mudar Santa Fé, modernizando a acanhada cidade natal, assim
como do propósito de realizar uma medicina social, dirigida para
os pobres. Este é o Rodrigo auto-suficiente, que se deleita na
contemplação do seu retrato e com ele dialoga, a tal ponto entra-
nhado com o seu duplo que chega a se esquecer de que o retra
to tem um autor!(Veríssimo, 1996,v.2, p.402)O retrato é ele pró
prio,é um seu outro eu,e Pepe,o pintor, é mero detalhe.
A nova geração,contudo,é corroída em seus princípios desde
já: advoga a medicina social, mas os pobres cheiram mal, e lhe
horroriza a possibilidade de ter um filho com uma chinoca da
estância(Veríssimo, 1996,v.1, p.193)e reluta em aceitar o roman
ce de seu paicom outra Caré(Veríssimo, 1996,v.l, p.l71), mem
bro desta estirpe de desvalidos que Érico faz cruzar-se com a li
nhagem dos Terra-Cambará ao longo de toda a obra.
Ruptura simbólica com o passado, na adesão política à dis
sidência que apoia a candidatura Rui Barbosa, mas suas práti-
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cas são e serão, em síntese, parecidas em termos de "autorita
rismo ilustrado", o que o levará no futuro a afirmar-se com um
dos pró-homens do Estado Novo.
Fascinação pelo progresso e amor pela cultura deste jovem
doutor com a cabeça em Paris e os pés em Santa Fé, mas que
não consegue transformar a si mesmo e que morre um pouco
cada dia, deixando de honrar o penacho...
Os sinais de que algo se encerra e se acaba acompanham as
mudanças que inauguram novas etapas da vida de Rodrigo. Daí
tantos réveillons no romance,ou tantas passagens de ano: a de
1899,com o menino que quer ser homem;a de 1909,com o moço
que declara seu amor à virgem pura com a qual se casa e que faz
nesta noite de réveillon proezas de espadachim na rua em nome
do civilismo. Esta passagem de ano é fundamental, pois nela o
moço que prometera fazer de sua farmácia a"casa dos pobres"e
jurara um dia visitar Paris arrremataria a noite com esta silenciosa
profissão de fé:"Eu creio em mim mesmo.Deus que me perdoe,
mas eu creio é no Dr. Rodrigo Terra Cambará"(Veríssimo, 1996,
v.l,p.l84).
O ano seguinte - 1910- seria também ele assinalado por
uma conjunção emblemática de acontecimentos: o noivado de
Rodrigo com Flora dá-se no mesmo dia em que passava o co
meta Halley! Coincidência que trouxera uma ligeira decepção
ao doutor Rodrigo, que, inadvertidamente, marcara a data do
noivado para este dia, pois sua intenção mesmo seria obscure-
cer o cometa que ameaçava destruir o mundo... Um mundo,na
realidade, que lentamente ruía, mas no qual o pincel de Dom
Pepe conseguira reter na sua fulguração máxima aquele que
chamou "e/favorito de los dioses"(Veríssimo, 1996,v.2, p.395).
E ainda no final deste ano que Rodrigo faz a sua despedida de
solteiro e que reafirma a sua auto-imagem diante do retrato, ci
tando Rostand:
Je recule,
Ebloui de me voir moi-même tout vermeil
43
Et d'avoir, moi, Le Coq, fait lever le soleil. (Veríssimo, 1996,
V.2, p.4l9)
44
Sua estratégia é falar daquele real pela via do simbólico e, desta
forma, a escolha e a indicação de datas não se dá por acaso.
Sintomaticamente,é no ano de 1915 que se abre o capítu
lo da derrocada que se ultima, acintosamente, sob o signo da
tragédia. Tem razão o padre Astolfo, quando vaticina o fim e lhe
apresenta a figura do "anjo da morte": "Às vezes a sombra do
Anjo se projeta no nosso caminho,e nós nos recusamos a com
preender o aviso"(Veríssimo, 1996,v.2, p.492).
A sombra do anjo - título do capítulo - parece já pairar
sobre o Dr. Rodrigo triunfante,que se recusa neste momento a
pensar que um dia pode vir a morrer. Quando ele se refere à
vida e à presença de Deus, na conversa com o padre, é para
usar a imagem de um jogo de xadrez,onde Deus movimentaria
as pedras, mas passaria a ilusória impressão de que estas tinham
autonomia para se deslocar (Veríssimo, 1996, v.2, p.491). Ape
sar da bela imagem utilizada, o Dr. Rodrigo, na verdade, nela
não acredita e considera que o xadrez da vida é, para ele, uma
partida já ganha!
Os sinais do anjo,contudo,já haviam se feito anunciar:do
cometa à morte de Fandango, a morte se instala em todos os
lados. O assassinato de Pinheiro Machado-e mais uma vez Eri-
co faz irromper o registro do fato histórico na ficção - lembra
que findou uma época para o Rio Grande. Tal como com Fan
dango,ali morria"um certo Rio Grande",com seus vícios e suas
virtudes, com suas glórias e pecados.
O ciclo das quedas, porém,não se acha completo,e é com
o suicídio de Toni, a alemãzinha amante de Rodrigo Cambará,
que o círculo da tragédia se fecha. Sem coragem para assumir a
amante e o filho que esta espera, Rodrigo se considera respon
sável pela morte de Toni e, no delírio da culpa, sonha com a
própria morte, não mais uma fatalidade, mas um dever social...
(Veríssimo, 1996,v.2, p.589)
O romance se encerra tal como iniciou, com Rodrigo em
luta com o anjo, traidor de si mesmo, do Rodrigo do retrato,
como dizia Dom Pepe (Veríssimo, 1996,v.2, p.600).
45
Ao longo de sua obra, Erico Veríssimo nos apresenta um
panorama entrecortado de temporalidades, que se sucedem e
ao mesmo tempo se cruzam e através dos quais perseguimos a
idéia da mudança. Entendemos que há, da parte do autor, uma
visão melancólica do processo em curso. É uma história de per
das, perdas estas que se assinalam e emergem durante a pró
pria ascensão do personagem central do romance.A rigor,o anjo
da morte esteve a acompanhar toda a narrativa, anunciando o
seu fim.
Erico parece cético e pessimista quanto ao resultado da
empresa daquela geração que empolga o poder em 30. O saldo
é negativo, há uma estrutura viciada que persiste e que impede
a renovação. Cada mudança assinala uma perda, mas que não é
só do passado.
Se morre Pinheiro Machado,homem símbolo de uma épo
ca, os que se seguirão não lhe estarão à altura. Não há exata-
mfente uma"nova revolução" a cumprir-se, e parece que a idéia
de Sérgio Buarque de Holanda de que é preciso romper com o
velho para fazer surgir o novo não tem esperança para Erico.
Desta vez, o Negrinho do Pastoreio parece que vai falhar.
Não queremos afirmar que a visão de Erico assuma a idéia do
sentido da história e que, no caso em pauta,seria absolutamen
te pessimista e fatal. Embora a "sina" apareça freqüentemente
na obra, tanto em O Continente como em O retrato^ verbaliza
da com fatalismo pelos subalternos da narrativa, afirmar o en
dosso do destino inexorável pelo escritor gaúcho seria atribuir-
lhe posturas que não parece assumir.
Mas a conjuntura de 30,com a sua faceta de aceleração de
um tempo, colocou em cena tanto a emergência do fascismo
quanto o comprometimento da democracia. Se as escritas são
datadas, as expectativas de Erico no final dos anos quarenta são
menores do que as de Sérgio nos anos trinta.
Be uma certa forma, o passado condena e se impõe, difi
cultando a emergência de uma prática política nova que permi
ta a construção da democracia no País, promessa de 30 que fi-
46
cara no ar e não fora cumprida. Se os "homens cordiais" e os
"caudilhos bárbaros" comprometem o futuro,é possível salvar
o tempo passado?
Sim, se ele for reintegrado na construção de um processo
identitário dotado de uma carga de positividade que compense
as perdas do presente e coloque dúvidas no futuro.^ O horizon
te da temporalidade se inverte e se fixa no passado.^ O tempo
perdido é salvo pela memória, que o evoca de forma discrimi
natória,e pela celebração da experiência, que se dá também de
forma seletiva.
Pode parecer heresia dizer que a narrativa ficcional de Eri-
co se atrele a este viés, que coloca num passado atemporal e
glamourizado o padrão de referência identitário do Rio Gran
de, mas Erico é filho de seu tempo, e sua escritura é datada.
Entendemos que perpassa pela sua obra o delineamento de
certos valores e "defeitos bonitos", que fazem do gaúcho um
arquétipo sedutor e que dão, ao menos, uma "compensação
simbólica" para perdas reais.
Naforma de escapismo que a ficção proporciona, ninguém
melhor do que Erico para fixar, através da literatura, a "atmos
fera histórica" do passado do Rio Grande,onde mesmo a dure
za e a barbárie vêm revestidas de charme.
Se os Rodrigos da história - o capitão e o médico — são
fortes na fala e no gesto, mas fracos no caráter e no resultado
de seus atos,eles permanecem,em última instância,sedutores,
alinhando-se à sombra do mito don-juanesco. O saldo dá a im
pressão de que, apesar de tudo, o passado é que era bom e lá
se abrigavam valores.
47
Enveredar por este caminho, porém,implica trazer para o
discurso outras histórias que não se encerram nos limites desta
leitura de sua obra.
Referências bibliográficas
48
Chiara \^ngeli8ta
Cláudio Bertolli Fillio
Edgar Salvadori De Decca
Ettore Eiiiazzi-Agrò
Elávio Aguiar
Jacques Leenliardl
José Carlos Sebe Bom Meiliy
Ligia Chiappini
Mônica Raisa Schpun
Roberto Vecchi
Sandra Guardini I Vasconcelos
Sandra Jatab)'Pesavento(Org.)
Walnice Nogueira Gahio
Zilda Márcia Grícoli lokoi
Editora
da Universidade
Unlvcfsidado Fedord do Rio Grande do Sul