Você está na página 1de 26

I

Diálogos da Historia
i;30M A Literatura
íandra JATAm'Pesavtsnto
)rganiz.^dora. _
í

Diálogos da Histórl^
COM A Literatura
S.-v\'DR\ JAT.Ain- Pesam-N-ro
Ol<Ci.\NIZ.\130R\
© dos autores
1^ edição: 2000

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federai do Rio Grande do Sul

Capa e projeto gráfico: Caria M. Luzzatto


liustração da capa: infografismo sobre a obra
A nau dos loucos, de Hieronymus Bosch
Revisão:' Najára Machado
Luciane Leipnitz
Editoração eietrônica: Ciáudia Bittencourt

L533 Leituras cruzadas: diálogos da história com a literauira /


organizado por Sandra Jatahy Pesavento. - Porto
Alegre : Ed. Universidade/UFRGS, 2000.

1. Literatura brasileira - História. I. Pesavento,


Sandra Jatahy. 11. Título.

CDU 869.0(81):93

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/1023

ISBN 85-7025-536-^
Sumário

Apresentação / 7

Parte 1
Discussão em torno o'O retrato, de Erico Veríssimo
O retrato de Rodrigo Cambará / 13
JacquesLeenhardt
A temporalidade da perda /31
(leitura de O retrato, de Erico Verissimo)
SandraJatahy Pesavento
Campo e cidade em O retrato / 49
Ligia Chiappini

Parte 2
Discussão em torno o'Os ratos, de Ch'^oNÉLio Machado
Ratos cordiais e raízes daninhas: formas da formação / 77
Roberto Vecchi
Raten/ratten. A cidade obsessiva em Os ratos j101
Ettore Finazzi-Agrò
Ratos mansos, cidades sem raízes / 117
Mônica Raisa Schpun
Papel-moeda/papel engraxado; o dinheiro nas relações sociais
Uma leitura de Os ratos e de Raízes do Brasil/ 143
Chiara Vangelista

Parte 3
Discussão em torno da obra de Sérgio Buarque de Hoi^anda
Teoria e método históricos em Raízes do Brasil/ 169
Edgar Salvadori de Decca
A fortuna crítica de Sérgio Buarque de Holanda / 191
Walnice Nogueira Galvão

Parte 4
Diálogos na e sobre a década de 30:
Antônio Cândido, Sérgio Buarque de holanda.
Giro dos anjos, Gassiano Ricardo e Monteiro Lobato
Brusco lampejo. Digressão sobre a presença de Erico Verissimo
em Brigada ligeira, de Antônio Cândido /215
Flávio Aguiar
Um burocrata lírico
(sobre OAmanuense Belmiro, de Ciro dos Anjos)/225
Sandra Guardini T. Vasconcelos
Sérgio Buarque e Gassiano Ricardo:
confrontos sobre a cultura e o estado brasileiro /237
Cláudio Bertolli Filho
Jeca Tatu contraposto aos Parceiros do Rio Bonito:
diálogos entre Lobato e Cândido /255
ZildaMárcia Grícolilokoi
O seqüestro do regionalismo caboclo
ou Antônio Cândido e a sublimaçâo da década de 1930/271
José Carlos Sebe Bom Meihy

I /
Apresentação

Agora tu, Calíope, me ensina...


...poderia ter dito Ciio à musa sua irmã,parodiando Camões
no seu apelo à inspiradora da poesia épica...
Sim, porque Calíope pode "ensinar" à Ciio, e vice-versa,
num tempo como o nosso,de confluente diálogo entre as dife
rentes disciplinas ou campos do saber.
Tal como as musas,que participam da construção do mun
do, na medida em que "criam" aquilo que cantam, história e
literatura são formas de "dizer" a realidade e, portanto, parti
lham esta propriedade mágica da representação que é a de re
criar o real, através de um mundo paralelo de sinais, constituí
dos de palavras e imagens.
Neste sentido, não são só os atributos das musas, os ele
mentos intercambiáveis-a trombeta da fama de Ciio, a tábua e
o estilete de Calíope -, mas a própria capacidade de partilhar e
cruzar formas de percepção e conhecimento sobre o mundo.
É claro que tanto a história como a literatura têm métodos
e exigências diferenciadas e que mesmo suas metas podem ser
distintas.
Mas se o historiador, na sua busca de construção de um
conhecimento sobre o mundo,quer resgatar as sensibilidades
de uma outra época, a maneira como os homens representa
vam a si próprios e à realidade,como não recorrer ao texto lite-
rário, que lhe poderá dar indícios dos sentimentos, das emo
ções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilha
dos, da gestualidade e das ações sociais de um outro tempo?
E, no caso,a literatura,como pode deixar de se voltar, tam
bém,para o resgate da narrativa histórica que,reconstruindo o
passado ou inventando o futuro, persegue a verdade como pro
jeto intelectual, revelando com isto a historicização das formas
de uma escritura que busca dar ordem ao mundo?
Parecé que as duas narrativas se empenham neste esforço
de capturar a vida, re-apresentar o real e, mesmo que as suas
estratégias de argumentação possam diferir, um diálogo ou um
cruzamento de olhares entre os domínios das duas musas pode
ser, além de gratificante, esclarecedor.
Este tem sido o projeto do grupo que, adotando o nome
de Clíope-por certo em homenagem às musas...- vem se de
dicando ao cruzamento de leituras e à análise das relações en
tre a literatura e a história.
Leituras cruzadas: diálogos da história com a literatura
resulta de uma proposta de abordagem daquele momento em
que,a partir da década de 30,se processa uma releitura do Bra
sil através do surgimento de obras propiciadoras de novos olha
res sobre a realidade nacional.
Para tanto,foram escolhidos alguns autores - Erico Verís
simo,Dyonélio Machado, Monteiro Lobato, Cassiano Ricardo e
Ciro dos Anjos -, que foram abordados a partir de um cruza
mento com trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda e Antônio
Cândido.
Desta leitura resultou -esperamos-uma contribuição no
sentido de avançar nas possíveis redescobertas do Brasil que as
leituras dos textos oferecem, além de renovar nossa intenção
em manter o diálogo entre a história e a literatura.

SandraJatahy Pesavento

/ /
Sandra Jatahy Pesavento
Universidade Federal do Rio Grande'X)Sul

A tempop^idade da perda
(leitura de oretrato, de Erico Veríssimo)

Negrinho do Pastoreio
Acendo esta veia prá ti
E peço que me devolvas
A querência que eu perdi...

Erico Veríssimo encerra seu livro O retrato com a velha


Maria Valéria a acender uma vela para o negrinho da lenda, na
intenção dos ocupantes do Sobrado:

- É pr'aquela gente achar o que perdeu. (Veríssimo, 1996, v.2,


p.611)

31
Reza a tradição popular do Rio Grande do Sul que o negri'
nho lendário é infalível na recuperação de causas, objetos e
amores perdidos: basta acender-lhe uma vela, com toda a devo
ção, e fazer o pedido, que, com o auxílio de Nossa Senhora,
sua madrinha, o "perdido" se "acha"...
O retrato é um livro que trata de perdas e de derrocadas-
Ao tratar da mudança, inverte as temporalidades, pondo ceti
cismo no novo e colocando a questão da possibilidade ou nao
de salvar o tempo passado. É por este viés que encaminhamos
a leitura desta segunda parte de O tempo e o vento, publicado
em 1948, por Erico Verissimo.
Quando do lançamento da primeira parte - O Continente
Sérgio Buarque de Holanda dizia ter seu autor realizado o
milagre, não acessível a qualquer cronista, de "reconstituir ^
atmosfera histórica onde há de banhar-se o mundo que a imagi'
nação criou"(Holanda, 1996, p.229), assim como também as-,
severou que seu "plano arquimédico" não "pertencerá nem aO
mundo da história nem ao da ficção"(Holanda, 1996, p.231)-
A obra O retrato persegue a trajetória dos Terra-Cambara,
que,na seqüência do livro anterior, contribuiu para compor um
panorama da formação histórica do Rio Grande. Retorna EricO
Verissimo com os seus tempos intercalados, trazendo o passa
do de volta pela memória dos personagens ou pela voz do naf'
rador. Estes recortes temporários, no caso, são emblemáticos
como signos de mudança e assinalam, cada um deles, não so
um começo, mas também um fim.
Nesse processo de estruturação/desestruturação que acorn-
panha o fluir da narrativa e que assinala a temporalidade da
mudança, há uma linha que persegue a trama e que e marcada
pela tragédia,fazendo com que cada elemento do novo conte
nha em si os germes da sua destruição e que cada avanço impli
que uma perda.
Escritor que recria a "atmosfera"- para usar a expressão
de Sérgio Buarque de Holanda-,os seus compromissos com a
história vão além da criação de uma mera "ambiência" de épo-
32
ca, que confere um "efeito de real" à temporalidade narrada e
que se escora, por vezes, nos preciosismos de detalhe que evi
denciam pesquisa de arquivo.
A obra de Erico é uma reflexão sobre o Rio Grande e sobre
o seu tempo,e representa um ensaio que pensa não só a parte
mas o todo. Ou seja, Erico encontra na literatura uma forma de
dizer o Brasil a partir do Rio Grande, e é por essa perspectiva
que seu texto é intercambiável, nesta conjuntura dos anos que
se seguem a 30, com o de Sérgio Buarque de Holanda,em Raí
zes do Brasil.
Há uma visão de história que aprecia a mudança, que en
cara o processo como uma construção de múltiplos atores e,
ceticamente, aponta para o peso do passado que molda um ethos
c que se apresenta como desafio. Há uma certa melancolia na
trajetória, pois o anjo da morte - da queda, da decadência, da
falência- atrela-se aos domínios de Clio. São fortes os elemen
tos que tolhem e dificultam a marcha da história. Entendemos
que este é um fio condutor da leitura e que se apresenta ao
longo de toda a obra.
Se o título do primeiro capítulo-"Rosa dos ventos" nome
do avião pilotado por Eduardo Cambará,o filho comunista de
Rodrigo, que sobrevoa Santa Fé, aponta não só para uma nova
direção, mas para um novo tempo. Há muitas outras mudanças
Cm jogo neste contexto, a assinalar rupturas e quedas.
O livro se abre em 1945,com a deposição de Vargas, a derro
cada do Estado Novo e a volta precipitada de Rodrigo Cambara do
Rio deJaneiro para Santa Fé. O encerramento do primeiro perío
do Vargas marca,por sua vez, um outro fim para a trajetória políti
ca de uma segunda geração republicana, na qual se enquadrava o
próprio Rodrigo. Na seqüência castilliista-borgista-getulista, a pro-
Posta do autoritarismo ilustrado,que do regional ao nacional gau-
chizava o Brasil, tinha um freio. Isto não impediria o retomo de
^etúlio ao poder em 1951, mas sob novas bases,que delimitaram
ym recuo dos políticos rio-grandenses no Catete. Os anos cinqüenta
iríam marcar a perda de espaço político do Rio Grande no cenário
33
nacional e acentuar a deíiasagem entre a economia gaúcha e a nova
etapa de acumulação capitalista que o Brasil inaugurava. O velho
Aderbal Quadros — o Babalo —,falido na estância, a contemplar o
avião pilotado pelo neto,que sobrevoa a cidade,é uma figura em
blemática da decadência do campo.
Mesmo que o início do romance se apresente por um qua
dro cômico-a altercação, que acaba em bofetões e ao som de um
tango de Gardel, motivada pela retirada do retrato de Getúlio da
parede de um estabelecimento comercial de Santa Fé -, é sob o
signo da tragédia que a narrativa se instala: derrocada de um mun
do e de uma geração, assim como derrocada pessoal de Rodrigo
Cambará,envolto na politicalha e nos escândalos do governo de
posto e combalido fisicamente pelos ataques do coração.
A velha geração não mais existe (Licurgo, Fandango) ou
está prestes a desaparecer, derrotada pela vida (Babalo, Liro-
ca); o próprio Dr. Rodrigo Cambará vive sua decadência políti
ca e física. Sua descendência náo promete muito: a sensibilida
de de um Floriano não supre a sua falta de energia,e a militân-
cia combatente de Eduardo impede-o de ser indulgente para
com o próprio pai. Ou seja, não há futuro que suplante o que já
foi um dia Rodrigo Terra-Cambará e que fora eternizado num
magistral retrato pelo pintor anarquista Pepe Garcia.
Mas Santa Fé não reservaria milagres para este Dorian Gray,
salvo o do pincel de Dom Pepe,que conseguiu capturar a alma
do então jovem Dr. Rodrigo,eternizando o instante. Contudo,
enquanto o Rodrigo de carne e osso ia se despojando com a
maturidade daquilo que fora fixado magicamente no quadro —
não só a beleza, mas o idealismo, a generosidade, a vontade —,
o retrato lá ficara, preservando o que fora perdido.
Numa inversão entre o real a sua representação,o bêbado
Dom Pepe afirma ser verdadeiro o retrato que aprisionava o
Rodrigo tal como ele fora um dia,sendo,o outro, um fantasma:
O Retrato é profético, é mágico, porque dentro dele está tudo:
Dom Rodrigo aos vinte e quatro anos, seu passado, seus antepas-

34
sados e também o futuro com todas as suas vitórias e derrotas.
(Verissimo, 1996, v.l, p.31)

Há uma visão de história que se insinua neste elemento cen


trai da obra. Um momento encerra em si o seu passado e,de uma
certa forma,contém o seu futuro, dando ao continuum da histó
ria a noção de processo. Cada momento abriga, portanto,um me
canismo de montagem e desmontagem de elementos, mas resta
saber se,na mudança em curso,hã um peso do referenciai de con
tingência que restringe,limita ou condiciona a livre determinação
das práticas sociais ou se hã uma historicidade na montagem e
desmontagem das circunstâncias que faz cada momento único.
Quer parecer que, quanto a esta visão de história, Sérgio
Buarque entende que não hã sentido ou destino manifesto nos
processos, assim como a transformação no tempo não se dã de
forma linear e contínua (Dias, 1998, p.22). Em artigo no qual
analisa a atualidade (e inatualidade também)de Ranke, Sérgio
Buarque de Holanda endossa a postura denunciada pelo histo-
rismo de que a história é descontínua e imprevisível(Holanda,
1979,P-43-57),implicando que hã,em cada contexto dado,uma
articulação/ desarticulação dos dados, cabendo ao historiador
desvendar unidades de sentido.
A postura de Sérgio diante da história é,como se sabe,eclé
tica, mas coerente: assumindo a idéia da mudança,trazida pelo
historismo, e admitindo que tudo é,em si, provisório, ele reco
lhe outros aportes que lhe permitam, como historiador, com
preender este processo de vir-a-ser que é o da história. Assim,
tanto incorpora o viés haudeliano da sincronia-diacronia na
mudança,quanto, para a análise da história, endossa a postura
dialética de Hegel, que o leva a postular que uma nova situação
se gesta da anterior, numa elaboração que permite ver"os ger
mes da negação" de uma ordem inseridos nela própria e con
duzindo à sua superação(Holanda, 1969,p.134).Da mesmafor
ma,aproxima-se da estratégia weberiana,que emprega os tipos
ideais,operando com duplos de certa forma antitética para aná
lise do real(Mello e Souza, 1969, p.xiv).
35
Tal mélange não se revela, contudo,contraditória ou redu-
cionista, pois prevalece na sua análise uma dimensão plural da
realidade e a noção de que o estudo do passado tem a sua ra
zão de ser com as questões contemporâneas que se apresen
tam ao historiador.
Neste caso, poderíamos nos perguntar se a apreciação de
Sérgio Buarque de Holanda sobre a obra de Erico Veríssimo,
antes aludida, baseava-se nos parâmetros de uma crítica literá
ria voltada para as questões estéticas ou se incorporava um diá
logo cimentado por uma proximidade de visões no campo da
história, no que toca ao problema da temporalidade.
Erico também escreve este volume da saga dos Terra-Cam-
bará num momento de inflexão da história do País, se não na
prática das condições concretas da existência, pelo menos na
percepção de seus contemporâneos. Ou,melhor ainda, na sen
sibilidade dos "leitores prmlegiados do social", que são os es
critores, sejam eles historiadores ou romancistas. Solapadas as
bases de uma velha ordem, o que era possível esperar para o
País? Ou,refletindo sobre uma questão anterior a esta, como se
chegar a tal ponto?
Quer parecer que Sérgio Buarque de Holanda responde a
esta última questão pela análise poliocular da formação histórica
brasileira, na qual resgata as múltiplas temporalidades, atores e
práticas sociais que compuseram o Brasil e os brasileiros. Cordi
alidade, capital, sentimento, predomínio do indivíduo sobre o
social,interpenetração do público com o privado, bacharelismo,
prestígio da palavra escrita, endosso fácil das idéias estrangeiras,
amor aos símbolos concretos e icônicos do poder e do prestígio
e um "secreto horror à realidade"(Holanda,1969,p.118)seriam
traços que haviam moldado o ethos e o "caráter nacional"...
A crise contemporânea a Sérgio Buarque de Holanda-ten
do em vista que spa obra é publicada em 1936-é a da supera
ção desta ordem tradicional, de base colonial agrária, para uma
nova,identificada com o urbano,que dá nascimento ao moder
no. Esta seria, diz o autor, a "nossa revolução":

36
Essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem, por
sua vez, os fundamentos personalistas e, por menor que o pa
reçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social.(Ho
landa, 1969, p.l35)

Parece-nos ciara a alusão ao "getulismo",e,em nota de ro


dapé que se segue, na ordem das reflexões traçadas, o autor
alerta para a manipulação do voto das classes trabalhadoras
pelas "forças retrógradas representativas do velho caudilhismo
platino", que, por sua vez, se alimentavam inspiradas em mo
delos totalitários europeus(Holanda, 1969,p.l36).
Entram em cena, pois, os gaúchos autoritários do Sul,for
ça retrógrada na opinião do autor, que publica às vésperas da
decretação do golpe de 1937.
Por seu lado, Erico publica sua obra na derrocada do Esta
do Novo.Ascensão e queda, mudanças em curso, descontinui-
dades de um processo que se renova, mas que arrasta as mar
cas do passado.
Para Sérgio, a história não tem um fim previsível, mas "as
formas superiores da sociedade"e a força do "espírito"indicam
o caminho das rupturas necessárias. O fantasma do fascismo ron
da, um "demônio pérfido e pretensioso obscurece a visão e a
ação dos homens"(Holanda, 1969,p.l42), mas há caminhos para
uma reação-revolução. A história não é nem predeterminada
nem um processo acabado, mas, para que nasça o novo,o"ou
tro deve ser rompido".
Em Erico, a escrever ex-post a ascensão e queda do Estado
Novo,há mais perdas em jogo,e também há um peso maior do
passado, daí uma linha de tragédia que acompanha a história.
O velho pode comprometer o surgimento do novo, os vermes
do passado devoram o embrião.
Voltemos ao retrato e ao princípio mágico que, aos olhos
de Dom Pepe,fora capaz de apreender num quadro a vida no
seu apogeu.
O pintor prefere acreditar que a representação tem uma
força tal ao assumir o papel do real. Rodrigo em carne e osso

37
caminha inexoravelmente para o seu fim e trai aos poucos tudo
aquilo que pudera ser fixado no retrato. Dom Pepe Garcia acre
dita na sua representação de vida e não mais no personagem
que dele se afasta.
Rodrigo-retrato mostra em si o passado do qual ele é a sín
tese moderna,e desafia o futuro, mas nele já se antevê o princí
pio da corrosão,como se o corpo jovem já denunciasse o cadá
ver que seria. Como diria Dom Pepe, bêbado:

Vou a dizer-te um segredo. O tempo é como um verme que nos


está roendo despacito, porque é do lado de cá da sepultura que
nosotros começamos a apodrecer. Não te iludas, já estás meta
de podre, Cuca. Eu também.(Veríssimo, 1996, v.l, p.33)

Por encerrar todo este mistério, o da vida contendo o mor


to, do presente revelando o passado e indicando o futuro, o
retrato é mais "verdadeiro" que o seu modelo. Ele é a vida, o
outro é cadáver.
A história que se desenrola em retrospectiva traça os dife
rentes momentos da vida de Rodrigo, que são assinalados por
datas e elementos emblemáticos desta lenta destruição. São
cortes e rupturas que, porém,colocam em pauta aquilo que fi
cou para trás, seja como morto,seja como superação.
É pela reflexão do velho Liroca a conversa com Cuca que
as temporalidades se cruzam, marcando momentos da crise na
saga dos Terra-Cambará:

— É engraçado. Tenho a impressão que o Sobrado agora tam


bém está cercado como em 95.
— Cercado? Como?
— Sim, Cuca, sitiado. Os Cambarás estão lá dentro, acabam de
perder uma batalha e todos nós estamos aqui fora dormindo na
pontaria. (Veríssimo, 1996, v.l, p.45)

O Sobrado de 1893,sitiado pelos federalistas na revolução


da degola, sobrevivera ao cerco, com a vitória dos republica
nos, consolidando o domínio dos Cambarás, mas já o sítio de

38
1945 assistia à derrocada mais ampla de uma ordem social. Neste
momento se acentuam as perdas, mas, no processo de deca
dência, Erico insinua um reiativismo na condenação da oligar
quias. O autoritarismo à gaúcha tem um papel de dureza e de
ternura: aquele que degola é capaz de alisar a cabeça do pobre,
a violência é sinal de hombridade, e ser mulherengo é não só
desculpável, mas charmoso... Como diz Liroca,os "defeitos" de
Rodrigo eram lindos!(Veríssimo, 1996,v.l, p.46)
Se a realidade é pluridimension^ no universo do que as
pessoas pensam,as diferentes versões sobre o personagem têm
a sua validade. Todos estes "Rodrigos Cambarás" existiram a
partir das visões construídas,e em todas há uma argumentação
em cima de "provas irrefutáveis", que arrastam o personagem
para um perfil negativo ou positivo. Rodrigo é complexo, tal
como é o processo histórico, e é em si, como ator social, porta
dor de múltiplos sentidos.
Primeiro Cambará doutor, moderno,refinado,lendo e fa
lando francês, admirador de ópera e do bom vinho, Rodrigo
entusiasma-se com o que poderá fazer pelo progresso de Santa
Fé,quando retoma à capital, naquele final do ano de 1909,com
o seu diploma de médico na mão,amado e festejado por todos.
Do consultório ao jornal, passando pela farmácia, pelo gra
mofone,pelo automóvel, pela luz elétrica e pelo cinema,Rodri
go é o típico exemplo do que se chamou a segunda geração
republicana, formada no espírito do republicanismo gaúcho
saído da melhor tradição castilhista. Mas há distinções, e elas
são significativas.
Há uma proposta mais ampla destes jovens bacharéis,que
vão marcar uma inflexão na seqüência castilhista-borgista na di
reção da política do Rio Grande do Sul. Para os primeiros,trata
va-se de sufocar a oposição "maragata" (federalista) e dotar o
estado de um "modelo regional" inspirado na matriz positivis-
ta-castilhista. Isto implicava o estabelecimento de um modus
vivendi com as oligarquias que dirigiam o País, num tácito acor
do que assentava a não pretensão do Rio Grande à presidência

39

L
da Nação e o apoio à política dos governadores, com a subse
qüente legitimação do esquema "café-com-leite", em troca da
preservação da autonomia estadual e a concessão de cargos
específicos para gaúchos na esfera federal.
Este acordo não se daria sem "quebras", como nas raras
eleições presidenciais que foram disputadas(como no caso da
civilista que apresentou Rui Barbosa e que comparece no livro),
mas a verdadeira "virada" se dá com a entrada em cena desta
segunda geração republicana, que propõe uma reorientação da
política nacional e que passa a postular a presidência do País.
Quer parecer que Erico Veríssimo situa Rodrigo no seio
desta geração. Reinterpretando o castilhismo e a herança posi
tivista, criticando, velada ou abertamente, Borges de Medeiros
ou a ele se unindo para tomar depois o controle da situação.
Sua proposta é mais ampla e visa ao nacional, incorporando
estratégias outras que não as da ortodoxia positiva- nacionali
zando o Rio Grande -, eles irão depois "gauchizar" o Brasil.
O recém-formado doutor Rodrigo, nas suas evocações, re
memora os passos de suajeunesse dorée na Porto Alegre da
primeira década do século, percorrendo os espaços da boêmia
acadêmica da época e fixando detalhes que Erico fez questão
de frisar.
Assim é que vemos o jovem Rodrigo a declamar versos na
poética praça da Harmonia,como outros tantos estudantes da
época, ou fazer "farras" no cabaré do célebre "Lulu dos Caça
dores",ou de como ele,o moço rico, namorava as meninas mais
pobres da Cidade Baixa... Suas leituras são as de sua geração e
constam nos catálogos da livraria Americana, ponto de encon
tro da elite culta e elegante, na Rua da Praia dofooting local.
Rodrigo respira o clima de uma geração politizada e se es
teve do lado civilista em 1909, ano de seu retorno a Santa Fé,
contrariando o apoio do Partido Republicano Rio-grandense a
Hermes da Fonseca,ficamos depois sabendo, pelo que se nar
ra na obra, que freqüentou o Catete e foi um dos grandes ho
mens do governo getulista no Rio, no põs-30...

40
Este Rodrigo Cambará moderno e que toma o passo das
coisas do seu tempo é alguém, contudo, que traz consigo as
marcas do passado. Particularmente o atrai a figura carismática
de seu bisavô, morto na conquista do Sobrado,em 1836. É em
tomo desta figura e de um Rio Grande que existiu-seja nafama,
na lenda, no mito, na tradição ou mesmo nas ações concretas,
retrabalhadas pela memória-,que Rodrigo-doutor se situa,como
herdeiro e continuador da estirpe, reatualizando o modelo.
E em função desta imagem referencial que ele volta os seus
pensamentos para fixar correspondências. Rostand lhe aponta
o caminho, e é na figura de Cyrano de Bergerac que Rodrigo
encontra a identificação daquele valor mais alto que deve lhe
pertencer:

Quelque chose que sans un pli, sans une tache,


J'emporte malgré vous, et c'est mon panache. (Veríssimo,
1996, v.l, p.55)

E ainda Rostand quem fornece a outra imagem portadora


de significado com a qual se associa a figura de Rodrigo jovem
e que dá nome à parte do livro que percorre a trajetória, no seu
apogeu: Chantecler.
A peça de Rostand,encenada com sucesso no Teatro Por
te Saint Martin, em Paris, é noticiada pelo Correio do Povo e
lida com avidez por Rodrigo (Veríssimo, 1996, v.2, p.306).O
galo que acredita que o sol só se ergue com o seu canto é bem
a imagem do jovem Rodrigo, ciente da sua sedução, do seu
poder, da sua inteligência, do seu físico e da sua posição soci
al. Um Rodrigo que quer conquistar o mundo mantém alto seu
panache, revivendo, de forma moderna, a glória passada do
façanhudo capitão.
Ao contrário do Chantecler de Rostand,ainda não chegou
o tempo em que Rodrigo compreenda que o sol pode nascer
sem que ele cante. Ele é ainda todo-poderoso e confiante, mas
jã traz os sinais de que vai trair este passado que fantasmagori-
camente lhe aparece como real. Mesmo quando jovem e ven-

41
cedor. os sinais das perdas, de final de uma época,irrompem a
todo momento na narrativa.
É na virada do século que o menino Rodrigo abandona a
infância e se torna homem,levado pelo irmão Toríbio à casa da
prostituta Noca, marcando assim a emergência de uma nova
temporalidade. Trânsito este marcado ainda pelo incidente do
cemitério, no qual os meninos presenciam a violação de um
túmulo e que renova a idéia da morte no pesadelo de Rodrigo,
que, neste momento,inicia uma nova etapa de sua vida (Verís
simo, 1996,v.l, p.67).
A volta do diplomado Rodrigo a Santa Fé, em 1909, é per
passada mais uma vez pela emergência do onírico que fala da
morte: diante do cemitério por onde o trem passa, a visão fan
tasmagórica da cabeça de um degolado faz emergir o Rio Gran
de bárbaro no mundo culto e civilizado do jovem doutor (Ve
ríssimo, 1996,v.l, p.68).
Sua estréia na política,endossando a campanha civilista pela
eleição de Rui Barbosa e denunciando o fraudulento e viciado
sistema eleitoral, se faz acompanhar de um desejo intenso de
mudar Santa Fé, modernizando a acanhada cidade natal, assim
como do propósito de realizar uma medicina social, dirigida para
os pobres. Este é o Rodrigo auto-suficiente, que se deleita na
contemplação do seu retrato e com ele dialoga, a tal ponto entra-
nhado com o seu duplo que chega a se esquecer de que o retra
to tem um autor!(Veríssimo, 1996,v.2, p.402)O retrato é ele pró
prio,é um seu outro eu,e Pepe,o pintor, é mero detalhe.
A nova geração,contudo,é corroída em seus princípios desde
já: advoga a medicina social, mas os pobres cheiram mal, e lhe
horroriza a possibilidade de ter um filho com uma chinoca da
estância(Veríssimo, 1996,v.1, p.193)e reluta em aceitar o roman
ce de seu paicom outra Caré(Veríssimo, 1996,v.l, p.l71), mem
bro desta estirpe de desvalidos que Érico faz cruzar-se com a li
nhagem dos Terra-Cambará ao longo de toda a obra.
Ruptura simbólica com o passado, na adesão política à dis
sidência que apoia a candidatura Rui Barbosa, mas suas práti-

42
cas são e serão, em síntese, parecidas em termos de "autorita
rismo ilustrado", o que o levará no futuro a afirmar-se com um
dos pró-homens do Estado Novo.
Fascinação pelo progresso e amor pela cultura deste jovem
doutor com a cabeça em Paris e os pés em Santa Fé, mas que
não consegue transformar a si mesmo e que morre um pouco
cada dia, deixando de honrar o penacho...
Os sinais de que algo se encerra e se acaba acompanham as
mudanças que inauguram novas etapas da vida de Rodrigo. Daí
tantos réveillons no romance,ou tantas passagens de ano: a de
1899,com o menino que quer ser homem;a de 1909,com o moço
que declara seu amor à virgem pura com a qual se casa e que faz
nesta noite de réveillon proezas de espadachim na rua em nome
do civilismo. Esta passagem de ano é fundamental, pois nela o
moço que prometera fazer de sua farmácia a"casa dos pobres"e
jurara um dia visitar Paris arrremataria a noite com esta silenciosa
profissão de fé:"Eu creio em mim mesmo.Deus que me perdoe,
mas eu creio é no Dr. Rodrigo Terra Cambará"(Veríssimo, 1996,
v.l,p.l84).
O ano seguinte - 1910- seria também ele assinalado por
uma conjunção emblemática de acontecimentos: o noivado de
Rodrigo com Flora dá-se no mesmo dia em que passava o co
meta Halley! Coincidência que trouxera uma ligeira decepção
ao doutor Rodrigo, que, inadvertidamente, marcara a data do
noivado para este dia, pois sua intenção mesmo seria obscure-
cer o cometa que ameaçava destruir o mundo... Um mundo,na
realidade, que lentamente ruía, mas no qual o pincel de Dom
Pepe conseguira reter na sua fulguração máxima aquele que
chamou "e/favorito de los dioses"(Veríssimo, 1996,v.2, p.395).
E ainda no final deste ano que Rodrigo faz a sua despedida de
solteiro e que reafirma a sua auto-imagem diante do retrato, ci
tando Rostand:

Je recule,
Ebloui de me voir moi-même tout vermeil

43
Et d'avoir, moi, Le Coq, fait lever le soleil. (Veríssimo, 1996,
V.2, p.4l9)

O débacle está ainda assinalado em outras portas que se


fecham, mas que deixam emergir o passado, como um fantas
ma a irromper naquele mundo que se quer moderno. Por oca
sião da morte de Fandango, Rodrigo, num ímpeto,faz um dis
curso tocante no enterro do velho gaúcho que todos amavam:

Morreste como querias: de pé e de repente. Não eras um ho


mem, mas também um símbolo — um símbolo deste velho Rio
Grande indomável, meio rude, mas cavalheiro e bravo, eras o
representante duma estirpe antiga e nobre, que hoje está cor
rendo o risco de se acabar. (Veríssimo, 1996, v.2, p.368)

O discurso emocionado enterra "um certo Rio Grande",


aquele das guerras de fronteira, dos cavaleiros indômitos, da
rudeza espartana, dos valores da honra. Sintomaticamente, o
moço da cidade enuncia o contorno identitário regional que,
logo depois-em 1912,com a fundação do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul -, assumiria foros legais. Re
colhendo textos e imagens do tempo do Partenon Literário, do
século XIX,a nova instituição legitimaria o estereótipo regional
e oficializaria uma história repleta de "Fandangos" e "Capitães
Rodrigo"^.
Paradoxalmente, é o moço civilizado e progressista que
assume o discurso de saudade por um Rio Grande que se foi e
no qual reconhece valores telúricos. É bem verdade que Erico
assinala que o jovem doutor,ao chorar,revela mais emoção com
as palavras que diz e com a teatralização do momento do que
com a morte do amigo... Também fica evidente que tais senti
mentos nobres e valores aludidos no discurso não seriam exa
tamente os perseguidos pelo talentoso Rodrigo na sua carreira
ascendente. Um pouco de Chantecler era enterrado com Fan
dango no alto da coxilha...
Sem dúvida,o valor da literatura não está em conferir os da
dos do real com o texto de ficção e assim atestar a sua verdade.

44
Sua estratégia é falar daquele real pela via do simbólico e, desta
forma, a escolha e a indicação de datas não se dá por acaso.
Sintomaticamente,é no ano de 1915 que se abre o capítu
lo da derrocada que se ultima, acintosamente, sob o signo da
tragédia. Tem razão o padre Astolfo, quando vaticina o fim e lhe
apresenta a figura do "anjo da morte": "Às vezes a sombra do
Anjo se projeta no nosso caminho,e nós nos recusamos a com
preender o aviso"(Veríssimo, 1996,v.2, p.492).
A sombra do anjo - título do capítulo - parece já pairar
sobre o Dr. Rodrigo triunfante,que se recusa neste momento a
pensar que um dia pode vir a morrer. Quando ele se refere à
vida e à presença de Deus, na conversa com o padre, é para
usar a imagem de um jogo de xadrez,onde Deus movimentaria
as pedras, mas passaria a ilusória impressão de que estas tinham
autonomia para se deslocar (Veríssimo, 1996, v.2, p.491). Ape
sar da bela imagem utilizada, o Dr. Rodrigo, na verdade, nela
não acredita e considera que o xadrez da vida é, para ele, uma
partida já ganha!
Os sinais do anjo,contudo,já haviam se feito anunciar:do
cometa à morte de Fandango, a morte se instala em todos os
lados. O assassinato de Pinheiro Machado-e mais uma vez Eri-
co faz irromper o registro do fato histórico na ficção - lembra
que findou uma época para o Rio Grande. Tal como com Fan
dango,ali morria"um certo Rio Grande",com seus vícios e suas
virtudes, com suas glórias e pecados.
O ciclo das quedas, porém,não se acha completo,e é com
o suicídio de Toni, a alemãzinha amante de Rodrigo Cambará,
que o círculo da tragédia se fecha. Sem coragem para assumir a
amante e o filho que esta espera, Rodrigo se considera respon
sável pela morte de Toni e, no delírio da culpa, sonha com a
própria morte, não mais uma fatalidade, mas um dever social...
(Veríssimo, 1996,v.2, p.589)
O romance se encerra tal como iniciou, com Rodrigo em
luta com o anjo, traidor de si mesmo, do Rodrigo do retrato,
como dizia Dom Pepe (Veríssimo, 1996,v.2, p.600).

45
Ao longo de sua obra, Erico Veríssimo nos apresenta um
panorama entrecortado de temporalidades, que se sucedem e
ao mesmo tempo se cruzam e através dos quais perseguimos a
idéia da mudança. Entendemos que há, da parte do autor, uma
visão melancólica do processo em curso. É uma história de per
das, perdas estas que se assinalam e emergem durante a pró
pria ascensão do personagem central do romance.A rigor,o anjo
da morte esteve a acompanhar toda a narrativa, anunciando o
seu fim.
Erico parece cético e pessimista quanto ao resultado da
empresa daquela geração que empolga o poder em 30. O saldo
é negativo, há uma estrutura viciada que persiste e que impede
a renovação. Cada mudança assinala uma perda, mas que não é
só do passado.
Se morre Pinheiro Machado,homem símbolo de uma épo
ca, os que se seguirão não lhe estarão à altura. Não há exata-
mfente uma"nova revolução" a cumprir-se, e parece que a idéia
de Sérgio Buarque de Holanda de que é preciso romper com o
velho para fazer surgir o novo não tem esperança para Erico.
Desta vez, o Negrinho do Pastoreio parece que vai falhar.
Não queremos afirmar que a visão de Erico assuma a idéia do
sentido da história e que, no caso em pauta,seria absolutamen
te pessimista e fatal. Embora a "sina" apareça freqüentemente
na obra, tanto em O Continente como em O retrato^ verbaliza
da com fatalismo pelos subalternos da narrativa, afirmar o en
dosso do destino inexorável pelo escritor gaúcho seria atribuir-
lhe posturas que não parece assumir.
Mas a conjuntura de 30,com a sua faceta de aceleração de
um tempo, colocou em cena tanto a emergência do fascismo
quanto o comprometimento da democracia. Se as escritas são
datadas, as expectativas de Erico no final dos anos quarenta são
menores do que as de Sérgio nos anos trinta.
Be uma certa forma, o passado condena e se impõe, difi
cultando a emergência de uma prática política nova que permi
ta a construção da democracia no País, promessa de 30 que fi-

46
cara no ar e não fora cumprida. Se os "homens cordiais" e os
"caudilhos bárbaros" comprometem o futuro,é possível salvar
o tempo passado?
Sim, se ele for reintegrado na construção de um processo
identitário dotado de uma carga de positividade que compense
as perdas do presente e coloque dúvidas no futuro.^ O horizon
te da temporalidade se inverte e se fixa no passado.^ O tempo
perdido é salvo pela memória, que o evoca de forma discrimi
natória,e pela celebração da experiência, que se dá também de
forma seletiva.
Pode parecer heresia dizer que a narrativa ficcional de Eri-
co se atrele a este viés, que coloca num passado atemporal e
glamourizado o padrão de referência identitário do Rio Gran
de, mas Erico é filho de seu tempo, e sua escritura é datada.
Entendemos que perpassa pela sua obra o delineamento de
certos valores e "defeitos bonitos", que fazem do gaúcho um
arquétipo sedutor e que dão, ao menos, uma "compensação
simbólica" para perdas reais.
Naforma de escapismo que a ficção proporciona, ninguém
melhor do que Erico para fixar, através da literatura, a "atmos
fera histórica" do passado do Rio Grande,onde mesmo a dure
za e a barbárie vêm revestidas de charme.
Se os Rodrigos da história - o capitão e o médico — são
fortes na fala e no gesto, mas fracos no caráter e no resultado
de seus atos,eles permanecem,em última instância,sedutores,
alinhando-se à sombra do mito don-juanesco. O saldo dá a im
pressão de que, apesar de tudo, o passado é que era bom e lá
se abrigavam valores.

*Não é por acaso que, no ano de 1947,formava-se em Porto Alegre o Centro de


Tradições Gaúchas (CTG).
^Registremos a feliz expressão de Luís Augusto Fischer, na análise que faz da po
esia gaúcha em Um passado pela frente (Porto Alegre: Ed. da Universidade,
1992), glosando a frase de Millôr Fernandes de que o Brasil era um país com
um brilhante passado pela frente.

47
Enveredar por este caminho, porém,implica trazer para o
discurso outras histórias que não se encerram nos limites desta
leitura de sua obra.

Referências bibliográficas

DIAS, Maria Odete Leite da Silva. Política e sociedade na obra de Sér


gio Buarque de Holanda. In: CÂNDIDO, Antônio (org.). Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Ed. Fund. Perseu Abra-
mo, 1998.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O atual e o inatual em L. von Ranke.
Introdução. In: FERNANDES, Florestan (org.). Ranke, Leopold von.
História. São Paulo: Ática, 1979.
Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
O tempo e o vento. In: PRADO, Antônio Arnoni (Org.). O
espírito e a letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MELLO E SOUZA, Antônio Cândido de. O significado de Raízes do
Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1969.
veríssimo, Erico. O retrato. São Paulo: Globo, 1996. v.2. p.6ll.

48
Chiara \^ngeli8ta
Cláudio Bertolli Fillio
Edgar Salvadori De Decca
Ettore Eiiiazzi-Agrò
Elávio Aguiar
Jacques Leenliardl
José Carlos Sebe Bom Meiliy
Ligia Chiappini
Mônica Raisa Schpun
Roberto Vecchi
Sandra Guardini I Vasconcelos
Sandra Jatab)'Pesavento(Org.)
Walnice Nogueira Gahio
Zilda Márcia Grícoli lokoi

Editora
da Universidade
Unlvcfsidado Fedord do Rio Grande do Sul

Você também pode gostar