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Berenice Bento

1. A flor e a letra

Homem não tece a dor


Ana Laudelina Ferreira Gomes
(Org.)

2. A ideologia do "Terceiro
Setor"
Homem não tece a dor
Gabriel Eduardo Vitullo (Org.)

3. Auta de Souza
queixas e perplexidades masculinas
Ana Laudelina Ferreira Gomes

4. Ensaios de complexidade 3
Maria da Conceição de Almeida
Alex Galeno
(Org.)

5. Homem não tece a dor


Berenice Bento

6. No limite da traição
Josimey Costa da Silva

7. O Espelho de Procrusto
Orivaldo Pimentel Lopes Júnior
Homem não tece a dor
queixas e perplexidades masculinas
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

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Editoração eletrônica
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Capa
Fabrício Ribeiro
Imagem da capa
Domínio Público (After Images)
Berenice Bento

Homem não tece a dor


queixas e perplexidades masculinas

Natal, 2015
Bento, Berenice.
Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas / Berenice Bento. –
2. ed. – Natal,. RN: EDUFRN, 2015.

220 p.

ISBN 978-85-425-0022-6

1. Masculinidade. 2. Transexualismo. 3. Identidade de gênero. I. Título.

CDD 305.3
RN/UF/BCZM CDU 3-055.1
Sumário

Apresentação......................................................................................... 7
Introdução........................................................................................... 11
1. Metodologia da pesquisa............................................................... 21
1.1 Das entrevistas......................................................................... 31
1.2 Dos entrevistados.................................................................... 35

2. Gênero: uma reflexão teórica....................................................... 47


2.1 O surgimento dos estudos de gênero................................... 48
2.2 A diferença como princípio metodológico.......................... 57
2.3 Condições metodológicas no estudo
das relações de gênero................................................................... 61
2.4 A busca de explicações universais para
a constituição dos gêneros............................................................ 63
2.4.1 Chodorow e a construção da
identidade de gênero............................................................. 63
2.4.2 O papel materno feminino e a oposição
universal entre os papéis doméstico e público................... 69
2.4.3 A mulher, a natureza e a cultura.................................. 72
2.5 Scott e a construção da categoria analítica “gênero”............ 76

3. Masculinidade hegemônica e outras masculinidades............... 81


3.1 Masculinidade e homofobia.................................................... 99

4. A emergência de uma nova subjetividade?............................... 103


4.1 A construção do habitus........................................................ 112

5. Negociação e negação em relações contraditórias................... 137


5.1 Foucault: uma concepção relacional do poder................... 139
5.2 Relacionamento igualitário................................................... 144
5.3 O diálogo e as regras silenciosas da relação........................ 147
5.4 Inversão na representação dos gêneros............................... 161

6. A ideologia individualista e as relações de gênero................... 165


6.1 A ideologia individualista e as mulheres............................. 169
6.2 A ideologia individualista e os homens............................... 172
6.3 A ideologia individualista, as mulheres e os homens........ 175
6.4 Os homens e suas histórias................................................... 186

Considerações finais........................................................................ 195


Referências........................................................................................ 203
Apresentação

A ssim é vida. Quando você imagina que o passado se foi,


ele transforma-se em agora. Mas quem disse que nossas
atenções estão voltadas para o futuro? O presente é antes de tudo
contínuas visitas ao passado. Os olhos estão voltados para os nossos
retrovisores-biográficos.
Há algum tempo alimentava o desejo de publicar minha dis-
sertação de Mestrado. Depois de relê-la, entre os efeitos secundários,
tive uma bruta crise de sinusite. Uma semana de cama. Ela estava há
mais de uma década não aos cuidados da “crítica roedora dos ratos”,
mas sob a proteção de ácaros decanos. A dissertação foi defendida
no Programa de Pós-graduação em Sociologia da UnB. Lembrei-me
com carinho de minhas reuniões de orientação com o Professor
Carlos Benedito Martins. Lembrei-me também dos risos de algumas
feministas acadêmicas, que me falaram: “Berenice, uma dissertação
sobre homens? Mas eles já escreveram a história da humanidade.
Não há nada para falar sobre eles”. Ou outro comentário: “sua disser-
tação é boa. Pena que não discute gênero”. Embora eu tenha tentado,
até hoje não sei o que tal pesquisadora entendia por gênero.
8 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A mesma estranheza aconteceu quanto defendi minha


Tese de Doutorado sobre transexualidade no mesmo Programa.
Entretanto, devo reconhecer o privilégio de ter realizado toda minha
formação na UnB e naquele Programa. Sou profundamente privile-
giada por ter estado ali. Credito os risos e piadas de corredor ao fato
da Sociologia brasileira não ter, naquele momento, nenhuma tradi-
ção em discutir masculinidades ou experiências de gênero fora dos
marcos binário. Gênero ainda era sinônimo de mulher. Minha dis-
sertação foi a primeira a discutir masculinidade na Sociologia bra-
sileira e minha Tese a primeira que elegeu a transexualidade como
tema. Esse quadro mudou substancialmente nos últimos 10 anos.
Basta uma rápida pesquisa nos anais dos Congressos da Sociedade
Brasileira de Sociologia, da Associação Brasileira de Antropologia,
dos Seminários Internacionais Fazendo Gênero. Certamente, nin-
guém mais ousaria questionar a legitimidade desses temas em uma
seleção para Mestrado ou Doutorado nas universidades brasileiras.
Passaram-se alguns anos, muitas coisas mudaram. Um
dos principais referenciais teóricos de minha dissertação migrou
de gênero: Robert W. Connell agora é uma mulher transexual e
chama-se Raewyn Connell. Mas não acredito em cortes profundos.
Certamente Robert está presente em Raewyn ou talvez Raewyn já
estivesse em Robert. Da mesma forma que ao reler estes escritos
posso notar claramente que minha Tese sobre transexualidade tam-
bém já estava em curso. O novo e velho estão entrelaçados muito
mais do que, de certo forma, gostaríamos. Daí não ter nenhum sen-
tido falar de origem quando nos remetemos ao campo das identida-
des e relações sociais.
Revisitei meus colaboradores e minhas colaboradoras. Pude
constatar a atualidade de seus dilemas e a vitalidade do referencial
teórico que utilizei. Estive em 2011 no IV Colóquio sobre Varones e
Masculinidades (Montevidéu-Uruguai). Os termos e conceitos não
Berenice Bento
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mudaram substancialmente, ainda se fala de masculinidades subal-


ternas e hegemônicas assentadas fundamentalmente nos corpos de
homens. Embora sejam perspectivas teóricas densas e com grande
alcance explicativo, observo que os estudos queer e o deslocamento
do gênero de uma referência binário/biológico ainda não chegaram
fortemente a este campo de estudo. Em termos de políticas públi-
cas, o Estado tem realizado algumas iniciativas voltadas para os
homens, principalmente no âmbito da saúde. Essas iniciativas são,
sem dúvida, um avanço e um dos efeitos dos estudos das masculini-
dades no Brasil.
No entanto, a concepção de gênero que orienta tais políti-
cas vincula masculinidade exclusivamente aos corpos nascidos com
pênis. E as mulheres que migraram do gênero feminino para o mas-
culino e que se reconhecem e lutam para serem reconhecidos social-
mente como homens? Talvez como um “castigo” por terem ousado
migrar de gênero, são os homens transexuais os grandes esquecidos
nas políticas públicas, inclusive no âmbito do processo transexuali-
zador do SUS.
Depois de reler as entrevistas dos homens e das mulheres, o
labirinto cresce. Como sair das amarras, como descobrir as teias de
Aridne que podem nos levar aos caminhos para a sobrevivência à
maquinária do gênero? Labirinto é uma imagem insuficiente para
pensar os caminhos pelos quais nós somos enredados e nos enreda-
mos na produção e reprodução dos gêneros inteligíveis. Não basta
falar de interdição e sofrimento. Qual a capacidade do sujeito sub-
verter, inventar trilhas diferentes daquelas deixadas pelos rastros e
ecos de vozes que insistem em naturalizar relações de poder histori-
camente tecidas?
Talvez fosse mais fácil pensar em termos de uma história com
início, desenvolvimento e conclusão. Felizmente, não é assim. Vou
contar-lhes histórias de homens despedaçados, que não “podem nar-
rar a dor”. Dor? Sofrimento? Angústia? Nada disso tem a ver com
o universo masculino. Será? Veremos nos relatos que tudo isso diz
10 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

respeito aos homens educados, socializados e preparados para serem


homens por suas mães e pais, irmãs e irmãos, professoras e profes-
sores, amigas e amigos. Até agora não entendo as explicações que
afirmam que a estrutura de gênero é o resultado da ordem patriar-
cal. Mulheres e homens estão totalmente implicados na produção de
um modelo de homem violento e viril. Não se trata de dizer: “vocês,
mulheres, educaram seus filhos para matar as mulheres”, mas de
pensar que a estrutura hierárquica e assimétrica de gênero faz parte
de um projeto social o qual homens e mulheres estão envolvidos na
reprodução do modelo hegemônico.
A noção de patriarcado ou patriarcalismo não tem eficácia
e coerência para explicar as múltiplas configurações entre os gêne-
ros. Ademais, vale lembrar que a categoria gênero isoladamente tem
pouco alcance explicativo. Depois das inúmeras etnografias sobre
padrões divergentes para as organizações das relações entre os gêne-
ros em diversas culturais, dos movimentos trans (travestis, transe-
xuais, transgêneros, intersexos), parece-me uma miopia analítica
pensar a humanidade em termos de unidades psíquicas universais
e de se propor modelos explicativas que deem conta de todas as
diferenças.
Essa pesquisa nega-se a qualquer tentativa de generalização.
É construída a partir de histórias de homens e mulheres concretos,
de sujeitos que encarnavam a história em discursos particulares. É
a história fazendo-se. Senti em suas narrativas a força da maquiná-
ria incansável, dedicada a produzir os gêneros como duas estruturas
corpóreas, subjetivas e sexuais radicalmente distintas. Dois gêneros:
masculino e feminino. Uma sexualidade: a heterossexualidade. Uma
simplicidade que esconde todas as tecnologias discursivas acionadas
para naturalizar os gêneros.
Introdução

E ste livro conta histórias de homens, porém não tem como


objetivo propor uma análise generalizável para as relações de
gênero no Brasil, ou mesmo para a identidade masculina. Ao con-
trário, ele fala de membros de um segmento social específico, por-
tadores de visões de mundo específicas, integrantes de uma geração
também específica.
Tento refletir sobre a identidade de gênero desse grupo de
homens à luz das transformações sociais ocorridas nas últimas déca-
das, motivada por uma dúvida: será que os homens ficaram impassí-
veis diante das mudanças propiciadas pelo ingresso das mulheres na
vida pública, do movimento feminista e da emergência da ideologia
individualista?
Partindo do geral para o específico, diria que este trabalho
assenta-se em três níveis: a relação entre subjetividade e sociedade, a
relação de gênero e, articulando estes dois níveis, ao mesmo tempo
em que oferece contornos mais visíveis, o gênero masculino.
***
12 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

O primeiro passo para construção da pesquisa foi a realiza-


ção de um levantamento bibliográfico da produção acadêmica que
discute o gênero masculino. Isto me colocou diante do primeiro pro-
blema. As ciências sociais no Brasil ainda não forjaram uma sólida
tradição acadêmica, epistemológica, em torno da questão. O estudo
das relações de gênero é hegemonizado pelo enfoque das problemá-
ticas femininas.
Constatei que a psicologia social tem um interesse maior em
entender as mudanças na identidade masculina e seus desdobra-
mentos face à Sociologia contemporânea. Em São Paulo, existem
dois grupos de reflexão temática com foco nos “estudos do homem”:
o GESMAP (Grupo de Estudos sobre Sexualidade Masculina e
Paternidade), organizado pela ECOS (Estudos e Comunicação em
Sexualidade Humana). Este grupo reúne mensalmente, por meio de
workshops, pessoas que estão trabalhando com populações masculi-
nas ou discutindo o conceito de masculinidade; e o NEGRI (Núcleo
de Estudos de Gênero, Raça e Idade), no âmbito do Programa de
Estudos Pós-graduados em Psicologia Social.
Ainda em São Paulo, o psicoterapeuta Luis Cushnir desen-
volve um trabalho de caráter mais interventivo no Hospital das
Clínicas, voltado para atender pacientes homens que encontram difi-
culdades psicológicas.
No Rio de Janeiro, o psicoterapeuta Sócrates Nolasco criou a
Associação Brasileira de Pesquisa sobre a Condição da Masculinidade
e o serviço telefônico “Pai 24 Horas” que, além de orientação via
telefone, oferece workshops, palestras, oficinas, grupos de estudos e
pesquisa.
Dos levantamentos bibliográficos realizados, conclui: 1) Além
do interesse em pesquisa pura, desenvolvida pela psicologia social,
há também a intervenção, por meio de atendimentos a homens que
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procuram ajuda; 2) Os temas abordados são fundamentalmente três:


a sexualidade masculina, a paternidade e a violência.
O fato de a Psicologia Social ser a disciplina que mais pensa e
produz textos em torno dos estudos do homem (men’s studies), possi-
bilitou-me inferir que é na subjetividade masculina, principalmente,
onde estão ocorrendo mudanças. A Sociologia, a Antropologia e a
História tiveram maior empenho em estudar as questões referentes
à mulher, justamente porque estas, em grande parte, diziam respeito
ao “sociologicamente visível” (FIGUEIRA, 1987), como a inserção
das mulheres no mercado de trabalho, a violência física e os direitos
trabalhistas. Agora, a Psicologia dá uma contribuição destacada no
estudo da condição masculina, pois é na esfera da subjetividade mas-
culina que se nota uma maior efervescência de mudanças.
As mudanças no campo da subjetividade são mais lentas, nem
sempre acompanhando o passo da mudança social (VAITSMAN,
1994). Contudo, a Sociologia deve contribuir com o seu olhar, bus-
cando dar visibilidade para algo aparentemente invisível, que está
colocando novos desafios para o entendimento das relações sociais
de gênero. Este meu trabalho tem como finalidade propor uma inter-
pretação que busque vincular as mudanças que estão sendo gestadas
na subjetividade dos homens (Capítulo IV) entrevistados a outros
aspectos, como as relações de poder nas relações de gênero (Capítulo
V).
Em alguns países como Canadá, EUA, França, Itália e
Austrália, a produção acadêmica (principalmente a Sociologia, a
Antropologia e a Psicologia Social) e os debates públicos sobre a
masculinidade já constituem um tema reconhecido e legitimado. O
resultado concreto desse interesse pode ser observado pela quanti-
dade de grupos de homens que atuam sobre diferentes aspectos do
cotidiano.
14 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Nos EUA, alguns desses grupos são: “Maridos anônimos que


sofreram abuso”, “Introdução à liberação e opressão do homem”,
“Men’s Resource Center”, “Homens sobreviventes de abuso sexual
infantil”, “Interesse masculino na paternidade”, “A coalizão de pais
americanos”, “Centro nacional dos homens”, “Rede dos pais em casa”.
Estas são algumas das cem entidades norte-americanas que se dedi-
cam ao estudo de questões masculinas e à defesa dos interesses dos
homens. Entre estes interesses masculinos, destaca-se: como ter mais
direitos na educação dos filhos, mais chances de obter a custódia em
caso de divórcio e um leque de serviços para homens (terapias, auxí-
lio judiciário em caso de litígio, retiros de fim de semana). Os grupos
já são considerados como um movimento social denominado “movi-
mento masculista”.
Para Connell (1995), a prática desses movimentos apresenta
características que podem ser condensadas em quatro tipos de polí-
ticas: 1) Terapia da masculinidade. São homens que frequentam
consultórios de terapia e têm como objetivo resolver seus próprios
problemas existenciais. Estes são alheios a tudo que diz respeito aos
problemas sociais. A organização de retiros é uma prática muito
comum entre estes homens; 2) O lobby das armas. Homens que se
organizam para exaltar seu poder e seguem, de forma explícita, uma
pauta política antifeminista; 3) A liberação gay. As comunidades
gays têm se organizado em torno das questões referentes à AIDS,
ao mesmo tempo em que promovem uma inversão da abordagem
convencional, contestando e desmontando as identidades; 4) Política
de saída ou política transformativa. São homens que militam em
torno dos mais diversos aspectos do cotidiano, referentes à relação
entre os gêneros, como por exemplo: defendem a divisão igualitá-
ria no cuidado das crianças e no trabalho doméstico de uma forma
geral, lutam para “sair das estruturas patriarcais atuais” (CONNELL,
1995, p. 196) e defendem a participação igualitária das mulheres em
todas as esferas públicas. Nos EUA, este grupo de homens criou uma
Berenice Bento
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entidade chamada NOMAS (National Organization for Men Against


Sexism) e a revista Changing Men. Ao construir tal tipologia, Connell
tem como objetivo negar uma aparente homogeneidade na organi-
zação dos homens.
Os americanos foram um dos primeiros a pensar sobre a mas-
culinidade, inaugurando os men’s studies. Para Badinter, os homens
americanos viram-se diante de um feminismo muito mais radical e
poderoso do que, por exemplo, na França, onde

[...] a virilidade é menos contestada, a violência masculina


é menor, e os homens têm menos medo das mulheres, e
reciprocamente. Resultado: para os franceses, o problema
da masculinidade se coloca com menos acuidade do que
para os americanos, o que não impede que atormente aos
franceses, homens e mulheres1 (BADINTER, 1992, p. 7).

A organização de grupos de homens que se reúnem para dis-


cutir seus problemas é uma tendência em várias partes do mundo,
inclusive no Brasil. O Canadá tem mais de 82 grupos de homens2
e nos Estados Unidos, além de dezenas de grupos, existem mais de
duzentos departamentos de men’s studies (BADINTER, 1992, p. 191).
O fato dos homens estarem se organizando de uma forma tão
intensa nestes países corresponde a uma maior efervescência e uma
mudança mais radical nas relações de gênero3. Hoje, nos EUA, de

1 A leitura que Badinter faz das relações de gênero na França e do processo consti-
tutivo da identidade masculina em contraposição à identidade feminina é ques-
tionada por Trat (1993), que a considera excessivamente conciliatória.
2 Em Montreal desenvolveu-se um forte movimento de homens, em conjunto
com as mulheres, engajados na luta pelo fim da violência dos homens contra as
mulheres. Este movimento teve como mola impulsionadora o assassinato de 14
mulheres pelo jovem Marc Lépine, em 1989. Sobre tal massacre, ver Corneau
(1990, 1995) e Kaufman (1993).
3 Devo alertar que tal inferência não tem nenhum juízo de valor. Gostaria apenas de
fazer a relação entre organização dos grupos e mudança nas relações de gênero.
16 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

cada trinta crianças americanas, uma é criada apenas pelo pai. Esse é
o grupo familiar que mais cresce nos EUA: pais que cuidam sozinhos
dos filhos. A maioria é divorciada e conseguiram na justiça a guarda
dos descendentes.
Há uma correspondência desse interesse no meio acadê-
mico, exemplo disso é a criação do curso de graduação “Estudos do
homem e da masculinidade”, na faculdade Hobart e William Smith,
no Estado de Nova York. De 1984 a 1997, o número dos cursos uni-
versitários americanos sobre o homem contemporâneo aumentou de
40 para 509. Durante os anos 1980, os trabalhos produzidos sobre os
homens nestes países ocuparam o primeiro lugar de vendagem, ofe-
recendo um suporte para a formação e desenvolvimento de Grupos
e Associações de Homens (NOLASCO, 1993).
Da mesma forma que no Brasil, em outros países o foco de
estudo e de intervenção dá-se em torno dos mesmos eixos: sexuali-
dade, violência e paternidade. Porém, se no Brasil ainda não há um
campo científico legitimado sobre o estudo dos homens, observa-se
que há um volume muito grande de informações de cunho jorna-
lístico. O jornal Folha de S. Paulo, no seu caderno “Cotidiano”, traz
semanalmente matérias que tratam, direta ou indiretamente, sobre
o assunto. A revista Veja, na sua edição de 24 de janeiro de 1996,
trouxe como matéria de capa a crise da masculinidade, cujo título
era: “A angústia do macho: inseguro diante da mulher, preocupado
com a forma física e o desempenho sexual, o homem está acuado”.
O interesse da imprensa pelo tema não é algo muito recente.
A revista Veja, em sua edição de três de setembro de 1986, publicou
uma entrevista com o jornalista americano Anthony Astrachan, com
o título “O medo dos homens”. Astrachan falou sobre sua pesquisa
com homens e apontou para a forma violenta como estes estavam
reagindo às mudanças no comportamento das mulheres.
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Em 1987, a “Revista de Domingo” do Jornal do Brasil, apre-


sentou uma reportagem em que cita um grupo de homens que se
reúne em Santa Tereza-RJ para discutir a “maldita obrigação de ser
macho”. O entrevistado, um homem de 31 anos, fala que

Sofremos, mas poucos têm consciência disto. A obriga-


toriedade do sucesso em todos os campos (no trabalho e
na cama), a responsabilidade sobre a família e a cobrança
de uma brutalidade que não mais interessa ao homem
moderno. Reivindicamos o direito de se emocionar. A
opressão das mulheres é mais visível, a dos homens é
sutil. Nosso pênis, obrigatoriamente, deve ter dimensões
espetaculares (JORNAL DO BRASIL, 1987, s/n).

Em junho de 1987, Moacir Costa, em entrevista a Isto É, com


o título “Por um homem mais doce”, comenta que “na intimidade, o
homem não é tão forte assim”. A entrevista tem como tônica a difi-
culdade do homem expressar e assumir suas emoções, bem como
receber afeto de outras pessoas. Ele considera o ano de 1985 como
sendo marcado pelo aumento do número de homens que procura-
ram tratamento médico, tratamento psicológico e que tomam tran-
quilizantes, chegando a afirmar que o homem morre mais cedo do
que a mulher por causa de doenças cujo núcleo é a angústia, como a
úlcera, a hipertensão e o enfarte.
Em maio de 1987, O Globo, em matéria intitulada “O pai-
-mãe e a tarefa de participar das atividades domésticas”, tem como
objetivo revelar a existência de um considerável número de homens
fazendo cursos de baby-sitter para cuidar de seus filhos. Segundo a
matéria, a mesma sociedade que estimula a mulher a ter multiplici-
dade de papéis dentro e fora do casamento não incentiva o homem,
com igual intensidade, a assumir as tradicionais tarefas femininas.
Ainda em O Globo, em abril de 1987, outro artigo fala
da “Insegurança do sexo forte”. Nela, pontos como uma angústia
18 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

indefinida, um aperto momentâneo, apontam para problemas de


insegurança, em que o amoroso ocupa o primeiro plano: o temor do
desempenho sexual, o fantasma da traição que surge frente à mulher
crescida. Quando mencionam o desempenho sexual, comentam
sobre a falta de intimidade presente nas relações masculinas, dizendo
que a relação entre homens é muito menos íntima do que as amiza-
des femininas.
A pesquisa de arquivo4 realizada demonstrou que o interesse
pelo tema vem crescendo permanentemente. As questões levanta-
das pelos jornais e imprensa, geralmente, repetem-se: o homem está
acuado e perplexo com os avanços da mulher; ele quer ter direito
ao choro; há aumento da impotência sexual masculina; os homens
estão cada vez mais vaidosos; estão procurando mais o divã dos ana-
listas; querem ter o direito de falhar sexualmente e não serem vistos
ou cobrados como uma máquina sexual; estão cansados do controle
feminino. O que está por trás das queixas e reivindicações anuncia-
das nos jornais?
Depois de tantas mudanças e conquistas das mulheres nos
últimos trinta anos, e tantas outras mudanças que ocorreram nas
múltiplas relações sociais, pergunta-se: como está o homem? O que
mudou?
Embora este trabalho refira-se a um grupo específico de
homens, possivelmente contribuirá para uma reflexão das relações
de gênero e para a própria compreensão da identidade masculina, à

4 Consultei os jornais e revistas de grande circulação no Brasil (Jornal do Brasil,


jornal Folha de S. Paulo, jornal O Globo, jornal O Estado de S. Paulo, revista
Veja, revista Isto É), arquivados na biblioteca da Câmara dos Deputados. Utilizei
como referência inicial para pesquisa o ano de 1980, visto que, nesta década o
movimento de mulheres cresceu quantitativa e qualitativamente em todo Brasil.
A pesquisa de arquivo, realizada entre os meses de março a julho de 1997, teve
como objetivo, principalmente, perceber o interesse social de uma forma mais
ampla, por questões referentes ao homem.
Berenice Bento
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medida que parto da concepção de que não existe um único tipo de


masculinidade na nossa sociedade, problematizando a ideia da mas-
culinidade como uma prática homogênea. Esta pesquisa trata de um
tipo de homem que organiza sua subjetividade e suas práticas de uma
forma específica, ao mesmo tempo em que tem uma leitura singu-
lar de outras práticas de homens que compartilham seus cotidianos.
Acredito que pensar relacionalmente a construção das identidades
de gênero não deve limitar-se a tratar tal relação única e exclusiva-
mente entre homens e mulheres, mas tentar pensar como cada um
dos gêneros constrói suas identidades nas relações que estabelecem
com os membros do próprio gênero. Tal questão será desenvolvida
no Capítulo III.
***
As entrevistas realizadas com os 15 homens foram pautadas
em alguns questionamentos: 1) Quais as mudanças na subjetividade
masculina? 2) Como é equacionada a questão do poder nas relações
de gênero que negam a hierarquia? 3) Como a ideologia individua-
lista contribui para o gênero masculino pensar sua identidade?
Como desdobramento destes questionamentos, proponho
algumas possíveis respostas. A primeira questão relaciona-se com
a organização da subjetividade masculina. A possibilidade de o
homem falar de suas angústias, medos, incertezas e a liberação das
emoções por meio do choro têm sido um processo tenso, marcado
por conflitos existenciais. No Capítulo IV tentarei demonstrar como
homens que tiveram uma socialização primária, guiada por um
modelo de masculinidade identificado como tradicional, passam a
questionar tal modelo por meio de um processo de desconstrução.
Esta questão está intimamente ligada à emergência da ideologia indi-
vidualista, que “oferece” uma concepção idiossincrática da relação
subjetividade e sociedade.
20 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A segunda questão relaciona-se com o poder e será tratada


no Capítulo V. Tentarei perceber como os homens vivenciam o
poder nas relações de gênero, buscando demonstrar como as rela-
ções de poder assumem novos e contraditórios contornos, devido
à presença, nas subjetividades tanto masculina como feminina, de
uma visão de mundo identificada com o discurso igualitário entre
os gêneros. Ao mesmo tempo em que constroem uma narrativa na
qual a igualdade é saudada, que não deva haver proeminência nem
do homem nem da mulher na relação, notei que tal intenção é inter-
ceptada por outra ideologia, que reserva lugares fixos e valorizados
diferenciadamente para cada um dos gêneros.
Ao observar que mudanças estão sendo gestadas na sub-
jetividade masculina e nas relações de poder que eles estabelecem
com as mulheres, percebi que havia uma lacuna explicativa: quais
os motivos que impulsionam tais transformações? Esta será uma
terceira questão, que será tratada no Capítulo VI. Identifiquei duas
causas que se combinam e se imbricam: a ideologia individualista e
a liberação feminina. Com a emergência da ideologia individualista,
as identidades sociais tornam-se mais flexíveis e passíveis de mudan-
ças. Se isto acontece nas relações sociais de uma forma mais ampla,
na identidade masculina este quadro assume aspectos mais nítidos,
principalmente devido às conquistas e mudanças impulsionadas
pelas mulheres nas últimas décadas. Ao propor essas duas explica-
ções para os questionamentos que os homens estão vivenciando, não
quero “achatá-los” num modelo explicativo. Cada um tem sua pró-
pria história de vida.
Assim, os Capítulos IV, V e VI serão dedicados à discussão
das hipóteses desta pesquisa. No Capítulo I, o objetivo é relatar o
processo de construção da pesquisa. O Capítulo II conterá uma dis-
cussão de caráter mais teórico sobre “gênero”. No Capítulo III, abor-
darei a constituição do gênero masculino.
1
Metodologia da pesquisa

O universo dessa pesquisa é composto por quinze homens e


sete mulheres. Dos quinze homens entrevistados, quatorze
são graduados. O único que não tem formação superior é cineasta,
pois só recentemente as universidades passaram a oferecer o curso
de graduação em cinema. Dos quatorzes com graduação, treze têm
algum título de pós-graduação, seja especialização, mestrado ou
doutorado (Tabela 1). Todas as sete mulheres entrevistadas são gra-
duadas, sendo que duas têm pós-graduação (Tabela 2). Também
foram entrevistados um psicólogo e duas terapeutas sexuais. Estas
entrevistas tiveram como objetivo fazer uma sondagem dos motivos
que levam os homens a procurar o consultório de um especialista,
22 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

além de querer saber se o número de homens que procuram consul-


tório tem aumentado.
Os homens e mulheres entrevistados são pertencentes à
camada média urbana. Embora a variável econômica seja muitas
vezes apresentada como o que possibilita ao indivíduo ser consi-
derado membro de uma determinada classe social, é importante
atentar para as múltiplas realidades que coexistem sob a mesma clas-
sificação de classe social. Indivíduos podem pertencer a uma mesma
classe social, tomando-se, por exemplo, a faixa salarial e terem entre
si estilos de vida5 e concepções de mundo plurais. Há uma diversi-
dade de ethos no interior das camadas médias urbanas6. Isso implica
a coexistência, bem como a produção por parte dos indivíduos nelas
inseridas, de múltiplos códigos culturais.
Os entrevistados são pertencentes a segmentos intelectualiza-
dos e psicologizados7 da camada média urbana e têm comportamen-

5 Segundo o livro organizado por Ortiz, Bourdieu fala que “o estilo de vida é um
conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem na lógica específica
de cada um dos subespaços simbólicos [...] o gosto, a propensão e aptidão à apro-
priação (material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou
práticas classificadoras, é a fórmula generativa que está no princípio de estilo de
vida” (ORTIZ, 1983, p. 55).
6 Sobre os estudos que utilizam a categoria “camada média urbana”, ver Velho
(1981, 1985, 1986), Figueira (1985a e 1985b), Dauster (1985), Salem (1986) e
Heilborn (1984 e 1992b). Segundo Salem (1986, p. 27-28) “estes trabalhos sus-
tentam que a compreensão da lógica simbólica e dos padrões éticos não podem
ser mecanicamente deduzidos ou apreendidos a partir de critérios socioeconô-
micos [...]. Alguns autores [...] destacam o acelerado processo de modernização
pelo qual atravessou a sociedade brasileira a partir dos anos 1950. A ideologia
desenvolvimentista, o recrudescimento da influência norte-americana e o boom
da psicanálise verificado nos anos 60/70 nos grandes centros urbanos teriam
provocado alterações significativas nos valores e na visão de mundo das camadas
médias urbanas”, criando um segmento vinculado à linguagem e ao ethos psica-
nalítico, consectário da ideologia individualista.
7 Entende-se por psicologizados os indivíduos que tenham se submetido, ou se
submetam, a algum tipo de terapia, não sendo necessariamente em consultas
psicanalíticas. A expressão “psicologizado” é amplamente utilizada por Figueira
Berenice Bento
23

tos próximos a uma postura individualista. Esses dois qualitativos


indicam demarcadores importantes em termos de ethos e estilos de
vida no quadro social e demonstram a existência de fronteiras sim-
bólicas, recortando a aparente homogeneidade da designação “classe
média”.
Para Figueira (1981, 1985a, 1985b, 1987) e Velho (1979,
1981), a difusão da psicanálise no Brasil foi particularmente forte
entre os membros da classe média, o que resulta na formação de uma
“cultura psicanalítica”8. A palavra “psicanálise” e o rótulo “psicana-
lista” são cercados de prestígio. “Estar em análise” passa a ser um
símbolo de status9.

(1981, 1985a, 1985b, 1987) e Velho (1979, 1981). Está relacionada à preocupa-
cão, principalmente entre os membros das camadas médias residentes em me-
trópoles, com a busca da autocompreensão que ocorre mediante o consumo de
livros de autoajuda, terapias das mais diversas correntes, biodanca, ioga, entre
outras, sendo que muitas vezes ocorre a combinação de mais de um tipo de
“tratamento”. Ser psicologizado está associado a uma forma singular de visão de
mundo, que confere proeminência ao indivíduo e à subjetividade, assim como
atribui importância singular “à verbalização e a elaboração das emoções e ainda
que sacralize as experiências pessoais como sendo irredutivelmente únicas e sin-
gulares” (SALEM, 1986, p. 27).
8 Figueira (1985a e b), ao estudar a difusão da psicanálise, observou que, na
Inglaterra, ao contrário do Brasil, o paciente é altamente estigmatizado em vários
círculos sociais, o que o leva a manter segredo sobre suas idas ao consultório do
analista. No Brasil, a tendência para difusão da psicologia tem se aprofundado
nos últimos anos, basta ver os programas de auditório (A exemplo, Domingão
do Faustão, Márcia, Sílvia Poppovic) nos quais artistas ou pessoas das mais di-
versas classes sociais expõem publicamente seus problemas e logo depois apa-
rece um psicólogo diagnosticando, fazendo com que a “cultura da psicanálise”
(FIGUEIRA, 1985a e b) tenha se proliferado consideravelmente nos últimos
anos.
9 Utiliza-se status ou situação estamental de acordo com Weber, para o qual “a
situação estamental pode basear-se numa situação de classe de natureza unívoca
ou ambígua. Mas não se determina somente por ela: a posse de dinheiro e a posi-
ção de empresário não são, por si, qualificações estamentais – ainda que possam
levar a estas; nem a falta de patrimônio constitui, por si, uma desqualificação
estamental, ainda que também possa levar a esta. A situação estamental, por ou-
tro lado, pode condicionar em parte ou totalmente uma situação de classe, sem
ser-lhe idêntica. A situação de classe de um oficial, funcionário ou estudante,
24 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

É possível encontrar psicanálise, analistas, pacientes, teo-


rias psicanalíticas, fragmentos de pensamentos analíticos,
o ponto de vista analítico etc., em quase todos os meios de
comunicação, em anúncios, em textos de capa de disco,
em telenovelas, em entrevistas de artistas e atores [...]. A
cultura psicanalítica brasileira resulta, portanto, de um
intenso e extenso processo de difusão que levou a influ-
ência psicanalítica a muitas áreas significativas da cultura,
como os domínios acadêmicos, artísticos e do cotidiano
(FIGUEIRA, 1985a, p. 133-134).

Os colaboradores desta pesquisa fazem parte dessa cultura


psicanalítica. A exceção de Rui10, todos fazem ou fizeram as mais
variadas terapias e/ou análises: análise freudiana, junguiana, pro-
cesso Fisch e Hoffman, biodança, análise transacional. Para eles, não
seria possível romper com os “condicionamentos sociais”11 sozinhos.
Nesse sentido, o fato de terem sido interpretados, analisados, apa-
rece nos seus discursos como um processo doloroso, “enxergar-se
sem máscaras sociais, descobrir as fragilidades”, mas, por outro lado,
de grande prazer: o prazer de conhecer-se por meio da racionaliza-
ção da sua própria história. Isto lhes dá um sentimento de controle
e de garantia sobre suas ações. Assim, o prazer vem do conhecer; o
conhecer gera poder, no sentido de “ter a vida na própria mão”.

determinada por seu patrimônio, pode ser muito diversa sem que difira a situ-
ação estamental, porque o modo de vida criado pela educação é o mesmo, nos
pontos estamentalmente decisivos” (WEBER, 1991, p. 202).
10 Foram atribuídos codinomes aos entrevistados. O fato de garantir o anonimato
foi importante para deixá-los mais à vontade para discorrer sobre as questões
propostas. Por se tratar de um trabalho acadêmico, de caráter público, acredito
que, se fossem mantidos os nomes verdadeiros, provocaria constrangimentos
aos entrevistados.
11 Convencionou-se a utilização de aspas e itálico, sem maiores referências, quando
a citação dentro do texto refere-se a alguma fala dos entrevistados.
Berenice Bento
25

A tríade saber-prazer-poder que Foucault (1985) apontou


como uma marca que caracteriza as sociedades modernas, não se
limitou a construir verdades sobre o funcionamento do corpo, da
consciência, do inconsciente, ou aos quatro grandes conjuntos estra-
tégicos12. A tríade saber-prazer-poder foi entranhada pelos entrevis-
tados de diversas formas: por meio de terapias das mais diversas, de
leituras de livros de autoconhecimento, de técnicas corporais. Essa
busca pelo autoconhecimento é guiada pela certeza de que a racio-
nalização revelará o verdadeiro “eu” escondido e negado pelos con-
dicionamentos sociais.
Nas falas dos entrevistados, há um inconformismo com as
definições sociais sobre o “certo” e o “errado”. Isto não os satisfaz,
eles querem saber, querem controlar, querem descobrir o que está
escondido por trás das “máscaras sociais”.
Os homens, principalmente, separam suas vidas em dois
momentos: antes e depois da terapia. Antes, quando eram domina-
dos pelas regras e normas sociais que lhes eram impostas e depois,
quando eles começam a descobrir o seu verdadeiro “eu”, ocultado
pelas interdições sociais. Um dos entrevistados, Olavo, disse:

Depois da terapia, mudei da água para o vinho. Nossa! Eu


era um cara esquisito, chato, enjoado, fechado, não conver-
sava. O homem não fala do sentimento, a gente não conse-
gue falar. É muito difícil.

Mesmo os que não estão em terapia, que já “trabalharam”


as inseguranças e medos, demonstram ter incorporado um dis-
curso identificado com o campo da linguagem mais universalizante,

12 Segundo Foucault (1985), são quatro os conjuntos estratégicos que caracteriza as


sociedades modernas: o corpo da mulher, a pedagogização do sexo da criança, a
socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso.
26 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

próprio da psicologia. Ego, crise existencial, frustração, rejeição, cas-


tração são alguns dos termos utilizados ao longo das entrevistas.
Para Velho, a forma como os indivíduos expressam suas emo-
ções e sentimentos, por meio da linguagem verbal, está associada a
mundos simbólicos e representações específicas.

Por exemplo, o que significa a frase “estou deprimido”


para diferentes segmentos da sociedade brasileira? A
noção de depressão, embora não seja exclusiva, está
muito vinculada a um tipo de camada média urbana rela-
tivamente intelectualizada e bastante “psicologizada” [...]
Doenças dos nervos é uma expressão usada em camadas
de renda mais baixa que cobre uma grande variedade e
diferentes estados emocionais, sob o prisma de camadas
médias intelectualizadas e “psicologizadas”. Neste uni-
verso a pessoa pode estar deprimida, neurótica, rejeitada,
obcecada, paranóica, descontrolada, instável, louca, com
mania de perseguição, pirada, em crise, angustiada etc.
(VELHO, 1979, p. 8-9).

Quando os roteiros das entrevistas foram estruturados, fez-


-se clara esta distinção entre as linguagens. Na verdade, eles foram
estruturados levando em consideração tal singularidade. Não se
trata apenas de membros da classe média, mas de uma camada da
classe média (camada média urbana) portadora de uma visão de
mundo identificada com o ethos psicanalítico, “corolário da ideolo-
gia individualista” (FIGUEIRA, 1981). Assim, o fato de se pergun-
tar se já tiveram “crise existencial” era plenamente compreendido, o
que desencadeava respostas que invariavelmente traziam à tona um
esquema mental identificado com o vocabulário psicanalítico.
Outras questões que caracterizam esse segmento, diferen-
ciando-o de outros da camada média, são as “marcas de distin-
ção” (BOURDIEU, 1989), que possibilitaram qualificá-los como
Berenice Bento
27

intelectualizados. A busca pelo conhecimento não está limitada ao


bom exercício da profissão, mas desempenha o papel de comple-
mento existencial. Há um grande investimento financeiro e de ener-
gia na aquisição de bens culturais, como livros; são frequentadores
de teatro, cinema, viagens e cultura culinária. Há uma preocupação
permanente com o acúmulo de capital cultural (BOURDIEU, 1989).
Os cursos de pós-graduação se inserem neste contexto. São indiví-
duos que têm um conhecimento geral sobre Artes Cênicas, Artes
Plásticas, Psicologia, Sociologia, Música. Maria, por exemplo, leu A
transformação da intimidade e disse se identificar muito com refle-
xões de Giddens. No seu escritório de estudo, pode-se observar uma
variada gama de títulos das mais diversas áreas. Um livro sobre o
qual ela discorreu largamente foi Legitimation Crisis, de Habermas.
Cristina utilizou metáforas refinadas para se referir ao seu
comportamento detalhista. Referiu-se mais especificamente a
Beethoven, que se perde em uma infinidade de detalhes para cons-
truir uma passagem musical. Da mesma forma, ela pode ficar horas
olhando um detalhe na fachada de uma loja, de uma casa. Durante a
entrevista com Olavo, ele colocou a ópera Don Giovanne, de Mozart,
e pude observar nas paredes de sua casa uma grande paixão pelas
Artes Plásticas.
Embora a busca por conhecimento não tenha um caráter ins-
trumental, voltado para uma aplicação prática imediata, este capital
cultural acaba significando uma marca de prestígio, um símbolo de
status, um diferenciador social, seja dentro da própria classe média,
como nas relações sociais mais amplas. Além do que, pode estar na
base de aquisição e/ou conversão de outras formas de capital.
Estes dois demarcadores (psicologizados e intelectualiza-
dos) servem para assinalar um campo de singularidade em relação
a outros segmentos sociais, também enquadráveis na classificação
genérica de classe média, considerando-se apenas a perspectiva
28 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

taxonômica fornecida pela estratificação social (renda, educação,


inserção profissional). A perspectiva taxonômica fornece uma abor-
dagem empobrecida, que não deixa margem para um estudo que tente
compreender os sentidos das ações13 dos agentes sociais (WEBER,
1991), pois desconsideram as questões simbólicas que estruturam a
subjetividade desses.
Como salientou Salem (1986), as diferenças socioeconômicas
fornecem parâmetros importantes que permitem estabelecer demar-
cações igualmente importantes entre grupos sociais. Essas demar-
cações devem, porém, estar associadas a outras distinções de cunho
simbólico. Quando essas últimas são levadas em consideração, o
mapeamento, bem como as fronteiras que demarcam os diferentes
segmentos das camadas médias, pode assumir contornos diferen-
tes daqueles estabelecidos com base em critérios socioeconômicos.
Por exemplo: o fato dos homens investigados serem familiarizados
à linguagem e ao ethos psicanalítico é um critério importante na
diferenciação do universo, em virtude da afinidade com relação aos
preceitos do individualismo. A tônica individualista que caracteriza
estes segmentos expressa-se ainda no valor conferido à autonomia
do indivíduo e à sua liberdade.
O valor atribuído à liberdade e à autonomia, além de serem
marcas deste segmento, também é uma forte marca de geração. Os
homens entrevistados têm entre 40 e 50 anos.
Como este livro tem como objetivo fazer uma discussão sobre
as mudanças na identidade masculina, os critérios para definição do
universo pesquisado tiveram como ponto de partido os homens. As

13 Segundo Weber (1991, p. 3), deve-se entender por ação “um comportamento hu-
mano (tanto faz tratar-se de um fazer externo ou interno, de omitir ou permitir)
sempre que e na medida em que o agente ou os agentes o relacionem com um
sentido subjetivo. Ação ‘social’, por sua vez, significa uma ação que, quando a seu
sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros,
orientando-se por este em seu curso”.
Berenice Bento
29

mulheres foram incluídas porque fora percebido, ao longo da pes-


quisa, que era necessário estabelecer um contraponto das falas dos
homens, principalmente quando se trata da questão do poder nas
relações de gênero. No entanto, preferi não fazer uma relação do
tipo “Maria é esposa de Beltrano”, mas deixá-los falar livremente. As
entrevistas foram realizadas em momentos distintos. Preferi fazer
desta forma, pois acredito que assim os entrevistados sentiram-se
mais livres para responder as questões propostas. Tal decisão foi fun-
damental para a fluidez das respostas e pode-se observar que ques-
tões que envolviam o casal (como por exemplo: “vocês conversam
sobre tudo?” ou “você já pensou em separação?”) tiveram respos-
tas divergentes. Daí a opção em não fazer uma tabela relacionando
os homens com suas respectivas companheiras. O estado civil dos
entrevistados não foi um critério para sua seleção.
A dimensão geracional é importante por colocar lado a lado
falas de indivíduos que compartilharam a emergência de um novo
modelo comportamental na década 1960/70, identificado com o
questionamento de vários aspectos do sistema simbólico de seus
pais. Mas, ao mesmo tempo em que tinham uma conduta questio-
nadora, tiveram sua socialização primária em moldes tradicionais
caracterizadas por parâmetros morais rígidos, uma relação hierár-
quica entre os gêneros. Como sugere Nicolaci-da-Costa,

[...] os aspectos mais debatidos estavam relacionados a


dimensões concretas da relação homem/mulher e ao fun-
cionamento do casamento: 1) a questão da virgindade
e “pureza” femininas que, até então, eram vistas como
requisitos para o casamento; 2) a marcada segregação de
papéis conjugais, questionada (entre outros fatores) por
conta da progressiva profissionalização da mulher; 3) a
questão do código moral assimétrico, que legitimava cer-
tas condutas masculinas, como a poligamia no casamento
e no namoro, enquanto qualificava os mesmos tipos de
30 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

conduta por parte da mulher como ilegítimos ou reprová-


veis; 4) a questão da religião, que estes sujeitos viam como
arcaica e repressiva; 5) a questão da reprodução biológica
imediatamente após o casamento, que estes sujeitos viam
como indesejável por diminuir a liberdade dos cônjuges
(1985, p. 165).

O que se pode notar, como marca de diferenciação desta


geração, é uma aversão à hierarquia, o que vai propiciar a emergên-
cia de novos comportamentos14, tendo como justificativa para as
novas práticas entre os gêneros um discurso que se fundamentava
na igualdade, liberdade e autonomia. Liberdade para escolher e deci-
dir sobre o próprio destino, revertendo uma tendência que deixava a
cargo dos pais tal tarefa, principalmente para as mulheres; liberdade
de expressão; liberdade de decisão. Contrapondo-se a uma ideologia
que fixava os homens e as mulheres em posições de complementa-
ridade, sendo esta construída de forma hierarquizada, a ideologia
individualista constitui-se como um discurso que buscava legitimar
o primado do indivíduo, com suas idiossincrasias sobre o coletivo.
Nas décadas de 1960/70, a ideologia individualista come-
çava a se constituir no Brasil de forma mais visível e macro, como
substrato de sustentação de diversos movimentos, disputando com a

14 O livro Unissexo, de Winick, trata da mudança de comportamento dos jovens


norte-americanos, o que também ocorreu no Brasil. Os cortes de cabelo, as rou-
pas, a moda esportiva, os gestos, as músicas, as danças vão romper o padrão de
separação absoluta entre os gêneros. A masculinidade e a feminilidade começam
a revelar menos polarização e diferenças. Entre os inúmeros e ricos exemplos
que Winick relata no seu livro, é interessante como ele relaciona a liberação femi-
nina com o rock and roll: pela primeira vez, a mulher estava livre. “Antes se dizia:
sim, ela é uma boa dançarina, sabe seguir bem... Agora não mais precisa seguir
o homem, ‘ao diabo com este estafermo’. Uma novaiorquina declarou: ‘gosto do
frug porque executo um passo individual e mantenho o homem à distância. Não
há envolvimento, nem se toca no homem com quem se dança’” (WINICK, 1972,
p. 18).
Berenice Bento
31

ideologia hierárquica alguns espaços. Um dos espaços atingido pela


ideologia individualista foi o campo das relações de gênero.

1.1 Das entrevistas

As entrevistas foram semiestruturadas. Embora houvesse


um núcleo de questões direcionadas para discussão das hipóteses, as
entrevistas extrapolaram as expectativas em termos de informação.
O roteiro de perguntas foi estruturado com entradas na história de
vida. Digo “entradas” porque não tive como objetivo fazer a “história
de vida” no sentido de esgotar todas as informações sobre os entre-
vistados. Mas, por meio do acesso às informações (por vezes muito
fragmentadas) sobre as biografias, ter uma visão de como eles pro-
cessaram as mudanças nas suas subjetividades do lado subjetivo dos
processos macros. Para Becker, a história de vida

[...] pode dar um sentido à noção de processo. Sociólogos


gostam de falar de “processo em curso” e coisas pareci-
das, mas seus métodos geralmente os impedem de ver os
processos sobre os quais falam tão desembaraçadamente.
Entendê-lo como um processo contínuo de ajuste mútuo
das ações de todos os atores envolvidos. O processo
social, portanto, é um processo observável de interação
simbolicamente mediada (1995, p. 53).

Antes de realizar as entrevistas consideradas para efeito da


discussão das hipóteses, três outras foram realizadas, como forma de
entrevistas piloto, que tiveram como objetivo testar o roteiro e (devo
confessar) treinar a própria entrevistadora. Essas entrevistas pilotos
foram fundamentais para definir algumas questões que se mostra-
ram cruciais, entre elas:
32 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

1) O local da entrevista: quando foram realizadas no local de traba-


lho, houve constantes interrupções. Mesmo com esta preocupa-
ção, realizaram-se algumas entrevistas no local de trabalho, por
dificuldade de agenda dos entrevistados.

2) O gravador: este se mostrou como um inibidor inicial para as


conversas. A sua presença estabelecia um forte clima de forma-
lidade, que, contudo, ao longo da conversa, dissipava-se. Ainda
sobre o gravador: nada é mais decepcionante para quem está
fazendo uma pesquisa do que constatar que, depois de uma ótima
entrevista, o gravador estava programado na pausa. O que fazer?
Nos casos em que isto ocorreu (é o preço da inexperiência), corri
para o computador tentando salvar algumas informações.

3) A formulação das perguntas: as entrevistas piloto demonstraram


que esta seria a maior dificuldade. Como perguntar? Qual per-
gunta deveria vir primeira? Qual a tonalidade da pergunta? Essas
questões estiveram o tempo todo colocadas. O primeiro bloco
(identificação) foi o mais tranquilo. Nas entrevistas tanto com os
homens quanto com as mulheres, preferi começar por questões
gerais para depois tratar das questões referentes à estruturação
da subjetividade e das relações de poder. No caso dos homens,
isto se mostrou uma técnica interessante, porque os deixava mais
à vontade no momento em que propunha questões referentes à
intimidade ou à subjetividade. Neste ponto, já havia um clima
de maior cordialidade e relaxamento, o que facilitou ao tratar
destas questões. Com as mulheres, embora houvesse a mesma
preocupação, manteve-se o mesmo ritmo discursivo ao longo
das entrevistas.

Além dessas dificuldades, que foram sentidas desde as entre-


vistas piloto e que tentei solucionar, outra marcou todo o desenvol-
vimento da pesquisa: o fato da pesquisadora ser uma mulher. Muitas
vezes, ao sair das entrevistas, ficava me questionando como seriam as
respostas caso fosse um sociólogo que as tivessem formulado. Sabia
que estava tentando “estranhar o familiar”, que o fato de conviver
Berenice Bento
33

diariamente com homens não me dava nenhuma garantia do conhe-


cimento prévio do que é ser homem.
Velho problematiza e relativiza a ideia do que pode ser con-
siderado próximo (familiar) e/ou distante (exótico). Para ele, “o que
sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessa-
riamente conhecido e o que vemos e encontramos pode ser exótico,
mas, até certo ponto, conhecido” (VELHO, 1978, p. 39). Nosso “jul-
gamento” cotidiano dos outros é norteado por estereótipos15 interio-
rizados e não por um conhecimento de fato. Nos lugares de grande
densidade populacional, os indivíduos possuem

[...] um mapa que nos familiariza com os cenários e situ-


ações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e
posição aos indivíduos. Isto, no entanto, não significa
que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos
diferentes atores em uma situação social nem as regras
que estão por detrás dessas interações, dando continui-
dade ao sistema16 (VELHO, 1978, p. 40).

Ao longo da pesquisa, tornou-se cada vez mais claro que eu


não conhecia o mundo daqueles homens que estava entrevistando. Ao
final, senti o impacto de ter um rico material que, embora de forma
resumida, fragmentada, tinha uma densidade e uma pluralidade

15 Estereótipo, segundo o Dicionário de Ciências Sociais, “designa convicções pre-


concebidas acerca de classes de indivíduos, grupos ou objetos, resultantes não de
uma estimativa espontânea de cada fenômeno, mas de hábitos de julgamento e
expectativa tornadas rotinas” (1986, p. 419).
16 A Sociologia de Bourdieu (1977, 1989. Ver também: ORTIZ, 1983) segue um
caminho parecido. Ela não propõe um mapa único da sociedade, mas vários
mapas, fragmentados: são os campos sociais, sendo que cada um deles se es-
trutura e tem uma lógica própria de funcionamento. Não basta ter o conheci-
mento do funcionamento de um determinado campo, ou mesmo de vários, para
se considerar portador do conhecimento da sociedade como um todo. Cada
campo (seja ele científico, religioso, econômico, entre outros) tem suas regras de
funcionamento.
34 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

temática, de experiências e expectativas reveladas pelos entrevista-


dos, que se mostraram desconhecidas por mim.
A decisão sobre as partes das entrevistas que utilizaria para a
elaboração deste livro foi marcada por dúvidas. O que deve ser publi-
cado? Qual fala é mais importante? Será que uma fala não publicada
não poderia revelar outras dimensões que passaram despercebidas?
A resolução desse dilema refere-se à própria natureza deste trabalho.
Ele é, fundamentalmente, uma interpretação pessoal. As falas não
estão sendo reproduzidas, mas sendo recontextualizadas. Histórias
recontadas, nos marcos estabelecido por um trabalho acadêmico.
Como salientou Velho,

É importante frisar que, mesmo quando apresento resu-


mos de histórias de vida, produto de entrevistas gravadas
ou anotadas, não estou, em nenhum momento, trans-
crevendo direta e simplesmente gravações ou copiando
anotações. De fato, estou produzindo um texto que é de
minha responsabilidade enquanto autor. Os cortes que
faço, os indivíduos que privilegio, tudo isso delineia o
âmbito de arbitrariedade em que se move o pesquisador-
-autor [...]. Por outro lado, como autor do texto, assumo,
sem dúvida, um papel de demiurgo, cortando falas,
agrupando-as segundo meus critérios, resumindo, sin-
tetizando, intervindo. O próprio fato de destacar temas
e conteúdos específicos imprime a marca de interventor
(1986, p. 19-20).

Os recortes feitos, as interpretações propostas, os cruzamen-


tos teóricos construídos são marcas pessoais. Mas, ao mesmo tempo,
concordo com Velho (1986) quando compara a posição do pesquisa-
dor à de um demiurgo: existe também uma permanente busca pela
objetividade, que pode ser explicitada de diversas formas. Uma delas
é a tentativa de deixar claros os meios utilizados para realização da
Berenice Bento
35

pesquisa, o roteiro que norteou a entrevista, os textos e autores que


auxiliaram na formação do esquema teórico, os limites da pesquisa,
quais questões nortearam a pesquisa, as dificuldades na implementa-
ção da pesquisa. Isto faz com que o compromisso com a objetividade,
a coerência interpretativa, seja tentado como um fio condutor invi-
sível que está presente ao longo de todo texto. Esta busca de objetivi-
dade explica, em parte, o porquê da publicação para efeito de estudo
das hipóteses, de longos trechos das entrevistas.

1.2 Dos entrevistados

Utilizei dois procedimentos para mapear e chegar aos entre-


vistados: 1) Contatos do meu próprio círculo social; 2) Os conta-
tos estabelecidos por um entrevistado, Cícero, possibilitaram que se
constituísse um network. O primeiro contato com os entrevistados
foi feito por meio de Cícero, que os avisava que eu iria procurá-los.
Todos (homens e mulheres) disseram reconhecer, desde o primeiro
contato, a importância que tinha esta pesquisa.
Quando eu realizava o primeiro contato, informava-lhes do
caráter acadêmico do trabalho e apresentava a pesquisa como se
propondo a discutir as mudanças na identidade masculina. De uma
forma geral, sempre houve o reconhecimento da importância daquilo
que estava sendo proposto. Antonio, ainda por telefone, falou: “poxa,
que legal! Finalmente alguém se lembrou de nós”.
Segundo Perelberg (1980), pode-se trabalhar com dois tipos
de network: 1) network extenso: quando apenas algumas pessoas se
conhecem; e 2) network efetivo: quando todas as pessoas se conhe-
cem. Nesta pesquisa, trabalhou-se com o network extenso.
Para Salem (1986), o conceito de network é intensamente uti-
lizado nos estudos sobre camadas médias urbanas, sendo utilizado
36 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

basicamente para descrever uma unidade sociológica que se diferen-


cia por não possuir demarcadores rígidos nem objetivos explícitos.
Esta encarna uma das formas básicas de relação social17, possuindo
certos mecanismos próprios e destituídos de qualquer outra dire-
cionalidade que não a do convívio social por excelência. Seu foco
incide sobre a natureza e a característica das relações que articulam
esse conjunto, possuindo, portanto, uma eficácia de sistematização
empírica.
Nos trabalhos que se dedicam às camadas médias urbanas,
network é um importante instrumento operacional. Para Salem, o
papel estratégico que a noção desempenha, consubstancializando
uma unidade de análise privilegiada, não é casual. A autora afirma
ser o conceito utilizado para denotar

[...] uma unidade social cuja sociabilidade se encontra


destacada tanto das redes de família e de parentesco,
quanto de ancoragens geográficas e residenciais restriti-
vas... Tal noção se arma baseada em critérios de escolha e
afinidades (SALEM, 1986, p. 6-7).

O indivíduo relaciona-se com outros, tecendo uma rede


social, não porque se sinta constrangido a fazê-lo, mas porque assim
deseja. Os network são série de relações que os indivíduos constroem
em torno de si. O envolvimento de um indivíduo com o outro não se
dá porque existem normas e regras que lhe obriguem a tal, mas sim
porque há um processo de identificação, baseado nas semelhanças
de visões de mundo e estilos de vida.

17 Entende-se por relação social “o comportamento reciprocamente referido quan-


to ao seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta
por essa referência. A relação social consiste, portanto, completa e exclusivimen-
te na probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicável (pelo senti-
do)” (WEBER, 1991, p. 16).
Berenice Bento
37

A constituição de um network, nos segmentos modernos,


ocorre a partir de afinidade, transcendendo a fronteira da localidade
e do parentesco. Nesses segmentos, em razão de uma maior multi-
plicidade dos papéis sociais e de formas menos densamente unívo-
cas de controle social, o sujeito encontra campo para exercitar suas
escolhas.
***
Observei algumas frequências nas entrevistas: 1) As mulhe-
res falaram com mais fluidez e muito mais, a exceção de Paula, que
muitas vezes respondeu de forma monossilábica e em pianíssimo,
principalmente quando se pautou o seu relacionamento sexual com
seu companheiro. 2) Os homens tinham uma maior fluência verbal
quando estávamos tratando dos aspectos gerais vinculados à história
de vida de cada um (se tinham participado do movimento estudantil,
por que escolheu a profissão, origem de classe da família), às vezes,
atendo-se a longos relatos sobre algum episódio de suas vidas, como
foi o caso do Paulo. Ele contou várias passagens de sua adolescência
em Livramento, no Rio Grande do Sul, quando atravessava a fron-
teira para assistir aos filmes no Uruguai, entre eles “Z”, do diretor
Costa-Gravas, demonstrando assim o nível de politização de sua
“turma”. Após uma longa narrativa dos episódios, ele perguntava: “o
que você perguntou mesmo?” Isto também aconteceu frequentemente
com Pablo. Era como novelos de lã que começavam a ser desalinha-
dos: perdia-se o fio da meada. 3) A narrativa ficava bastante econô-
mica quando passávamos a tratar de questões como medo, choro,
verbalização dos sentimentos, sexualidade. Ao passar para questões
como: “você já teve crise existencial”, “homem chora?”, “você chora?”,
“o que é uma relação sexual boa?”, as respostas eram mais pausa-
das, as falas eram intercaladas com silêncios, engasgos, um frequente
passar a mão na testa para enxugar um suor imaginário, principal-
mente se verticalizavam estas questões (o motivo da crise; se a crise
38 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

imobilizava para as ações no cotidiano; se falavam com facilidade de


suas dificuldades sexuais, emocionais, profissionais, entre outros).
Mas isso não significa que suas falas fossem sem profundidade. Ao
contrário, foram falas densas. Para eles, falar dos “descondiciona-
mentos sociais” pelo qual estavam passando ou passaram, significava
relatar uma história de desestruturação psíquica marcada por crises,
que em alguns casos, como de Aluízio e Olavo, aproximaram-se da
“loucura”. Aluízio, por exemplo, foi internado duas vezes para fazer
tratamento psiquiátrico. Carlos falou da extrema dificuldade para
falar dos seus sentimentos, em se expor, mas se diz num processo de
crescimento, de aprendizado; está “sendo tratado”, está descobrindo
um novo Carlos que lhe foi escondido e negado.
A pesquisadora Mendes de Almeida (1996) fez um estudo
sobre a organização da subjetividade masculina, com um universo
muito próximo ao tratado nesta pesquisa. Ela observou que o com-
portamento dos homens era marcado pela ausência de titubeios na
fala, ausência de hesitações e de silêncios inibidores.

O conjunto de reações observadas como mais evidentes


destaca-se, ao contrário, pela afirmação de uma estratégia
do fluxo contínuo e ininterrupto da fala e dos atos que
se deixam “revelar” de forma torrencial e praticamente
sem incidência de soluções de continuidade [...]. A pre-
sença ou a demonstração de estados de dúvida, receio
ou hesitação poderia evidenciar ou, no mínimo, deixaria
pressupor a existência de “algo” que devesse ser protegido
ou resguardado (MENDES DE ALMEIDA, 1996, p. 137).

Os entrevistados desta pesquisa comportaram-se de forma


bastante diferente a este descrito por Mendes de Almeida: não
observei este “fluxo contínuo e ininterrupto” nas falas dos entrevis-
tados. Muitas vezes tive que provocar para conseguir fazê-los falar,
pedindo para eles explicarem melhor uma resposta, que eu não tinha
Berenice Bento
39

entendido ou então para que falassem um pouco mais sobre tal


ponto. Embora, deve-se ressaltar, houvesse exceções, como foi o caso
de João e Cícero. Quando foram entrevistados, tinham terminado
há pouco tempo um relacionamento amoroso e um casamento, res-
pectivamente. Tal fato talvez tenha possibilitado que aproveitassem
o momento da entrevista para realizarem “um desabafo”, pois foram
os entrevistados que mais falaram. De forma geral, contudo, o silên-
cio esteve presente, inclusive como um dos elementos que estruturou
as respostas dos entrevistados. Foucault já chamou a nossa atenção
para os silêncios como parte estruturante dos discursos.

Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o


que não se diz; é preciso tentar determinar as diferen-
tes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que
podem e os que não podem falar, que tipo de discurso
é autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns
e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são
parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam
os discursos (FOUCAULT, 1985, p. 30).

Todo estudante de música aprende que as pausas, represen-


tadas ao longo do pentagrama, fazem parte da composição. Acredito
que, da mesma forma, na construção dos discursos, o não dito ou
as falas intercaladas com pausas possam representar uma dimensão
altamente significativa para interpretação da organização das subje-
tividades. Não é de se estranhar que estas pausas eram mais frequen-
tes quando propunha questões que os entrevistados mostravam-se
em processo de resolução, ou que tocavam em pontos de suas histó-
rias pessoais considerados delicados, como a rejeição, a dependên-
cia, o choro.
Olavo, quando falou da rejeição, por exemplo, assumiu uma
postura que contrastou com a que vinha assumindo até um determi-
nado momento da entrevista. A segurança que demonstrou ao longo
40 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

desta foi rompida. Disse não gostar de conversar sobre suas inse-
guranças com sua companheira. Neste momento, as “inseguranças
trabalhadas” (expressão utilizada por ele) ao longo de anos de terapia
mostraram que ainda resistem.

Não gosto de falar disso, porque cansa. Eu tenho dificul-


dade em falar disso, da crise, né? Ah, por que é assim? O
teu ciúme é por quê? – Ah, porque eu sou inseguro ainda,
porque eu sou um fudido de cabeça, problema meu, enten-
deu? Então, eu não vou falar muito disso, não.

Para analisar as entrevistas, utilizou-se a análise qualitativa.


Segundo Bardin, a análise qualitativa apresenta certas características
particulares.

É válida, sobretudo, na elaboração das deduções específi-


cas sobre um acontecimento ou uma variável de inferên-
cia precisa, e não em inferências gerais. Pode funcionar
sobre o corpus reduzido e estabelecer categorias mais
discriminantes, visto não estar ligada, enquanto análise
quantitativa, as categorias que deem lugar as frequências
suficientemente elevadas, para que os cálculos se tornem
possíveis (BARDIN, 1994, p. 115).

Escolheu-se, portanto, uma técnica, a análise de discurso18.


Esta me possibilitou mais liberdade para fazer inferências, sempre
tendo claro que estou lidando com um universo muito reduzido, o
que não permite propor uma generalização para sociedade brasileira.

18 Segundo Gregolin, a análise de discurso tem uma história que chega a dois mil
anos, desde os estudos da retórica grega, e se estende a um presente com ares
de science fiction, tendo tomado grande força na década de 1970. Sobre análise
de discurso, ver: Foucault, 1996; Ramirez, 1995; Gregolin, 1995; Possenti, 1995;
Galli, 1995; Barthes, 1971; Bardin, 1994; Coulon, 1995.
Berenice Bento
41

Ramirez chama a atenção para a importância de se estudar


os discursos com uma maior ênfase, pois são eles que estruturam os
comportamentos.

[...] entendo que parte dos erros da análise sobre o


machismo é a ênfase dada ao estudo do comportamento
– sem que se dê muita atenção aos discursos. Nos dis-
cursos apresentamos, defendemos e justificamos nossa
posição de domínio e nos fazemos constantemente. Na
multiplicidade dos discursos, encontramos os elemen-
tos constitutivos das ideologias masculinas em toda sua
heterogeneidade, contradições e angústias. Fazermo-nos
homens é um processo difícil e doloroso. Reproduzir a
ideologia masculina é situar-nos cotidianamente em
jogos de poder, e nossa construção desvalorizada da
esfera do feminino nos converte em nossos próprios
opressores (RAMIREZ, 1995, p. 80).

Os discursos masculinos são instâncias em que o sujeito


falante constrói sua realidade, às vezes de forma contraditória, com
significados e ideologias que evidenciam sua posição de poder sobre
o gênero feminino, e que organizam funcionalmente sua conduta e
atividade psicológica consigo mesmo e com os outros. Mas, convi-
vendo com os discursos que legitimam a dominação masculina, há
outros que se constroem negando tal ideologia.
No caso dos homens entrevistados, este aspecto da negação
de um discurso que legitima a dominação masculina ficou evidente.
As práticas discursivas são uma das esferas que possibilitam visua-
lizar, com sua especificidade, a vida cotidiana. Nesta pesquisa, não
houve a preocupação de perceber como os homens atualizam seus
discursos na prática social, embora tenha claro que possam ocorrer
discrepâncias entre o discurso e a prática, importa destacar como os
homens buscam dar sentido às suas vidas, a partir do discurso.
42 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Se em toda sociedade os discursos são organizados, sistemati-


zados, selecionados, visando controlar os acontecimentos aleatórios
e que não se pode dizer tudo, ou sobre todas as coisas (FOUCAULT,
1996), nota-se que os entrevistados constroem uma narrativa que
busca dar sistematicidade e coerência para as transformações ocor-
ridas nas suas subjetividades. Uma vontade de verdade, a partir da
negação e desconstrução dos modelos fechados, absolutos, definido-
res do que pode e o que não pode o homem fazer.
A análise dos discursos dos entrevistados mostrou a necessi-
dade que eles têm de articulá-lo de forma a atribuir coerência e uma
unidade marcada pela reflexão permanente daquilo que falavam.
O discurso para estes homens tem uma importância funda-
mental. Há um processo de reflexão constante sobre o mundo que os
cerca, e seu lugar nas relações que o envolvem. Procurarei mostrar
no Capítulo IV como este processo permanente de questionamento
gera conflitos e reconstruções da identidade masculina.
Tabela 1 – Identificação dos entrevistados
SITUAÇÃO
NOME IDADE FORMAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO PROFISSÃO EXPERIÊNCIAS CONJUGAIS FILHOS
CONJUGAL
Professor
Paulo 50 Sociologia Mestrado Separado há 3 anos. Não casou novamente. Não
universitário
Berenice Bento

Segundo casamento. O primeiro


Fábio 47 Medicina Especialização Autônomo Casado há 6 anos. 1 filho
durou 4 anos.
Professor Separado há 2 meses.
Cícero 40 Educação Física Doutorando Nunca teve relações prolongadas. 1 filha
universitário Foi casado por 5 anos.
Professor da rede Este é seu segundo casamento, o
Carlos 44 Educação Física xxxx Casado há 13 anos. 3 filhos
pública de ensino primeiro durou 10 anos.
Professor Há 3 anos, separou-se do terceiro
Pedro 49 Música Pós-graduação Separado há 3 anos. 3 filhos
universitário casamento.
Antonio 41 Biologia Mestrado Funcionário público Casado há 16 anos. Único casamento. 2 filhos
Segundo casamento. O primeiro
Olavo 47 Medicina Especialização Funcionário público Casado há 5 meses. 1 filha
durou 2 anos.
Terceiro casamento. O primeiro
Pablo 40 Música Mestrado Músico Casado há 3 anos. Não
durou 4 anos. O segundo, 6 anos.
Terceiro casamento. O primeiro
Aluízio 48 Jornalismo xxxx Funcionário público Casado há 8 anos. 5 filhos
durou 8 anos, o segundo 2 anos.
Ricardo 49 Cinema xxxx Autônomo Casado há 3 anos. Fora casado várias vezes. 1 filha
Rui 49 Engenharia Pós-graduação Funcionário público Casado há 18 anos. Único casamento. 2 filhos
Pós-graduação Professor
Haroldo 42 Artes Plásticas Separado há 5 anos. Não casou novamente. 2 filhos
universitário
Professor
Marcelo 46 Economia Pós-graduação Separado há 3 anos. Não casou novamente. 1 filho
universitário
Segundo casamento. O primeiro
Otávio 41 Biologia Pós-graduação Funcionário público Casado há 4 anos. 2 filhos
durou 10 anos.
Não casou novamente. Teve
Professor
João 50 Educação Física Mestrado Separado há 5 anos. várias experiências amorosas 2 filhos
universitário
prolongadas.
43

Fonte: Entrevistas realizadas pela autora, no período de março a agosto de 1997.


Tabela 2 – Identificação das entrevistadas
44

SITUAÇÃO EXPERIÊNCIAS
NOME IDADE FORMAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO PROFISSÃO FILHOS
CONJUGAL CONJUGAIS
Funcionária
Maria 38 Biologia Pós-graduação Casada há 16 anos. Único casamento. 2 filhos
pública
Este é seu segundo
Vilma 41 Educação Física xxxx Professora Casada há 13 anos. casamento, o primeiro 2 filhos
durou 6 meses.
Segundo casamento. O
Cristina 33 Antropologia xxxx Desempregada Casada há 3 anos. Não
primeiro durou 2 anos.
Paula 44 Matemática xxxx Professora Casada há 8 anos. Único casamento. 1 filha
Cleonice 28 Relações Públicas xxxx Desempregada Casada há 5 meses. Único casamento. Não
Rita 35 Economia Pós-graduação Professora Casada há 4 anos. Único casamento. 1 filho
Funcionária
Stela 34 Jornalismo Pós-graduação Casada há 6 anos. Único casamento. Não
pública
Fonte: Entrevistas realizadas pela autora, no período de abril a setembro de 1997.
Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas
Tabela 3 – Palavras utilizadas com maior frequência pelos entrevistados para se referir às crises de identidade
Paulo Pressão, dureza
João Rejeição, medo, processo
Cícero Dependência, incompetência, programação, processo, desprogramação
Berenice Bento

Carlos Dificuldade, rejeição


Antonio Negação, processo, poder
Olavo Insegurança, rejeição, solidão, angústia
Pablo Rejeição, controle, razão, limite
Aluízio Queda, ascendência, reconstrução
Ricardo Performance, espetáculo, essência, ser humano
Rui Negação, rejeição, cuidado
Haroldo Medo, processo, descondicionamentos
Marcelo Insegurança, controle
Otávio Dor, solidão, medo
Fábio Rejeição, insegurança, inconsciência
Pedro Tristeza, negação
Maria Inclusão, exclusão
Vilma Negociação, afetividade
Cristina Crise, solidão, equilíbrio
Paula Independência, autonomia
Cleonice Ego, medo, união
Rita Processo, dúvidas, tristeza
Stela Falta, paixão
45
2
Gênero: uma reflexão teórica

O objetivo deste capítulo é discutir o contexto de surgimento


dos estudos de gênero, buscando apontar as dificuldades
para constituição de um novo modo de estudar as relações de gênero,
que havia se firmado como “estudo de mulheres”. Além disto, pre-
tende-se comentar três textos que abordam as relações de gênero a
partir de uma perspectiva universalista: Estrutura familiar e persona-
lidade feminina (CHODOROW, 1979); Está a mulher para o homem
assim como a natureza para a cultura? (ORTNER, 1979); A mulher, a
cultura e a sociedade: uma revisão teórica (ROSALDO, 1979).
O objetivo ao tratar desses três artigos é abordar uma forma
de olhar as relações de gênero baseada em uma visão universalista.
Não se pretende fazer um estudo sobre a obra das autoras, mesmo
48 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

porque muitas das posições assumidas nestes artigos foram repensa-


das em momentos posteriores19.
Por último, tratarei do texto Gênero, uma categoria útil de
análise histórica (SCOTT, 1995), que será utilizado como contra-
ponto da abordagem universalista, à medida que chama a atenção
para o caráter múltiplo e diferenciado que permeiam as relações de
gênero, ao mesmo tempo em que propõe uma definição para gênero
que, a meu ver, vai além desse objetivo: afirma-se como uma pro-
posta metodológica para o estudo das relações de gênero.

2.1 O surgimento dos estudos de gênero

O que ficou conhecido ao longo da década de 1970 e conso-


lidado na década de 1980 como estudos sobre a “mulher” passou a
ter uma nova nomeação no final dos anos oitenta: estudos de gênero.
Alguns criticam que a mudança da terminologia (de “estudos da
mulher” para “estudos de gênero”) não representou uma mudança
de enfoque, visto que a perspectiva relacional, enquanto uma preo-
cupação metodológica, ainda não foi incorporada plenamente. Mas,
por que isto tem acontecido? Uma primeira explicação é dada por
Scott (1995, p. 75).

Na sua utilização recente mais simples, “gênero” é sinô-


nimo de “mulheres”. Os livros e artigos de todos os tipos
que tinham como tema a história das mulheres substituí-
ram, nos últimos anos, nos seus títulos o termo “mulheres”
por “gênero”. Em alguns casos, mesmo que essa utilização
se refira vagamente a certos conceitos analíticos, ela visa,

19 Ortner, por exemplo, redimenciona sua posição sobre a equação mulher e natu-
reza. Ver também: Heiborn, 1992b; Vale de Almeida, 1995; e Sandy, 1993.
Berenice Bento
49

de fato, obter o reconhecimento político deste campo de


pesquisas. Nessas circunstâncias, o uso do termo “gênero”
visa sugerir a erudição e a seriedade de um trabalho, pois
“gênero” tem uma conotação mais objetiva e neutra do
que “mulheres”. “Gênero” parece se ajustar à terminolo-
gia científica das ciências sociais, dissociando-se, assim,
da política (supostamente ruidosa) do feminismo. Nessa
utilização, o termo “gênero” não implica necessariamente
uma tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder,
nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje invisí-
vel). Enquanto o termo “história das mulheres” proclama
sua posição política ao afirmar (contrariamente às prá-
ticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos
válidos, o termo “gênero” inclui as mulheres, sem lhes
nomear, e parece, assim, não constituir uma forte ameaça.
Esse uso do termo “gênero” constitui um dos aspectos
daquilo que se poderia chamar de busca de legitimidade
acadêmica para os estudos feministas, nos anos 80.

Ainda segundo Scott (1995), enquanto os “estudos de mulhe-


res” estabelecem uma relação imediata com a militância política,
o campo de estudos nomeado “gênero” está vinculado, principal-
mente, à busca da compreensão epistemológica das relações entre
os gêneros.
Uma segunda explicação é dada por Leal e Boff (1994). Para
elas, a mudança do nome do campo de estudo ainda não conseguiu
fazer uma separação entre mulher (objeto de estudo, pensada rela-
cionalmente) e mulher (militante feminista). A mudança da termi-
nologia não representou uma mudança no olhar para o tema20. O que
de fato ocorreu, no campo da produção científica,

20 Sobre as várias leituras e interpretações da utilização da categoria “gênero” e


das relações de gênero, ver Scott (1995), Heiborn (1992a, 1992b, 1993), Saffioti
(1992), Vale de Almeida (1995), Costa; Bruschini (1992).
50 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

[...] foi uma mudança de nome (rótulo) para uma área


de estudo, sem de fato ter dado tempo ainda (ou inves-
timento, ou vontade) para que uma tradição já estabele-
cida se modificasse. Esta observação não tem o sentido
de uma apreciação desfavorável, mas faz parte, sim, da
constatação deste fato como um chamar atenção para
como é difícil trabalhar com “homem”, inserir-se neces-
sariamente no campo “gênero” e perceber este campo rei-
ficado no feminino, quer como objeto, quer como sujeito
de investigação. Ambas as instâncias – objeto e sujeito de
investigação – são quase exclusivamente femininas e tece-
ram uma cumplicidade densa (LEAL; BOFF, 1994, p. 2).

A mudança na abordagem possivelmente se constituirá


quando novos instrumentos analíticos de percepção das relações
sociais de gênero forem estruturados. Para Scott (1995), a utilização
do termo gênero só representará uma mudança no campo de estudo
definido como de “mulheres” à medida que gênero desenvolva-se
como uma categoria de análise, ou seja, não basta mudar o nome do
campo de estudo, urge definir novas abordagens metodológicas.
Embora “gênero” seja amplamente utilizado, ainda paira uma
falta de clareza e mesmo coerência em sua utilização. Para romper
com estudos puramente descritivos sobre as relações entre os sexos,
que não questionam os conceitos que estruturam a própria percep-
ção do que está sendo descrito, talvez seja necessário que se encare o
estudo de gênero, primeiramente, como um desafio teórico21.

21 Sobre a construção do gênero, enquanto objeto de estudo, ver Castro; Lavinas


(1992). Elas fazem um levantamento dos artigos apresentados nas reuniões da
ANPOCS, no GT “Mulher e Força de Trabalho”, ao longo da década de 1980. As
autoras destacam que, “no esforço válido e bem sucedido de crítica às ciências
sociais convencionais, o feminismo acadêmico no Brasil afastou-se dos debates
epistemológicos do conhecimento geral e tendem à endogamia intelectual, refe-
rindo-se exclusivamente à sua própria produção” (CASTRO; LAVINAS, 1992, p.
217).
Berenice Bento
51

Colocar as questões: como o gênero funciona nas relações


sociais? De que maneira o gênero dá sentido à organização e à per-
cepção do conhecimento histórico? Quais as representações simbó-
licas em torno das diferenças percebidas entre os sexos? Como e por
que estas diferenças contribuem para criação e manutenção de pode-
res? Tudo isso implica ter um modelo analítico claro, que funcione
de certa forma como uma bússola, na nebulosa e emaranhada rede
das relações de gênero. E é este modelo que está sendo gestado nos
últimos anos.
Um exemplo da dificuldade em fazer a separação entre
gênero como categoria analítica e gênero social pôde ser obser-
vado na Plenária de Mulheres Trabalhadoras Rurais22. No programa
da Plenária, havia um ponto sobre “gêneros”. As palestrantes fize-
ram uma exposição destacando o processo social de construção
dos gêneros. Tiveram de repetir as explicações diversas vezes, pois
havia uma dificuldade clara da plenária em compreender (ou talvez
aceitar) que ninguém nasce com os atributos comportamentais do
gênero masculino e do gênero feminino, cada sociedade elabora for-
mas para definir padrões comportamentais para cada gênero. Citei
este exemplo apenas para chamar a atenção para a dificuldade em
se trabalhar, para fins analíticos, com um termo tão polissêmico.
Enquanto as palestrantes estavam falando em termos analíticos, a
plenária filtrava tais informações por meio do seu próprio gênero, já
construído socialmente. E, neste campo, o espaço para relativização
é muito reduzido.
Além das dificuldades apontadas acima para dotar o campo
de “estudos de gênero” de uma nova perspectiva metodológica,
sugiro outra explicação: o fato de “gênero” está impregnado de tal

22 A Plenária Nacional das Trabalhadoras Rurais aconteceu em março de 1997,


em Brasília. Foi organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG).
52 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

forma nas nossas estruturas mentais inconscientes, tal qual tempo


e espaço, faz com que não se consiga facilmente obter uma leitura
distanciada, até mesmo para o mais treinado cientista social. Daí a
dificuldade em utilizar gênero como categoria analítica.
Gênero talvez seja uma das categorias primeiras que são
interiorizadas. Ninguém sabe precisar quando aprendeu que o fato
de ter um pênis ou uma vagina seria o definidor do seu compor-
tamento. A forma como a sociedade constrói e define o que é do
gênero feminino e do gênero masculino é uma das primeiras ver-
dades construídas e reproduzidas pela sociedade. Tal como espaço
e tempo (DURKHEIM, 1989), a forma como as sociedades elabo-
ram as verdades (através de lendas, doutrinas, disciplinas e mitos)
sobre as diferenças dos sexos pode ser vista como uma categoria do
pensamento humano. Mas as categorias de percepção do mundo são
históricas e culturais. Essa estrutura não é da ordem natural. E esta
pesquisa insere-se nessa perspectiva: aponta mudanças substanciais
que estão em curso nas relações e representação dos gêneros.
Conforme salientou Durkheim, as categorias vão desempe-
nhar um papel preponderante no processo de compreensão e apreen-
são do mundo. Elas estão de tal forma naturalizadas nas sociedades,
que seu caráter histórico pode ser confundido como sendo imanente
à natureza humana, tal qual tempo e espaço.

As categorias têm por função dominar e envolver todos


os outros conceitos: são os quadros permanentes da
vida mental... São os conceitos mais gerais que existem
porque se aplicam a todo o real e, da mesma maneira
que não estão ligados a nenhum objeto em particular,
são independentes de todo sujeito individual: elas são
o lugar comum onde se encontram todos os espíritos
(DURKHEIM, 1989, p. 515-517).
Berenice Bento
53

Durkheim refere-se especificamente as categorias tempo e


espaço, aos quais incluiria a categoria gênero, como elemento per-
manente da vida mental, que estrutura nossas percepções do mundo
que nos cerca. Quando nascemos, já encontramos a sociedade na
qual estamos inseridos com as classificações do que seja pertencente
ao gênero masculino e ao gênero feminino. O gênero, neste caso,
deve ser entendido como uma categoria classificatória construída
socialmente. O primeiro “carimbo social” que recebemos é aquele
que identifica a qual gênero nós pertencemos. O gênero é uma das
primeiras matrizes geradoras de sentido23 para os atores sociais. Daí,
talvez, a dificuldade em abordar “gênero” por um olhar distanciado,
principalmente quando quem olha é a parte historicamente excluída.
Refere-se aqui aos estudos sobre mulher que, como apontou Leal e
Boff (1994), por serem realizados por cientistas mulheres, acabaram
por tecer uma cumplicidade, que dificultava a separação entre objeto
e sujeito.
Parto do pressuposto que o cientista social, ao estudar as rela-
ções de gênero, seja qual for o recorte empírico dado, terá de fazer
um esforço para não projetar sua visão de mundo generificado na
fala do “outro”. Se isto é válido para todos os campos de conheci-
mento científico, no estudo de gênero, há um complicador a mais.
Desde o nascimento, o homem e a mulher são “treinados” social-
mente para interpretar o mundo que os cerca com olhares do seu
gênero. Por mais que os pesquisadores busquem desconstruir esse
olhar, não se pode negar que os impedimentos são grandes. Talvez
seja por isso que muitos textos, ao invés de desconstruir, reforçam
as estruturas binárias e hierarquizadas que estabelecem homem e
mulher como dois pólos incomunicáveis.

23 Utiliza-se “matriz geradora de sentido”, conforme Boudieu (1977,1989).


54 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Suárez (1995, p. 2) chama a atenção para o fato dos estudio-


sos do parentesco e da organização social negarem o caráter natu-
ral de sua estrutura, “nunca enfrentarem a necessidade de também
estranhar as ideias ocidentais a respeito da diferença homem/mulher
e das relações entre eles”.
Os cientistas sociais também são portadores de um gênero e
processam a leitura do mundo que os cerca por meio dessa matriz
geradora de sentidos e definidora de comportamentos. Ao afirmar
isto, não se quer dizer que o campo de estudos sobre “relações de
gênero” não possa se desvincular dessa teia tecida entre militantes
feministas e cientistas sociais, ou que não seja possível fazer uma
abordagem analítica das relações de gênero. As possibilidades aber-
tas por este campo de estudo são inesgotáveis, estamos apenas no
início da sua história. Apenas é importante ressaltar as dificuldades
em realizar um estudo relacional sem o viés do gênero do pesqui-
sador. Novos instrumentos analíticos e metodológicos estão sendo
gestados.
Bourdieu (1995, 1996), estudando as bases de sustentação da
dominação masculina, chamou a atenção para a forma como clas-
sificamos o mundo a nossa volta. A classificação social dos gêneros
masculino e feminino dá-se em diversas direções: na estrutura do
espaço, nas divisões interiores da casa, na organização do tempo, nas
práticas tanto técnicas como rituais do corpo, posturas, maneiras.
Ao estudar gramática aprende-se que substantivar é atri-
buir gênero, seja ele biforme, uniforme, sobrecomum, ou epiceno.
Ordena-se o mundo a nossa volta inicialmente a partir da classifica-
ção em gênero. Trata-se de um sistema de categorias de percepção de
pensamento e de ação que, devido à concordância entre as estrutu-
ras objetivas (externas) e cognitivas (internas), gera a “atitude natu-
ral”. Essa divisão do mundo, a partir do gênero, não é desprovida de
Berenice Bento
55

valor, sendo referidas ao homem todas as qualificações que denotam


poder24.

[...] para compreender a dominação masculina são, ao


mesmo tempo, as estruturas inscritas na objetividade e
aquelas que o são na subjetividade, quer dizer, nos corpos
sob a forma de disposições corpóreas visíveis na maneira
de usar o corpo (os joelhos fechados ou afastados etc.) e
nos cérebros, sob a forma de princípios de percepção dos
corpos dos outros. O que faz a circularidade terrível das
relações de dominação simbólica, o que faz com que não
seja fácil se livrar dela, é que elas existem objetivamente
sob forma de divisões objetivas e sob a forma de estrutu-
ras mentais que organizam a percepção dessas divisões
objetivas25 (BOURDIEU, 1996, p. 31).

Mas o fato de perceber a profundidade que a identidade de


gênero ocupa nas estruturas mentais dos homens e mulheres não sig-
nifica dizer que não seja possível a ocorrência de mudanças. Apenas
demonstra que as mudanças neste nível são mais lentas e, como pode

24 Na gramática portuguesa, o aumentativo, grau que estabelece superioridade em


-ão, é masculino: a carta, o cartão; a porta, o portão.
25 A posição de Héritier (apud VALE DE ALMEIDA, 1995; HEILBORN, 1992b)
sobre o lugar que os gêneros ocupam nas estruturas mentais dos indivíduos é
bastante próxima da de Bourdieu. Para ela, a ordem simbólica que se origina do
gênero fala primeiro da descontinuidade do que de qualquer outra propriedade
intrínsica do objeto. Tal qual Bourdieu, Héritier percebe os gêneros como um
par classificatório, que categoriza o universo circundante, devendo ser tomado
como idioma, que impera sobre atividades e objetos que a eles são associados
como se pertencentes aos domínios masculino e feminino, e detentores dessas
qualidades. Héritier adota uma perspectiva simbólica para explicar a constitui-
ção dos gêneros. Nesta abordagem, gênero é entendido como uma das categorias
universais do pensamento humano, sendo a marca elementar da alteridade.
56 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

ser observado na presente pesquisa, proporcionam crises e conflitos


na identidade do gênero26.
Pode-se notar que a própria mudança terminológica, mesmo
que ainda não tenha sido incorporada, significa a busca de repensar
abordagens que falavam “da mulher” ou “das mulheres”, e que, ao
fazê-lo, se estava naturalizando a mulher como portadora de um jeito
de ser universal. Começa-se a prestar maior atenção às diferenças.

Uma vez entendido o caráter arrasadoramente mítico do


“homem” universal e essencial que foi sujeito e objeto
paradigmáticos das teorias não feministas, começamos
a duvidar da utilidade de uma análise que toma como
sujeito ou objeto uma mulher universal como agente
ou como matéria do pensamento [...]. O feminismo tem
tido um importante papel na demonstração de que não
há e nunca houve ‘homens’ genéricos – existem apenas
homens e mulheres classificados em gêneros [...]. Ao
invés disso, temos uma infinidade de mulheres que vivem
em intrincados complexos históricos de classe, raça e cul-
tura (HARDING, 1993, p. 8-9).

Para Bourdieu, o maior impedimento de o dominado pro-


cessar transformações é porque estes são seguidamente levados a
participar dos movimentos contestatórios, com as mesmas catego-
rias que produzem a sua dominação. Isto também transborda para
questão epistemológica. Até recentemente, o estudo de gênero uti-
lizava para suas investigações os quadros teóricos que propunham
uma narrativa globalizante, que tentavam mapear as igualdades. É

26 O crescimento dos movimentos trans (transexuais, travestis, trangenêros) em di-


versos países do mundo, que se organizam para lutar pelo pleno reconhecimento
da identidade de gênero, seria uma das expressões históricas mais consistentes
para se analisar a fragilidade e força das normas de gênero (BENTO, 2006).
Berenice Bento
57

na dominação simbólica, imbricada nas estruturas mentais, que a


dominação encontra porto seguro para manter-se.

Se é verdade que a dominação simbólica é uma domina-


ção que se exerce com a cumplicidade do dominado, ou,
mais precisamente, com a cumplicidade das estruturas
que o dominado adquiriu na confrontação prolongada
com as estruturas de dominação e pela incorporação
dessas estruturas, é evidente que não é suficiente tomar
consciência dessas estruturas (BOURDIEU, 1996, p. 37).

Embora o movimento feminista tenha tomado consciên-


cia da exploração das mulheres, processou tal análise a partir da
ótica dominante, de paradigmas que buscam encontrar o que há de
comum entre todas as mulheres, construindo uma representação
universalizante do “gênero feminino”. Mas, ao sinalizar com uma
nova proposta metodológica, os estudos sobre os gêneros começam
a romper com os paradigmas que analisam a construção das relações
sociais, utilizando como referência metanarrativas27.

2.2 A diferença como princípio metodológico

Guedes (1995) nota três fases do movimento de mulheres no


Brasil:
1) 1980 a 1985: momento em que o movimento estruturou-se
organicamente. Por meio dessa organização, buscou-se dar

27 Rorty problematiza o alcanse pragmático dos novos paradigmas, entre eles o


desconstrutivismo. Para ele, “o machismo é a defesa das pessoas que têm estado
por cima, desde os primórdios da história, contra as tentativas de derrubá-las;
esse tipo de monstro é muito adaptável, e desconfio que seja capaz de sobreviver
quase tão bem num meio filosófico antilogocêntrico quanto num meio logocên-
trico” (RORTY, 1996, p. 232).
58 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

visibilidade ao feminino, como elemento qualitativo e cons-


titutivo da população e das instituições. Para se ter uma ideia
da efervescência do movimento de mulheres nesta época, vale
dizer que no ano de 1982 atuavam em todo o Brasil 48 grupos
(JORNAL DO BRASIL, 1982);

2) 1985 a 1988: busca do entendimento do sujeito mulher e da iden-


tidade feminina vinculando-a as relações do cotidiano;

3) A partir de 1989: quando as relações dos gêneros no âmbito do


privado passam a ser enfocado. Levanta-se a bandeira de luta
que o privado também é político.

Da mesma forma que houve mudanças nos eixos de atuação


social das mulheres, na academia também ocorreram reelabora-
ções. Na primeira e segunda fase do movimento, época dos estudos
sobre mulher, havia uma preocupação em localizar as “igualdades”
e as dimensões identitárias. Com as abordagens de gênero mais for-
temente assumidas na terceira fase, há uma tentativa de mudar de
perspectiva teórica: a ênfase recai na busca do entendimento da(s)
diferença (s). Como salientou Bárbara Johnson,

[...] as diferenças entre as entidades (prosa e poesia,


homem e mulher, literatura e teoria, culpa e inocência)
mostram basear-se numa repressão das diferenças den-
tro das entidades, dos modos pelos quais uma entidade
difere dela mesma (apud RORTY, 1996, p. 231).

A diferença estabelece-se ou é construída em relação a alguma


coisa. Para que haja a percepção da diferença, é necessário que haja
relação. E é a busca da compreensão da estruturação da relação de
gênero pela e na diferença que tem possibilitado que estes estudos
sobre os gêneros não se fechem em torno de um único gênero, se não
impossibilitando, ao menos dificultando uma abordagem analítica.
Berenice Bento
59

Na nova abordagem, percebeu-se que não é possível enten-


der as ações dos agentes sociais a partir dos dados biológicos. “Ser
homem” ou “ser mulher” é fruto de construções sociais. A forma
como se processa a leitura da estrutura corpórea varia de acordo com
as culturas e, mesmo dentro de uma mesma cultura, podem-se ter
múltiplas identidades do gênero masculino e do gênero feminino,
daí a pouca importância que a dimensão natural tem para explicar
as múltiplas configurações de gênero. O corpo já nasce imerso em
determinadas relações de gênero. A leitura que fazemos da relação
entre natureza e cultura já é efeito das verdades construídas social-
mente para os gêneros28.

[...] os traços naturais do gênero, bem como os processos


naturais do sexo e da reprodução, são apenas um pano
de fundo sugestivo e ambíguo para a organização cultu-
ral do gênero e da sexualidade. O que o gênero é, o que
homens e mulheres são, e o tipo de relações que aconte-
cem entre eles. Todas estas noções não são simples refle-
xos ou elaborações de “dados” biológicos, mas sim (em
grande medida) produtos de processos sociais e culturais
(ORTNER; WHITEHEAD apud VALE DE ALMEIDA,
1995, p. 128).

Como falar “da mulher” e/ou “do homem” genérico a partir


do sexo? Será que os homens nova-iorquinos são portadores dos mes-
mos dispositivos duráveis, do mesmo habitus social (BOURDIEU,
1989), dos moradores de uma pequena colônia de pescadores do
litoral do Rio de Janeiro? Será que poderíamos colocar lado a lado

28 No final dos anos 1990, houve uma forte crítica à concepção que define gênero
como os atributos culturais que as sociedades definem para as diferenças bioló-
gicas, como se o pressuposto da binaridade dos corpos fosse anterior às marcas
culturais. A crítica mais radical foi organizada pelos estudos queer (BENTO,
2006).
60 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

(com falso sinal de =) a mulher branca, de classe média, integrada


no mercado de trabalho, com o curso superior, e uma mulher negra,
moradora de uma favela, analfabeta, desempregada? Caso a aborda-
gem parta fundamentalmente do biológico como dado primeiro, ou
mesmo se estabeleça alguns elementos universais, é possível proce-
der a tal comparação, pois tanto o nova-iorquino como o pescador
são do sexo masculino, podendo ser feito a mesma relação com as
mulheres.
Michael Kimmel reproduz um diálogo que assistira entre
uma mulher negra e uma mulher branca. A branca afirmava que o
fato de serem mulheres tornava-as solidárias, acima da diferença de
cor.

– Quando você se olha pela manhã no espelho, o que vê?

– Vejo uma mulher – respondeu a branca.

– É exatamente este problema – replicou a mulher negra.


Eu vejo uma negra. Para mim a raça é visível a cada dia,
porque ela é a causa do meu handicap nesta sociedade. A
raça é invisível para você, motivo pelo qual a nossa aliança
sempre me parecerá um pouco artificial (KIMMEL apud
BADINTER, 1992, p. 10).

Outras variáveis sociais são consideradas além do gênero:


classe, orientação sexual, geração, raça/etnia. Elas vão se cruzar para
constituir a multiplicidade dos gêneros.
Esta nova fase dos estudos sobre gênero está inserida em
uma mudança de paradigmas mais gerais da sociedade. Vive-se um
momento em que se privilegia a ideia de mistura, que se valoriza a
ambiguidade, a fragmentação, as zonas cinzentas do comportamento
(VALE DE ALMEIDA, 1995).
Berenice Bento
61

O biológico é o dado primeiro, aquele que serve para classifi-


car os seres humanos como sendo machos ou fêmeas, mas este pro-
cesso já está imerso nas malhas culturais. As construções dos gêneros
são moldes vazios nos quais podem ser transformados em múltiplos
tipos de noção e de valores. O molde nos dá unicamente a estrutura
de contraste e de relação (STRATHERN, 1979), variável e sem uma
determinação universal.
Como ocorrerá a construção da identidade do gênero mascu-
lino e do gênero feminino (seja a subjetividade, a orientação sexual,
a sexualidade ou os papéis sexuais), dependerá de cada cultura.
Nas interações sociais, “ser homem” ou “ser mulher” não se reduz
aos caracteres sexuais, mas sim a um conjunto de atributos morais,
comportamentais socialmente produzidos e compartilhados. O
corpo deve ser observado como um texto, construído nas narrativas
simbólicas que estruturam as percepções primeiras dos indivíduos
(SEGATO, 1993). Essas narrativas, que acontecem de múltiplas for-
mas (mitos, lendas, doutrinas, disciplinas escolares, olhares repro-
vadores, olhares incentivadores, castigos), vão construir verdades,
num processo de “inculcação”, nas estruturas mentais dos indiví-
duos (conscientes e inconscientes), que aprendem o que é próprio de
menino e o que é específico de menina.

2.3 Condições metodológicas no


estudo das relações de gênero

Três dimensões devem ser observadas quando se estuda a


construção dos gêneros29.

29 Estas dimensões têm como base o texto de Medrado (1996).


62 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

1) Relacional: não existe “o masculino” e “o feminino” em si, como


entidades substantivadas. Por meio da perspectiva relacional,
pode-se perceber como determinadas conjunturas históricas são
estruturadas a partir da interação dos gêneros e como os gêneros
estruturam-se a partir de determinadas relações sociais.

2) Histórico: para se entender as relações de gênero, é necessário


uma contextualização histórica, caso contrário, corre-se o risco
de percebê-las como algo fixo.

3) Contextual-situacional: vincular o estudo de gênero a contex-


tos culturais específicos. Nesta dimensão, as variáveis tempo e
espaço têm um papel central.

Estas três dimensões serviram de base para estruturar as


hipóteses que orientaram esta pesquisa. O aspecto relacional foi fun-
damental para construir parte da primeira hipótese, ou seja, perce-
ber como as conquistas femininas interferiram na subjetividade do
grupo de homens pesquisado. A dimensão histórica esteve presente
quando estabeleci uma vertente geracional (homens de 40 a 50 anos)
para selecionar os entrevistados, o que implicou fazer um recorte
diacrônico. Tentei relacionar as biografias com a conjuntura histó-
rica, ou seja, a esfera micro com a macro. Esse resgate da história de
vida dos entrevistados teve como objetivo possibilitar uma compre-
ensão mais aprofundada da dimensão contextual-situacional, o que
foi feito a partir de uma abordagem mais sincrônica.
Por meio destas três dimensões, pode-se perceber que as rela-
ções de gênero são constitutivas das relações sociais, mas que, tam-
bém, são constituídas nas relações sociais marcadas pelas divisões de
classe social, de raça/etnia, de valores e códigos simbólicos, de reli-
gião. Assim, o estudo das relações de gênero evoca outras dimensões
como a relação entre indivíduo e sociedade, a diacronia e a sincronia.
Os gêneros constroem-se relacionalmente e de acordo com
os contextos culturais e históricos em que estão inseridos. Quando se
Berenice Bento
63

pensa em estudar a construção da categoria social “gênero”, devem-se


abandonar paradigmas que estabelecem posições fixas, universali-
zantes. Significa reverter a oposição binária, deslocando as constru-
ções hierárquicas, buscando compreender a construção e reprodução
das relações de gênero nos contextos que os geram. A forma como se
processará tal desconstrução dependerá do modelo analítico que o
pesquisador adotará. Essas três dimensões estão presentes na articu-
lação conceitual que Scott (1995) propôs para “gênero”.

2.4 A busca de explicações universais


para a constituição dos gêneros

2.4.1 Chodorow e a construção da identidade de gênero

A perspectiva de Chodorow para explicar as diferenças de


personalidade e de papéis sexuais é fundamentalmente psicanalítica.
Para ela,

[...] as explicações baseadas em padrões de socialização


ponderados (a espécie mais preponderante de explicação
antropológica, sociológica e sociopsicológica) são em si
mesmas insuficientes para considerar a extensão na qual
desempenhos psicológicos e de valores para diferenças
sexuais [...] (CHODOROW, 1979, p. 65).

Chodorow buscará as diferenças nas estruturas mentais


inconscientes da personalidade30, que devem estar associadas à rela-

30 Chodorow utiliza “personalidade” para significar a construção dos padrões iden-


tificatórios para cada gênero, com destaque especial para os comportamentos.
Parece-me que tal terminologia pode ser considerada como um sinônimo de
identidade de gênero.
64 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

ção mãe-filho, mãe-filha. A ênfase recai na mãe como termo cons-


tante da relação da primeira infância. O papel materno é considerado
por ela como universalmente o mais importante para a mulher.
A primeira identificação da criança, no processo de constru-
ção da personalidade, dá-se com a mãe. Se em um primeiro momento
da vida (até os três anos, fase pré-edipiana) essa identificação é igual
para o filho e para a filha, pois, eles têm contato direto com a mãe, e o
pai está sempre ausente, todo referencial da criança é a mãe. A partir
dos três anos, segundo Chodorow, tem início o período edipiano, e
é a partir daí que ocorrerá a identificação de gênero estável. Para a
filha, a construção da identidade de gênero é marcada por uma con-
tinuidade, pois

[...] desde a primeira infância de seus filhos, mães e


mulheres tendem a se identificar mais com as filhas e
ajudá-las a se diferenciar menos, e aqueles processos de
separação e individuação são mais difíceis para meninas
(CHODOROW, 1979, p. 70).

Se com a filha o desenvolvimento da identidade de gênero


é marcado pela não diferenciação, com o filho isto ocorre de forma
diferente: “a identificação de gênero masculino de um menino pre-
cisa surgir para substituir sua identificação primária com a mãe”
(CHODOROW, 1979, p. 71).
Falta a referência do que seja ser homem, visto que o pai
encontra-se na maior parte do tempo fora da esfera doméstica, por
isso ele é relativamente inacessível ao seu filho. Consequentemente,
a identificação de gênero masculino do menino torna-se uma identi-
ficação “posicional”, com os aspectos do papel masculino de seu pai.
A identificação da filha com a mãe é “pessoal”, ou seja, com os aspec-
tos gerais dos caracteres e valores da mãe, devido ao envolvimento
direto e permanente de mãe-filha.
Berenice Bento
65

São quatro os componentes da identificação da identidade


do gênero masculino: 1) A masculinidade torna-se e permanece
uma questão problemática para o menino; 2) Negação de vínculos
de dependência; 3) Desvalorização e repressão da feminilidade; 4) A
identificação com o pai é norteada por um processo de interiorização
dos papéis masculinos que não são imediatamente compreensíveis.
O rompimento da identificação primária põe um ponto final
da fase pré-edipiana. A partir daí, seu relacionamento com mãe será
distante, o que não ocorre na relação mãe-filha.

O cuidado e a socialização das meninas pelas mulheres


asseguram a produção de personalidades femininas base-
adas na relação e conexão com limites flexíveis do ego, ao
invés de rígidos e, paralelamente, com um sentido seguro
de identidade sexual. Esta é uma explicação de como a
dependência feminina é propagada de geração a geração e
porque existe em quase toda a sociedade (CHODOROW,
1979, p. 80).

A forte unidade psicológica entre mãe-filha faz com que não


ocorra uma diferenciação entre elas. Para Chodorow, esta “situação
se reforça de modo circular” (1979, p. 82), por meio principalmente
da reprodução. O que torna mais tranquila a construção da identi-
dade de gênero para mulher.
Quando se trata de narrar os ritos de passagem que consti-
tuem a masculinidade, há uma comparação com o processo viven-
ciado pelo menino como doloroso, traumático, e o da menina é
marcado por uma passagem mais tranquila da infância para a fase
adulta. “Prove que você é homem”, é o desafio que o gênero mascu-
lino enfrenta permanentemente31.

31 Segundo Badinter (1992), para o menino tornar-se homem tem de passar por
ritos de iniciação, marcados pelas provações que a mulher não chega a conhecer.
66 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Chodorow parte do pressuposto que há uma unidade psí-


quica na humanidade. Não há a preocupação em localizar ou apon-
tar de que sociedade se está falando. Isto lhe possibilita estruturar
sua concepção a partir de uma visão totalista da sociedade e alocar
características comportamentais fixas a todos os homens e mulhe-
res, independente da sociedade sob exame. Há uma “essencialização”
dessas características. De um lado, os homens, que norteiam suas
ações pela objetividade, atuação, individuação, isolamento, solidão,
por um modelo cognitivo analítico. Do outro, a mulher, caracteri-
zada pelo comportamento comunal, pela cooperação, pela subjetivi-
dade, pelo modelo comportamental relacional. Cada um ocupa uma
posição dentro de uma estrutura hierarquizada e binária.
O processador da diferença está no fato das mulheres terem a
capacidade reprodutiva e os homens não. Há, portanto, uma natura-
lização da diferença, uma vez que é interpretada como inscrição cor-
poral anterior aos registros da cultura. E é a partir da identificação
dos corpos que a mãe tem uma preferência pela filha, em detrimento
do filho. É como se houvesse um instinto materno, marcado pelo
carinho, afetividade, direcionado para a filha.
Na sociedade Mundugumor, estudada por Margaret Mead
(1988), o ideal de homens e mulheres é contrário a este imaginado
por Chodorow. Tanto homens como mulheres devem ser violentos,
competitivos, ciumentos, vingativos. É uma sociedade que tem na
violência um dos elementos balizadores da personalidade, tanto

Para ela, “o dia da primeira menstruação acontece naturalmente, sem esforço e


até sem dor, e a menininha é declarada mulher para sempre. Nada de semelhante
ocorre hoje com o garotinho da civilização ocidental” (BADINTER, 1992, p. 4).
Acredito que o processo de formação das identidades de gênero, seja masculino
ou feminino, dá-se por meio de complexos e refinados processos de “inculcação”
das verdades produzidas socialmente sobre cada gênero. O que dificulta, a meu
ver, qualificar uma como mais ou menos difícil ou traumática.
Berenice Bento
67

feminina quanto masculina. A família Mundugumor é marcada pela


divisão. Os pais preferem as filhas, e as mães os filhos.

A organização social Mundugumor se baseia na teoria de


que existe uma hostilidade natural entre os membros do
mesmo sexo, e na suposição de que os únicos laços possí-
veis entre os membros do mesmo sexo passam através do
sexo oposto (MEAD, 1988, p. 178).

A maternidade é quase sempre indesejada. Há inúmeros


tabus que devem ser obedecidos quando a mulher está grávida e
quando a criança nasce. O transtorno é ainda maior para a mulher
quando nasce uma filha, que será do marido e não dela32. A relação
mãe-filha é marcada pela desconfiança, inveja, ciúme, rivalidade.
Na sociedade Mundugumor, conforme descrita por Margaret
Mead, não há nenhuma relação de afetividade entre mãe-filha. Antes
de a criança nascer, discute-se se ela deve ser poupada. Quando
nasce um menino, a mãe argumenta pela sua preservação, quando
nasce menina, é o pai que defende que a criança deve viver.
Os pressupostos universalistas de Chodorow sobre a relação
mãe-filha, baseada no amor, não encontrariam respaldo na socie-
dade Mundugumor. Quando isto ocorre, o homem ou mulher é
considerado como desviante do ideal Mundugumor. A criança é pre-
parada desde muito cedo para uma vida social que tem na agressivi-
dade e violência os elementos estruturantes. O ato da amamentação,
por exemplo, é marcado pela pressa, devido ao medo que a criança
tem da mãe lhes tirar o peito antes de saciada a fome.

32 Os Mundugumor estruturam a família em cordas: “uma corda é composta de um


homem, suas filhas, os filhos de suas filhas, as filhas dos filhos de suas filhas; ou
se a contagem começar pela mulher, a corda é composta de uma mulher, seus fi-
lhos, as filhas de seus filhos, os filhos das filhas de seus filhos, e assim por diante”
(MEAD, 1988, p. 178).
68 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Muitas vezes se engasgam por engolir muito depressa; o


engasgo aborrece a mãe e enfurece a criança, convertendo
a situação do aleitamento mais caracterizado pelo ódio
do que pela afeição e segurança (MEAD, 1988, p. 195).

Outra coisa que aborrece a mãe é cuidar de uma criança


enferma. Embora haja uma preferência pelo filho, não significa que
ela tenha vocação institiva pela maternidade. De modo geral, a mãe
de Mundugumor não gosta do contato com os filhos.
Outro aspecto que merece ser questionado na análise de
Chodorow é quando afirma que a construção da identidade feminina
é “mais fácil” do que a masculina, devido à proximidade dela com a
mãe. O menino, por não ter contato com o mundo masculino na pri-
meira infância, sofre para interiorizar os papéis masculinos. É como
se a identidade feminina fosse mais natural, e a do homem fosse mais
social. Na identidade feminina, temos continuidade (do quê? Do
natural?) e na masculina temos rupturas. Enquanto o homem precisa
aprender a ser homem, a mulher já nasce feita. Ela traz inscrita no
corpo o principal elemento balizador da personalidade: a capacidade
reprodutiva. No final das contas, localiza a diferença da estruturação
da personalidade em uma característica biológica.
Chodorow parte do pressuposto de que não há nenhum con-
tato entre o “mundo da rua” e o “mundo da casa”, que são esferas
totalmente estanques. É como se apenas a identidade masculina
fosse relacional (negar características femininas, para se firmar como
homem), e a da mulher fosse substantivada.
Mead mostra que tanto na sociedade Mundugumor quanto
na Arapesh e mesmo entre os Tchambuli, as mulheres desenvol-
vem tarefas consideradas por nós como masculinas (plantar, cui-
dar da roça, cuidar dos porcos) por exigirem maior esforço físico.
Principalmente entre os Arapesh, há grande trânsito de homens no
“mundo doméstico” e das mulheres no “mundo da rua”. Isto para não
Berenice Bento
69

falar das metrópoles. Há alguns anos, as mulheres participam ativa-


mente do “mundo da rua”, e os homens começam, de forma mais
intensa, a participar do “mundo da casa”, fazendo com que estejam
ocorrendo uma crescente interseção entre estas duas esferas.
Assim, embora Chodorow fale de um processo de construção
social de identidade de gênero, parece que ainda fica uma gradação,
sendo a identidade masculina mais social do que a feminina. Tanto
assim, que ela utiliza o termo “surgir” quando se refere à construção
da identidade de gênero masculino. É como se o homem precisasse
interiorizar uma segunda natureza, visto que a primeira, identificada
com o feminino, deve ser negada como condição sine qua non para o
surgimento da identidade masculina.

2.4.2 O papel materno feminino e a oposição


universal entre os papéis doméstico e público

Rosaldo (1979) propõe-se a explicar o porquê e como nas


diversas sociedades os homens estão no polo que concentra a auto-
ridade, ou como as relações de gênero produzem estruturas hierár-
quicas de poder, baseadas em uma desigualdade universal, como
oposição universal e estrutural entre esferas domésticas e públicas.
Para ela, todas as sociedades reconhecem e elaboram algumas dife-
renças entre os sexos.

Diferenciações entre os sexos e desigualdades de papel


sexual parecem estar presentes em todas as sociedades
até agora conhecidas (ROSALDO, 1979, p. 27).

[...] aspectos característicos dos papéis femininos e


masculinos nos sistemas sociais, culturais e econômi-
cos podem ser relacionados a uma posição universal e
70 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

estrutural entre os domínios das atividades domésticas e


públicas (ROSALDO, 1979, p. 52).

O poder, nesta concepção, está localizado apenas na esfera


do público. Partindo da concepção de poder conforme elabora
Foucault, constataremos que o poder não está em um lugar especí-
fico, ao contrário, encontra-se presente em todos os lugares. Como
negar que a mãe exerce cotidianamente seu quantum maior de poder
sobre o filho? Ela é, em parte, responsável pela constituição moral
da criança, sendo que este processo de “inculcação” das verdades é
feito às vezes de forma branda, tranquila, outras vezes, com ameaças,
gritos e muitas vezes com violência33. Com uma mão afaga o filho,
com a outra ela também pode puni-lo, e isto é aceito socialmente. O
poder não é algo centralizado, é difuso e estende sua rede capilar por
toda a sociedade.
Sandy (1993), no estudo sobre o poder feminino em várias
culturas, principalmente entre os Minangkabau, documentou que as
mulheres em seu papel de mães têm uma importância central nos
assuntos sociais. As mulheres desempenham atividades sociais que
superam a importância das atividades masculinas e correspondem à
unidade sociopolítica maior34. Para a autora, antes de partir de uma
hipótese universalizante sobre a dominação masculina, deve-se bus-
car compreender as condições em que esta se desenvolve.

33 Vale lembrar a pesquisa de Edith Modesto (2010) sobre a violência das mães
contra os filhos homessexuais.
34 Sandy observou, no seu trabalho de campo na cultura Minangkabau, que as mu-
lheres “não são periféricas em relação à estrutura de direitos e obrigações e nem
simbolicamente desvalorizadas. Ao contrário, são fundamentais na hierarquia
de prestígio da linhagem materna e da aldeia. As atividades que são realizadas
na grande casa da linhagem materna, de propriedade das mulheres, englobam as
vidas dos homens mais que as atividades dos homens englobam as das mulheres”
(SANDY, 1993, p. 77).
Berenice Bento
71

Talvez fosse possível afirmar que a esfera pública é onde se


tem símbolos de status mais visíveis socialmente, mas na esfera do
doméstico, também há a construção de símbolos de status relaciona-
dos às mulheres. Não há como se cristalizar diferenças e relacioná-
-las ao mundo doméstico ou ao mundo público, ou seja: público =
homem = poder = status = prestígio; doméstico = mulher = submis-
são = desvalorização. Deve-se, portanto, dizer sobre qual sociedade
se está falando.
Wolf (1979), estudando a sociedade chinesa, observou que as
mulheres foram muito mais treinadas do que seus irmãos na forma-
ção de opiniões, na percepção das mudanças de atitudes, valorizando
as vantagens pessoais e desvantagens nos conjuntos de circunstân-
cias. Além da influência decisiva que tiveram no processo da revo-
lução comunista, Wolf destaca que em Taiwan as mulheres foram
muito hábeis em formar e dirigir opiniões em relação a assuntos
como conflitos domésticos, ou organização de templos. Estas mulhe-
res agiam por meio de comunidades femininas.
Para Rosaldo, muitas mulheres, como esposas, mães ou irmãs,
obtêm respeito, poder e status por meio de suas relações pessoais
com os homens. A aquisição de status por intermédio do homem,
realmente, pode acontecer, mas o inverso também ocorre. Ou será
que o homem que casa ou tem como namorada uma mulher muito
bonita, ou rica, ou intelectualizada, não sabe que isto pode significar
(ao menos em alguns contextos na nossa sociedade) um símbolo de
status, algo que o diferencia de outros homens? Assim, acredito que
também ocorre aquisição de status por intermédio da mulher.
Rosaldo tenta ser descritiva, sem dizer de que sociedade está
falando. Este é o problema, de uma forma geral, das concepções uni-
versalistas: estão dizendo que as sociedades “são”, mas não dizem
para onde estão olhando.
72 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

2.4.3 A mulher, a natureza e a cultura

Ortner (1979) tenta entender como a subordinação do gênero


feminino ao gênero masculino é construída. Tal qual Chodorow e
Rosaldo, Ortner não se detém a um estudo de uma sociedade especí-
fica, mas constrói uma explicação para esta subordinação, que acre-
dita ser válida para todas as sociedades.

Se não desejarmos nos apoiar no determinismo genético,


me parece que teremos somente um caminho a seguir:
devemos tentar interpretar a subordinação feminina sob
a luz de outros fatores universais, elaborados na estrutura
da situação mais generalizada, na qual todo ser humano
se encontra em qualquer cultura (ORTNER, 1979, p. 100).

Para ela, quatro aspectos podem ser considerados como


sendo pertencentes a todo ser humano: ter um corpo, fazer parte de
uma sociedade, ser herdeiro de uma tradição cultural e ter a certeza
de que nasceu e de que um dia vai morrer. A partir dessa estrutura
generalizada, ela coloca a seguinte questão: por que as mulheres têm
um valor inferior em relação aos homens, em todas as sociedades?

Minha tese é que a mulher está sendo identificada – ou se


desejar, parece ser um símbolo de – alguma coisa que cada
cultura desvaloriza, alguma coisa que cada cultura deter-
mina como sendo uma ordem de existência inferior a si
próprio. Cada cultura, ou, genericamente “cultura” está
engajada no processo de gerar e suster sistemas de formas
de significados (símbolos, artefatos etc.) por meio dos
quais a humanidade transcende os atributos da existên-
cia natural, ligando-as a seus propósitos, controlando-os
de acordo com os interesses. Podemos assim amplamente
equacionar a cultura com a noção de consciência humana
(isto é, sistemas de pensamento e tecnologia), por meio
Berenice Bento
73

das quais a humanidade procura garantir o controle sobre


a natureza (ORTNER, 1979, p. 100).

Segundo Ortner, todas as sociedades tentam dominar a


natureza, nenhuma se curva aos atributos da existência natural. A
universalidade do ritual exprime em toda cultura, uma habilidade
especificamente humana de agir sobre a natureza e regulá-la. Pode-se
concluir que Ortner parte de um paradigma tecnicista e, sob esta
lente, faz a leitura das outras culturas. Essa concepção, com cono-
tações etnocêntricas, faz com que ela acredite que todas as culturas
estejam ontologicamente buscando dominar a natureza. Resta uma
dúvida: será que todos os povos têm uma relação com a natureza
pautada no controle, na subjugação? Acredita-se que só a pesquisa
histórica e etnográfica possa responder a esta questão.
A explicação da constante e invariável dominação da mulher,
para Ortner, estaria no fato delas, por atributos biológicos, como a
reprodução, estarem mais próximas da natureza.

[...] desejo demonstrar como as funções fisiológicas femi-


ninas tendem universalmente a limitar seu movimento
social e a confiná-las universalmente a certos contextos
sociais, que por sua vez, são vistos como mais próximos
da natureza. Isto é, não somente seu processo corporal,
mas a situação social na qual seu processo físico a coloca
pode assinalar este significado (ORTNER, 1979, p. 106).

A ligação íntima entre filhos e mãe faz com que ela, tal qual
a criança, seja considerada mais próxima da natureza. Conforme
observo anteriormente, na sociedade Mundugumor, esta ligação só
ocorre com o estritamente necessário, devido ao desgosto da mulher
com a maternidade e desde cedo as meninas terem contato com o
pai, ou seja, pela lógica de Ortner, com o lado da cultura.
74 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

E, atualmente, quando as mulheres já “dominaram” a natu-


reza, com a descoberta de métodos anticonceptivos, elas deixariam
de estar ao lado da natureza para ascenderem à cultura?
Se, até um determinado ponto, Ortner afirma que esta dis-
tinção e relação homem cultura, mulher natureza, é como a
sociedade a percebe, logo ela irá reforçar esta concepção quando fala
de “aspectos dominantes e universais da psique feminina”. A partir
daí, citando Chodorow, ela constrói uma tipologia comportamental
na qual o homem é identificado com o racional, com a capacidade
para abstrair, com a objetividade, e a mulher com a praticidade, a
concretude e a subjetividade. Embora tenha alertado (em uma linha
apenas) que estas diferenças não são inatas ou geneticamente progra-
madas. Mas, como não são, se ela mesma fala de “estrutura psíquica
feminina”. Então afirma:

Elas (as diferenças entre a identidade masculina e femi-


nina) surgem quase de traços universais da estrutura
familiar, isto é, “universalmente as mulheres são as úni-
cas responsáveis pelos cuidados da primeira infância
e pela (pelo menos) socialização posterior feminina”
(ORTNER, 1979, p. 111).

A mulher é tomada como sinônimo de família, sendo que


neste ponto não existe qualquer menção ao pai. Outra questão: já há
alguns anos, a escola (ou mesmo a creche-escola) já era uma insti-
tuição presente desde os primeiros anos de vida e tem aumentado de
forma vertiginosa nas últimas décadas. Se Chodorow falou de “pai
invisível”, podemos afirmar que a mãe também está perdendo sua
visibilidade.
Assim, somos levados a crer que Ortner realmente acha que
a mulher está mais próxima da natureza.
Berenice Bento
75

As relações da mulher tendem a ser semelhantes à natu-


reza relativamente imediatas, mais diretas; enquanto os
homens tendem a se relacionar não somente de um modo
mais mediato, como de fato, muitas vezes se relacionam
mais consistente e solidamente com categorias e formas
mediatas do que com pessoas ou os próprios objetos [...].
As mães tendem a se comprometer com os filhos como
indivíduos, indiferentes ao sexo, idade, beleza e filiação a
partidos ou outras categorias às quais as crianças possam
pertencer (ORTNER, 1979, p. 113).

Um dos problemas dessa abordagem “essencialista” é que há


uma construção lógica retilínea, que não problematiza a realidade ou
as realidades.
Chodorow torna absoluto o papel de uma determinada
forma de maternidade na definição das personalidades de gênero.
Rosaldo faz um corte profundo na sociedade, dividido-a em dois
campos incomunicáveis: o público e o doméstico, para explicar como
são estruturados os papéis sociais do gênero masculino e feminino,
tendo como eixo para processar tal divisão o sexo. Ortner explica a
subordinação universal do gênero feminino ao masculino, devido o
fato da mulher está mais próxima da natureza.
É relevante levantar uma última questão: uma das maiores
dificuldades que existe quando se estudam os teóricos que tratam
de gênero é saber se estão fazendo análises puramente descritivas,
ou seja, dizendo como os homens e mulheres comportam-se, e quais
as explicações que eles dão para suas ações, isto é, como os próprios
“nativos” explicam suas categorias sociais, ou se estão tentando
desvendar o que realmente está por trás das ações dos indivíduos,
tratando “gênero” como categoria analítica. Em alguns momentos,
há uma forte impressão que Chodorow, Rosaldo e Ortner estão
76 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

tratando da categoria social gênero, em outros, parece que elas estão


propondo um modelo analítico.
Chodorow não faz uma distinção de gênero como categoria
social e categoria analítica. Ela não diz: “os indivíduos acreditam
que...” ou “os indivíduos agem movidos por tais e quais concepções”.
Ao contrário, tenta demonstrar como efetivamente é o processo de
construção das identidades de gênero em outras culturas.
A dificuldade é perceber até onde vai a descrição: “as socie-
dades se organizam assim...” para começar o subtexto35 do próprio
observador, que atribui ao “outro”, achatando-o no seu próprio
mundo, valores e concepções que são próprias de uma dada cultura.
Quando isto ocorre, não é mais o “outro” que fala, mas o “eu” pro-
jetado por meio da voz do “outro”. No estudo de gênero, isto ocorre
com certa frequência. Concepções de poder, afetividade, racionali-
dade, personalidade são utilizadas para explicar a gênese das identi-
dades de gênero.

2.5 Scott e a construção da categoria analítica “gênero”

Joan Scott (1995) propõe pensar “gênero” como uma catego-


ria analítica, como um instrumento metodológico de entendimento

35 A ideia de subtexto é de Suárez. Segundo ela, “a leitura do subtexto, que é a lei-


tura dos valores veiculados pelo texto por desígnio dos ordenamentos culturais
do autor e não das culturas que descreve” (1995, p. 3). Strathern adota posição
semelhante a de Suárez quando afirma que “podría pronosticarse com bastante
certeza, dada la dirección de las ideas populares y de cómo están representadas
em la literatura de la liberación de la mujer, que um antropólogo podría de-
monstrar que muchas etnografías están escritas desde um punto de vista andro-
céntrico (es decir, machista). Esto no sólo cierto porque muchos antropólogos
han sido hombres, sino porque esta disciplina... tiene um sesgo machista […].
Los que escriben sobre las relaciones hombre-mujer han subrayado la frecuente
ambigüedad sobre el lugar ocupado por las mujeres como ‘personas sociales’ em
comparación con los hombres” (STRATHERN, 1979, p. 139, 141).
Berenice Bento
77

das relações de gênero, da construção, reprodução e mudanças das


identidades de gênero. Assim, Scott constrói um conceito que visa
abordar gênero a partir de uma ótica mais sistêmica, ao mesmo
tempo em que chama a atenção para a necessidade dos cientistas
tornarem-se mais autoconscientes da distinção entre o vocabulário
analítico do cientista e o material que se quer estudar.
Para entender a realidade, que é por demais difusa, multi-
facetada, escorregadia, se o cientista social não tiver um esquema
mental explicativo claro, não conseguirá se aproximar desta reali-
dade, pois, conforme salientou Weber (1991), por mais claro que seja
um conceito, ele não consegue englobar a realidade nos seus marcos.
A definição de gênero para Scott é composta de duas partes e
diversos subconjuntos.

(1) o gênero é um elemento constitutivo das relações


sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos
e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às
relações de poder (SCOTT, 1995, p. 86).

A primeira parte do conceito é composta por quatro subcon-


juntos: o simbólico, o normativo, os papéis sexuais nas organizações
sociais e instituições, e a identidade de gênero. Estes subconjuntos
vão explicitar como o social justifica, dando sentido e coerência, as
diferenças entre os sexos.
1) Os símbolos, culturalmente construídos, têm como função
representar as diferenças contraditórias entre os gêneros. As
lendas, os mitos da criação, as fábulas, narrarão uma história
em que se busca explicar como o social organiza as diferenças
percebidas entre os sexos no nível imaginário. Para interpretar
o subconjunto simbólico, Scott propõe que o cientista coloque
as seguintes questões: como as sociedades criam suas represen-
tações simbólicas para dar sentido às diferenças percebidas entre
78 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

os sexos? Que representações simbólicas são evocadas? Como


são evocadas? Em quais contextos são evocadas?

2) Os conceitos normativos que expressam interpretações dos


símbolos, conferindo-lhes um significado que organizam as con-
dutas. Normatizar, no sentido de proibir interpretações em torno
dos símbolos, de criar verdade. Algumas questões que podem
ser levantadas pelos pesquisadores: quando estes conceitos são
estruturados? Em quais circunstâncias eles se impõem como
posição dominante? Esses conceitos são produzidos e reprodu-
zidos pela escola, pelas leis, pela religião, pelas instituições que
estabelecem “lugares” rígidos para cada gênero. Assim, por exem-
plo, quando o mito cristão da criação confere ao homem (Adão)
a função de parte (homem como gênero) ao mesmo tempo de
todo (homem, como espécie humana), estabelece também que
a mulher é englobada, é parte, sendo este o nível simbólico. Na
ordem jurídica, como no Código Civil Brasileiro, pode-se notar
que há uma “tradução” desse mito, quando institui o pater-poder,
cabendo à mulher a função de mera colaboradora do marido.
Ou seja, o subconjunto “símbolos”, ao mesmo tempo em que tem
certa autonomia nas suas narrações, encontra correspondência
no subconjunto “normativo”, e vice-versa. Para Scott, a principal
tarefa analítica, ao estudar os conceitos normativos, é tentar des-
cobrir o que leva à aparência de uma permanência intemporal na
representação binária e hierarquizada entre os gêneros.

3) A apreensão da construção de gênero deve atentar para as múl-


tiplas organizações sociais e instituições, como o mercado de
trabalho, a educação, o sistema político. A designação das fun-
ções e posições na esfera pública, de acordo com as diferenças
entre os sexos.

4) A construção da identidade de gênero, levando em conta que


as identidades subjetivas são construídas a partir de uma série
de organizações e representações sociais historicamente especí-
ficas. O fato de definir que o homem não chora, a mulher é frá-
gil, e que o homem não deve demonstrar dúvidas ou medo são
Berenice Bento
79

algumas verdades estruturantes das identidades dos gêneros e é


mais especificamente (mas não exclusivamente) deste nível de
que trata esta pesquisa.

A organização social dos gêneros e da relação entre eles é


construída por representações simbólicas, pela normatização desse
mundo simbólico no mercado de trabalho e nas organizações polí-
ticas e também pelas identidades subjetivas. Esses diversos subcon-
juntos estruturam as diferenças entre gêneros de diversas formas.
Embora nenhum desses níveis permita, isoladamente, entender a
construção dos gêneros (o que significa dizer, as diferenças entre os
sexos), Scott alerta que só por meio da pesquisa histórica é possível
saber quais as relações entre estes níveis.
Na segunda parte do conceito de gênero, a ênfase recai sobre
as relações de gênero e as relações de poder derivadas dessa relação,
visto que o gênero constrói o poder a partir de uma distribuição dife-
rencial de poder, acarretando um acesso diferencial para os gêneros,
aos recursos materiais e simbólicos.
Scott cita alguns exemplos de políticas e de revoluções (jaco-
binos, política nazista, Aiatolá Komehini, Stalin) em que os governos
instaurados legitimaram a dominação, a força, a autoridade central
e poder dominante como masculinos. Assim, o gênero é um dos ele-
mentos balizadores do próprio poder36.

36 Em setembro de 1997, quando o Congresso Nacional discutia um projeto de


lei que estabelecia que todos os partidos precisariam ter uma percentagem de
mulheres concorrendo às eleições, alguns deputados federais (Delfim Neto,
Wigberto Tartuce, entre outros) argumentaram que 1) as mulheres não estão
preparadas para participarem da política; 2) as funções fundamentais da mulher,
como o cuidado da casa e dos filhos, serão relegadas; 3) que a contribuição das
mulheres na Câmara do Deputados limita-se a ensinar boas maneiras aos depu-
tados federais, que, aliás, passaram a se vestir melhor e mais perfumados desde
que as mulheres passaram a ser presença mais constante na Casa Legislativa.
Esse conjunto de argumentos serviu para alguns votarem contra o Projeto de
Quotas.
80 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A política de Estado é uma das dimensões do poder, talvez a


mais visível, pois se materializa em políticas concretas, como o voto,
o aborto, políticas de natalidade. Mas a relação poder gênero
extrapola essa esfera. Ela pode ser observada na esfera do privado,
nas relações de mercado, entre outros. Scott propõe a utilização da
concepção foucaultiana de poder, tentando pensar as maneiras que a
política constrói o gênero, e como gênero constrói a política.
O termo “gênero”, segundo concepção de Scott, sugere que as
relações entre os sexos são aspectos primários da organização social,
que os termos da identidade masculina e feminina são determinados
culturalmente e, ainda, que as diferenças entre os sexos constituem
e são constituídas pelas relações sociais, atravessando-as transversal-
mente, colocando em mútua relação, em todos os níveis sociais, as
diferenças entre os sexos.
3
Masculinidade hegemônica
e outras masculinidades

N este capítulo, pretende-se discutir a construção da mas-


culinidade, e salientar como os estudos sobre homens
estão preocupados em definir os processos sociais de construção da
masculinidade relacionando-os a contextos sociais determinados.
Mesmo quando a ênfase ocorra em uma abordagem mais abstrata
(CONNELL, 1987), procura-se definir tipos de masculinidade que
podem conviver em um mesmo espaço, fazendo com que não se
confunda abstração com universalização.

***
82 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Embora os primeiros estudos sobre masculinidade datem


da década de 1970, só na segunda metade da década de 80 estes
começam a se constituir de forma mais sistemática e consistente.
Coincidentemente, é o momento em que há uma “revisão” na abor-
dagem dos estudos sobre mulher, consubstanciado na mudança do
nome do campo de estudos de “estudos sobre a mulher” para “estu-
dos das relações de gênero”. Possivelmente o fato das mulheres, sejam
cientistas e/ou militantes feministas, passarem a adotar de forma ana-
lítica uma perspectiva relacional possibilitou aos homens, cientistas
e/ou militantes masculinistas sentirem-se mais “livres” da pecha de
dominadores naturais e a produzirem textos que apontam a não exis-
tência do homem universalmente dominador e nem da mulher uni-
versalmente dominada, mas que diferenças também existem entre os
homens de uma mesma cultura.
Pode-se notar, nestas abordagens, uma influência da visão
que privilegia a desconstrução das relações polarizadas entre femi-
nino e masculino. Os estudos sobre masculinidades múltiplas estão
possibilitando a escuta de outras vozes que se encontravam oculta-
das por uma voz hegemônica. Para Vale de Almeida,

O androcentrismo de que a Antropologia foi acusada


pelo feminismo não só impediu que se ouvisse a voz das
mulheres; impediu também que se ouvisse a diversidade
das vozes masculinas, a sua visão, por vezes dissidentes,
da homologia masculino/público/político – em suma, da
masculinidade hegemônica. Ao tornar o masculino em
equivalente implícito do social, retirou-se a autonomia e
possibilidade de desconstrução (1995, p. 129).

Hoje, apontar o caráter androcêntrico das Ciências Sociais


não significa culpar os homens pela dominação, mas interpretar
como as diferenças entre os sexos são construídas, valorizadas e hie-
rarquizadas em contextos históricos e sociais específicos.
Berenice Bento
83

Os estudos sobre os homens tentam compreender os meca-


nismos sociais por meio dos quais estes estruturam suas práticas,
pensando-as relacionalmente. Mas o “relacional” aqui transcende
os limites entre homem e mulher. Há uma preocupação em pensar
como os próprios homens relacionam-se entre si, contribuindo para
a construção de sua identidade de gênero.
Connell (1987, 1995) define “masculinidade” como uma con-
figuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura
das relações de gênero. Pode-se desmembrar tal definição e rela-
cioná-la à posição de Scott. A “configuração de prática” remete para
uma análise histórica, pois não basta afirmar que os homens agem de
uma determinada forma37. O estudo das práticas remete à dimensão
histórica, que deve ser observada por meio de uma perspectiva rela-
cional. Ou seja, entender a construção da masculinidade como uma
prática, que se estrutura histórica e relacionalmente.
Scott, ao estabelecer os dois conjuntos que compõe a defini-
ção de gênero, remeteu-os para a observância da dinâmica histórica,
chamando nossa atenção para a necessidade de se formular per-
guntas que busquem compreender como as sociedades constroem
as relações de gênero e como estas constroem as relações sociais.
Assim, pensar a masculinidade nos marcos da definição de gênero
proposta por Scott significa pensar as práticas dos homens inseridas
nas relações de gênero e também nas relações sociais. Mas falar que
a masculinidade é a forma como o gênero masculino configura suas
práticas não significa dizer que exista apenas uma masculinidade, ou
seja, uma única prática. Existe, normalmente, mais de uma configu-
ração desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma sociedade.

37 Para a presente pesquisa, utilizou-se a definição de Connell como a de práticas


discursivas. Ou seja, não se fez uma observação participante das práticas coti-
dianas dos entrevistados. Esta pesquisa limitou-se a perceber como os homens
estruturam as narrativas que dão sentido às suas práticas, conforme buscou-se
explicitar no Capítulo I.
84 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Simultaneously a place in gender relations, the practices


through which men and women engage that place in gen-
der relations, and the effects of these practices in bodily
experience, personality and culture38 (CONNELL, 1987,
p. 71).

Connell (1987) elenca quatro concepções teóricas que defi-


nem masculinidade, mas que, a seu ver, são incompletas: 1) A “essen-
cialista”: define masculinidade a partir dos atributos biológicos, ou
seja, o fato de ter pênis; 2) A normativa39: define masculinidade
tomando como referência um padrão comportamental, um conjunto
de atitudes e expectativas. Nessa concepção, é homem quem estru-
tura sua prática de acordo com este modelo; 3) Positivista: busca
determinar a forma como os homens são, fazendo com que haja uma
ênfase no fato observado. Trata homens e mulheres como blocos; 4)
Semiótica: define masculinidade a partir de um sistema simbólico
diferente nos quais masculinidade e feminilidade estão em contraste
(passiva x ativo, subjetivo x objetivo).

The idea that one symbol can only be understood within


a connected system of symbols applies equally well in

38 “Simultaneamente um lugar nas relações de gênero, as práticas através das quais


homens e mulheres se empenham, aquele lugar nas relações de gênero, e os
efeitos dessas práticas na experiência corporal, na personalidade e na cultura”
(Tradução livre).
39 Corneau, sobre os tipos normativos de masculinidade, afirma: “tempos atrás, era
necessário ser como John Wayne. Hoje, deve-se ser um homem gentil e polido,
um homem doce. Esse homem balança de um lado para o outro, não tem indivi-
dualidade. Ao mesmo tempo em que é sociável, que se identifica com os valores
sociais vigentes, funde-se com seu inconsciente, não há separação entre o eu e
o inconsciente. Muitos homens, quando abandonados, se suicidam porque não
são capazes de controlar a confusão interior. Isso não justifica a violência, mas a
explica em sua gênese interior” (1995, p. 51).
Berenice Bento
85

other spheres. No masculinity arises except in a system of


gender relations40 (CONNELL, 1987, p. 71).

Ao definir masculinidade como “uma configuração de prá-


tica”, Connell deseja resgatar o aspecto dinâmico e histórico das rela-
ções de gênero, da possibilidade de contar a história de como uma
dada configuração surge, interagindo com outras, possibilitando
notar quais os critérios definidos socialmente para a construção da
masculinidade, preocupação e posição muito próxima à esboçada
por Scott.
A afirmação de Simone de Beauvoir, que “ninguém nasce
mulher, torna-se mulher”, é apropriada pelos estudos sobre os
homens que, ao tentar mostrar que “ninguém nasce homem, torna-
-se homem”, busca desconstruir uma definição assentada nos aspec-
tos fixos, biológicos, de uma natureza masculina, seguindo uma
tendência epistemológica no campo dos estudos de gênero.

Na Europa, homens muito duros e angustiados por sua


virilidade, reagindo ao menor desacordo com as mulhe-
res. Na África, homens ternos e suaves, que parecem femi-
ninos segundo critérios europeus tradicionais, vivendo
pacificamente a mesclagem dos sexos. Que acontece com
o mito da agressividade natural dos homens quando nos
debruçamos sobre a pequena sociedade Semai da Malásia
central, uma das populações mais pacíficas do mundo?
(BADINTER, 1992, p. 28).

O modelo de masculinidade baseado na virilidade, agres-


sividade e determinação é específico de uma sociedade. Segundo
Gilmore, os Semai acreditam que a agressividade é o pior dos males.

40 “A ideia de que um símbolo só pode ser compreendido dentro de um sistema


conectado de símbolos se aplica igualmente bem em outras esferas. A masculini-
dade surge de em um sistema de relações de gênero” (Tradução livre).
86 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Eles não cultivam a competição, não se mostram ciumentos, nem


autoritários, tendem a ser passivos e tímidos. A diferença entre os
sexos não lhes preocupa, não exercendo, assim, qualquer pressão
sobre os meninos para se distinguirem das meninas (GILMORE
apud BADINTER, 1992). Temperamento semelhante observou Mead
(1988) entre os Arapesh, e Sandy (1993) entre os Minangkabau.
As etnografias41 possibilitam concluir que a masculinidade,
sua definição e o processo de constituição variam de sociedade para
sociedade. O que é incentivado em determinadas sociedades pode ser
repudiado em outras. Os estudos sobre homens tentam demonstrar
que a multiplicidade de masculinidade também pode ser observada
no mesmo contexto social. Pode-se chegar a tal conclusão ao se fazer
um exame mais aproximado, com o foco de análise mais fechado, e
a partir do cruzamento da variável gênero com classes sociais, raça/
etnia e geração.
Para Connell (1987), a fissura entre as categorias de “homem”
e “mulher” é um dos fatos centrais do poder patriarcal e sua dinâ-
mica. No caso dos homens, a divisão crucial é entre masculinidade
hegemônica e várias masculinidades subordinadas. Daí segue-se que
as masculinidades são construídas não só pelas relações de poder,
mas também pela sua inter-relação com a divisão do trabalho e com
padrões de ligação emocional42. Por isso, pode-se verificar nas rela-
ções sociais que a forma culturalmente exaltada de masculinidade só
corresponde às características de um pequeno número de homens.

41 Alguns dos antropólogos que discutem a construção da masculinidade, a partir


de etnografias, são: Campbell (1964); Gilmore, D. e Gilmore, M (1978); Herdt
(1981); Mead (1988); Denich (1979); Wolf (1979), Vale de Almeida (1995),
Sandy (1993).
42 Para Connell (1987), três estruturas devem ser levadas em conta ao se estudar as
relações de gênero: relações de poder, relações de produção, relações de cathexis.
Berenice Bento
87

This does not reveal the failure of the scientist so much


as the impossibility of the task. “Masculinity” is not a
coherent object about which a generalizing science can be
produced. Yet we can have coherent knowledge about the
issues raised in these attempts. If we broaden the angle of
vision, we can see masculinity, not as an isolated object,
but as an aspect of a larger struture43 (CONNELL, 1987,
p. 67).

Masculinidade hegemônica44 é a capacidade de impor uma


definição específica sobre outros tipos de masculinidade.

Hegemonic masculinity can be defined as the


configuration of gender practive which embolies
the currently accepted answer to the problem of the
legitimacy of patriarchy, which guarantees (or is taken
to guarantee) the dominant position of men and the
subordiation of women [...]. I stress that hegemonic
masculinity embodies a “currently accepted strategy”.
When conditions for the defense of patriarchy chance,
the bases for the dominance of a particular masculinity
are eroded. New groups may challenge old solutions and
construct a new hegemony. The dominance of any group

43 “Isso não revela o fracasso do cientista nem a impossibilidade da tarefa.


‘Masculinidade’ não é um objeto coerente sobre o qual a ciência generalizadora
pode ser produzida. No entanto, podemos ter conhecimento coerente sobre as
questões levantadas nessas tentativas. Se ampliarmos o ângulo de visão, pode-
mos ver a masculinidade, não como um objeto isolado, mas como um aspecto
de mais amplo” (Tradução livre).
44 O conceito “hegemonia” é de inspiração gramiciana. Para Gramsci, hegemonia
é a capacidade de um grupo exercer o poder sobre o conjunto da sociedade de
forma legítima, sem resistência. Mas a hegemonia é sempre provisória, à medi-
da que um grupo que se encontra hegemonizado pode reverter a correlação de
forças.
88 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

of men may be challenged by women. Hegemony, then, is


a historically mobile relation45 (CONNELL, 1987, p. 77).

A masculinidade hegemônica está enraizada na esfera da


produção, na arena política, nas práticas esportivas, no mercado de
trabalho. E, em todas estas esferas, o discurso impulsionador das prá-
ticas dos homens tem como fundamento a competição, a busca insa-
ciável pelo sucesso, pelo poder. E é neste ponto que a masculinidade
deve ser provada, e, tão logo isso ocorre, é questionada, tornando
necessário que seja novamente provada: sua construção é constante,
implacável e inatingível.

Isso sugere que devemos pensar na construção da mascu-


linidade como um projeto (no sentido de Sartre), perse-
guido ao longo de um período de muitos anos e através
de muitas voltas e reviravoltas. Esses projetos envolvem
encontros complexos com instituições (tais como esco-
las e mercados de trabalho) e com forças culturais (tais
como a comunicação de massa, a religião e o feminismo)
(CONNELL, 1995, p. 190).

Para ilustrar essa eterna busca pela provação e construção da


masculinidade, Kimmel cita um exemplo aparentemente banal. Na
cerimônia de entrega do Oscar de 1992, o ator durão Jack Palance,
ao receber o prêmio de melhor ator coadjuvante pela comédia City

45 “Masculinidade hegemônica pode ser definida como a configuração de prática-


de gênero que envolve respostas atualmente aceitas para o problema da legitimi-
dade do patriarcado, que garante (ou é levado a garantir) a posição dominante
dos homens e a subordinação das mulheres [...]. Insisto que a masculinidade
hegemônica encarna uma ‘estratégia atualmente aceita’. Quando as condições
para a defesa do patriarcado mudam, as bases para o domínio de uma mascu-
linida particular são corroídas. Novos grupos podem desafiar velhas soluções e
construir uma hegemonia nova. O domínio de qualquer grupo de homens pode
ser desafiado por mulheres. Hegemonia, então, é uma relação historicamente
móvel” (Tradução livre).
Berenice Bento
89

Slickers, comentou que as pessoas, principalmente os produtores de


filmes, acharam que, por causa de seus 71 anos de idade, ele já não
aguentava mais nada, não era mais competente. Segundo Palance,
eles diziam: “será que dá para arriscar com ele?” Ao dizer isso,
Palance jogou-se ao chão e fez algumas flexões apoiando-se em um
único braço.

It was pathetic to see such an accomplished actor still


having to prove that he is virile enough to work and, as
he also commented at the podium, to have sex. When
does it end? Never. To admit weakness, to admit frailty
or fragility, is to be seen as a wimp, a sissy, not a real man.
But seen by whom?46 (KIMMEL, 1994, p. 128).

Uma definição de masculinidade permanece como o referen-


cial de acordo com a qual outras formas de masculinidade são julga-
das e avaliadas. Dentro da cultura dominante, a masculinidade que
define o homem branco, de classe média, de meia-idade, heteros-
sexual, é a masculinidade que estabelece os padrões para os outros
homens pelos quais são julgados e, na maioria das vezes, considera-
dos incompletos.
A masculinidade hegemônica constrói a imagem de mascu-
linidade dos homens que detêm o poder, e que se tornou o modelo
em avaliações psicológicas, pesquisas sociológicas, e literatura de
autoajuda que aconselha os jovens a se tornarem “homens de ver-
dade”. A definição hegemônica apresenta o homem no poder, com
o poder e de poder. A masculinidade torna-se sinônimo de força,
sucesso, capacidade, confiança, domínio, controle. As definições de

46 “Foi patético ver um ator tão talentoso ainda ter que provar que é viril o suficien-
te para trabalhar e, como ele também comentou no pódio, fazer sexo. Quando
isso vai acabar? Nunca. Admitir a fraqueza e admitir a fragilidade deve ser vis-
to como um fraco, um covarde, não um homem real. Mas visto por quem?”
(Tradução livre).
90 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

masculinidade que a sociedade brasileira desenvolveu conservam o


poder de alguns homens sobre os outros e sobre as mulheres.
Assim, a definição de masculinidade em nossa cultura cons-
titui-se em diversas histórias simultâneas: da busca individual do
homem pela acumulação daqueles símbolos culturais que denotam
masculinidade, que indicam que ele a alcançou efetivamente; daque-
les padrões usados para se evitar que as mulheres incluam-se na vida
pública e que sejam remetidas para uma esfera privada desvalori-
zada; do acesso diferenciado que os diferentes tipos de homens têm
aos recursos culturais que conferem masculinidade e de como cada
um desses grupos passa a desenvolver modificações próprias para
preservar e reivindicar sua masculinidade. Trata-se do poder que
estas definições por si só têm para a preservação do poder efetivo
que o homem exerce sobre a mulher e que alguns homens exercem
sobre outros homens.
O modelo hegemônico exalta a virilidade, a posse, o poder,
a violência, a competitividade, mas apenas uma pequena parcela
da população masculina preenche as condições desse modelo. Para
Nolasco (1995), o masculino, como categoria que serve a um con-
junto de identificações e comportamentos, configura para o indi-
víduo como um campo de representação comprometido com a
visibilidade do empírico. A ação, o fazer, o realizar e o desempenho
colocam os homens continuamente diante da questão do uso e da
legitimidade de seus comportamentos.
A masculinidade hegemônica constrói uma ideologia que lhe
dá sustentação, podendo ser caracterizada por um conjunto coerente
de ideias que busca justificar, por meio de construções cognoscíveis
e discursivas as práticas dos homens. Na nossa sociedade, a ideologia
da masculinidade hegemônica define padrões de comportamento
que devem ser seguidos pelos homens e se estrutura com base em
relações assimétricas entre os gêneros. Embora tal ideologia construa
Berenice Bento
91

discursos com a intenção de subordinar a mulher e desvalorizar tudo


que se refere ao feminino, não são necessariamente, ou em seu todo,
dirigidos à mulher, mas também ao outro, ao homem, ao opositor
real e potencial.
Uma determinada forma hegemônica de masculinidade con-
vive com outras masculinidades agrupadas ao seu redor. Connell
(1987) define três outros tipos47: 1) A masculinidade subordinada:
os homens heterossexuais estabelecem uma relação de subordinação
e opressão com homens gays; 2) A masculinidade cúmplice: homens
que, embora não façam parte do tipo hegemônico, aproveitam-se
dos dividendos do patriarcalismo. Em geral, este tipo de masculini-
dade ignora as questões sociais, como as desigualdades econômicas,
para se concentrar nos problemas psicológicos, além de aceitarem
a estrutura hierárquica das relações de gênero; 3) A masculinidade
marginalizada: são homens negros, que pela sua raça são excluídos e
tidos como inferiores.

Because gender is a way of structuring social practice in


general, not a special type of practice, it is unavoidably
involved with other social structures. It is now common to
say that gender “intersects” – better, interacts – with race
and class. We might add that it constantly interacts with
nationality or position in the word order. This fact also
has strong implications for the analysis of masculinity.
White men’s masculinities, for instance, are constructed
not only in relation to white women but also in relation
to black men48 (CONNELL, 1987, p. 75).

47 Esta tipologia se refere à sociedade norte-americana.


48 “Porque gênero é uma maneira de estruturar a prática social em geral, e não
um tipo especial de prática está inevitavelmente envolvido com outras estruturas
sociais. Agora, é comum dizer que o gênero ‘cruza’ – melhor, interage – com raça
e classe. Poderíamos acrescentar que interage constantemente com a nacionali-
dade ou posição na ordem das palavras. Esse fato também tem fortes implicações
92 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Os homens entrevistados para esta pesquisa discordam da


ideologia da masculinidade hegemônica, que preza pela virilidade,
competição e performance. Mas também não seria correto defini-
-los como subordinados, cúmplices ou marginalizadas, visto que: 1)
definem-se como heterossexuais; 2) têm uma postura altamente crí-
tica em relação aos modelos comportamentais masculinos, baseados
no modelo hegemônico; 3) não são negros.
A tipologia apresentada por Connell é interessante à medida
que chama a atenção para a multiplicidade de masculinidade que
pode coexistir no mesmo espaço social, no momento em que se pro-
cessa o cruzamento com outras variáveis sociais. É um processo de
desconstrução da representação de homem apoiada na expressão de
um desempenho viril, dominador, violento e possessivo, deixando
de ser legítima quando se refere a todo e qualquer homem. Neste
processo analítico de desconstrução, o masculino, como único con-
ceito orientador e gerador de referências para o comportamento dos
homens (NOLASCO, 1995), volatiza-se.
Para contemplar o universo pesquisado, talvez seja adequado
defini-lo como masculinidade crítica. Crítica no sentido de que há
uma reflexividade tanto do modelo inculcado na socialização primá-
ria, identificado como tradicional ou hierárquica, como uma nega-
ção ou até uma repulsa, por parte dos entrevistados, dos homens
que atualmente performatizam esse modelo. Para citar apenas um
exemplo:

Eu vejo que o pessoal do meu trabalho é muito machista, um


machismo exacerbado. Os homens, quase todos, têm suas
amantes dentro do hospital, transam com as enfermeiras
ou então com pacientes. Os homens na roda ficam o tempo

para a análise da masculinidade. Masculinidades homens brancos, por exemplo,


são construídas, não só em relação ao homem branco, mas também em relação
aos homens negros” (Tradução livre).
Berenice Bento
93

inteiro falando “eu transei com fulana”, ou “eu comi ‘não


sei quem’”, que fulana é feia, que fulana ‘não sei o quê’...
Falando de vulgaridades, coisas assim que eu acho que
não têm nada a ver falar, não [...]. Um quer contar mais
vantagem que o outro. Lembra naquela época antiga que
todo mundo era caçador: “eu matei uma onça”, “eu matei
um leão”. O outro: “olha, eu matei um elefante”. O tempo
inteiro jogando aquelas vantagens, aquelas coisas que fez,
para mostrar desafio. “Pô cara, fui num motel, transei meia
hora com a mulher, três horas com aquela mulher, conquis-
tei mais outra e ‘não sei o quê’”. Tudo nesse sentido assim.
São uns babacas [...]. Eles não mudaram, só envelheceram
de idade, mas são imaturos emocionalmente. São imatu-
ros, superimaturos. Não têm sensibilidade (Olavo).

Os próprios homens percebem a diferença entre os tipos de


masculinidade. Rui, outro entrevistado, comparou sua relação com
os filhos e com a esposa, com a relação que seus cunhados têm.

Eu encontro muita reação dos colegas quando falo o meu


jeito de agir. Os meus colegas dizem: “é o seguinte, a minha
mulher é quem vai buscar o menino no colégio”. E eu
quando pergunto: “por que você não faz isso?” “Ah, não.
Isso aí a minha mulher é que tem que fazer”. Levar menino
no médico, por exemplo, é a mãe sempre. Eu questiono
isso. E eu noto uma irritação muito grande quando falo
sobre isso. Eles não querem escutar nem discutir isso. A
maioria não quer escutar. Inclusive meus concunhados lá
do Nordeste, que são assim o protótipo perfeito e acabado
desse espírito machista que acha que cabe às mulheres fazer
o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos etc. Eles che-
gam a me considerar um mau exemplo quando eu chego lá.
São daquele tipo que ficam sentados na mesa, esperando
tudo na mão. Eu já vi e presenciei na hora eu não consegui
94 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

me controlar. Acabo provocando uma discussão. Como é


que pode? “Oh, vai preparar um suco ali para mim”. Eu já
vi isso. Ela com criança, lidando com a criança e tendo que
parar e ele ali sentado, nem para pegar o filho no colo. Eu
acho aquilo um absurdo (Rui).

A masculinidade hegemônica caracteriza-se pela agressivi-


dade, competitividade, e a arena onde estas se desenvolvem é a esfera
pública, onde deve ser testada e aprovada. Trata-se de uma arena de
cunho sexual, como salientou Scott, onde as tensões entre homens e
mulheres e entre diferentes grupos de homens possuem um grau de
significado diferente. Estas tensões sugerem que as definições cultu-
rais do masculino e feminino ocorrem em um campo competitivo e
que são relações de poder por si só.
Para Kimmel (1994), alguns enunciados sintetizam a ideolo-
gia masculina hegemônica:
1) “Não seja mariquinha!”: o indivíduo em hipótese alguma pode
fazer algo que mesmo remotamente sugira feminilidade. A mas-
culinidade é a implacável repulsa ao que é feminino.

2) “Esteja sempre por cima”: a masculinidade é julgada por meio do


poder, sucesso, riqueza e posição social.

3) “Seja durão”: a masculinidade depende da preservação da calma


e firmeza em momentos de crise, e de se conter as emoções
quando necessário. Para provar que é homem, nunca se deve
demonstrar emoção alguma.

4) “Menino não chora”.

5) “Não amoleça para ninguém”: seja atrevido e agressivo. Vá com


tudo. Arrisque-se.

O fracasso na aplicação destas regras, na ratificação do seu


poder e da sua conquista constitui-se como fonte de perturbação
Berenice Bento
95

e sofrimento. Tal modelo é, obviamente, imperceptível para todo


homem. Mas o homem não pode parar de tentar provar seu pró-
prio valor. A masculinidade é um teste implacável e permanente.
Para muitos teóricos (BADINTER, 1992; RUTH HARTLEY
apud BADINTER, 1992; CHODOROW, 1979; KIMMEL, 1995;
CONNELL, 1987), o teste principal encontra-se na primeira regra.
Ser homem significa “não ser como as mulheres”. Esta noção de anti-
feminilidade reside no centro das concepções de masculinidades, de
modo que a masculinidade é definida pela negativa: ser homem é
não ser mulher49.
Segundo estes teóricos, a fuga da feminilidade dá-se de modo
raivoso e desesperado, pois a mãe pode facilmente emascular o garoto
com o seu poder de torná-lo dependente, ou ao menos de relembrá-
-lo de sua dependência. Trata-se de algo inflexível: a masculinidade
torna-se uma eterna busca para se demonstrar sua conquista, para
provar aos outros o impossível de se provar. O homem tem medo de
assumir inseguranças e dúvidas porque, se o fizer, pode ser julgado
como sendo um fraco. Como enfatizou um dos meus entrevistados:
“é claro que todo homem tem medo, sente solidão, angústia, mas não
fala. Não é que ele não queira falar, mas se falar ele tá colocando a
própria cabeça para ser cortada”.
Para Kimmel (1994), uma leitura mais psicanalítica da cons-
trução da identidade masculina sugere que tal esforço (no sentido
de repudiar a mãe) como indicação de aquisição da identidade mas-
culina, tem três consequências para o garoto. Primeiro, ele afasta de
si a verdadeira mãe, e com ela os traços de sustento, compreensão
e ternura que ela possa ter personificado. Segundo, ele reprime em

49 É neccessário ressaltar que tal abordagem deve ser relacionada a contextos so-
ciais específicos. Não se está afirmando que em todas as sociedades a construção
da masculinidade passe pela negação do feminino. Na nossa sociedade, qualquer
vinculação do homem a características comportamentais do gênero feminino é
suficiente para identificá-lo como gay e ser desvalorizado socialmente.
96 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

si próprio tais traços, pois eles revelam a separação incompleta da


mãe. Terceiro, sua vida torna-se um eterno projeto para demonstrar
que não possui nenhum dos traços da mãe. A identidade masculina
nasce do não reconhecimento do feminino, não da afirmação direta
do masculino, o que deixa a identidade masculina delicada e frágil.
Aragão (1983) observa que “mãe” é tida como uma categoria
central nas culturas mediterrâneas, tendo o Brasil absorvido muito
dessa cultura. A virtude sexual da mãe simboliza a honra da família e
da solidariedade moral. A noção da mãe dedicada, que se “sacrifica”
pela família, engloba o feminino. O homem ao casar-se vê a mulher
como esposa-mãe. No momento em que as mulheres rompem com
este modelo de continuidade, afirmando-se como indivíduos, aquilo
que conferia honra a família (a esposa-mãe santificada, idolatrada)
não existe mais, o que desencadeia um processo de violência dos
homens sobre as mulheres.
Para Aragão, o fato de não haver um processo de iniciação
para a construção da masculinidade nas sociedades modernas, prin-
cipalmente nas classes médias, gera uma dependência permanente
dos homens em relação à mãe. A figura da “mãe” ocupa posição cen-
tral e é investida de um valor sagrado. O desejo dos homens ao se
casarem é transformar a categoria “esposa” em “mãe”.
Para serem considerados masculinos, os homens aprendem
em geral o que não devem ser antes de aprenderem o que podem
ser, fazendo com que sua identidade seja construída negativamente,
e com que a aprovação e reconhecimento do homem como membro
do gênero masculino ocorra a partir da relação com outros homens
e da aprovação social masculina.
Os ritos de iniciação têm como objetivo preparar os homens
para uma nova fase de suas vidas e, de forma geral, são realizados
sem a presença da mulher. Várias etnografias descrevem ritos de
passagem, nos quais a criança é afastada do convívio da mãe ou de
Berenice Bento
97

qualquer outra mulher. Nesta pedagogia da virilidade, pode-se veri-


ficar alguns pontos em comum, entre os mais diversos ritos descritos
pelas etnografias: a ideia de um limiar crítico a transpor, necessidade
da prova (conquista, superação), ausência dos pais. São principal-
mente rapazes mais velhos ou homens adultos que se ocupam da
“masculinização” dos mais jovens (BADINTER, 1992).
Com referência em estudos de vários ritos de iniciação aos
assuntos e ao mundo masculino, Badinter sugere três etapas: 1) sepa-
ração da mãe; 2) transferência para um mundo desconhecido; 3)
passagem por provas dramáticas e públicas.
Os processos rituais, que têm como objetivo fazer “nascer” o
homem dentro dos meninos, mudam de cultura para cultura. O pre-
núncio do começo da iniciação dos meninos na Sambia é feito por
meio do som das flautas. Eles vão para floresta e, durante vários dias,
são chicoteados até sangrar, para a pele se abrir e estimular o cresci-
mento. Folhas de urtiga são batidas por todo corpo e devem sangrar
pelo nariz para se livrarem dos líquidos femininos que os impedem
de se desenvolver. Para eles, o corpo dos jovens não produz natu-
ralmente o esperma, como a menstruação nas meninas. Somente a
felação dos homens jovens pode ativar a produção espermática nos
meninos. No terceiro dia, é revelado o segredo das flautas, que eles
jamais deverão revelar às mulheres, sob pena de morte. Entre os
Baruya, para os meninos separarem-se das mães e do mundo femi-
nino, são necessários dez anos de segregação sexual e quatro grandes
cerimônias.
São os homens os responsáveis pelo ensinamento desta peda-
gogia da virilidade aos outros homens, ou seja, “é o homem que
engendra o homem” (ARISTÓTELES apud BADINTER, 1992, p. 80).

Dos gregos aos Sambia, dos romanos aos escandinavos na


Idade Média, dos samurais japoneses aos Baruya, todos
98 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

pensavam que a verdadeira virilidade passava pela rela-


ção entre dois homens (BADINTER, 1992, p. 80).

Se os ritos de iniciação têm como função a construção da


identidade masculina a partir da negação do feminino, a vigilância
das práticas dos homens já iniciados também é realizada por outros
homens. Eles observam, avaliam, concedem permissão para entrar
no universo da masculinidade, que tem que ser demonstrado para a
aprovação dos outros homens. Neste sentido, a masculinidade pode
ser tida como um projeto sempre inacabado, que está sempre sendo
colocado à prova para ser avaliado por outros homens.

Literary critic David Leverenz argues that “ideologies of


manhood have functioned primarily in relation to the
gaze of male peers and male authority”. Think of how men
boast to one another of their accomplishments – from
their latest sexual conquest to the size of the fish they
caught – and how we constantly parade the markers of
manhood – wealth, power, status, sexy women – in front
of other men, desperate for their approval50 (KIMMEL,
1994, p. 129).

50 “O crítico literário David Leverenz argumenta que ‘ideologias masculininas têm


funcionado principalmente em relação ao olhar de pares masculinos e autorida-
de masculina’. Pense em como os homens se vangloriam de outras de suas reali-
zações - a partir de sua última conquista sexual, como o tamanho do peixe que
pegou - e como desfila constantemente os marcadores de masculinidade - rique-
za, poder, status, as mulheres sensuais - na frente de outros homens, desesperado
para a sua aprovação” (Tradução livre).
Berenice Bento
99

3.1 Masculinidade e homofobia

Para Kimmel, o fato dos homens provarem sua masculini-


dade perante outros homens é tanto uma consequência do machismo
como um de seus principais sustentáculos. No entender do homem,
é tão baixa a posição que a mulher ocupa na sociedade, que é inútil
a tentativa de definir a si próprio em relação à mulher. A mulher
torna-se uma espécie de moeda que o homem usa para melhorar
sua colocação na escala social masculina. A masculinidade é um
processo de aprovação social masculina: “we test ourselves, perform
heroic feats, take enormous risks, all because we want other men to
grand us our manhood”51 (KIMMEL, 1994, p. 129). Admitindo-se
que a masculinidade é uma aprovação social, sua emoção dominante
é o medo. Medo em ser confundido com mulher, medo que os outros
homens percebam a sensação de insuficiência.
A homofobia é um princípio lógico fundamental em nossa
definição cultural de masculinidade. A homofobia é mais do que o
medo irracional de gays, mais do que o medo de ser considerado gay.
A homofobia é o medo de que outros homens desmascarem, emas-
culem, revelem aos próprios homens como ao mundo, que aqueles
que se dizem homens não são dignos, não são homens de verdade.
Medo de deixar outros homens verem este medo. O medo provoca
também uma sensação de vergonha, pois o reconhecimento do medo
é uma prova para os próprios homens de que não são tão másculos
quanto simulam ser.
Kimmel cita uma “armadilha” que os adolescentes fazem para
saber se o colega é homem ou gay: pedem ao garoto que olhe para as
unhas dos dedos das mãos. Se ele virar a palma da mão para o rosto

51 “Nós nos testamos, falamos dos feitos heróicos, de assumir riscos enormes, tudo
porque queremos que outros homens engradeza nossa humanidade” (Tradução
livre).
100 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

e dobrar os dedos para olhar, passa no teste: ele é homem. Mas, se


esticar o braço e deixar a mão espalmada para mirar as unhas são
imediatamente ridicularizados. É como se houvesse uma polícia
sexual entre os próprios homens, que controla a forma como os cole-
gas estão andando, que deve ser com passadas largas e pernas separa-
das; como seguram os livros, se os levarem muito apertados contra o
peito pode levantar suspeitas; nas cores das roupas; no modo de con-
versar. Todo trejeito, todo movimento transmite um código sexual52.

A maior parte dos rapazes internaliza essa norma social


e adota maneiras e interesses masculinos, tendo como
custo, frequentemente, a repressão dos seus sentimentos.
Esforçar-se de forma demasiadamente árdua para corres-
ponder à norma masculina pode levar à violência ou à
crise pessoal e a dificuldades nas relações com as mulhe-
res (CONNELL, 1995, p. 190).

Nesse sentido, a homofobia, o medo de se ser considerado


gay , faz com que os homens exagerem em todas as regras tradicio-
53

nais de masculinidade, inclusive na prática de se procurar ter relações

52 Nas páginas anteriores (Capítulo I), referindo-me à experiência de geração dos


entrevistados, citei Winick (1972, p. 32), segundo o qual estava sendo gestada
uma “despolarização comportamental entre os sexos”. Ao fazer tal afirmação,
não estava propondo uma generalização para toda sociedade brasileira. Na ver-
dade, acredito que, ao mesmo tempo em que há uma despolarização em alguns
setores da sociedade, há diversas reações às mudanças. Entre elas destaco o res-
gate, às vezes de forma violenta, da homofobia.
53 Um caso de homofobia marcante aconteceu no povoado de Santo Antonio dos
Barreiras, no estado do Rio Grande do Norte, no dia 23 de maio de 1997. O
comerciante e ex-soldado Genildo Ferreira matou 15 pessoas a tiros ao longo de
22 horas consecutivas. Ao ser capturado, disparou um tiro no próprio peito. A
ira do comerciante foi provocada pelos boatos espalhados na cidade, que colo-
cavam dúvidas sobre sua virilidade. Para provar que não era gay, Genildo utili-
zou um dos principais qualificadores do “ser homem” na sociedade brasileira: a
violência.
Berenice Bento
101

sexuais com quantas mulheres for possível. Homofobia e machismo


caminham de mãos dadas.
Os homens ficam deprimidos devido à perda de prestígio e
poder no universo masculino. Não se trata da perda de dinheiro ou
dos bens materiais que o dinheiro poderia comprar. Estes não geram
o desespero e, potencialmente, a autodestruição. Trata-se da “vergo-
nha”, da “humilhação”, da sensação de “fracasso” pessoal. O homem
entra em desespero quando deixa de ser homem entre os homens,
quando outros homens riem dele.
A homofobia está intimamente ligada tanto ao machismo
quanto ao racismo. O medo, que pode ser consciente ou não, de que
outras pessoas possam considerá-los homossexuais obriga-os a acei-
tar todo o exagero de algumas formas de comportamentos e pontos
de vista masculinos, para ter a garantia de que não haja a possibili-
dade de alguém fazer uma ideia equivocada ao seu respeito.

One of the centerpieces of that exaggerated masculinity is


putting women down, both by excluding them from the
public sphere and by the quotidian put-downs in speech
and behaviors that organize the daily life of the American
men. Women and gay men become the “other” against
which heterosexual men project their identities, against
whom they stack the decks so as to compete in a situation
in which they will always win, so that by suppressing
them men, can stake a claim for their own manhood54
(KIMMEL, 1994, p. 134).

54 “Uma das peças fundamentais da masculinidade é colocar as mulheres para bai-


xo, tanto por excluí-las da esfera pública, e pelo cotidiano coloca-lás para baixo
nas falas e comportamentos que organizam a vida diária dos homens america-
nos. Mulheres e homens gays se tornaram o “outro” contra o qual os homens
heterossexuais projetam suas identidades, contra quem empilham seus bara-
lhos para competir na situação em que eles vão ganhar sempre, de modo que,
suprimindo-os, podem apostar na reivindicação de sua própria masculinidade”
(Tradução livre).
102 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A homofobia é uma das forças motrizes da definição de mas-


culinidade hegemônica; a definição de masculinidade prevalecente é
um esforço defensivo para se evitar ser emasculado. Com os esforços
dos homens para reprimir ou superar medos, a cultura dominante
cobra um preço alto daqueles considerados não plenamente más-
culos: os gays, os homens negros, os homens sensíveis, os homens
bissexuais, os homens pobres. Esta perspectiva poderá ajudar a escla-
recer um paradoxo na vida dos homens, um paradoxo no qual os
homens têm praticamente todo o poder e ainda assim não se sentem
poderosos.
A dimensão de poder é agora reinserida na experiência do
homem não apenas como o produto da experiência individual, mas
também como o produto das relações com outros homens. Neste
sentido, a experiência de impotência do homem é real – o homem
a sente de fato e nela certamente age – mas ela não é legítima, isto é,
ela não é exata ao descrever sua condição. Em contraste com a vida
da mulher, a do homem é estruturada com base em relações de poder
e no acesso diferenciado que o homem tem ao poder, bem como o
acesso diferenciado ao poder do homem visto coletivamente.
4
A emergência de uma
nova subjetividade?

A o longo dos últimos anos, inúmeros estudos foram reali-


zados com o objetivo de compreender como as transfor-
mações macro, pelas quais passaram o Brasil, foram “traduzidas”
no campo da subjetividade55 e geração (VELHO, 1985, 1986), na
família (VAITSMAN, 1994, 1995; NICOLACI-DA-COSTA,
1985; FIGUEIRA, 1985a, 1985b, 1987), na infidelidade mascu-
lina (GOLDENBERG, 1995), no casamento e relações de gênero

55 Quando se fala em subjetividade refere-se ao nível imaginário, às emoções, às


fantasias, aos desejos, aos medos pertencentes a cada sujeito. Figueira (1987) de-
nominou o estudo da subjetividade como o campo “sociologicamente invisível”.
104 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

(SALEM, 1986; HEILBORN, 1992a, 1992b, 1993), e na maternidade


(MENDES DE ALMEIDA, 1987).
De uma forma geral, estes estudos têm como recorte empí-
rico homens e mulheres pertencentes à camada média urbana e se
inserem em um corpo de estudo mais amplo, que poderia ser cha-
mado de estudos sobre a relação entre subjetividade e sociedade
em contextos contemporâneos. Estes estudos buscam compreender
como as mudanças de caráter macro vão interferir nas múltiplas rela-
ções sociais.
No governo JK, o Brasil passa a ter um parque industrial
de bens de consumo duráveis, que necessitou de uma mão de obra
com especialização. Foi um período em que se abriram as portas às
empresas multinacionais. Tal processo de inclusão no Brasil no rol de
países industrializados esteve assentado no ideário desenvolvimen-
tista. Nesse período, o crescimento urbano, comercial e industrial
propiciou a emergência de uma classe média urbana constituída de
profissionais liberais, pequenos comerciantes, industriais e funcio-
nários públicos.
No Brasil, urbanização e industrialização andaram de mãos
dadas e propiciaram o aumento de oferta de emprego em ocupações
mais especializadas. A possibilidade do sucesso profissional e/ou
ascensão social passou a estar vinculada ao acesso às universidades
ou à mudança para a cidade grande.
O crescimento industrial, a urbanização, o florescimento da
indústria cultural, a intensificação da organização dos operários e
trabalhadores rurais, a proliferação de partidos e organizações de
esquerda, o aumento da produção e consumo de bens de consumo
não duráveis e o crescimento das cidades davam provas de que o
Brasil passava por mudanças macros que certamente iriam repercu-
tir em outros níveis das relações sociais, para além das econômicas.
Berenice Bento
105

Este processo de aceleração da composição orgânica do capi-


tal no Brasil afetará as práticas da vida cotidiana, assim como a forma
de articulação das relações de gênero (VAITSMAN, 1994), sendo
a universidade um locus de gestação de novos códigos e modelos
comportamentais.
Os jovens que ingressaram nas universidades em meados da
década de 1960 ajudaram a construir novos códigos comportamen-
tais que questionaram um leque muito amplo do sistema simbólico
de seus pais, entre outros podemos citar: a forma de funcionamento
das famílias; a virgindade como símbolo do maior “patrimônio”
feminino; a vinculação do sexo com a reprodução; o código moral
assimétrico dos gêneros, que legitimava as condutas masculinas e
femininas como opostas e excludentes.
Alguns dos questionamentos e rupturas arrimaram-se na
ideia de que homens e mulheres devem escolher e decidir os seus
destinos, de forma livre e autônoma, sem serem constrangidos pelas
normas e interdições sociais. Articulam-se discursos que valorizam
o indivíduo como unidade psíquica única. Nas décadas de 1960/70,
a ideologia individualista funciona como substrato dos movimen-
tos políticos e sociais que propunha novas linguagens e códigos
comportamentais.
No entanto, o rápido processo de modernização industrial
pelo qual o Brasil passou não teve o mesmo ritmo no campo das
subjetividades, principalmente quando se pensa em subjetividade
masculina. Para Nolasco (1993), os homens começam a discutir o
significado de ser homem na década de 1960, fornecendo as bases
para o que hoje está sendo discutido. Para ele, uma nova subjetivi-
dade masculina começou a ser construída no final da década de 1960,
sendo a Tropicália, por meio das letras de Gilberto Gil e Caetano
Veloso, um dos seus suportes.
106 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

No entanto, tão importante como tentar precisar o momento


histórico em que começou a se constituir uma nova forma de defi-
nição de ser homem, é buscar destacar que tal processo não ocorreu
de uma forma tranquila e sem embates com os padrões socialmente
aceitos. Talvez hoje pareça banal ver um homem de cabelos grandes,
usando brincos, cuidando dos filhos, declarando que se emociona e
chora sem vergonha. Esta banalidade esconde uma história de dis-
puta entre valores tradicionais e modernos.
Mesmo que se concorde que há uma “tolerância” social em se
conviver com este tipo de masculinidade, também é necessário que
se note que o tipo hegemônico está muito mais para homens porta-
dores de uma subjetividade como a do personagem Paulo Honório,
do romance neorrealista de Graciliano Ramos, São Bernardo. O
autor construiu um personagem portador de uma masculinidade
que exalta a astúcia, não hesita em amedrontar ou corromper para
conseguir o que deseja, vê tudo e todos ou como inimigos ou como
objetos, cujo único valor é o lucro que possam lhe dar.
A relação que Paulo Honório estabelece com sua esposa,
Madalena, é marcada pela pressão, ciúme e controle, a tal ponto
que ela não suporta tanto sofrimento e se suicida. Na velhice, Paulo
Honório está só e revê sua vida.

Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se


uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e
dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se
cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando
comida! E depois guardar comida para os filhos, para os
netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porca-
ria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?... A culpa foi
minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me
deu uma alma agreste (RAMOS, 2003, p. 248).
Berenice Bento
107

A alma agreste de Paulo Honório significa um tipo de subjeti-


vidade masculina deserta, seca, inóspita. É esta forma de organizar as
emoções, o imaginário, o desejo, as relações que passam a ser ques-
tionadas pelos entrevistados, através de conflitos, angústias, pois, o
modelo de homem com qual eles foram socializados estava muito
próximo do encarnado por Paulo Honório. Construir novas formas
de se relacionar com suas emoções, com as mulheres, com os filhos
e com outros homens exige deles um nível de elaboração e reflexão
sobre o mundo à sua volta e sobre seu lugar nesse mundo.
Para entender como os entrevistados organizam suas subje-
tividades, foram particularmente importantes os trabalhos de Velho,
Figueira e Nicolaci-da-Costa. Esses autores, cada um ao seu modo,
buscam entender como a coexistência de códigos simbólicos dife-
rentes nas subjetividades dos indivíduos gera conflitos existenciais
(VELHO, 1986), desmapeamentos (FIGUEIRA, 1987) e descon-
tinuidades (NICOLACI-DA-COSTA, 1985), fazendo com que a
identidade social e de gênero sejam elaboradas a partir de questões
como: eu sou o que os outros acham que sou? Sou o que faço? Sou
uma somatória dos diversos papéis que desempenho e, portanto, de
minhas diferentes performances? Tenho uma marca anterior ao que
faço e aos papéis que desempenho? Tenho um self independente da
visão que os outros têm de mim?
Quando os indivíduos começam a se colocar estas questões, a
duvidar da própria identidade, é porque houve um encontro confli-
tante entre visões de mundo nas suas subjetividades. Estes processos
materializam-se nas ações do cotidiano por meio do efeito de desma-
peamento. O desmapeamento caracteriza-se pela

[...] coexistência de mapas, ideais, identidades e normas


contraditórias nos sujeitos. O desmapeamento não é a
perda ou simples ausência de “mapas” para orientação,
mas sim a existência de mapas diferentes e contraditórios
108 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

inscritos em níveis diferentes e relativamente dissociados


dentro do sujeito (FIGUEIRA, 1987, p. 23).

No caso desta pesquisa, notou-se que há mapas que se cru-


zam nas subjetividades dos homens, um identificado com a ideolo-
gia hierárquica, outro com a ideologia individualista.
Sob o prisma da relação “tradicional-moderno”, as trans-
formações na identidade masculina consistem na dissociação entre
os valores com que os homens foram socializados primariamente
(identificados como tradicionais, que estabelecem posições fixas,
assimétricas e hierarquizadas para os gêneros dentro da estrutura
social) e os valores que foram sendo incorporados ao longo de suas
vidas (identificados com a igualdade, simetria, liberdade entre os
gêneros). Isso gera uma descontinuidade socializatória à medida que
foram socializados para estruturarem suas ações de acordo com uma
identidade masculina baseada na competição, na agressividade, na
violência, na repressão dos sentimentos.
Mas até que ponto orientações ou visões de mundo diferen-
tes, coexistindo na subjetividade, geram conflitos ou crises? Para
alguns autores (VELHO, 1986; HEILBORN, 1984; FIGUEIRA, 1987;
NICOLACI-DA-COSTA, 1985), esse processo é sentido pelos ato-
res sociais por meio de crises de identidade, visto que a busca da
coerência nas ações faz com que optem entre um código de con-
duta identificado com o moderno ou com o tradicional, por meio
de um processo de equacionamento interior, marcado por conflitos
existenciais.
Esse processo de questionamento e rompimento, com as defi-
nições sociais do que seja ser um “homem com ‘H’ maiúsculo” tem
sido um grande desafio para os entrevistados. Para Paulo,

Essa coisa do macho imperdemido, duro, é uma coisa que a


gente suporta. A gente aprende que homem não tece a dor,
Berenice Bento
109

aguenta tudo no osso do peito. Não é uma coisa construída


de dentro para fora. É imposta, e para mim, eu reconheço
que aquela imagem, aqueles papéis foram muito bravos,
que foi difícil depois abrandá-los [...]. Eu posso dizer que
me tornei mais sensível à base de terapia, à base de muito
sofrimento até hoje (Paulo).

Paulo ilustra a dificuldade de romper com estes modelos,


contando que, mesmo depois de anos de terapia, de se considerar
uma pessoa mais sensível, viu-se reproduzindo a mesma fala dos
seus pais para um sobrinho.

Eu me lembro que eu me peguei dizendo para um meu


sobrinho assim: “porra, tu não é homem?” E aí tinha um
amigo da época do movimento estudantil que falou: “o que
é que você tá dizendo para esse menino?”. Meu sobrinho
tinha 18 anos, estava morando com minha irmã casada.
Ele tinha tido um desentendimento com ela e foi na minha
casa e disse que queria morar lá: “não, não te aceito para
morar aqui, acho que você tem que resolver esse problema
com a minha irmã”. “Ah, mas eu não quero falar com ela,
estou com medo...”, e eu espontaneamente falei: “você não é
homem cara, vai lá e assume”. Esse é um argumento meio
forte, mas era assim que se dizia (Paulo).

Nos momentos em que os homens têm de dizer ao filho o


que é “certo” e o que é “errado”, ou seja, quando atuam como agentes
responsáveis pela socialização, dois mapas interpõem-se na sua ação:
um identificado com o modelo no qual ele foi socializado e qualifi-
cado como tradicional, outro, incorporado ao longo dos anos, por
intermédio do encontro com outras visões de mundo e das terapias.
A busca da coerência, a partir do cruzamento dos vários
mapas internalizados, pode ser estudada sob vários aspectos. No
caso desta pesquisa, o interesse é observar como os entrevistados
110 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

refletem sobre sua condição de homem, que convive com uma defi-
nição tradicional das obrigatoriedades de ser homem e com a insatis-
fação diante deles. Nesta faixa etária, o conflito é mais latente porque
o aspecto da reprodução da ordem social impõe-lhe a busca da coe-
rência de uma forma mais aguda.
Para Carlos, exercer a sensibilidade tem sido um grande
desafio, principalmente com seus filhos. Para ele, fazer carinho, colo-
car os filhos no colo, beijá-los, abraçá-los, tem sido barreiras muito
difíceis a transpor.

Na realidade, eu estou num processo de crescimento. Então,


às vezes, a situação anterior na qual eu fui criado vem
muito à tona, me puxa muito. Ainda falo para o meu filho
– você é muito fraco, rapaz. Nestes momentos, é como se
o outro lado me puxasse. Colocar para meu filho que, se
ele agir assim, está demonstrando fragilidade é desqualifi-
car aquilo que você está fazendo. “Você fazendo uma coisa
dessa, rapaz!” Então quando eu passava isso para o meu
filho, em determinados momentos, me vi fazendo exa-
tamente como o meu pai fez comigo. Mas, eu já consigo
fazer este distanciamento. Às vezes, não consigo naquele
momento de reação a uma situação. De repente, é como se
fosse uma coisa automática – pá! Já saiu. E depois eu penso
comigo mesmo – pô, por que que você fez isso? Aí é como se
eu visse meu pai fazendo. [...] Outra coisa extremamente
difícil é fazer carinho nos meus filhos. É interessante isso,
porque com meus filhos está sendo muito difícil, acho que
pelo que eu recebi [...]. É coisa nova para eles também.
Porque em momentos de formação deles em que eu talvez
não tivesse feito isso. Isso talvez tenha marcado. Apesar de
que ultimamente até que eu sinto dele... Assim ele já tem
aceitado mais isso de fazer o contato comigo. Uma vez, eu
estava sentado ali (apontou para um banco), ele sentou no
Berenice Bento
111

meu colo. Eu procuro abraçar, responder a isso. Ficar em


contato com ele, dar a mão para ele ficar segurando, brin-
car, passar a mão no cabelo dele (Carlos).

O homem aprende, desde os primeiros momentos de sua


vida, a estruturar seu comportamento de tal forma que não demons-
tre qualquer sinal de sensibilidade, afetividade, inclusive com os
filhos, pois pode ser rotulado como um fraco.
Aprender a não chorar é um dos primeiros ensinamentos
sociais para o gênero masculino. Na escola, na igreja, na rua, na famí-
lia, sempre a mesma verdade: homem não chora. Aquilo que estru-
tura o comportamento dos gêneros é produzido desde a mais tenra
idade. São verdades sociais, impossíveis de relativização, que estrutu-
ram as disposições duráveis dos homens e mulheres, o habitus56. Por
isso que a subjetividade é mais reticente às mudanças. Negar racio-
nalmente um determinado padrão de comportamento não significa
que se passará a agir de outra forma imediatamente, fazendo com
que haja um convívio na subjetividade de mapas. Isto pode gerar um
processo de descontinuidade socializatória.
A descontinuidade significa que “áreas” da vida de uma
pessoa não são mais compostas por padrões e hábitos preexisten-
tes. As escolhas de estilo de vida constituem uma narrativa reflexiva
do eu, que tem que ser continuamente reelaborada. Esta investiga-
ção tentou perceber como este processo de reelaboração se dá na
esfera da subjetividade dos homens. Explicitando mais: procurou-se

56 Segundo o livro organizado por Ortiz, Bourdieu define habitus como “sistema
de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como
estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das prá-
ticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’
sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim
sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações
necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da
ação organizadora de um regente” (ORTIZ, 1983, p. 60).
112 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

entender como as disposições duráveis, ou o “habitus masculino57”


(BOURDIEU, 1996), que dizem respeito à estruturação da subjetivi-
dade masculina (a identidade masculina), assimiladas na socializa-
ção primária, são questionadas e vivenciadas.
O processo de formação da subjetividade masculina ocorre a
partir de algumas interdições que estarão presentes ao longo da vida
dos homens. Assim, falar sobre o significado do “choro” é remeter-
-se para o processo de formação da própria subjetividade e, neste
processo, a família aparece como o primeiro núcleo formador do
habitus.

4.1 A construção do habitus

Esta pesquisa parte do pressuposto de que todo agente social


é portador de um determinado sistema de disposições duráveis, um
habitus. Por meio da “manipulação” teórica desse conceito, pode-se
entender como os indivíduos, ao nascerem, já encontram uma com-
plexa rede de funções estruturadas, bem definidas e como, com o
convívio social, passam a interiorizar maneiras de ser comuns ao seu
gênero. É na socialização primária (BERGER; LUCKMANN, 1987)
que o indivíduo entra em contato com o mundo social, assumindo
como seu o mundo de outro. A socialização é o processo por meio do
qual o indivíduo é introduzido no mundo objetivo de uma sociedade
ou de um setor dela.
Na socialização primária os papéis sociais começam a se defi-
nir, passando progressivamente de uma esfera mais concreta para
outra mais abstrata. Por exemplo: quando a criança afirma “papai

57 Bourdieu utilizou a expressão “habitus masculino” (1996, p. 36) para se referir ao


processo formador da identidade masculina entre os Kabiles.
Berenice Bento
113

não quer que eu chore”, ocorre um nível de concretude diferenciado


de quando se afirma: “homem não chora”. No primeiro caso, as ações
desta criança são pautadas numa identidade reflexiva, no segundo, o
indivíduo

[...] identifica-se agora não somente com os outros con-


cretos, mas com uma generalidade de outros, isto é, com
a sociedade. Somente em virtude desta identificação
generalizada, sua identificação consigo mesmo alcança
estabilidade e continuidade (BERGER; LUCKMANN,
1987, p. 178).

Identificar-se é encontrar um lugar no mundo, um sentido


para as ações, é ver-se e ser reconhecido como homem a partir das
atribuições definidas socialmente ao homem. Um das marcas dis-
tintivas da masculinidade é a ausência de choro, ou qualquer mani-
festação do corpo que demonstre sensibilidade. Tornar-se homem é
um empreendimento social de longa duração. Para os entrevistados,
fazer o movimento de “desindenticação” com os valores assimila-
dos na socialização primária só foi possível por meio de, como disse
Olavo, “muito investimento em terapia”.
Todos os homens falaram que na sua infância o choro era
proibido, fosse a casa ou na rua, e do rompimento posterior que tive-
ram que processar com este padrão de masculinidade incorporado
na infância.

Para mim, extrair o choro é extremamente difícil. Hoje, eu


já choro com mais naturalidade e até com mais frequência.
Sou mais predisposto a me expor, porque chorar é expor
fraquezas. Principalmente para mim, eu trouxe muito isso
do choro ser fraco, sinônimo de fraqueza, homem que é
homem não chora. Então, quando você se expõe e começa a
chorar é um ato de dificuldade (Carlos).
114 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A construção dessa imagem do homem é muito forte, muito


difícil porque a gente não tinha dimensão da carga que era,
do peso. Mas eu acho, até agora, que ser homem é muito
difícil; esse estereótipo, essa coisa de ter que ser assim, a
dureza que a gente tinha que desenvolver, a agressividade.
Não podia ser nem sensível e nem delicado. Para gente, isso
não pintava. Era muito forte (Paulo).

Eu choro, eu choro. Agora, eu fui criado pela máxima de


que homem não chora, mas eu aprendi o quanto que é bom
chorar: “vou chorar”. Aliás, você já vê por aí algumas coisas,
até mesmo públicas, o homem chorando, artistas de televi-
são e tal. A geração dos meus pais e a comunidade onde eu
fui criado é muito machista. Eu fui criado na periferia do
Rio de Janeiro, num bairro chamado Cordovil, na Baixada
Fluminense, perto de Caxias, e a lei ali é a lei do mais forte.
Todos esses preconceitos machistas fizeram parte da minha
educação [...]. Hoje eu choro com um pouco mais de faci-
lidade, sem bloqueio e sem vergonha, até porque muitas
vezes a gente não solta a emoção exatamente pelos condi-
cionamentos de que homem não chora, é macho. Meu pai
falava muito isso. Eu hoje não tenho mais isso, se tiver que
chorar vou chorar mesmo, não tô preocupado (João).

O homem tem que chorar como qualquer pessoa, quer


dizer, como uma mulher. Eu acho que é um peso a mais
para a gente... Eu não vejo diferença. Mas existe isso. Eu
choro com dificuldade. Mas eu tenho vontade de chorar
muito mais. É muito difícil. Para você ter uma ideia, fazia
anos que eu não chorava. Outro dia eu chorei, mas fazia
muito tempo que eu não chorava. Acho que se eu chorasse
com mais facilidade seria melhor para mim (Cícero).
Berenice Bento
115

Por considerar a importância do mundo simbólico interio-


rizado na infância, Bourdieu afirma que o indivíduo não reconstrói
diariamente sua visão do mundo, nem mesmo sua forma de agir
sobre ele. Ao contrário, ele traz em si por um processo de inculcação
(ou “interiorização da exteriorização”), um “sistema de disposição
durável” (porque não foi produzido pelo indivíduo, é anterior a este),
um habitus, que funciona praticamente como uma bússola, determi-
nando as “condutas ‘razoáveis’ ou ‘absurdas’ para qualquer agente”
(BOURDIEU, 1983, p. 63) inserido em uma estrutura. Este é o prin-
cípio norteador da percepção e da apreciação de toda experiência
posterior.
O habitus permite ao ator adaptar-se a situações concretas. A
prática do agente social é o produto da relação dialética entre uma
situação e um habitus. Neste momento (do agir), o agente social exte-
rioriza uma “leitura” própria (fruto da interiorização da exterioriza-
ção) da situação vivida, tornando-o ao mesmo tempo um indivíduo
portador de uma personalidade singular e de um habitus social, con-
tribuindo para construir uma situação. Os sistemas de disposições
individuais são, portanto, variantes estruturais do habitus social.
Embora o indivíduo reestruture-o no confronto com outros habitus,
o seu habitus funciona em cada situação concreta como “uma matriz
de percepções e de ações” (BOURDIEU, 1983, p. 65).
Por ser portador dessa matriz geradora de sentido, ao mesmo
tempo em que interage com tantas outras matrizes, o agente social
pode desempenhar tarefas múltiplas, seguindo o princípio de impro-
visações regradas, no sentido de que a sua consciência não nasce a
cada momento: o modus operandi não está totalmente sob o controle
dos indivíduos; o habitus social faz parte das suas estruturas mentais.
Por esta afirmação, podemos concluir que os indivíduos por-
tadores de habitus iguais agiriam igualmente, o que não é verdade.
Na noção de desvio, conforme formulado por Bourdieu, encontra-se
116 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

a resposta: o habitus social é a matriz, mas há também os sistemas


de disposições individuais (desvios) adquiridos por constantes rees-
truturações ou ajustamentos, variando de acordo com as situações.
O grau de desvio que o indivíduo porta em relação à matriz gera-
dora varia. Eis o motivo de Bourdieu considerar que as ações dos
indivíduos podem assumir um caráter de ações coordenadas, mas
não totalmente, pois é o resultado do encontro de diferentes habitus,
sendo este o princípio da socialização.
As disposições duráveis que o agente interiorizou, confronta-
das com uma situação concreta, unem-se na sincronia para constituir
uma conjuntura determinada. Esse é o princípio fundamental da teo-
ria da ação em Bourdieu. Isto é o que garante a regularidade da vida
social: os sistemas de disposições duráveis renovam-se por meio das
ações dos agentes sociais, atualizando-se nas práticas estruturadas.
Tanto Berger e Luckmann quanto Bourdieu atribuem um
peso definidor das ações dos agentes à socialização primária, prin-
cipalmente à família. Mesmo que os valores interiorizados neste
período da vida fossem questionados pelas transformações sociais,
permaneceriam presentes nas subjetividades dos sujeitos, pelo fato
de terem sido interiorizados durante a socialização primária.
Embora a noção de desvio, de Bourdieu, e de socialização
malsucedida58, de Berger e Luckmann, tentem dar conta de uma
dimensão conflituosa que possa ocorrer nas práticas sociais, deve-
-se ressaltar outras concepções que problematizam, de forma mais
radical, a dimensão do conflito. Nestas abordagens, o peso da família
como núcleo transmissor de determinados sistemas de valores é rela-
tivizado. Outros sistemas de valores, interiorizados na socialização

58 “A possibilidade do ‘individualismo’ (isto é, da escolha individual entre realida-


des e identidades discrepantes) está diretamente ligada à possibilidade da socia-
lização incompleta... A socialização mal sucedida abre a questão ‘quem sou eu?’”
(BERGER; LUCKMANN, 1987, p. 225).
Berenice Bento
117

secundária59, jogam no sentido de formar um mapa mental marcado


pela justaposição com o primeiro, não sendo nenhum aglutinador
do outro.
Ao observar as falas dos entrevistados, pode-se perceber que
há uma discordância e insatisfação muito grande com o modelo
hegemônico de masculinidade, sendo que a família é identificada
como a instituição social que mais contribuiu para a produção desse
modelo. Sentem que foram usurpados em alguns direitos, como a
possibilidade do choro, a verbalização de problemas, dúvidas e quei-
xas, a afetividade com os filhos, a sensibilização.
Sem esquecer a importância da socialização primária, prin-
cipalmente da instituição família, pode-se supor que, em contextos
sociais marcados pela complexidade e multiplicidade, quebra-se a
continuidade que poderia garantir ao homem uma unidade psíquica
para toda a vida. Concordo com Velho (1985) quando percebe a
coexistência de códigos diferentes, tanto na esfera pública como na
privada, daí os homens experimentarem o sentimento de uma des-
continuidade entre as duas esferas.
Não se pode negar que os valores herdados da família com-
põem uma variável explicativa das ações dos indivíduos, mas há
um cruzamento multidirecional de valores que são apreendidos na
socialização secundária, fazendo com que a dimensão do conflito,
devido à interiorização desses diversos mapas, esteja colocada.
O contato com outros grupos e círculos pode afetar a visão
de mundo dos indivíduos. Os estudos que Velho tem desenvolvido
inserem-se na perspectiva de demonstrar que

59 Berger e Luckmann definem socialização secundária como “qualquer processo


subsequente (à socialização primária) que introduz um indivíduo já socializado
em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade” (1987, p. 175).
118 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

[...] quanto mais exposto estiver o ator a experiências


diversificadas, quando mais tiver de dar conta de ethos
e visões de mundo contrastantes, quanto menos fechado
for sua rede de relação ao nível do seu cotidiano, mais
marcada será a sua autopercepção de individualismo sin-
gular (VELHO, 1981, p. 32, grifos do autor).

Em uma sociedade complexa moderna60, os mapas de orien-


tação para a vida social são ambíguos, tortuosos e contraditórios. A
construção da identidade e a elaboração de projetos individuais são
realizadas dentro de um contexto em que diferentes “mundos” ou
esferas da vida social entrecruzam-se, misturam-se e, muitas vezes,
entram em conflito.
Os entrevistados pertencem a uma geração de crianças na
qual a hierarquia era um dado presente nos seus cotidianos, e a defi-
nição dos papéis sociais vinculados ao homem primava por essa
ideia da hierarquia, sendo os homens o polo positivado (forte, viril)
e as mulheres o negativado (frágil, sem iniciativa, sem criatividade).
A incorporação da ideologia individualista nas subjetividades
dos agentes sociais, que tinham sido socializados com outra concep-
ção de mundo, vinculada aos valores tradicionais, faz com que estes,
embora defensores de valores identificados com o individualismo
(liberdade, autonomia, igualdade), busquem um nível de coerência
que é obtido por meio de equacionamentos interiores, marcados por
crise61.

60 Utiliza-se “sociedades complexas contemporâneas” conforme Velho (1979).


61 Zanotta (1982) chamou atenção para este aspecto na formulação de Velho, ou
seja, a preocupação em não se utilizar o esquema dicotômico (holismo x indivi-
dualismo; hierarquia x igualitarismo), pois, na realidade social, o que temos são
individualidades, que devem ser observadas concretamente.
Berenice Bento
119

Constata-se, diante dos constrangimentos e fragmenta-


ções, uma liberdade relativa que existe basicamente em
função dos papéis sociais que são desempenhados, com
deslocamentos de um domínio para outro. Um bem-
-sucedido e disciplinado profissional liberal pode, obser-
vado num fim de semana, ser um hedonista frenético.
Uma suave mãe da família, aparentemente dedicada ao
lar, pode, em outra situação, ser uma rigorosa militante
política, ou em festas tornar-se uma sedutora dançarina
dos sete véus. Quais os custos destas mudanças de papel?
(VELHO, 1985, p. 176).

Esse sentimento de descontinuidade é muito marcante para


Antonio. No trabalho, na esfera pública, sente que tem de desem-
penhar papéis muito rígidos. A cobrança pelo acerto é permanente.
Sente cansaço em ter de está sempre disponível. Em casa, pode tirar
a “armadura” e ser mais solto, “ser mais ele mesmo”. Essa desconti-
nuidade o faz sofrer muito. Para ele, são dois “Antonios” que habitam
o mesmo corpo. Foi na busca de uma coerência para sua vida que
procurou a terapia.

Olha, acho que, depois desse tempo de terapia, eu posso


dizer uma coisa: eu consigo fugir de uns ciclos viciados
que eu alimentava, que eu mantinha anteriormente. Quer
dizer, muitas das coisas, subterfúgios, explicações que no
momento não são muito consistentes. Então, o que eu acho
que eu aprendi foi a pensar nos problemas e não cair em
ciclos viciados, entendeu? Lógico que eu acabei sendo um
pouco mais crítico com as minhas coisas. E é bem melhor,
viu?

Tem uma preparação pro mundo, pela educação que você


recebe, tanto em casa como na escola, né? Então, o homem é
o provedor, é aquele que luta que vence. Não pode fracassar,
120 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

né? Tem uma preparação muito grande. Ao mesmo tempo


em que tem isso, no fundo quando você começa a ver a
tua forma de vida, o que você faz, os seus valores, os desa-
fios na forma que eles são colocados, você descobre uma
grande fragilidade. Neguinho é uma coisa contraditória.
Eu pessoalmente tenho pensado muito. Não muito. Tenho
pensado muito mais agora, de que essa coisa do homem
ser forte, é muito complicada e é muito... É um papel que
às vezes cansa. Tem que ser viril. Viril no sentido de cora-
joso, enfrentar todos os problemas, lutar. E no fundo, no
fundo, você tem fragilidades bastante grandes que você tem
que ficar o tempo todo reprimindo. Não, eu tenho que ser
forte, tem que ser isso, tem que ser aquilo. Eu acho que essas
imposições de valores e de formação complicam bastante
a vida da gente – a vida masculina. Você perde natura-
lidade, você tem que dar a resposta daquele arquétipo já
preestabelecido.

Acho que é uma coisa que aconteceu de você falar: “ah,


eu estou com dificuldade, com problemas, dificuldade de
relacionamento”. As crises vivem se repetindo e eu preciso
encontrar um caminho para sair disso. E depois você come-
çar a falar: “pô, e você nessa história?” Como é que é a sua
vida do ponto de vista de realização? Porque às vezes você
tem uma intensidade de trabalho enorme, né? E que tempo
você divide e reparte com quem você gosta? E uma coisa
que eu fiquei pensando muito foi nas relações de amizade.
Quais são as minhas relações de amizade? Quem são os
meus amigos? Como é que eu estou de amigos? Tem um
negócio complicado que quando você está no poder vem
um bando de puxa-sacos [...]. De fato, o que você quer,
o que você deseja? [...]. Se tinha problemas, praticava o
desvio, né. Só que essas coisas não se resolvem. Elas vão
ficando e lá um dia dá problema, entulha, gera um entulho.
Berenice Bento
121

Se começa a acontecer, fica malcheiroso. As dificuldades


de relação das pessoas não são resolvidas [...]. Agora, essa
coisa do homem, né, como é que entra aí... Fica uma expec-
tativa sempre que você tem que ganhar, lutar. Então piora
as coisas, né, a coisa masculina. Daí você começa a questio-
nar: “e daí? Para quê? Para onde vai?” (Antonio).

Eu sinto às vezes mais facilidade de não desempenhar esse


papel do homem durão em casa. Mais dificuldades fora
talvez de fazer, porque são pessoas diferentes, estranhos.
Dentro de casa é como se fosse mais familiarizado, então eu
teria essa possibilidade. O erro eventual ao me expor, talvez,
fosse mais tranquilo para eu fazer isso – estar me expondo
diante de meus familiares, esposa e filhos. Talvez eu esteja
mais predisposto a fazer isso em casa. E com muito mais
dificuldades fora. Fora, assim, profissionalmente. Porque,
por exemplo, em biodança, eu já tenho mais facilidade
do que aqui. Então no trabalho eu realmente tenho mais
dificuldade por esses fatores, de pessoas diferentes. Mas
eu tenho passado algumas coisas sim. Eu sinto porque eu
tenho retorno disso, de pessoas me falando e tal, que acham
legal algumas coisas que eu faço, por exemplo, de abraçar
as pessoas (Carlos).

O homem sente insegurança, frustração, dor. Talvez alguns


não percebam isso, né? Mas todo mundo é muito sensí-
vel. Eu acho que o homem não fala. Ele sente, mas não
fala. Não fala de medo, medo de demonstrar fraqueza, de
parecer um fraco. Você está assim sempre em alerta, você
está sempre atento. O homem não chora, não pode cho-
rar. O homem não pode demonstrar fraqueza nenhuma,
nem insegurança. Tem que estar sempre fingindo. Às vezes
você é inseguro, mas tem que fingir que não é, senão você
dança [...]. Durante todo o tempo que fiz terapia, eu chorei:
122 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

chorei três anos e meio. Nossa, eu chorava demais na tera-


pia. Nossa Senhora! Pauleira! Eu fiz terapia de grupo, indi-
vidual e depois de grupo (Olavo).

Às vezes, o fato do homem não se demonstrar sensível em


todas as esferas sociais das quais ele participa é fruto de um senti-
mento de autopreservação. Cícero, quando foi entrevistado, tinha se
separado há poucos meses e passava por um momento de grande
reflexão sobre sua vida, os condicionamentos sociais inculcados, os
valores que queria abandonar, mas também disse sentir medo das
interpretações sociais que suas atitudes podiam denotar. Para ele,
muitas vezes o homem se cala diante do sofrimento e das dúvidas
com medo de ser considerado gay.

No meu caso, acabou sendo uma busca em função desse


momento que aconteceu, mas eu acho que as pessoas não
têm trabalhado muito esse lado. O problema é que o homem
tem essa dificuldade de sensibilidade, exatamente pelos
condicionamentos sociais. O fato de tá lidando com essas
coisas, dá uma conotação para sociedade de que o cara
é viado, tem algum desvio. Os condicionamentos sociais
são muito fortes e impedem muito essa busca da própria
autoajuda que o homem tem. Essa busca, no meu caso, ela
agora vai ter que ser uma coisa permanente. Ao mesmo
tempo em que eu não quero parar, tenho receio, porque
você fica muito exposto. Nesse tempo que eu estou aqui, já
faz um mês, eu não estou me sentindo só, porque o sentir
só dá uma conotação de que a solidão é uma coisa pejo-
rativa e nesse momento eu diria a você que estou vivendo
um silêncio rico por estar nessa situação. Você começa a ser
mais introspectivo, a pensar mais na vida, nas coisas. Ao
mesmo tempo em que me faz sentir que estou melhorando,
me libertando de muitas amarras, de muitos condiciona-
mentos, por outro lado eu tenho medo de me trair, porque
Berenice Bento
123

o ego é muito enganador, então eu tenho medo de, nessa


plenitude toda, me trair. Agora é o momento de reflexão e
da retomada da vida. Eu estou refletindo muito em cima
de determinadas coisas. Na medida em que o homem vai
se voltando para o trato psicológico, voltando-se para si
mesmo, seja com terapia, seja com leitura, à medida que o
homem começa a se aproximar mais dessa esfera, de buscar
seu eu, de se descobrir, se autoajudar, ele começa a compre-
ender mais as pessoas e entender que as pessoas são o que
são e que tem que ter muita compreensão nos relaciona-
mentos. Nós estamos vivendo uma época de grande oferta
de livros de informática por um lado, e por outro lado, de
livros de autoajuda. A gente vive num mundo muito racio-
nalizado, muito doido (Cícero).

A fala de Cícero marca uma característica dos homens


que foram entrevistados. Todos falaram do processo disciplinar
(FOUCAULT, 1993) que foram e são obrigados a passar, “os condi-
cionamentos sociais”, para que pudessem desempenhar suas funções
com sucesso e virilidade, ou seja, para se tornarem homens, para
silenciar-se diante da dor, calar-se consigo mesmo. Dizem-se em pro-
cesso de aprendizado, estão aprendendo a falar sobre eles mesmos
e a refletir sozinhos, num “silêncio assustador”, num “silêncio rico”,
num “silêncio crítico”, sobre suas vidas, suas atitudes, seus passados,
tentando redefinir o significado do que seja ser homem. As queixas62
dos homens entrevistados aproximaram-se muito das que Nolasco
notou na pesquisa que fez com homens do Rio de Janeiro. Ele perce-
beu nos depoimentos dos homens uma “solidão, sofrimento e uma

62 Gregori (1989, p. 167-168) define queixa como a “a narrativa em que a pessoa


que é objeto de algum infortúnio constrói discursivamente a sua posição en-
quanto vítima [...]. Na queixa, o narrador expõe um contexto – através de fatos
descritos – para mostrar que ele é isento de culpa”. As queixas masculinas ficarão
mais claras no Capítulo V.
124 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

tensão premente, difícil de ser identificada e assumida no cotidiano”


(NOLASCO, 1995, p. 56).

Ultimamente, eu tenho feito uma reflexão não só do que


é ser homem, mas como ser humano, o que eu tenho a
contribuir, o que eu tenho a fazer. E, por consequência, o
homem está aí incluído, né. Antes, eu não pensava muito
nessas coisas. É questão de certo tempo para cá, de uns
três anos, quatro anos, comecei a voltar mais para mim,
de pensar sobre eu mesmo, me conhecer melhor. Quando
eu fiz o processo de Fish e Hoffman, um processo de auto-
conhecimento, que mexeu muito comigo, aí eu comecei a
procurar mais, me conhecer melhor. Comecei a fazer uma
terapia, que também interrompi até por questão financeira.
Atualmente, faço biodança. Então tudo isso tem canalizado
para essa reflexão de mim mesmo. Tenho percebido as difi-
culdades. A coisa tem clareado muito para mim. E o quanto
está sendo difícil superá-las, extremamente difícil por sinal.
Mas o que eu sinto é que é por esse caminho que eu tenho
que trilhar. É difícil, extremamente difícil falar sobre mim
mesmo, porque implica em você perceber suas limitações,
suas dificuldades, sua sombra, né, como é que você é diante
de determinadas situações, determinadas circunstâncias.
Como é que você age, porque que você age desse jeito. E
às vezes é extremamente penoso, difícil, porque você reco-
nhece sua fragilidade. É você expor isso tudo diante de você
e você é acostumado a ser forte. Fui educado para ser forte.
O homem, né, tem esse papel de ser o machão. Eu percebo
que eu sou uma pessoa que tem uma sensibilidade e estou
descobrindo isso. Então, de certa forma eu tenho esse con-
traste, esse choque de ter sido educado no sentido de ser
durão, macho, às vezes, não chorar. Eu sou de família nor-
destina. A figura do pai é muito presente, forte. Aí é muito o
espelho. Eu me vi diante de determinadas situações que não
Berenice Bento
125

sabia ser daquele jeito. Percebi que eu tinha algo dentro de


mim que me levava para outro caminho e a ser de outro
jeito. Viver de outro jeito, querer chorar.

Hoje eu estou descobrindo que é melhor ser mais eu, ser


mais autêntico. Um outro Carlos com certeza. Construindo
essa outra pessoa, descobrindo eu mesmo, que não é crime,
não é nenhum problema ser desse jeito. Apesar das dificul-
dades que eu encontro na família. Porque a família ainda
age muito dentro do outro jeito. Mas então, está sedimen-
tando na minha frente que esse caminho é o melhor. O que
eu tinha antes não era eu mesmo. Eu fazia aquilo, mas que
não me satisfazia, não me dava satisfação (Carlos).

Os entrevistados acreditam que é na “conversa consigo” que


pode ocorrer uma reprogramação, uma desestruturação dos habitus
sociais incorporados, uma maneira de considerar até que ponto as
rotinas dos padrões de comportamento estabelecidos poderiam ser
modificadas ou até descartadas. É neste processo de reestruturação
que uma nova subjetividade está sendo gestada. Uma subjetividade
marcada pelo desmapeamento. A emergência dessa nova subjetivi-
dade é identificada como a liberação do lado feminino reprimido.

A mulher é mais sensível. Ela é mais aberta. Eu tenho


aprendido demais com a mulher. Dessa sensibilidade que
é mais aguçada. Busco isso – talvez despertar esse lado
feminino meu. Com certa dificuldade, mas cada vez com
mais certeza de que eu tenho que experimentar e descobrir
a potencialidade que tem esse lado. Até porque meu outro
lado não me mostrou muita coisa não (Carlos).

As características femininas transferidas para o homem


é uma coisa muito boa. É tanto assim que quando você
encontra um homem que tem essas características, nego
126 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

costuma dizer: “oh, o fulano é uma moça. É bom demais”


etc. Eu acho que isso é marcante sim. Mas os homens tam-
bém, principalmente nessa geração mais nova, são mais
femininos (Aluízio).

É como se eu tivesse na minha frente várias opções de como


agir. O que eu sinto é que esse caminho que eu estou tri-
lhando, ele vai me dar uma qualidade, um crescimento
maior. O que eu sinto é isso. É um sentimento que eu tenho
tido e tenho observado. O outro caminho não está me
dando muito essa coisa. Eu sinto que eu me realizo mais,
eu me sinto mais satisfeito. Apesar de que sinto também
a coisa travar aqui dentro, por esse caminho também. Até
porque você se expõe mais. Implica muito em você abrir sua
guarda, mostrar suas dificuldades, sua fragilidade. Então,
eu sinto que as opções são por esse caminho. Apesar de que,
às vezes, eu busco também outros recursos. Eu às vezes
chego à conclusão de que também tem que ser durão na
educação dos meus filhos. Então, é como se eu selecionasse
aquilo que eu aprendi e desse mais qualidade naquilo. Ou
seja, não uso de qualquer jeito. Eu – não, isso aqui eu acho
que dá para usar. Exatamente, é como se eu selecionasse.
Então, isso aqui eu faço, eu uso, falo, brigo (Cícero).

Como nomear esta nova subjetividade masculina, que des-


toa do modelo socialmente definido e aceito de forma hegemônica?
Até agora, tem-se nomeado os homens que buscam reestruturar suas
subjetividades como “homem-feminino”, “homem-sensível”. Nolasco
discorda dessas nomeações. Para ele, é como se houvesse

[...] uma “autorização” para que o indivíduo possa dis-


tanciar-se de certo determinismo naturalista, utilizado
pelas ciências humanas e sociais, que definem o que
são comportamentos de homem e mulher, tomando
Berenice Bento
127

para si o que socialmente está atribuído ao outro sexo.


“Homem-feminino” e “mulher-masculina” são virtuali-
dades que apontam mais para uma transição do que pro-
priamente para uma “nova representação” dos indivíduos
(NOLASCO, 1995, p. 16).

Badinter (1992) diz que os escandinavos usam uma termino-


logia metafórica para definir dois tipos de masculinidade: homem-
-nó e homem-mole. O homem-nó é obcecado pela concorrência,
prisioneiro do desempenho sexual e intelectual, agressivo; o homem-
-mole é partidário da igualdade entre homens e mulheres, renunciou
aos privilégios masculinos, da preeminência do macho que a ordem
patriarcal lhe confere.

O homem-mole sucede ao homem duro como seu con-


trário absoluto. Para agradar às mulheres, que colocavam
o macho sob acusação nos anos 1970, alguns homens
imaginaram que deviam desprezar toda a virilidade e
adotar os valores e comportamentos femininos mais tra-
dicionais (BADINTER, 1992, p. 147).

A difusão das psicologias do homem (baseadas em uma sub-


jetividade agressiva, racional, objetiva, forte, segura e ativa) e as da
mulher (baseadas na afetividade, ingenuidade, passividade) serve
para cristalizar oposições. Nesta perspectiva, quando o homem expe-
rimenta a sensação corporal da ternura, do toque, sente-se confuso
com este lado “feminino” obscuro e desestabilizador. Ao homem é
interdito sentir ternura e tocar a pele do seu igual. Qualquer impulso
carinhoso poderá ser o desencadeador de “tendências homossexuais”.
Alguns dos entrevistados aproximaram-se da definição do
homem-mole, principalmente Ricardo. Para ele, a categoria gênero
não tem o menor sentido. As desigualdades e incongruências entre
128 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

homens e mulheres são mais uma no “mar de desigualdades” que


estão à nossa volta.

Eu tive uma formação muito rígida, dos anos 1950, né,


uma formação realmente... Mas eu abandonei isso tudo.
Eu acho que para chegar a um equilíbrio nesse sentido
assim de externo e interno, do homem ter um contato com
a sua interioridade maior, de fato ele tinha que desmobili-
zar o seu ego macho, machista, vamos dizer assim, que é
esse que está identificado com a sociedade agressiva. Tudo
isso é produto do homem macho. O mundo como está hoje,
para mim, ele é uma representação dessa polarização, do
macho, do homem que comanda mesmo, que tem poder,
que subjuga o seu lado feminino. No momento que isso
desindentificar desse processo, desse lado masculino e que
exerce seu poder, eu acho que vai haver esse momento que
eu digo de percepção maior, de consciência maior, e dar
força para esse lado feminino. Eu acho que é por aí também
(Ricardo).

Contudo, a nomeação “homem-mole” ainda não corres-


ponde à organização da subjetividade desses homens. As metáforas
“mole” e “duro” não traduzem a dimensão conflituosa que, de uma
forma geral, permeia os depoimentos dos homens.
Para João, por exemplo, é difícil falar de homem-feminino.
Muitas mudanças ocorreram também na subjetividade feminina, ao
longo dos últimos anos. Muito da “afetividade do feminino” perdeu-
-se no momento em que ela entrou no mercado de trabalho para
conquistar e disputar espaços.

O fim da minha última relação, eu senti muito. Havia


muita sexualidade naquela relação, mas pouca afetividade.
Quem trazia o afeto era eu. Eu é quem estava apaixonado,
e ela vinha com a racionalização, com os problemas que
Berenice Bento
129

ela tinha. Havia muita emoção da minha parte e razão


da parte dela, tá? Estava bem claro. Acho que esta questão
da sensibilidade feminina mudou. O exemplo típico dessa
minha última companheira. Ela saiu da vida acadêmica
para a profissional, se doutorou na França, sai para a luta,
ganha seu dinheiro, bom salário, viaja muito. Perdeu essas
coisas, ficou igual. Agora, o homem que está nesse processo
de adaptação (João).

Para Mendes de Almeida (1996), existe uma diferença inso-


lúvel entre as subjetividades masculina e feminina, fazendo com que
seja impossível se pensar um encontro dos dois.

Refiro-me ao caráter irrelativizável da diferença entre


os sexos e, mais do que isto, da própria materialidade
e da concretude máxima dos sinais dessa diferença. O
significado do que é ser homem parece estar vinculado
a um conjunto de variáveis, símbolos e sentimentos fla-
grantemente distintos e intrínsecos ao campo do mas-
culino de funcionamento e organização da subjetividade
(MENDES DE ALMEIDA, 1996, p. 137).

Os entrevistados demonstraram que passaram ou ainda pas-


sam por um processo de desestruturação e reorganização da sub-
jetividade. Esse processo tem outros desdobramentos (além destes
apontados até agora) relacionados com o campo do sociologica-
mente visível. Conforme será analisada no Capítulo V, esta subjetivi-
dade masculina será potencialmente problematizada quando ocorre
a intersubjetividade, ou seja, o encontro com a subjetividade femi-
nina. Nesse encontro, a dimensão do poder é realçada.
Mulheres assumem “posturas masculinas”, identificadas com
a racionalidade, a objetividade, a firmeza; homens carinhosos, afe-
tuosos, buscam cuidar dos assuntos da subjetividade com o mesmo
cuidado e atenção que antes davam às suas vidas profissionais. No
130 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

primeiro caso (as mulheres), há um movimento centrífugo, de saída,


de encontro e incorporação com uma racionalidade instrumental
(HABERMAS, 1980); no segundo (os homens), um movimento cen-
trípeto, de valorização da intimidade, a partir da reestruturação da
subjetividade. Ou seja, há uma movimentação na reorganização das
identidades de gênero.
Num poema publicado na Revista de Articulação Nacional
das Mulheres Trabalhadoras Rurais, nota-se a tendência à despolari-
zação das identidades de gênero.

Para cada mulher que está cansada de atuar


de maneira tímida mesmo sabendo de sua força,
existe um homem que está cansado
de parecer forte, quando se sente vulnerável.

Para cada mulher que está cansada de atuar


como se fosse uma ignorante,
há um homem deprimido pela exigência constante
de saber tudo.

Para cada mulher rotulada de pouco feminina


quando compete,
existe um homem para quem a competência
é a única forma de demonstrar que é masculino.

Para cada mulher que está cansada de ser


um objeto sexual,
existe um homem preocupado com sua
potência sexual.

Para cada mulher que se sente


atada a seus filhos,
há um homem a quem se nega
prazer da paternidade.
Berenice Bento
131

Para cada mulher que não tem acesso a um trabalho


satisfatório e a um salário justo,
existe um homem que deve assumir toda a
responsabilidade econômica de outro ser humano.

Para cada mulher que desconhece os mecanismos


de um automóvel,
há um homem que não aprendeu os prazeres
da arte de cozinhar.

Para cada mulher que caminha


em direção à sua libertação,
há um homem que descobre que o caminho para a
liberdade, tem sido para ele, um pouco mais fácil

(BURIM, 1997, s/n).

O resultado dessa movimentação é que o campo de interse-


ção entre as identidades masculina e feminina tem se ampliado. Para
esta nova subjetividade dos gêneros, toma-se emprestado um con-
ceito da gramática: identidade comum de dois gêneros63. Este con-
ceito diz respeito aos homens e mulheres que incorporaram no seu
agir padrões de comportamento identificados como sendo perten-
centes ao outro gênero.
Para Mendes de Almeida (1996), na pesquisa que realizou
com um grupo de homens no Rio com um perfil semelhante ao que
tratei, o gênero masculino é despossuído de qualquer subjetividade.
O padrão de comportamento dos homens é norteado pelo modelo
patriarcal que, para a autora, é sinônimo de ausência de subjetivi-
dade. A meu ver, este modelo representa um tipo de subjetividade

63 O substantivo comum de dois gêneros é aquele que apresenta uma só forma


para os dois gêneros; para se fazer a distinção entre o masculino e o feminino é
necessário atentar para o artigo, para o pronome, ou para alguma outra palavra
que modifique o substantivo. Por exemplo: o dentista / a dentista.
132 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

que pode ser relacionado ao exemplo do já citado personagem Paulo


Honório, de Graciliano Ramos.
A dimensão do conflito, do desmapeamento, da descontinui-
dade, da coexistência de códigos simbólicos diferentes atuando na
mesma subjetividade, não foi encontrada em suas entrevistas.

Figura nuclear do grande patriarca ou do senhor de enge-


nho, que até hoje funciona, ao que tudo indica, como
uma espécie de arquétipo central, caracterizador e for-
mador de modelos de conduta, orientação e organização
do imaginário brasileiro. Trata-se, portanto, em outras
palavras, de uma espécie de selo invisível, que, de forma
extremamente sutil e matizada continua a inspirar com-
portamentos e a demarcar estilos de conduta para além
de sua existência histórica específica. Uma das maneiras
de perceber o funcionamento desta lógica é acompanhar
as identificações e analogias ainda hoje traçadas entre as
noções associadas de virilidade /macho /senhor /dono /
força /violência – e os pilares formadores da identidade
masculina legítima no Brasil (MENDES DE ALMEIDA,
1996, p. 49).

Para Mendes de Almeida (1996), há uma incongruência


insuperável entre o feminino e masculino. Para provar tal tese, uti-
liza como referências Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e
Caio Prado Júnior. Estes autores detiveram-se no estudo de épocas
e conjunturas históricas de relações de gênero e sociais mais amplas,
marcadas pela hierarquia, e não tiveram uma análise focalizada,
específica, sobre a constituição das relações de gênero no Brasil.
Para estudar a constituição das subjetividades em contextos
contemporâneos, é necessário também se valer de reflexões que tra-
tam das relações de gênero à luz das novas e complexas mudanças
pelas quais passaram o Brasil nas últimas décadas. Por certo que as
Berenice Bento
133

relações de gênero podem ser analisadas como hegemonicamente


hierárquicas, mas, ao longo das últimas décadas, as mudanças sociais
propiciaram transformações também nas relações de gênero e nas
identidades do gênero masculino e feminino. O aspecto dinâmico,
histórico das relações de gênero e a própria organização das subjeti-
vidades, seja masculina ou feminina, devem ser analisados tomando
tal aspecto como premissa metodológica. Como, aonde, em que
direção ocorre à mudança, só pesquisas empíricas para revelar.
A Mendes de Almeida afirma que seus entrevistados falaram
da dificuldade de externalização dos sentimentos, o que contradizia
a fluidez verbal que demonstravam ao longo das entrevistas por ela
realizadas. Para ela, isto se relevou uma contradição que necessitava
ser esclarecida.

Esta foi mais uma investida que acabou por se mostrar


frustrante, à medida que grande parte das justificativas
para esta dificuldade não passavam de reiterações siste-
máticas da ideia matriz do medo e de derivações de um
vago sentimento de insegurança que impediam esta exter-
nalização. Mas tanto o medo quanto este sentimento de
insegurança não chegavam a constituir justificativas que
apontassem para a existência de um núcleo privado e
íntimo que devesse ser preservado, antes pareciam ape-
nas reproduzir uma espécie de convenção ligada a um
universo de ideias-chave sobre o funcionamento mascu-
lino e suas tradicionais “dificuldades” frente ao mundo
dos sentimentos e dos afetos (MENDES DE ALMEIDA,
1996, p. 110, grifos meus).

Ao ler as entrevistas publicadas pela autora, o vago senti-


mento de insegurança que ela se refere, tomou outras cores para mim.
O adjetivo vago qualifica o substantivo sentimento, significando que
a insegurança não é algo tão importante que deva ser considerada.
134 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Então por que os homens se colocaram desta forma? Será que as difi-
culdades em falar, ou os medos não existem, e eles falaram por falar?
O que ficou das entrevistas que realizei, entre inúmeras outras
coisas, é que a interdição do choro, da fala e da afetividade é algo
extremamente opressor para os homens. Existe um núcleo privado
e íntimo que deve ser preservado, escondido, esquecido, sob pena
dele se expor a rotulações e ser tratado como um fraco, ou como gay.
Em uma sociedade profundamente homofóbica como a nossa, como
fora tratado no Capítulo III, o homem admitir que tem vontade de
chorar, sofre, tem inseguranças emotivas, profissionais e sexuais é o
mesmo que dizer: “olha o meu lado feminino aflorando”.
O fato dos homens precisarem da aprovação de outros
homens faz com que tenham medo de que outros homens percebam
as sensações de insuficiência que sentem. Para Kimmel (1994), o
que chamamos de masculinidade é, muitas vezes, uma barreira para
impedir que a insinceridade seja descoberta, um excessivo número
de atividades que impedem os outros de verem os homens como
realmente são e um ensandecido esforço para controlar os medos
interiores. O verdadeiro medo “não é o medo de mulheres, e sim o
de se sentir envergonhado ou humilhado diante de outros homens,
ou de ser dominado por homens mais fortes” (KIMMEL, 1994, p.
129). Não seriam estes motivos sociologicamente fortes para explicar
o porquê dos homens terem medo de falar de suas dificuldades?
O silêncio é decorrente da vergonha. Os medos são as fontes
dos silêncios. Isto talvez ajude a explicar porque as mulheres tan-
tas vezes reclamam que seus parceiros ou colegas homens são tão
compreensivos quando elas se sentem solitárias, mas riem de pia-
das machistas ou até mesmo contam as piadas quando estão com os
amigos.
Para Mendes de Almeida (1996), a subjetividade masculina
organiza-se a partir de dois traços centrais: a alta expressividade e
Berenice Bento
135

a recusa sistemática de profundidade. Segundo ela, a subjetividade


masculina constrói-se a partir de exo-referências.

A impressão marcante de que todos os conteúdos, aspec-


tos e elementos da intimidade e da privacidade dos entre-
vistados encontram-se na “periferia” dos mesmos e não
em um suposto núcleo interior, protegido e reservado.
Daí por que tantas vezes impunha-se a impressão de uma
privacidade que parecia ser tão rotineira, trivial e “publi-
cizável” [...]. Essa referência tão forte de externalidade e,
consequentemente, da impressão de uma privacidade (ou
um núcleo íntimo) que parece estar fixada na superfície
do sujeito acabou revelando-se uma peça chave para a
reflexão sobre esse modelo de subjetividade (MENDES
DE ALMEIDA, 1996, p. 138).

Contrapondo-me ao modelo de subjetividade exo-referência


que a autora propõe, sugiro outro modelo: o endo-referência. A sub-
jetividade masculina estrutura-se em um movimento que ocorre
para dentro, como me referi anteriormente, em um movimento
centrípeto.
De uma forma geral, os entrevistados negam o modelo de
“homem superficial”, qualificação dada por um dos entrevistados.

Eu vejo que o pessoal é muito machista, um machismo exa-


cerbado. Então, o pessoal lá onde eu trabalho, os homens
quase todos têm suas amantes dentro do hospital, transam
com as enfermeiras. Ninguém fala nas crises de cada um,
ninguém fala. O cara fala é da mulher que brigou com ele,
que alugou. Mas ninguém fala da sua crise pessoal. Eu
como fiz análise e terapia, fico analisando mais ou menos
a cabeça dos meus colegas. Mas se conta nos dedos quem
é que trata da cabeça. O pessoal não trata da cabeça. Não
fala no assunto. A gente vê que, de vez em quando se ouve
136 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

falar: “pô, a mulher daquele cara lá, a mulher dele, a pri-


meira mulher dele se matou, se suicidou em função dele,
não sei de quê”. Mas ele nunca falou disso, é um segredo.
Não falam nada dele na roda que possa parecer insegu-
rança (Olavo).

Esse senso crítico de Olavo em relação aos outros homens


que, na sua expressão, não têm preocupação com os assuntos que
digam respeito à subjetividade, foi colocado por outros entrevista-
dos, a exemplo do Antonio, Cícero, André, Haroldo, Rui e Carlos.
Ao comparar os resultados da pesquisa de Mendes de
Almeida (1996) aos que obtive, pude concluir que há múltiplos
modelos de subjetividade. Mesmo dentro da camada médias urbana,
ou seja, dentro de um segmento da classe média, pode-se perceber
isto. Mas a subjetividade que corresponde ao tipo de masculinidade
de que trata minha pesquisa ainda está em gestação e em processo
de construção em conflitos e mediações com outros tipos de mas-
culinidades, que, por sua vez, correspondem a tipos específicos de
organização da subjetividade.
5
Negociação e negação em
relações contraditórias

N o filme Poderosa Afrodite (1995), o filho pergunta ao pai:


“pai, quem manda aqui em casa?”. O pai, meio constran-
gido com a pergunta, responde: “sou eu, claro. Sua mãe dá as ordens,
mas quem manda sou eu”. O filho, parecendo que não entendeu
muito bem a explicação do pai, continua arrumando a bagunça que
a mãe mandou organizar.
Ao analisar como se efetivam as relações de poder nas rela-
ções de gênero, tendo como pressuposto de funcionamento interno a
concepção igualitária de relacionamento, senti-me, como este garoto
no filme de Woody Allen: confusa. Pois, se por um lado há um esforço
138 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

muito grande dos homens em construir um relacionamento no qual


não exista a precedência de um dos dois na efetivação da relação, seja
nas questões que dizem respeito à educação dos filhos, na adminis-
tração da casa e na sexualidade, por outro lado também notei que,
em muitos pontos da intimidade, a igualdade coloca-se mais como
um projeto, tanto para os homens quanto para as mulheres. O roteiro
explorou questões como: 1) a existência de diálogo na relação; 2) se
a sexualidade do casal é discutida, buscando perceber como reagiam
os homens diante das iniciativas e negativas femininas; 3) como
são administradas as tarefas da casa; e 4) como os homens veem as
mulheres que ocupam posições de chefia.
Embora a concepção de relação definida como a “certa” seja
a igualitária, em que nenhuma das partes envolvidas seja englobada
por outra, os homens reconhecem as próprias limitações em efetivar
na prática tal concepção em situações concretas. Mas, a dificuldade
em qualificar as relações de igualdade não se deve única e exclusiva-
mente aos padrões comportamentais masculinos. Alguns dos entre-
vistados queixaram-se largamente da postura de suas companheiras
e ex-companheiras, que tomam decisões que os envolvem sem con-
sultá-los, que impõem muitas tarefas, que são autoritárias. Nestes
casos, há uma inversão hierárquica.
Alguns homens “ainda” estão mais próximos da ideologia hie-
rárquica que outros. Digo “ainda” porque eles reconhecem que estão
se “tratando” por meio de terapia, para mudar essa “visão deturpada”
de relação. Tal fato me colocou diante de uma situação de grande
heterogeneidade e da impossibilidade de proceder a uma classifica-
ção, pois isto significaria estabelecer uma homogeneidade fictícia.
A única conclusão é que, embora exista uma bússola de orientação
que os possibilita navegar nas relações de gênero, identificada com
os princípios igualitários, sua implementação é dificultada pela exis-
tência de outra bússola, a hierárquica. São relações contraditórias, no
Berenice Bento
139

sentido de provisoriedade, negação e confusão que o termo “contra-


dição” enseja.

5.1 Foucault: uma concepção relacional do poder

No estudo das relações de gênero, o conceito de poder ado-


tado define a lente por meio da qual se percebe o movimento de
homens e mulheres na constituição de suas práticas, além de esta-
belecer a articulação entre os níveis macro e micro nesta sincronia.
A noção de poder conforme formulada por Foucault (1985)
possibilita compreender que o poder se constrói relacionalmente. Ele
não é algo que paira sobre a cabeça dos indivíduos, mas deve ser
apreendido como constelações dispersas de relações desiguais, dis-
cursivamente constituídas em campos sociais de força que se movi-
menta a partir das correlações de força interna.

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro,


como a multiplicidade de correlações de força imanen-
tes do domínio onde se exercem e constitutivas de sua
organização: jogo que através de lutas e afrontamentos
incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que
tais correlações de força encontram umas nas outras, for-
mando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens
e contradições que as isolam, entre si; enfim, as estraté-
gias em que se originam e cujo esboço geral ou cristali-
zação institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na
formulação da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT,
1985, p. 89).

Por tal abordagem, o poder movimenta-se de acordo com


as disputas e resistências que se instauram dentro de determinados
campos. Ninguém tem o poder definitivamente. As correlações de
140 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

força induzem a “estados de poder”, que para ser compreendido deve


ser observado como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social. Não existe uma única direção para a atuação do poder, ele é
descontínuo porque está em todos os lugares.
Para Foucault, a análise que parte do Estado como polo pro-
dutor e irradiador de poder hierarquiza-o em pares dicotômicos:
explorados x exploradores, dominados x dominadores. Assim, pela
abordagem descendente, há um nível de fixidez difícil de ser rom-
pido. É como se o poder fosse algum que pudesse ser possuído, seja
por um grupo ou classe. Mas o poder é antes de tudo um exercí-
cio prático que ocorre nas relações sociais, que vai desde as esferas
macros do social até, e principalmente, as esferas infinitesimais e
capilares da vida social.
O poder do Estado não consegue abarcar, controlar tudo o
que está à sua volta. A periferia do poder tem autonomia, o que sig-
nifica dizer que há formas de exercício de poder diferentes do Estado
a ele articuladas de maneiras múltiplas e que são indispensáveis para
a sustentação e atuação eficaz do próprio poder do Estado.
Nos estudos das relações de gênero, a genealogia dos saberes
e dos poderes têm possibilitado análises que privilegiam a diferença,
o fragmento. Os blocos monolíticos, homem/mulher, são quebrados.
Emerge uma gama de possibilidades de análises por meio do cruza-
mento de múltiplas variáveis, como raça/etnia, classe social, marcas
de distinção, geração.
Trata-se (o projeto genealógico) de ativar saberes locais, des-
contínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teó-
rica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los
em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de
uma ciência detida por alguns (FOUCAULT, 1993).
Para Foucault (1993), a genealogia é um empreendimento
que liberta o sujeito dos saberes históricos, retilíneos, tornando-os
Berenice Bento
141

capazes de lutar contra a coerção de um discurso teórico unitário,


formal e científico. A dimensão da luta, resistência, contra os sabe-
res produzidos como verdade, que se institui como um conjunto de
regras segundo as quais se distingui o verdadeiro do falso é o grande
resgate da genealogia.
Foucault propõe uma metodologia para o estudo do poder
que: 1) confere autonomia da periferia em relação ao centro (Estado),
deslocando assim o foco de análise do Estado para contextos micros,
ou no nível sociologicamente invisível; 2) ver que o poder dá-se em
uma relação construída a partir de disputas internas à própria rela-
ção; 3) privilegia a dimensão do heterogêneo, da descontinuidade.

***

A concepção de poder aplicada ao estudo das relações de


gênero possibilitou um rompimento com uma visão determinista,
que percebia as relações entre homens e mulheres como um reflexo
da estrutura macro. As relações de gênero seriam um reflexo das rela-
ções que ocorrem nos aspectos macros: se o homem tem ou está no
poder central, logo estará e terá o poder em todas as demais esferas
sociais. Fazendo um corte transversal na sociedade a partir das rela-
ções de gênero, poderíamos estabelecer dois blocos classificatórios
que fixariam a posição que cada um ocuparia nas relações sociais: o
homem, o dominador, e a mulher, a dominada.
Os estudos sobre homens (men’s studies), conforme tratado
no Capítulo II, têm feito um esforço de desconstrução da categoria
“masculino” como um todo homogêneo, ahistórico, e em consequ-
ência desta relativização epistemológica, afirmam que apenas uma
parcela dos homens está e tem este poder visível.
142 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Para Saffioti (1987), analisando a dominação masculina


com recortes de classe social e raça, por mais que o homem sinta-se
explorado por outros homens e por mulheres no mundo do trabalho,
ele sempre poderá impor seu poder a uma mulher, porque no final
sempre terá um “capital de gênero”64, atribuído socialmente, que lhe
assegura a condição de dominador por ser considerado superior à
mulher.
O poder do macho, embora apresente várias nuances, está
presente nas classes dominantes e nas subalternas, nos contingentes
populacionais brancos e não brancos. Uma mulher que, em decor-
rência de sua riqueza, domina muitos homens e mulheres, se sujeita
ao jugo de um homem, seja seu pai ou seu companheiro. Assim, via
de regra, a mulher é subordinada ao homem. Homens subjugados
no reino do trabalho por uma ou mais mulheres detêm poder junto a
outras mulheres na relação amorosa (SAFFIOTI, 1987).
A posição de Kimmel (1994) é diferente desta. Para ele, as
feministas já elaboraram teorias segundo as quais a masculinidade
consiste no mecanismo da dominação, do poder, da conquista, mui-
tas vezes utilizando “masculinidade”, “patriarcalismo” e “dominação”
como sinônimos. Mas será que a condição do gênero masculino é
tão englobante que, independente da raça, da classe, da idade, terá
sempre o poder?

This is why the feminist critique of masculinity often


falls on deaf ears with men. When confronted with the
analysis that men have all the power, many men react
incredulously. “What do you men, men have all the
power?” They ask: “what are you talking about? My wife
bosses me around. My kids boss me around. My boss
bosses me around. I have no power at all! I’m completely

64 Utiliza-se “capital” conforme formulado por Bourdieu (1989).


Berenice Bento
143

powerless!” [...]. Men’s feelings are not the feelings of the


powerful, but of those who see themselves as powerless.
These are the feeling that come inevitably from the
discontinuity between the social and the psychological,
between the aggregate analysis that reveals how men are
in power as a group an the psychological fact that they do
not feel powerful as individuals. They are the feelings of
men who were raised to believe themselves entitled to feel
that power, but do not feel it. No wonder many men are
frustrated65 and angry66 (KIMMEL, 1994, p. 136).

Ainda segundo Kimmel (1994), essa definição feminista


de masculinidade como um mecanismo de poder, é elaborada do
ponto de vista da mulher. Trata-se do modo como a mulher vivencia

65 Para Kimmel, o sentimento de frustração e indignação explica a popularidade


nos EUA de oficinas e retiros, planejados para ajudar o homem a reivindicar
seu poder “interior”, sua “masculinidade oculta”. Uma das orientações dadas aos
homens que frequentam tais retiros é engolirem a dor e o sofrimento. Connell
(1995) diz que estes retiros ou grupos de homens têm mais um caráter terapêu-
tico, o que implica o não envolvimento em questões sociais, como as desigual-
dades sociais em geral e as de gênero, em particular. Trata-se de um movimento
de recuperação psicológica, dirigido ao desconforto sentido pelos homens hete-
rossexuais e às suas incertezas sobre gênero. O efeito prático da terapia da mas-
culinidade é fazer com que os homens voltem-se para dentro de seus próprios
problemas e deixem de colocar energia na mudança social.
66 “É por isso que a crítica feminista de masculinidade muitas vezes cai em ouvidos
surdos com os homens. Quando confrontado com a análise de que os homens
têm todo o poder, muitos homens reagem com incredulidade. ‘Os homens têm
todo o poder?’ Eles perguntam: ‘o que você está falando? Minha esposa-chefe
manda em mim. Minhas crianças-chefe mandam em mim. Meus chefes-chefe
mandam em mim. Eu não tenho poder nenhum! Eu sou completamente impo-
tente!’ [...]. Os sentimentos dos homens não são os sentimentos dos poderosos,
mas daqueles que se veem como impotentes. Estes são os sentimentos que vêm
inevitavelmente da descontinuidade entre o social e o psicológico, entre a análise
agregada que revela como os homens estão no poder como um grupo e o fato
de psicologicamente eles não se sentem poderosos como indivíduos. São sen-
timentos de homens que foram criados para acreditar e sentir esse poder, mas
não sentem. Nenhum homem admite, mas muitos estão frustrados e irritados”
(Tradução livre).
144 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

a masculinidade. Mas a definição pressupõe uma simetria entre


o público e o particular que não se conformam com as experiên-
cias dos homens. As feministas apontam que as mulheres, quando
consideradas coletivamente, não detêm poder em nossa sociedade.
Também apontam que as mulheres, como indivíduos, não se sentem
poderosas. Elas se sentem amedrontadas, vulneráveis. Esta observa-
ção da realidade social e de suas experiências individuais é, portanto,
simétricas. O feminismo também assinala que os homens, quando
encarados coletivamente, estão no poder. Desse modo, com a mesma
simetria, o feminismo tende a pressupor que os homens, individual-
mente, são poderosos.

5.2 Relacionamento igualitário

A geografia do relacionamento igualitário pode ser expressa


a partir de três dimensões sugeridas por Giddens (1992): amor con-
fluente, sexualidade plástica e relacionamento67 puro. Essas dimen-
sões em estado puro, ou seja, no âmbito da definição conceitual,
podem ser vistas como um tipo ideal: algumas relações aproximam-
-se mais que outras das definições que se seguem.
Na relação igualitária, a identidade é marcadamente idiossin-
crática. A singularidade de cada um deve ser preservada na relação.
Cada um traz para a relação uma história de vida anterior. Ao mesmo
tempo em que se busca não anular a singularidade, tenta-se cons-
truir uma história e projetos compartilhados. Para que isto ocorra,

67 A própria utilização do termo “relacionamento” significa ao mesmo tempo um


vínculo emocional próximo e continuado, mas, ao mesmo tempo, só deve ser
mantido à medida que as partes estejam tendo “ganhos” com o relacionamento.
Por esta concepção de associação entre os gêneros, homens e mulheres estabele-
cem uma associação amorosa a partir da livre opção e não por constrangimentos
sociais.
Berenice Bento
145

é necessário que os dois estejam dispostos a investir na construção


dessa esfera de interseção, que será maior ou menor dependendo da
homogeneidade desta concepção de relação.
Os sinais da diferença entre homem/mulher tendem a desa-
parecer e se confundir ou se multiplicar, visto que os marcadores
visíveis da diferença passam a ser expressão do gosto pessoal. As
noções bem delineadas de “certo” e “errado” perdem suas fronteiras,
da mesma forma a noção de desvio de comportamento, pensamento
ou desejo perde clareza, e instaura-se, aparentemente, o reino da plu-
ralidade de escolhas, que só são limitadas pelo respeito à individua-
lidade do outro.
A continuidade da relação só se justifica quando cada um dos
parceiros obtenha da relação benefícios que garantam tal continui-
dade. A exclusividade sexual tem um papel no relacionamento até
o ponto em que os parceiros a considerem desejável ou essencial.
É uma versão do amor em que a sexualidade tem de ser negociada
como parte do relacionamento, assim como todos os aspectos da
relação. A ideia é de “negociação” permanente, por meio do diálogo.
O relacionamento puro é construído apenas pela própria
relação, pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção
de uma associação com outra e que só continua enquanto ambas as
partes considerarem que extraem dela satisfações suficientes, para
cada uma individualmente.
A relação amorosa costumava vincular sexualidade a casa-
mento e reprodução. A emergência da sexualidade plástica, ou seja,
uma sexualidade descentralizada (liberta das necessidades de repro-
dução) promove uma dissociação entre amor e casamento, sexuali-
dade e reprodução. A reivindicação das mulheres ao prazer sexual foi
um dos propiciadores desse novo tipo de vivência da sexualidade. As
mulheres querem o prazer sexual como um componente fundamen-
tal de suas vidas e de seus relacionamentos.
146 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Não faz muito tempo que mulheres que almejavam prazer


sexual eram consideradas como anormais (FOUCAULT, 1985).
Muitas mulheres casavam sem qualquer conhecimento sobre o sexo,
exceto o de que ele estava relacionado aos impulsos indesejáveis dos
homens e que deveria ser suportado. A concepção de relacionamento
puro rompe com a ideia de que os homens querem sexo, e a mulher
amor. No relacionamento igualitário, os dois querem prazer e amor.
Contrapondo-se à ideia de “eternidade” que o casamento tra-
dicional vinculava, o amor é confluente e caracteriza-se por ser um
amor ativo, contingente, e por isso entra em choque com as catego-
rias “para sempre” e “único” da ideia do amor romântico.

O caráter intrinsecamente subversivo da ideia do amor


romântico foi durante muito tempo mantido sob controle
pela associação do amor com o casamento e com a mater-
nidade; e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez
encontrado, é para sempre. Mas o casamento eficaz, ainda
que não particularmente compensador, podia ser susten-
tado por uma divisão de trabalho entre os sexos, com o
marido dominando o trabalho remunerado e a mulher, o
trabalho doméstico. Podemos ver neste aspecto como o
confinamento da sexualidade feminina ao casamento era
importante como um símbolo da mulher “respeitável”.
Isto ao mesmo tempo permitia aos homens conservar
distância do reino florescente da intimidade e mantinha
a situação do casamento como um objetivo primário das
mulheres (GIDDENS, 1992, p. 58).

A realização do prazer sexual recíproco é um elemento-


-chave na manutenção ou dissolução do relacionamento. O cultivo
de habilidades sexuais e a capacidade de proporcionar e experimen-
tar satisfação sexual tornam-se organizados reflexivamente, via uma
Berenice Bento
147

multiplicidade de fontes de informação, da escuta atenta aos desejos


e fantasias do parceiro.
Conforme salientado anteriormente, a combinação da sexu-
alidade plástica, do relacionamento puro e do amor confluente,
quando observado na empiria, combina-se de formas variadas. O
relacionamento igualitário pode ser visto como a expressão da ide-
ologia individualista no âmbito das relações amorosas. A interseção
da ideologia individualista com a ideologia hierárquica faz com que
alguns se aproximam mais que outros desse tipo ideal de relaciona-
mento: quanto maior esse campo de interseção, maior dificuldade
terão os indivíduos de implementar tal tipo de relacionamento. A
dificuldade em realizar o relacionamento igualitário em todas suas
dimensões é tanto dos homens quanto das mulheres que participa-
ram desta pesquisa.

5.3 O diálogo e as regras silenciosas da relação

A presença do diálogo permanente faz com que o poder seja


uma coisa muito fluida, visto que as posições e decisões são nego-
ciadas. Tanto os homens quanto as mulheres que já foram casados
outras vezes manifestaram que uma das diferenças entre o atual
relacionamento e o(s) anterior(es) é a presença permanente do diá-
logo. Para Cristina, este é, inclusive, um dos marcos entre seus dois
casamentos.

No meu relacionamento anterior, o meu ex-marido era


muito monossilábico. Isso me fez sofrer mesmo. Não é
nem que tenha sido desagradável nem problemático. Eu
sofri muito com isso. Eu sofria muito, achava muito difícil.
Porque justamente essas coisas, por exemplo, que seriam
a complementaridade para mim, faltava um pouco. Gosto
148 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

muito de fazer as coisas acompanhadas. Gosto muito de


compartilhar. E ele, o meu ex-marido, ao contrário, fazia
as coisas. Ele ia fazer. Ele ia resolver, sabe? Então eu sentia
falta de... Taí, nesse sentido talvez eu fosse, com ele, uma
mulher mais tradicional, porque eu não participava das
coisas. Embora eu tivesse uma vida moderna, vamos dizer
assim. Tinha minha vida, meu cotidiano e tal, mas me sen-
tia muito alijada. E como isso acontecia em outras situa-
ções, e ele não verbalizava, não dizia “estou magoado, estou
triste” e tal, para mim era sempre um tipo de punição. Para
mim me agredia muito. Porque era como se fosse um exílio,
você estar com uma pessoa que não está ali (Cristina).

O diálogo tem uma importância estruturante para relação


dos entrevistados. Segundo os entrevistados, as decisões tomadas
são previamente debatidas. Até a “exaustão”, para utilizar um termo
do entrevistado. Ninguém detém a razão a priori. A partir de argu-
mentos, pode-se convencer ou ser convencido. Contudo, deve-se
ressaltar que a discussão dá-se em torno das questões práticas do
cotidiano, como a educação dos filhos, a pertinência da compra de
um carro, qual carro comprar, a construção da casa etc. Na sexuali-
dade isto não acontece com a mesma intensidade. Rui falou de “códi-
gos silenciosamente construídos na relação”, definidores de conduta.
Esse silêncio faz-se particularmente presente quando se está lidando
com a sexualidade. Quando a relação sexual não se concretiza, o diá-
logo cede espaço ao silêncio; o sentimento dos homens é de rejeição,
o que provoca angústia. Mas estes sentimentos são permeados por
uma busca de reflexão e racionalização dos atos.
Ao mesmo tempo em que reconhecem o direito da mulher
em não querer ter relações sexuais, de não estarem disponíveis, reco-
nhecendo que o corpo da mulher não é propriedade sua, por outro
lado a negação da mulher estabelece muitas dúvidas e ansiedades.
Dúvidas sobre o amor dela por ele, dúvidas sobre seu desempenho
Berenice Bento
149

sexual, o sentimento de culpa por não estar possibilitando o prazer à


companheira, e raiva por ela ter o poder de dizer não, criando uma
relação de dependência68.

Essa foi uma fonte de angústia terrível para mim, no meu


segundo matrimônio. Acho que foram momentos muito
difíceis pela questão da rejeição. Agora, neste último
matrimônio, eu acho que estou lidando muito bem com
essa coisa da rejeição. Hoje eu já entendi que não é uma
rejeição à minha pessoa. Hoje em dia, não passa de uma
frustração assim pequena. E também é uma coisa que vai
assumir, o fato de não ser correspondido sexualmente, um
ponto de vista mais maduro: é um problema meu. É uma
necessidade minha que precisa de outra pessoa para ser
sanada. Então, se essa outra pessoa não está nesse mesmo
momento, eu tenho que me virar. E tem várias formas de
se virar, desde as mais perigosas até as menos perigosas. Eu
acho que, nessa medida, a gente se torna mais responsável
por nossos desejos (Pablo).

Um dos motivos que me levou a procurar terapia foi bus-


car entender, por exemplo, a rejeição, entender porque uma
mulher tinha o direito de não me querer e querer outro, e
que isso não era um problema necessariamente meu, e sim
de opção dela (Cícero).

A equação de como agir nos momentos da recusa é marcada


pela reflexividade. A ideia é de um projeto reflexivo (GIDDENS,
1992), que se dá por meio de uma profusão de recursos reflexi-
vos: terapia e manuais de autoajuda de todos os tipos. As terapias
proporcionam uma narrativa reflexivamente ordenada do eu. Os

68 Segundo a terapeuta Mabel Cavalcante, o sentimento de rejeição é um dos prin-


cipais motivos que leva os homens a procurar a ajuda de uma terapeuta sexual.
150 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

entrevistados demonstram uma consciência reflexiva crescente do


eu, provocada em parte por mudanças sociais externas e, em parte,
por crises e transições pessoais.

Ela já falou que não queria e não foi legal para mim. E é
uma coisa que depois, já agora recentemente, eu percebo
que era coisa babaca minha, porque ela tem o direito de
não querer também, e eu tenho que respeitar isso [...]. Das
vezes que eu procurei e ela não quis, eu agi de uma forma
babaca e é exatamente isso. Aí eu acho que entra a ques-
tão de macho. Apesar de que essa figura, isso não está tão
forte em mim, mas em determinados momentos, é como
se desse aquele lampejo dele dentro de mim. Eu acho que
mistura vários sentimentos que pinta nessa hora. Acho que
é dela estar escapulindo; de eu não estar satisfazendo a ela,
porque ela não tem o interesse. E aquilo lhe fere profun-
damente. É um sentimento assim de ficar chateado, com
raiva, entendeu? É uma coisa difícil de definir (Carlos).

É frustrante. Não é muito bom, não. Mas eu entendo legal,


assim eu compreendo e tal, mas assim fica faltando, como
se fosse uma coisa. – Pô! Eu estou louco para transar, ela
não quer, disse não. Isso não é um não assim de que ela tem
obrigação de transar comigo todas as vezes. Mas, eu não
gosto. É, porque aí pode pintar, aí pinta a volta daquelas
inseguranças trabalhadas, né, volta tudo na hora. Tipo –
Pô, essa daí não gosta mais de mim, não está gostando de
mim. Quando isto acontece, eu deixo um pouco para lá,
porque é como se talvez eu estivesse numa situação em que
ela está, e eu não gostaria que viessem perguntar para mim
por que que eu não estou a fim (Olavo).

Em situações como esta, invariavelmente, o silêncio toma


conta. O medo da rejeição é um sentimento muito forte, sendo que
Berenice Bento
151

em alguns casos tal sentimento cria um imobilismo diante da busca


de prazer, como é o caso de Rui. Ele não procura a esposa com medo
de uma negativa, deixando a cargo dela a iniciativa.

Ela é quem sempre me procura. Eu acho que é um pouco


de medo meu de também procurar e receber um não. Eu
sempre fui assim. Um pouco de medo mesmo. De medo de
ser rejeitado. Quando eu ia para as festas, ainda garoto,
a gente tinha que tirar as meninas para dançar e se elas
dissessem “não” era a morte. Era o famoso “corte”. Era um
negócio mortal. Era o poder da mulher. Nossa! E a gozação
do pessoal. Aquilo me marcou muito. E eu acho que ainda
hoje eu carrego um pouco desse negócio. Um “não” bastava
para acabar comigo. Tão forte era o poder dela dizer assim
– Não! Enorme. Não sei lidar com isso. Confesso com a
maior franqueza: não sei lidar com o não. É um sentimento
de rejeição (Rui).

Os sentimentos são múltiplos e contraditórios. Há um


espaço entre o “certo”, assumido como a igualdade, e o “errado” que
é vivenciado por meio de dúvidas. João foi o entrevistado no qual
esta ideia do conflito esteve mais presente: casado durante 16 anos,
e, segundo ele, em uma relação marcada pelo mais puro machismo.
Quando o casamento chegou ao fim, teve de procurar terapia por se
sentir totalmente perdido e rejeitado. Definiu o primeiro casamento
como tradicional, no sentido que ele era o chefe da família, embora a
esposa dividisse todas as despesas da casa e tivesse uma postura per-
manentemente contestatória de suas decisões e atitudes. Lidar com a
rejeição é algo desestruturante para ele.

O medo da rejeição é grande. A questão de desempenho


sexual, por exemplo, leva você a uma preocupação exage-
rada com o desempenho, quer dizer, você bota o desempe-
nho na frente do sentimento, hoje eu consigo entender bem
152 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

isso, mas um tempo atrás, eu não conseguia fazer essa dis-


tinção. Há uma questão machista, isso eu consegui apren-
der agora, com as mulheres de hoje. Bom, de repente eu
chego, o meu desempenho é ótimo, e eu sou bom de cama.
Ela vai ter que ficar comigo, ela não vai querer outro, e
na minha vida já aconteceu da namorada chegar e dizer:
“não estou mais a fim, não quero mais, nosso relaciona-
mento não está bom, tem algumas coisas em você que eu
não suporto, não é isso que eu quero pra minha vida, foi
legal, tudo bem, tchau”. Isso foi em 1996 e eu: “pô! E aí? E
o orgasmo múltiplo que eu te dei, eu estou apaixonado, e
aí?”, e ela: “sinto muito” (João).

Para ele, um dos símbolos fundamentais que lhe garantia


tanto a sua identidade como homem, como o poder sobre as mulhe-
res, o desempenho sexual, esvaziou-se. Sua identificação como
homem passa fundamentalmente pelo falo69. No momento em que
o falo esvazia seu valor simbólico, transformando-se em pênis, ele
sente que lhe tiraram alguma coisa. João vive uma luta constante
para reconstruir sua visão das relações de gênero. A maior delas é
reconhecer que a mulher é igual ao homem, “ela não é melhor nem
pior”, e efetivar esta concepção na prática.

Eu vou dizer uma coisa horrível: ao longo desses anos todos,


eu via a mulher como objeto e ainda hoje tem um resquício.
Quando isso passa na minha cabeça, penso: “passa, não
pense assim, sai de mim satanás!” Eu não quero pensar
assim (João, grifo meu).

69 Para Giddens (1992, p. 138), “atualmente, grande parte da violência sexual mas-
culina provém mais da insegurança e dos desajustamentos, do que de uma conti-
nuação ininterrupta do domínio patriarcal. A violência é uma reação destrutiva
ao declínio da cumplicidade feminina”.
Berenice Bento
153

Heilborn (1992b) fala da discrepância entre discurso e prá-


tica, mas ocorre uma defasagem interna à própria ordem discursiva.
A ordem discursiva, que dá sentido e coerência à ideologia individu-
alista, luta para vencer essa “coisa horrível” que é não reconhecer o
primado do indivíduo, independente de qual gênero ele seja. Duas
ordens simbólicas (uma identificada com a ideologia individualista,
outra com a hierárquica), convivendo na mesma subjetividade, cria
colapsos e paradoxos.
Para Saffioti (1987), um dos traços que caracteriza o “poder
do macho” é que para ele não importa que a mulher, objeto de seu
desejo, não seja sujeito desejável, basta que ela consinta em ser usada
enquanto objeto. Os homens entrevistados para esta pesquisa têm
uma visão diferente. A própria definição do que seja uma “relação
sexual boa” passa necessariamente pelo prazer da parceira, embora
reconheçam que nem sempre haja o mesmo retorno para os dois,
como salientou Aluízio. Também admitem que o fato de reconhece-
rem o direito da mulher em ter domínio de seus corpos e desejos, o
que não significa que isto lhes seja indiferente.
A relação que estabelecem com a sexualidade se distancia
do que Mendes de Almeida (1995) notou nos seus entrevistados:
uma sexualidade marcada pelo “desfrute” e “predação”. Bem distante
daquele imaginário colonial dos senhores de engenho, conforme tra-
tado por Freyre, segundo o qual,

[...] é característico do regime patriarcal o homem fazer


da mulher uma criatura tão diferente dele quanto pos-
sível. Ele, o sexo forte, ela o fraco; ele o sexo nobre, ela
o belo [...]. A exploração da mulher pelo homem, carac-
terística de outros tipos de sociedade ou de organização
social, mas notadamente do tipo patriarcal-agrário – tal
como o que dominou longo tempo no Brasil –, convém
à extrema especialização ou diferenciação dos sexos.
154 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Por esta diferenciação exagerada, justifica-se o chamado


padrão duplo de moralidade, dando ao homem todas
as liberdades do gozo físico do amor e limitando o da
mulher a ir para a cama com o marido, toda a santa noite
que ele estiver disposto a procriar. Gozo acompanhado
da obrigação, para a mulher, de conceber, parir, ter filhos,
criar menino (FREYRE, 1951, p. 253-255).

A relação sexual é fundamental para manutenção do próprio


relacionamento. Tenta-se vivenciar o orgasmo dentro de um pro-
cesso de compartilhamento. O carinho antes, durante e depois fecha
o ciclo do prazer. O prazer também se dá de forma relacional. Para
chegar neste nível de “cumplicidade” entre os parceiros, eles acre-
ditam que só é possível escutando e observando o que dá prazer à
parceira.
A forma como estruturam a narrativa do que seja um bom
relacionamento sexual liga-se ao que Foucault chamou de ars eró-
tica. É a forma de produzir a verdade sobre o sexo a partir do pró-
prio prazer que ele propicia e não por referência a uma lei absoluta
do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, como a
reprodução humana, que o prazer é levado em consideração, mas, ao
contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como pra-
zer, e, portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica,
sua duração, “suas reverberações no corpo e na alma” (FOUCAULT,
1985, p. 105).
Um exemplo do “exercício” do ars erotica pode ser observado
nestas falas.

Eu acho que eu aprendi muito isso com ele. Sabe isso de


falar, de se soltar, de se dar ao direito a um monte de coisas.
Acho que é mais simples na cabeça dele, mais fácil, mais
leve. Então para mim também foi ficando uma coisa mais
leve. Eu acho que a gente fala bastante. Coloco para ele o
Berenice Bento
155

que me dá prazer. A gente foi junto, foi, foi, e consegui-


mos ter orgasmo juntos. Hoje a gente sabe facilmente qual
é o caminho para chegar ao orgasmo. A gente vai, não tem
mais problema com isso. Sempre é legal. A gente sabe como
é que faz para chegar lá (Maria).

Eu acho que o afeto, vamos dizer assim, essa coisa da sexu-


alidade como aceitação, como uma pessoa aceitar a outra
e tal está muito disseminada no relacionamento inteiro.
Então eu acho que o espaço, vamos dizer da sexualidade
em si, da transa e tal, fica mais livre. Menos carregado de
significados (Cristina).

Neste processo de aprendizagem em lidar com o corpo e com


o prazer do outro, a terapia cumpriu um papel central. É como se
esta relação fosse o “tipo ideal”, sendo que uns se aproximam mais,
(Carlos, Antonio, Olavo, Pablo, Ricardo), outros menos (Rui, Aluízio,
João).

Eu acho que eu fui muito ciumento, então eu comecei a


trabalhar muito essa questão na terapia, a posse e o ciúme.
Por que eu sou tão ciumento? Por que da minha insegu-
rança? Por exemplo, minha relação hoje com a minha
mulher, ela tem a vida dela, eu tenho a minha vida. A gente
convive junto, tem a vida a dois. Mas ela tem a vida dela.
Ela faz o que ela quiser da vida dela. Ela vai para onde ela
quiser na vida dela. Eu não interfiro. Eu gostaria de nunca
impedir o seu crescimento, da vida como pessoa humana,
como profissional. A minha relação atual é muito recente,
ainda não fui colado à prova. Mas, teoricamente, eu tenho
as coisas claras. Eu luto e tento não impedir nada. Porque,
quando eu faço isso, estou fazendo por mim. Porque eu
estou vendo o meu lado. Quando eu vejo isso aí, eu estou
me defendendo, eu estou defendendo os meus direitos, as
156 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

minhas coisas, que são minhas e que eu só posso conquistar


se eu também não impedir que a outra pessoa cresça, né?
(Olavo).

Quando os homens sentem que estão perdendo o controle, o


poder sobre as mulheres, principalmente sobre seus corpos, o senti-
mento de rejeição pode ser vivenciado de inúmeras maneiras. A vio-
lência é a forma mais frequente70. Isso não acontece com os homens
que entrevistei. A negativa feminina é vivenciada silenciosamente:
nem pancadas, nem palavras, mas uma busca de racionalizar a mis-
tura de sentimentos que afloram. E o processador mais comum é:
“ela tem direito de não estar a fim”.

O que eu acho é uma coisa que, às vezes, eu não sinto, é o


que eu vou te falar. É que isso deveria ser aceito com mais
naturalidade. Pô, a pessoa não está afim por uma série de
fatores, não quer fazer. Hoje a gente vive uma vida tão
conturbada, corrida, estressante. Então, às vezes é natural
que a pessoa não queira. Então, acho que deve ser enca-
rado com mais naturalidade isso. E nem sempre isso ocorre.
Porque aí entra quando você está afim, com aquele tesão
e tal, não quer? É como se jogasse um balde de água fria.
Mas, por que isso não ocorre quando ela também quer e
eu não quero? Por que ela aceita com mais tranquilidade?
Eu acho que aí entra uma característica do feminino de
ser mais compreensiva, mais sensível, entender mais as
questões, sem considerar outras coisas que, às vezes, a
gente considera, que é a questão de achar que está sendo

70 Ao longo da década de 1980, quando inúmeras entidades partiam em defesa


da mulher e pelo fim da impunidade dos homens que batiam, violentavam e
matavam mulheres, inúmeros artigos foram publicados nos jornais e revistas de
grande circulação. De uma forma geral, estabeleciam uma relação entre a libera-
ção feminina e as agressões dos homens, que se sentiam lesados, pois entendiam
a mulher, seu corpo e seu destino como sua propriedade particular.
Berenice Bento
157

desprezado, que não está mais afim. Eu acho que a mulher


é mais, tem essa predisposição natural de aceitar isso com
mais tranquilidade (Carlos).

Mas, afinal, quem está com o poder? Esta questão é a mais


difícil de ser respondida. Cícero ficou casado durante cinco anos. A
separação, entre outros motivos, foi motivada pelo fato dele se sentir
“sufocado” na relação.

Eu fui programado para acumular e aceitar determinadas


coisas e não me contrapor e dizer claramente: é sim ou não.
Eu entrava no jogo e ia aceitando, então eu fui muito bun-
dão nesse aspecto, aquele que incorporava bem o papel do
dominado na relação. Eu me senti dominado por muitas
vezes, embora eu não saiba se essa era a intenção dela, mas
isso resultou nesse sentimento de dominação. Na verdade,
eu é que me permitia esse tipo de dominação. Depois que as
coisas ficaram bastante críticas, é que eu fui de fato colocar
pra fora, porque eu tinha que colocar de alguma maneira e
acabou saindo, acabou explodindo. Eu tive muitos proble-
mas físicos causados pelo emocional. Chegou um determi-
nado momento em que eu estava me sentindo muito infeliz
e não conseguia externar isso para ela e para os outros, eu
não estava conseguindo colocar isso para fora e comecei a
ter um problema de dores, dor nas costas, no coração, pro-
vocadas pela tensão emocional... Aí eu pensei: “se eu conti-
nuar, vou me matar”. Assim, eu tive que tomar essa decisão
em função da minha vida; falei para ela que eu tava sen-
tindo esses sintomas, que tava infeliz e que tava querendo
outra vida pra mim (Cícero).

Rui, como Cícero e Pablo, também se dizem explorados na


relação, tanto pela esposa como pelos filhos, devido ao volume de
tarefas.
158 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Tem hora que eu me sinto assim meio explorado, sabe. Aí,


de repente, eu me sinto como a própria mulher, meio explo-
rada. Muita tarefa. Por exemplo, os meninos não ligam
para a minha mulher para falar de qualquer coisa. Ligam
para mim. Só ligam para mim. A primeira pessoa que
eles ligam é para mim. Particularmente, nesses momentos
assim que eu me sinto explorado, eu penso em me separar.
Nesses momentos em que eu me sinto explorado, eu penso
não só em me separar dela, mas também dos filhos, para
eles verem, sentirem, darem valor mesmo. É cansaço. Eu
juro a você que eu já pensei. Mas eu nunca disse isso a ela
não. Realmente eu pensei, sabe, de me isolar (Rui).

Da mesma forma que Rui, Pablo também assume a maior


parte das tarefas da casa. Todos os outros entrevistados dizem que
dividem as tarefas da casa. Os solteiros, quando não têm emprega-
das, cuidam de tudo sozinhos. Mas até que ponto eles fazem as tare-
fas da casa por obrigação ou por prazer? Com exceção de Antonio,
todos veem as tarefas da casa como obrigação: tem de fazer. Mesmo
que às vezes não materializem isto, veem como uma obrigação que
deve ser compartilhada. Mas mesmo assim, tem o prazer de ficar
em casa. “Curtir” a casa, os filhos, receber os amigos são alguns dos
prazeres para eles. Não utilizaram a palavra “ajuda” para se referir à
divisão das despesas da casa. Para os entrevistados casados, os salá-
rios dos dois entram na contabilidade da casa.
De uma forma geral, os homens não utilizaram a palavra
“ajuda”. Foi justamente com Antonio que ela apareceu com mais fre-
quência. Para ele, o espaço da casa não está interiorizado, não conse-
gue lidar ou administrar este espaço, o que provoca muitos conflitos
na relação com a companheira, embora avalie que está melhorando,
descobrindo o espaço da casa, do privado. A palavra “ajuda” dá
um sentido distanciado, de provisoriedade, não envolvimento, não
pertencimento.
Berenice Bento
159

As mulheres, ao contrário, a utilizaram com mais frequência.


Eram comuns expressões do tipo: “ele é ótimo, me ajuda bastante”,
“minhas amigas dizem que sou sortuda por ter um marido que me
ajuda tanto”. Nas suas falas, notou-se que há um reforço da ideia
de que a esfera da casa, principalmente a cozinha, é um território
feminino. Aluízio disse que gostaria de fazer mais, de ficar mais
na cozinha, porém percebe que a companheira sente-se “criticada”,
“invadida” no seu espaço.
A leitura que Aluízio faz da relação com sua companheira é
bastante interessante. Há muita “conversa” sobre a educação da filha,
buscam sempre “agir de acordo”, dividem as despesas da casa. Se nes-
tes aspectos qualifica a relação como “boa”, na relação sexual acha
que “falta muito”: ele sempre toma a iniciativa, não conversam “sobre
isso”. Por um lado ele reclama de uma relação sexual mais negociada,
por outro reconhece que é mais cômodo.

Eu não converso muito sobre isso não. Eu acho que eu não


vou ter, nesse caso, o entendimento que eu quero, que eu
preciso ter. Às vezes, eu até reajo de momento, mas eu não
chego a generalizar, criar uma teoria, a explicitar assim esse
tipo de entendimento que eu tenho. Eu sinto que incomoda
a ela que eu assuma papéis femininos, que eu vá para a
cozinha ou que eu faça uma comida. Ela tenta evitar isso...

Uma relação sexual considerada boa deveria levar em con-


sideração uma participação igual para o homem e para
a mulher e a mesma recompensa, que houvesse a mesma
satisfação dos dois, né? Eu sinto que importa mais a minha
satisfação. No entanto, eu tento inverter isso, mas é difícil.

É mais cômodo para mim. Às vezes, eu já tentei entrar no


mundo dela várias vezes e encontrei barreiras, né, então
para mim fica a questão de comodidade mesmo.
160 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Eu tive uma relação assim de muita igualdade total, uma


mulher de total independência. E isso foi difícil de enca-
rar pela minha formação. Se por um lado, racionalmente,
eu admiro isso, gosto e tudo, para mim é mais difícil con-
viver com isso, desse tipo de mulher que toma iniciativa
em todos os sentidos, que exige uma coisa absolutamente
compartilhada e que... Aconteceu que sexualmente o meu
desempenho caiu em função disso... Me atraiu muito essa
pessoa, mas muito mesmo. E eu abdiquei de ter um relacio-
namento por mais tempo com ela porque me incomodava.
No fundo, me incomodava. Racionalmente, eu aceitava a
coisa como uma coisa muito legal, mas... É do tipo assim
– “hoje nós vamos trepar”. Então, pronto, e vai e batalha
por isso. É questão de comodidade também. Tem uma
época que tudo é desafio para você. Tem outra que você
começa (eu acho que é velhice mesmo) a avaliar o que é
mais fácil para você e se ajusta mais (Aluízio, grifos meus).

Novamente aqui, igual a Cícero, o racional é identificado


com a ideologia igualitária. Tomando como referência apenas a rela-
ção sexual, pode-se qualificar o relacionamento que Aluízio tem com
sua companheira como tradicional, no qual homem toma sempre a
iniciativa, manda dentro de casa, cabendo à mulher obedecer. Nada
disso. Aluízio queixou-se do controle que a companheira impõe na
sua movimentação dentro da casa, diz se sentir limitado e vigiado
pelos seus olhares. Como tem seu escritório em casa, isto gera
muito mal-estar. Mesmo definindo a companheira como “fechada”,
Aluízio não deixa de elogiá-la, assim, como fez em relação a todas as
mulheres.
Berenice Bento
161

5.4 Inversão na representação dos gêneros

Tanto na fala de Aluízio como nas demais, há uma positivi-


zação da mulher. A mulher (em nenhum momento eles disseram “a
minha mulher”, mas “a mulher”) é representada como símbolo de
garra, de vontade, de sensibilidade, de energia, de força de vontade,
de firmeza e determinação. Com relação à representação que fazem
dos homens, acreditam que eles têm muito que aprender com as
mulheres, traçando um quadro de “pobreza espiritual” dos homens.
O que é valorizado como algo que deve ser seguido é o modelo femi-
nino. Não se trata de “elogiar a diferença”, pensando-a como comple-
mentaridade, ou seja, o que o homem não tem, a mulher tem. Isto
também não se limita à esfera da casa (uma boa mãe, companheira).
As qualidades femininas são bastante ressaltadas tanto nos aspec-
tos referentes à subjetividade, quanto na interação no ambiente de
trabalho.

A mulher é mais sensível, é mais aberta. Eu tenho apren-


dido demais com a mulher. Dessa sensibilidade que é mais
aguçada. Na minha formação anterior, talvez eu achasse
que a mulher é um sexo frágil. Mas hoje, eu não tenho a
menor dúvida. Tanto que eu busco isso – talvez despertar
esse lado feminino meu. Com certa dificuldade, mas cada
vez com mais certeza de que eu tenho que experimentar e
descobrir a potencialidade que tem esse lado. Até porque
meu outro lado não me mostrou muita coisa não (Otávio).

Eu acho que a mulher é melhor do que o homem. A mulher


tem mais habilidade do que o homem. Para te ilustrar,
do ponto de vista profissional, isso está acontecendo com
uma frequência muito grande. Sinto que as mulheres estão
tomando conta das posições masculinas com muito mais
competência. Principalmente em termos de liderança, de
162 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

garra até profissional mesmo. Muito sério. O SEBRAE hoje


é uma instituição em que as mulheres estão tomando conta
totalmente de todas as áreas. Lá, equipes inteiras são for-
madas por mulheres. Os homens são exceções. São gatos
pingados (Cícero).

O homem manda mais. Aí é que tá o negócio. Você trabalha


com a mulher sem ter a sensação de estar sendo mandado.
Já aconteceu no começo da minha carreira profissional ser
chefiado por uma mulher. Houve um período em que as
mulheres, para se firmarem, adotaram uma posição muito
radical e tiveram que fazer isso porque não tinha chance
delas entrarem. E nessa época eu senti isso. Eu também
era mais novo, compreendia menos essas coisas. E que eu
fui chefiado por uma mulher. Hoje, minha ideia, minha
imagem é completamente diferente. Eu não sinto nenhum
problema de ser chefiado por uma mulher. Ser dirigido. Eu
acho que elas são mais cooperativas. Elas trabalham mais
com a liderança do que com o mando. São mais cooperati-
vas (Aluízio).

Eu não acho que a mulher seja frágil, não. Chegaram a


dizer que emocionalmente as mulheres são mais fortes que
o homem nesse momento. Eu não sei se eu estou me espe-
lhando nisso, mas eu acho que a mulher é mais forte que o
homem (Olavo).

Tais falas coincidem com a afirmação de Nolasco71, segunda a


qual houve uma inversão na representação social do homem. Em um
curto espaço de tempo, apenas 30 anos, o homem (provedor material
e chefe da família), que era representado através de seriados como

71 Entrevista com Nolasco em julho de 1996.


Berenice Bento
163

“Papai sabe tudo”, passou a ser representado por personagens como


Homer Simpson, do seriado “Os Simpsons”, ou Dino, o dinossauro-
-pai do seriado “A Família Dinossauro”. Homer e Dino têm alguns
traços em comum: são alheios a tudo que diz respeito aos filhos e a
casa, não gostam de pensar e trocam qualquer coisa por uma cerve-
jinha72. “O poder é ter o controle remoto da televisão”73. Enquanto
as mulheres construíram modelos positivos, o homem está carente
deles. É como se o masculino deixasse de agregar valor ao indiví-
duo. Isto faz alguns homens buscarem outro campo de representação
(identificado socialmente com feminino) para denominar vivências
não classificáveis como pertencentes ao padrão comportamental
masculino.
Ao contrário das falas dos homens, as mulheres definem seus
companheiros como exceção, na definição do jeito do homem agir74.
Para elas, o padrão de masculinidade é aquele que vê a mulher como
inferior, como frágil, que está mais preocupado com o “gozo” dele.

Os outros homens que eu conheci, os outros namorados,


principalmente os mais novos, é uma imaturidade, uma
coisa que não aprendeu ainda a ser. Não desenvolveu
ainda. Eu já tive uns namorados que “meu Deus do céu!”,
eram broncos de tudo. Possessivos, não sabem o que é o
aconchego, não sabem o que é namorar. Já tive relações

72 Em um dos episódios de “A Família Dinossauros”, a filha pergunta à mãe:


“– Mãe, os machos já nascem nojentos?
– Essa pergunta já vem sendo feita há milênios. Eles já nascem nojentos, mas têm
que conviver com os outros para se tornarem insuportáveis”.
73 Fala de Dino, em um dos episódios exibidos pela Rede Globo.
74 Algumas telenovelas oferecem um rico material para análise das mudanças nas
representações dos gêneros. Fernando de Barros e Silva, na Tvfolha de 25 de
janeiro de 1998, afirma que na novela “Por amor”, do autor Manoel Carlos, não
há personagens masculinos, mas apenas mulheres e “bananas”. Eles não passam
de escadas ou penduricalhos funcionais. Os homens não atuam, constam na tela,
são homens de cera, “fantoches falantes”.
164 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

que contrastam drasticamente com a que eu tenho hoje


(Cleonice).

Homens e mulheres reconstroem a imagem do seu gênero


e do outro gênero à medida que novas concepções de relação são
construídas. A concepção igualitária propicia uma desconstrução da
imagem da mulher associada a valores considerados negativos (tais
como emoção, fragilidade, resignação, incapacidade das mulheres
em usar a razão, incapacidade de lutar contra ocorrências adversas,
conformada com seu destino de ser dona de casa, insegura etc.) não
corresponde à realidade para os entrevistados. Modelos comporta-
mentais tidos como tipicamente femininos, como a sensibilidade e a
afetividade são positivados, ao mesmo tempo em que outros, como
a racionalidade, a garra, a obstinação, a determinação, são alocados
no feminino.
Esse processo de redefinições da imagem que se produz dos
gêneros vincula-se às mudanças que estão sendo gestadas nas rela-
ções de gênero. A valorização do feminino e uma crítica aos modelos
comportamentais vinculados ao masculino podem significar uma
redistribuição de poder nas esferas sociais que agregam valor ao indi-
víduo, no caso, a esfera pública. Para verificar tal relação, acredita-
-se serem necessários estudos que vinculem o estudo das relações de
gênero a contextos específicos e não mediante generalizações.
6
A ideologia individualista e
as relações de gênero

A emergência de uma nova forma de organizar a subjetivi-


dade e de estruturar as relações de gênero deve-se, em
grande medida, a dois fatores: a emergência e incorporação da ideo-
logia individualista e a liberação feminina.
A incorporação da ideologia individualista é um processo
vivenciado tantos por homens quanto pelas mulheres. O que pro-
vocará conflitos existenciais e crises não é a ideologia individua-
lista, mas a convivência nas subjetividades com outra ideologia, a
hierárquica.
166 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A explicação para coexistência nas subjetividades de duas


visões de mundo pode ser dada ao considerar o ritmo acelerado
das mudanças na sociedade, sejam econômicas, sociais e culturais.
A formação, cristalização e armazenamento de identidades que se
sucedem rapidamente garantem ao tempo biográfico uma importân-
cia crucial do que teria em sociedades que mudam mais lentamente
(FIGUEIRA, 1987).
Uma das “novidades” que marca a nova dinâmica social é a
presença feminina na esfera pública, seja no mercado de trabalho,
nas universidades ou/e em cargos de chefia. Perante essa nova rea-
lidade, os homens veem-se diante de uma mulher que rediscute seu
lugar no mundo da rua e no mundo da casa. Para os homens, convi-
ver com esta nova realidade nas relações de gênero, principalmente
nas relações amorosas, tem sido uma rica fonte de questionamentos,
reelaborações de verdades e conflitos existenciais.
O questionamento da identidade masculina deve-se, por um
lado, às transformações macrossociais e, por outro, a um processo
que se dá nas microinterações cotidianas, como parte de situações
locais, contextuais, que fornecem as formas e os conteúdos especí-
ficos dessas transformações e, mais especificamente, nas relações de
gênero que acontecem na vida privada.
A “invasão” da ideologia individualista nas subjetividades,
criando uma descontinuidade com a experiência socializatória pri-
mária, e as conquistas femininas nos últimos trinta anos, são os pro-
piciadores do “mal-estar” que atinge os homens entrevistados.
Como salientou Santiago, o homem está onde nunca esteve,
pois passa por uma crise de identidade. Após o feminismo, a antiga e
universalizante noção de homem dissipou-se.

[...] o homem já não confunde a sua própria crise com


a crise da História e da humanidade. O novo lugar que
Berenice Bento
167

ocupa, aparentemente secundário, medíocre e desvanta-


joso, retira-o da condição de único provedor e, por isso
mesmo, único mártir, e leva-o a dialogar com as forças
plurais que o cercam e o questionam, conduzindo-o a
uma atitude que, longe de negar a sua busca de identi-
dade, procura construí-la sem detrimento das identi-
dades de outros grupos em nome dos quais egoísta e
autoritariamente falava (SANTIAGO, 1995, p. 102).

O processo de questionamento que os homens aprenderam


na infância sobre o “certo” e o “errado”, no que diz respeito aos papéis
do gênero masculino, para alguns teóricos (entre eles, Nolasco) não
é fruto da mudança ocorrida a partir da inserção das mulheres na
esfera pública, pois não é possível

[...] restringir a transição vivida hoje pelos homens a


particularidades e ao movimento de mulheres. Isso seria
negar que o próprio movimento de mulheres decorre das
transformações sociais iniciadas no século XVII. Desse
ponto de vista, o feminismo seria uma tentativa de “repa-
ração” da identidade das mulheres, tal como está aconte-
cendo com os homens (NOLASCO, 1993, p. 23).

Concordo que tanto as transformações nos papéis das mulhe-


res e dos homens estejam inseridas em um processo macro, identifi-
cado com a “fragmentação e/ou diferenciação de esferas da vida social
e cultural” (VELHO, 1986, p. 77) e com a complexidade da trama
social, que implica uma heterogeneidade de experiências e intercâm-
bios sociais. Quando, porém, a partir da perspectiva relacional, nota-
-se que se estabeleceu uma redefinição na relação polar e hierárquica
que sustentava as relações de gênero, tendo sido o movimento de
mulheres o propiciador e desencadeador dessa crítica e mudança, os
homens têm que se posicionar diante delas. Caso concordasse com
Nolasco, não poderia pensar a construção da identidade de gênero
168 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

relacionalmente, como se vem tentando fazer até aqui. As identida-


des e práticas sociais não são formuladas pelos sujeitos isoladamente,
mas se encontram em relações de permanente reciprocidade.
Como as diferenças que existem na relação de gênero são
construídas histórica e culturalmente, com a mudança em um dos
lados, o outro tende a se posicionar, seja afirmando, negando ou
ainda buscando se situar e encontrar sua identidade de gênero, no
panorama mais geral das transformações nas identidades sociais.
Para Giddens, a insatisfação do homem com os papéis sociais
que lhes são atribuídos é provocada inicialmente pelo cansaço desses
com a função de provedor material.

Até cerca de 30 ou 40 anos atrás, esperava-se que um


homem se casasse e sustentasse uma esposa; qualquer um
que não agisse desta maneira era encarado como suspeito.
Em determinado momento, no entanto, os homens fica-
ram cautelosos em relação ao casamento e em terem que
enfrentar as suas exigências econômicas. Ainda tinham
como objetivo o sucesso econômico, mas, necessaria-
mente, não mais acreditavam que deveriam trabalhar em
benefício de outros [...]. Na opinião de Ehrenreich, os
beatniks e os hippies, que surgiram para questionar a vida
do trabalho fatigante, do homem convencional, reforça-
ram ainda mais as mudanças já em andamento, pois rejei-
tavam o casamento, o lar e a responsabilidade doméstica
(GIDDENS, 1992, p. 166-167).

As transformações perceptíveis ao nível macro e de indi-


cadores econômicos (como a participação da mulher no mercado
de trabalho, na universidade, na vida política, social e cultural da
sociedade) começaram a estabelecer uma relação diferente com os
homens, colocando em xeque seus valores e crenças, pautados na
superioridade física, intelectual e sexual. Nas relações de gênero, o
Berenice Bento
169

fato das mulheres não aceitarem mais passivamente serem explora-


das pela dupla jornada de trabalho e de verem seus corpos sendo
usados apenas para dar prazer ao homem, estabeleceu uma discus-
são às vezes difícil de suportar, principalmente para os homens.

6.1 A ideologia individualista e as mulheres

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, emergem em


todo mundo, inclusive no Brasil, movimentos pelo aprofundamento
das conquistas democráticas e pela constituição dos Estados de
Direito Democrático. Cada vez mais intensamente, a estrutura hie-
rárquica da sociedade é posta em xeque por meio da luta pela efeti-
vação jurídica, política, social e econômica da premissa filosófica, de
inspiração iluminista, de que todos são iguais.
A filosofia iluminista legitima as relações hierárquicas entre
homens e mulheres nas esferas públicas e privadas. No entanto, a
própria filosofia iluminista, ao incentivar valores universalistas,
igualitários, “empurrou” as mulheres para a esfera pública e infiltrou
os pilares da estratificação de gênero. Foi com o fundamento de que
todos são iguais, formulado pelos teóricos contratualistas75, que mui-
tos movimentos de mulheres se organizaram.
A ideologia fundante das sociedades, segundo a qual “todos
os homens nascem livres” (ROUSSEAU, 1994, p. 25), está prenhe de
contradições: ao mesmo tempo em que define a igualdades de todos,

75 Considera-se como teóricos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau. Cada


um, ao seu modo, enxergava a necessidade de um contrato social, fundamento
para a constituição da sociedade civil. Fosse este contrato para conter as paixões
humanas (Hobbes), para garantir a propriedade (Locke), ou para garantir a
igualdade aproximativa da propriedade (Rousseu), o Estado nasceria das vonta-
des dos indivíduos.
170 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

atribui, exclusivamente, ao gênero masculino a capacidade e os atri-


butos necessários para participar e celebrar contratos.
Segundo Vaitsman (1994, p. 32),

O individualismo, que parte do princípio de que os indi-


víduos são iguais e livres, legitima as relações de domi-
nação através de um discurso universalista. E isso oculta
o fato do status das mulheres ser determinado por uma
relação atribuída, de gênero, com os homens, o que cons-
trange a sua condição de indivíduos. A participação cres-
cente das mulheres nas atividades públicas e a conquista
de direitos formais de cidadania não apenas desafiaram
a hierarquia sexual moderna, mas atingiram em cheio o
coração da família.

Se as teorias dos contratualistas foram fundamentais para a


construção de uma nova sociedade, baseada na exploração do traba-
lho abstrato (MARX, 1975a) e rompimento com as bases feudais, as
mulheres não foram incluídas nessa metanarrativa do sujeito univer-
sal. Para Pateman (1993, p. 17),

[...] o contrato original cria ambas, a liberdade e a domi-


nação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher
derivam do contrato original, e o sentido civil não pode
ser compreendido sem a metade perdida da história, que
revela o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é
criado pelo contrato. A liberdade civil não é universal – é
um atributo masculino e depende do direito patriarcal.

As desigualdades entre os gêneros foram justificadas pela


representação simbólica de uma natureza feminina não apenas dife-
rente, mas oposta e subordinada à natureza masculina. Na filoso-
fia iluminista, há uma reelaboração das fronteiras hierárquicas do
masculino e feminino. E, nesse processo, de reelaborações, outros
Berenice Bento
171

contratos são acertados com o objetivo de dar sustentação ao con-


trato original. Pateman (1993) destaca que o contrato sexual, que
operou a divisão da sociedade em duas esferas antagônicas, o público
e o privado, negou a condição de indivíduos às mulheres. Este con-
trato toma a forma de contrato matrimonial.
As relações de gênero, baseadas na polaridade masculino x
feminino, estabeleciam como norma social que cada uma das par-
tes tinha um papel específico na reprodução da vida social, cabia ao
homem a função de provedor material, voltado para o mundo da
rua, e à mulher a de provedora moral, encarregada da educação e
integridade moral dos filhos e das tarefas domésticas.
Ao longo dos anos 1960, o Brasil vive uma expansão das
classes médias urbanas, propiciada pelo processo de modernização
industrial que tivera início no Governo JK. As mulheres passam a ter
uma participação mais efetiva na esfera pública, fazendo com que
a realização pessoal não passasse tão somente pela constituição da
família. Outras expectativas e projetos são construídos, sendo estes
vinculados à inserção na esfera pública.
As mulheres lutaram para serem reconhecidas não mais
como um ente genérico, que se escondiam atrás do rótulo de mães,
esposas, filhas; queriam ser reconhecidas pela capacidade de decidir,
discernir; como seres únicos, como indivíduos. O casamento deixou
de constituir um fim em si mesmo – tornando-se uma das dimen-
sões de sua vida. Outros projetos e aspirações foram incorporados,
entre eles o sucesso profissional. A insatisfação das mulheres com o
papel reservado para seu gênero e a luta para romper com tais defi-
nições desafiam um conjunto de práticas e valores que conformavam
os fundamentos de legitimação de um sistema hierárquico de rela-
ções de gênero.
As mulheres passam a ter “visibilidade” social no momento
em que começam a participar de movimentos sociais globais, como
172 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

a luta pelo fim do Regime de 64 (sendo que várias militantes foram


assassinadas pela Ditadura Militar), do movimento pela amplia-
ção das conquistas democráticas, do movimento docente das uni-
versidades, das greves, da luta pela reforma agrária, entre outros.
Paralelamente às lutas de cunho mais geral, forjou-se uma articu-
lação nacional e regional que discutia questões mais inerentes ao
gênero feminino: direito a salários iguais aos dos homens por traba-
lho igual, direito ao aborto, denúncia da violência dos homens con-
tra as mulheres e de outras formas de discriminação.
O movimento de mulheres pode ser visto como um apro-
fundamento e extensão do individualismo, visto que as mulheres
passam a ter aspirações e a construir identidades não mais ligadas
exclusivamente à esfera privada. Isto estimula a instabilidade e a
volatilidade nas relações íntimas, tanto no casamento como na famí-
lia, favorecendo a reformulação permanente de projetos, vontades e
aspirações individuais (VAISTMAN, 1994). Uma das consequências
desse processo de questionamento e mobilização das mulheres é o
enfraquecimento da metanarrativa patriarcal, que legitimava a hie-
rarquia sexual nas sociedades modernas76.

6.2 A ideologia individualista e os homens

Afirmar que as mulheres lutaram para conquistar espaços


públicos e serem reconhecidas como indivíduos não significa que
todos os homens já tinham “conquistado” plenamente sua condição
de indivíduo ou se enxergavam como tal. Na verdade, o homem tam-
bém é visto e cobrado socialmente como ente genérico: o provedor,

76 Sobre a relação entre o feminismo e a ideologia individualista, ver; Vaitsman,


1994; Pateman, 1993; Badinter, 1986; Nolasco, 1995; Sorj, 1992; Ardaillon e
Caldeira, 1984; entre outros.
Berenice Bento
173

o esposo, o pai. O que há é uma diferença na valorização que o social


atribui ao desempenho das funções complementares dos sexos.
O homem, como provedor material, interage em uma esfera
positivada, o mercado, onde, segundo a doutrina liberal (SMITH,
1986), as capacidades individuais encontrariam-se e seriam coloca-
das à prova. O vencedor seria aquele que conseguisse maior êxito na
obtenção de lucros, com o “suor do próprio rosto”.
Segundo a doutrina liberal, o sucesso, como mérito pessoal,
deve ser perseguido com obstinação. Mesmo os mais pobres, se acre-
ditarem em sua capacidade, poderão reverter sua situação. Então,
é principalmente no mercado que se obtém o reconhecimento da
condição distintiva de indivíduos, é a esfera que atribui valor. Como
eram os homens que controlavam esta esfera, estes poderiam, poten-
cialmente, ser considerados indivíduos. As mulheres, por sua vez,
foram excluídas dessa esfera que confere mérito e onde a racionali-
dade é exercida plenamente. Elas foram tidas como “naturalmente”
inferiores77.
O homem começa a se ver como indivíduo quando começa
a duvidar e questionar os papéis socialmente atribuídos, recontextu-
alizando a relação indivíduo e sociedade, tornando-a tensa e confli-
tuosa. É nesse momento que ele começa a se diferenciar dos outros
e passa a se perceber como um ente singular. Percebe que antes de
ser o marido, o que provem materialmente a casa, ele continua sendo
portador de um corpo e de uma subjetividade que lhe pertence, que é
anterior. Ele não é englobado (DUMONT, 1985) pelos papéis sociais;
antes, ele os antecede. E este processo é tão recente para homens
quanto para mulheres.

77 O livro O que é uma mulher? (Thomas, Diderot e d’Epinay, 1991) resgata a polê-
mica sobre a “natureza da mulher” a partir de texto de alguns iluministas.
174 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A ideologia, que é definida por Dumont (1985, p. 18) como


“um sistema de ideias e valores que tem curso em um dado meio
social das sociedades modernas”, nas sociedades está fundamentada
no indivíduo78 e no igualitarismo, em contraposição às estruturas
holistas e hierárquicas de outras sociedades.
Nas sociedades hierárquicas, o todo (social) engloba as par-
tes (as pessoas). O valor é entendido como o operador da diferença
no interior de uma relação hierárquica. O indivíduo nas sociedades
modernas, ao contrário, é indivisível, é o elemento que confere sen-
tido à vida social. Nas sociedades holistas, a totalidade precede onto-
logicamente a parte, sendo que esta só adquire sentido dentro de um
contexto maior. Nas sociedades modernas, com o aparecimento da
categoria de indivíduo como valor estruturante, a representação da
totalidade enfraquece-se. O indivíduo é percebido como uma reali-
dade anterior, possuindo um estatuto de precedência lógico-valora-
tivo sobre toda e qualquer relação social; é um valor que representa
a humanidade. Isto faz com que, nas sociedades modernas, haja a
rejeição ao englobamento do indivíduo pela sociedade.

O individualismo – nome que se dá ao sistema moderno


pela afirmação da representação estruturante concedida
ao indivíduo – ao contrário, desprivilegia a totalidade
mediante o deslocamento valorativo para a singularidade
e autonomia das partes. A igualdade que funda a configu-
ração moderna ou individualista firma-se na indiferen-
ciação (HEIBORN, 1992a, p. 25).

As sociedades modernas se perceberam em um impasse


quando os princípios universais da modernidade não consegui-
ram ser implementados. Sendo que, no caso dos homens, além do

78 Sobre as diversas teorias e abordagens sobre a categoria indivíduo no Brasil, ver


Heilborn (1992a e 1992b), Salem (1986) e Velho (1986).
Berenice Bento
175

questionamento mais geral da ideologia hierárquica, isto também


significa uma redefinição da identidade do gênero masculino a par-
tir dos movimentos feministas.

6.3 A ideologia individualista, as mulheres e os homens

Seja devido às mudanças propiciadas pelas mulheres ou


pela incorporação da ideologia individualista, os homens passam
a enxergar a relação entre indivíduo e sociedade como antagônica.
A sociedade é referida como algo externo, que impõem, limita,
reprime, condiciona; que atribui valor a coisas sem valor. A educa-
ção que receberam é qualificada como tradicional e rígida. Há uma
incompatibilidade com o social, com os condicionamentos sociais.
Esse antagonismo ficou claro na fala de alguns dos entrevistados.

O primeiro ponto para eu poder existir foi localizar-me


neste mundo. Mas eu acredito que isso deveria ser o ponto
para todas as pessoas, homem, mulher – o que eu estou
fazendo nesse mundo? O que é que significa isso? Por que
eu estou aqui? Que história é essa? Por que eu tenho que
fazer isso, por que eu não tenho que fazer aquilo? Por que
existem essas diferenças tão violentas? Uns não têm nada,
outros têm tudo, uns são assim, outros são assados, por que
as coisas acontecem desse jeito? Compreender isto eu acho
que é o papel de todo mundo. Essa coisa sempre me incomo-
dou, essa inconsciência generalizada. O cara nasce, cresce e
morre, mas não sabe de nada, não tem a menor noção do
que está fazendo no mundo. Então, isso aí eu acho que é o
papel que todo mundo deveria ter; era pelo menos buscar
isso algumas respostas. O que é que você gosta? O que é
que você acha que você deve fazer? – e partir para fazer
(Marcelo).
176 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Eu já tinha muitos questionamentos quando eu fui fazer


o curso de Ciências Sociais. Eu acho que eu já estava mais
ou menos desvirtuada no sentido da “boa socialização”. A
opção do curso já foi por uma inquietação. E essa questão
da feminilidade para mim era muito importante, muito sig-
nificativa. Eu queria agir contrariamente a muitos padrões,
padrões de mulher. Até de como se arrumar, do quê que
era, vamos dizer, o atrativo feminino para um homem e tal.
Então, questionei muito isso aí (Cristina).

Eu tive uma formação muito rígida, dos anos 1950, né,


uma formação realmente muito rígida. Mas eu abandonei
isso tudo através de um processo de trabalho mesmo. Eu
fiz muita terapia, muito processo de descondicionamento,
de injunções familiares. Tudo isso foi me liberando porque
eu acho tudo uma bobagem. Eu percebi logo que isso aqui,
tudo que a gente vive é um teatro. Nada era real. O real
estava na essência das pessoas, e que os papéis que a gente
representava era tudo teatro. E isso me angustiava. Eu não
encontrava nem religião, nem nada. Aí eu fui à terapia.
E quando eu percebi esse negócio me angustiou bastante
porque eu não encontrava uma resposta. As pessoas fala-
vam uma coisa, eu via que elas queriam dizer outra. E eu
comecei a ver que as coisas eram mais ou menos assim. Eu
não acredito que os fatos sejam em si mesmos aquilo. Eles
estão representando alguma outra coisa. Então eu estou
distante muito desse universo cartesiano, de isso é isso, isso
é aquilo [...]. Sabe, levei muito tempo para perceber que
vivemos num mundo muito repressor. Tive que tomar cons-
ciência, intelectualizar as coisas que estão à minha volta,
para poder me compreender. De que forma que eu posso
expressar isso através do que eu faço, da minha arte? De
que forma que eu posso conviver com isso sem estar aí na
rua rasgando dinheiro, entendeu? De que forma que eu
Berenice Bento
177

posso colocar isso na minha vida de forma harmoniosa?


Mas isso não foi um estalo. Para conseguir as respostas que
me harmonizavam, levou muito tempo (Ricardo).

Na fala de Pedro, pode-se notar que a construção da identi-


dade é um fenômeno que deriva da relação conflituosa entre subje-
tividade e a sociedade, dos papéis socais definidos e da insatisfação
dos indivíduos. Esse processo “reflexivo do eu” (GIDDENS, 1992)
dá-se em todas as esferas, do privado ao público. E é neste processo
de tentar entender o mundo que o cerca, seu lugar dentro dele, que
há um repensar sobre a base na qual está estruturada a própria vida.
O que antes tinha valor passa a não ter mais; o que antes era impor-
tante, já não é mais.
Nesse processo de reflexão, emergem as crises existenciais.
Tanto os homens quanto mulheres definiram a crise existencial como
algo que os faz parar e pensar: “o que há nisto tudo para mim?”, “para
que tanta luta?”, “quem sou eu?”, “o que eu quero da minha vida?”. É
uma busca ontológica pelo sentido da vida.

Eu já tive muitas crises, muitas, várias. Elas me imobiliza-


vam muito. Uma tendência à depressão mesmo, né. Então,
era a morte, falta de energia mesmo, zero (Rita).

Sempre tenho crises existenciais. Sempre tenho. As minhas


crises existenciais têm muito a ver com a diluição do meu
desejo fundamental, como por exemplo, essa questão que a
gente não sabe para quê que está estudando, para quê que
está tocando piano, para quê que está fazendo as coisas.
Esse fantasma vem. Acho que é a perda do sentido da brin-
cadeira. Na verdade é isso. Quando eu era adolescente, era
muito animado, muito apaixonado pelo piano, por tirar
música de disco, para tocar piano como aqueles pianistas
que eu ouvia nos discos. Também era uma coisa que me
178 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

motivava e apagava da minha cabeça essa coisa do coti-


diano, do tédio. Na minha juventude, eu não tive tédio por
essa razão. Mas depois, na idade adulta, eu perdi um pouco
isso. Então, de repente, aqueles que eram meus ídolos já não
gosto tanto como tocam. Então, o piano perdeu um pouco o
sentido. De tempos em tempos, eu caio nesse marasmo, de
para onde que eu vou, de não ter essa questão da paixão
clara. Qual é a paixão mais clara? Por isso que é coisa do
cotidiano mesmo, ter que garantir o dia a dia (Pablo).

O sentido para a vida não está dado, não existe a priori. É cons-
truído por meio de reflexões desestruturantes. Aluízio viveu inten-
samente (e dramaticamente) esta experiência. Militante da Esquerda
na época da Ditadura Militar, após se formar em Jornalismo, foi tra-
balhar no governo. Fez a opção por ganhar dinheiro, “se dá bem na
vida”. Como ele definiu, foi “cooptado” pelo Regime Militar. Depois
que se separou da esposa e da morte do pai, repensou todos os valo-
res que estruturavam sua vida até chegar à conclusão de que tinha
feito opções equivocadas.

Logo após a separação, eu fui internado duas vezes. Da


primeira vez, foi um surto paranóico. Eu não tinha consci-
ência de que eu estava ruim não. Saí, comecei a dar muito
problema. Uma das coisas que eu fiz foi botar fogo na
minha casa. Essa foi uma das coisas que eu fiz. Comecei
a beber, a me drogar. Esse processo de questionamento
era em função das coisas começarem a perder o sentido
para mim. Eu acho que eu pensava nessa forma de viver,
estruturado em família e tudo. E de repente, eu me vi sem
nada. Também eu acho que havia um grande problema em
mim, do ponto assim de entendimento, principalmente do
lado emocional. Eu fui muito dependente de outra pessoa,
minha ex-mulher. Havia grandes problemas em mim que
eu não tinha resolvido.
Berenice Bento
179

Havia uma cobrança em mim muito grande do ponto de


vista existencial, porque houve um momento em que eu
rompi com as minhas ideias de Esquerda principalmente, e
passei a optar por um bom salário e por uma posição mais
alta. E eu senti que estava em dívida comigo e com a huma-
nidade, vamos colocar assim. E foi um período muito triste,
de muito fechamento, nessa época no auge da Ditadura e
da tortura, que foi em 1970, né. E eu me sentia culpado
porque eu trabalhava no governo, eu tinha um ótimo
salário e tinha todas as condições. Eu me sentia culpado
e dividido por estar cooptado pelo sistema [...]. Então, eu
acho que foi uma atitude muito pragmática que eu tomei
de falar: “não, agora eu vou viver minha vida profissional.
Eu vou trabalhar com quem me paga mais e pronto”. E isso
me custou muito. Eu acho que isso também foi uma coisa
que abalava a minha autoestima e que na época que eu
construí minha casa e construí minha vida. Minha vida
estava toda montada, toda “arrumadinha”. Ela desmoro-
nou. Então aí que eu me senti também culpado por isso.
Quer dizer, então eu tinha optado por uma coisa que não
tinha consistência (Aluízio).

Tudo que Aluízio acreditava que tinha valor, que justificava


sua própria existência, deixou de ser, volatizou-se. Para que ter uma
casa? Ele a queimou. Para que ter um emprego? Ele o abandonou.
Para que ter um corpo? Quis suicidar-se. Estas questões marcam a
efemeridade do existir e a permanente reflexividade (GIDDENS,
1992).

Eu não tenho nada resolvido. Longe de estar resolvido. São


reflexões que atualmente eu faço. No momento, elas estão
me harmonizando, me oferecendo uma visão de mundo,
certa harmonia de vida. Acho que só vou parar de refletir
sobre tudo isto que está aí quando eu morrer (Ricardo).
180 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Embora o indivíduo passe por crises de identidade marca-


das pela multiplicidade de opções e pela transitoriedade, ele parece
administrar melhor a fragmentação, incorporada como um dado de
uma identidade que, justamente por isso, reconstrói-se permanente-
mente, em um processo contínuo, como frisou Otávio.

Eu acho que o processo tem que ser contínuo e ininterrupto.


Agora o que eu tô sentindo é uma necessidade de continuar
mudando, mas eu preciso ter uma capacidade de adapta-
ção, para não sofrer tanto (Otávio).

Para Tocqueville, as insatisfações com o que se é, com o que


se tem, tendiam a se transformar de uma característica individual
para uma marca distintiva de uma sociedade.

An american will build a house in which to pass his old


age and sell it before the roof is on; he will plant a garden
and rent in just as the trees are coming into bearing; he
will clear a field and leave others to reap the harvest; he
will take up a profession and leave it, settle in one place
and soon go off elsewhere with his changing desires... At
first sight there is something astonishing in this spectacle
of so many lucky men restless in the midst of abundance.
But it is a spectacle as old as the world; all that is new to
see a whole people performing in it79 (TOCQUEVILLE,
1967, p. 98).

79 “Um americano vai construir uma casa para passar sua velhice e a vende antes
de terminar o telhado; ele vai plantar um jardim e o aluga antes das árvores cre-
cerem; ele vai limpar um campo e deixa outros fazerem a colheita; ele tem uma
profissão e vai deixá-la, ele se estabelece em um lugar e logo irá para outro com
seus desejos de mudanças... À primeira vista, há algo de surpreendente neste
espetáculo de tantos homens de sorte agitadas no meio da abundância. Mas é um
espetáculo tão velho como o mundo, tudo o que é novo para ver todo um povo
realizado nele” (Tradução livre).
Berenice Bento
181

Tocqueville falava da sociedade americana. Contudo, nos dis-


cursos dos entrevistados, há essa inconstância de uma forma gene-
ralizada. Casar, ter filhos, uma família, uma profissão não elimina as
dúvidas, nem é garantia da felicidade. Mesmo os entrevistados que
estão casados há mais tempo (Antonio, Rui e Carlos) não descartam
a possibilidade de recomeçar novos relacionamentos.
Durkheim (1984) chamava nossa atenção para o acele-
rado processo de individualização que estava em curso nas socie-
dades industrializadas e para o perigo de desintegração social que
isto poderia acarretar, fazendo com que os indivíduos isolassem-se
da vida social e não encontrassem justificativa para manter-se em
sociedade80. Para ele, a consciência coletiva é produzida lentamente e
deve modificar-se do mesmo modo. Quando as transformações são
abruptas, não tendo tempo para produção de uma nova consciência
coletiva, cria-se um vácuo moral. Essa ausência moral traz o perigo
da desintegração, fazendo com que o indivíduo perca-se no meio
social, ficando “solto”.
O aspecto mais importante da abordagem de Durkheim para
discussão desta temática é perceber que a falta de uma justificativa
para o indivíduo permanecer em sociedade não é um fato isolado.
A consciência individual vê a consciência coletiva como antagônica,
fazendo com que não exista espaço para uma visão totalizadora da
realidade. As respostas têm de ser buscadas por meio de um processo
de análise e autoanálise. É como se fosse um processo de confronto
permanente. Não adianta buscar as respostas em contextos externos,
sociais, como família, religião, no grupo de amigos. Elas só podem

80 Durkheim (1992), ao estudar o suicídio como um fato social, estava preocupado


justamente em demonstrar como a falta de solidariedade social é um perigo para
sobrevivência da própria sociedade. O suicídio típico das sociedades modernas
é o anômico. Como os indivíduos não têm suas vidas reguladas pelos costumes,
ou por uma moral integradora, a consciência individual transborda, abarcando a
consciência coletiva.
182 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

ser encontradas por intermédio do autoconhecimento, do “descobri-


mento de zonas escuras” na subjetividade.
Homens e mulheres descobrem que o fato de terem razão não
é suficiente para entender-se, para se sentirem plenos. Eles também
têm inconsciência, descobrem que não são plenos, são “esburacados”,
segundo expressão do psicólogo José Neponuceno, numa perspectiva
lacaniana, para referir-se aos homens que buscam seu consultório.

Todos nós somos esburacados. Não são os buracos do


corpo; é um buraco da alma, que eu diria. Isso é uma
procura “sem sentido”. Nem homens nem mulheres têm a
chave da plenitude. Dizer nós somos plenos, totais, abso-
lutos. Isso não existe. Cada um tem que viver com aquilo
que não tem que é a falta, né, esse buraco (DIÁRIO DE
CAMPO, s/l, 1996).

As metanarrativas construídas pela razão iluminista, que


acreditava na plenitude do sujeito por ser portador da “razão”, não
encontram morada nas subjetividades dos homens e mulheres entre-
vistados. São indivíduos que se reconhecem incompletos, fragmen-
tados, portadores de um inconsciente que pode traí-los.
Ser pai, esposo, um trabalhador, uma esposa carinhosa, uma
mãe dedicada, não basta. Maria, casada há 16 anos, passou por várias
crises no relacionamento com o marido que desembocaram em
questionamentos sobre sua própria identidade. Atualmente, ques-
tiona até que ponto vale à pena continuar “investindo” no casamento.
Segundo ela, na busca de trazer o marido para os assuntos da casa, de
tentar envolvê-lo nos aspectos da intimidade, de fazê-lo relativizar a
energia que dispensa no trabalho, acabou gerando uma crise da sua
própria identidade.

Toda vez que eu tentei entrar no mundo dele, é como se ele


falasse: “êpa, aqui não”. Ele acha que o trabalho o garante
Berenice Bento
183

emocionalmente. Sabe, eu passei por várias crises, sabe?


Crises até bastante difíceis. E eram crises de extrema baixa
estima. E por quê? Porque era uma coisa tão dúbia o pro-
cesso que era gerado nessa história de exclusão, gerava uma
coisa muito pirada, porque se eu buscava, se eu o buscava
eu estava cobrando. Eu percebia que ele não vinha para
a nossa vida, aí eu passei a ter um movimento de tentar
entrar na dele. E daqui a pouco eu comecei a ver que vivia
em função da dele e não da minha. E aí nessa história se
começa (e eu acho que isso é uma coisa muito frequente que
acontece com as mulheres) a ver o seguinte: que você está
vivendo em função da tua casa, dos teus filhos, né, da his-
tória do teu marido. Agora, a tua história vai se perdendo,
a individualidade, a identidade. A tua individualidade, a
tua autoestima. Tudo isso vai pelo ralo. O que aparece é a
mãe e a esposa. Mas, e a mulher? Cadê ela? Sumiu. Então
eu tive momentos na minha vida em que me senti comple-
tamente perdida: “bom, e agora? O quê que eu sou? O quê
que eu quero? O quê que é bom para mim?”

Então ele participa da minha vida, moramos na mesma


casa, mas ele só participa indiretamente porque eu trago
essas coisas, porque eu divido essas coisas, né? Então, ele
tinha uma dificuldade muito grande de perceber que, pri-
meiro, eu não estava querendo que ele fosse igual a mim.
Não. Mas, eu queria sentir, porque era algo que eu não sen-
tia essa fluidez de você trazer aquilo que você está vivendo
e que é importante para a nossa vida. E que acrescenta na
nossa vida. E que, às vezes, são coisas até ridículas, mas
que você tem necessidade de dividir, que você tem necessi-
dade de compartilhar.

E eu acho que é um conflito essa questão da identidade,


que eu acho que é uma coisa, é um conflito atual. Se tem
184 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

hoje o problema de identidade institucional. Qual é o papel


do Estado? O que compete ao Estado, até onde vai? O que
compete ao privado, né, a questão do público e do privado.
Isso não está claro. Hoje, a gente tem essa dificuldade de
definir papéis. Acho que isso ocorre tanto em mulheres
quanto em homens. Mas eu acho que, em algumas situa-
ções, a mulher avançou muito mais, em função da própria
situação de subordinação, e a situação de nós vivermos
num mundo masculino, ou dito masculino. Porque eu não
sei dizer se isso que está aí é de fato masculino ou é outra
coisa. Outra coisa definida como masculino. E talvez até
isso gere certa crise no próprio homem de dizer “epa, espera
aí, mas isso também não é masculino”. Isso é outra coisa.
Talvez uma coisa da própria estrutura social que a gente
tem aí, que faz com que as pessoas se percam ou percam
seus referenciais. É aquela coisa: hoje você tem manual
para tudo, né? Tem manual para fazer sexo, tem manual
para educar filho. Então, o mundo vivido que te dá outra
experiência distinta do manual, tem muita dificuldade de
aprender, de conhecer com esse mundo vivido. Hoje está
tudo meio pronto, né, empacotado, você já recebe, inclusive
o privado. E o que gera, em parte, uma crise de identidade,
que eu entendo que é essa coisa perdida. O quê que é ver-
dadeiro, o quê que é bom para mim? O quê que é que eu
sou? O quê que é que eu quero, né? Então eu acho que aí dá
aquela coisa que homens e mulheres estão na ilha [...]. Mas
eu acho que para os homens é mais complicado ainda. É
um processo de acomodação. Processo de acomodação que
eu digo é porque, como essa sociedade é uma sociedade que
se pauta, e que se pautou no poder do masculino. Quando
a mulher começou a perceber que ela era subjugada a isso,
ela reagiu e começou a resgatar o “o que eu sou?” O homem
não precisa, não precisava resgatar o “o que eu sou”, porque
já existia o “o que eu sou” pronto. Eu entendo que o “o que
Berenice Bento
185

eu sou” pronto já não está bastando mais. E não está bas-


tando mais porque existe uma reação do feminino. Existe
uma reação da própria sociedade, onde as pessoas estão se
sentindo perdidas. As pessoas estão sem referenciais pró-
prios. Então aí eu acho que o homem está começando a
dizer: “opa, não é bem assim”, entendeu? Então eu acho
que talvez por isso ele esteja mais lento. Porque existiu certa
acomodação mesmo. Já se definiu o “o que eu sou” (Maria).

Quando um indivíduo pergunta-se “quem sou eu?”, “por


que não posso fazer o que eu desejo?”, estamos diante de um nível
de conflito existencial no qual as bússolas de orientação para a vida
cotidiana já não funcionam com a eficácia desejada. Foi este pro-
cesso que descreveu Maria.
Para Giddens, atualmente, o “eu” é um projeto reflexivo, pro-
jeto conduzido em meio a uma profusão de recursos reflexivos: tera-
pias e manuais de autoajuda de todos os tipos, programas e artigos de
revistas. As escolhas de estilo de vida tornam-se narrativas reflexivas.

Quando grandes áreas da vida de uma pessoa não são


mais compostas por padrões e hábitos preexistentes, o
indivíduo é continuamente obrigado a negociar opções de
estilo de vida. Além disso – e isto é crucial – escolhas não
são apenas externas ou marginais das atitudes do indi-
víduo, mas definem quem o indivíduo “é” (GIDDENS,
1992, p. 41).

Na fala dos entrevistados, observou-se uma negação dos


valores inculcados por seus pais identificados como tradicionais,
principalmente aos que se referem aos papéis de gênero. Mas tal pro-
cesso crítico não elimina a admiração que sentem pelos pais, prin-
cipalmente quando relembram do grande esforço que fizeram para
que os filhos pudessem cursar uma universidade.
186 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

A universidade mostrou-se como um espaço que, além de


potencialmente possibilitar a ascensão social (marca da conjuntura
histórica do Brasil dos anos 1960 e 70), tornou-se um locus privi-
legiado para encontros e debates. Além de ser um espaço onde os
valores individualistas, identificados com a liberdade e a autonomia,
mais prosperaram. Foi nesse espaço, prioritariamente, que visões
de mundo começaram a ser questionadas e outras passaram a ser
defendidas. Nas histórias de vida dos entrevistados, a experiência
universitária e a convivência que ela possibilitou foram narrativas
marcantes e frequentes.

6.4 Os homens e suas histórias

Sob o prisma da relação “tradicional-moderno”, as mudan-


ças na identidade masculina consistem, em parte, na dissociação
entre os valores com que os homens foram socializados e os valores
que assimilaram. Isto passa a acontecer de forma mais consistente
e intensa no Brasil, a partir das décadas de 1960 e 70, quando eclo-
dem inúmeros movimentos e partidos políticos que vão questionar
de um lado: as bases de sustentação do modo de produção capitalista
(cabendo tal tarefa aos partidos e organizações políticas, dos mais
diversos matizes teóricos: leninismo, trotskismo, maoísmo, cheva-
rismo, nacionalismo); do outro, movimentos nomeados alternativos,
que desencadearam uma reflexão sobre a relação entre subjetividade
e sociedade, que culminaram na articulação de propostas alternati-
vas que vão da família à sexualidade, ao uso de drogas, à relação com
corpo, à forma unissex se vestir, ao corte de cabelo como símbolo de
rebeldia.
O fato de identificar o processo que os homens vivem atual-
mente de redefinições e busca de outros caminhos para estruturação
Berenice Bento
187

de sua subjetividade, de suas relações amorosas e das relações que


estabelecem com as mulheres, com a ideologia individualista e a
liberação feminina, não significa anular o peso da biografia de cada
entrevistado. Cada um tem uma história singular que explica o por-
quê dos questionamentos e dúvidas que cercam sua identidade de
gênero. Há episódios concretos da vida de cada um, como as difi-
culdades profissionais (Olavo, Haroldo), a morte do pai (Aluízio), a
morte da mãe (Olavo), a separação conjugal (Cícero, João, Aluízio),
uma relação amorosa conflituosa, desafiadora e provocadora (Pablo,
Otávio), a crise no casamento (Antonio) e a sexualidade (João,
Olavo), que marcam as singularidades da vida de cada um.
Mesmo diante da diversidade de episódios que marcam a vida
de cada um dos entrevistados, foi possível observar que a entrada
na universidade e a convivência em um ambiente caracterizado pela
contestação os marcaram profundamente. O que faziam, defendiam
e com quem andavam tiveram desdobramentos nas suas histórias e,
particularmente, na forma como processaram e processam a reorga-
nização de suas subjetividades e as relações que estabelecem com as
mulheres.
Alguns dos entrevistados eram jovens, outros adolescentes no
final da década de 1960 e primeira metade da de 70. Alguns fizeram a
opção pelo movimento político organizado, outros por movimentos
alternativos, outros ainda não tiveram nenhuma participação. João
disse que era “um alienado”, totalmente alheio às mudanças e agita-
ções que marcaram o Brasil dos 1960 e 70. Considerando a experiên-
cia de geração como referência, cheguei a três grupos.
Grupo I – Homens que fizeram parte de movimentos alterna-
tivos. Possuem um discurso mais identificado com a ideologia
individualista. Não fazem distinção entre homem e mulher
(Ricardo, Pedro).
188 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Grupo II – Homens que participaram de organizações ou par-


tidos de Esquerda. A distinção entre o homem e a mulher está
colocada nas suas falas, mas acreditam que tais diferenças, inclu-
sive biológicas, não são justificadoras para se estabelecer uma
relação de dominação, ou de desigualdade afetiva (Olavo, Paulo,
Aluízio, Rui, Fábio, Marcelo).

Grupo III – Homens que não estiveram engajados em nenhum


projeto coletivo de mudanças e questionamentos. O processo
de questionamento e insatisfação com os papéis reservados aos
homens é mais recente. Tanto a subjetividade como a relação
que têm com a mulher ainda são muito marcadas pela ideolo-
gia hierárquica. Neste grupo, a busca pela incorporação de nova
concepção das relações entre os gêneros é marcada por conflitos
mais anunciadas (João, Carlos, Cícero, Antonio, Haroldo).

Os homens que participaram de movimentos alternativos


falaram de “ser humano”, que não fazem distinção entre homem e
mulher. Para Ricardo, isso que se convencionou chamar “homem” e
“mulher” não tem o menor sentido.

Na minha maneira de ver as coisas, não há essa distinção


do homem e da mulher. É tudo ser humano. É tudo gente. É
tudo espírito. Não tem uma relação física assim de que isso
tem que ser assim e aquilo tem que ser assado. Para mim,
não tem essa distinção, não (Ricardo).

O discurso de Ricardo é muito marcado pela ideia de socie-


dade alternativa. Ele vivenciou intensamente os anos 1960, com tudo
de construtivo e contraditório que era possível. Para ele, o processo
de questionamento e construção de sua identidade ainda é norteado
por dúvidas que apareceram nos anos 60.

Olha, eu fiz algumas opções. Eu parei com certas coisas que


percebia que eu estava automatizando, que estava a rebo-
que fazendo aquilo que era o que se esperava. Eu saquei e
Berenice Bento
189

dei uma parada. Disse não, por aqui já está automatizado


demais, já estou perdido, já estou envolvido com coisas que
não têm a ver comigo. Então sempre fui alternativo nesse
sentido. Alternativo no sentido de não mergulhar total-
mente nessa inconsciência que é a que rege a sociedade.
Essa minha insatisfação foi por causa dos anos 1960, dro-
gas e muita loucura. Então tinha uma repressão também
social muito grande, Ditadura. Tudo isso cria um conflito
muito agudo entre existir de uma forma libertária, livre, e
a repressão social e familiar também, que tudo isso está aí,
que hoje é representado pela mídia, essa coisa que massi-
fica, essa coisa que destrói, essa coisa que agudiza as dife-
renças (Ricardo).

Já no discurso de Cícero, a mulher é fortemente colocada


como fator impulsionador dos questionamentos sobre os padrões
de comportamento masculino, identificados com a ideologia hierár-
quica, inclusive com a perplexidade de muitas vezes não saber como
agir diante de uma “mulher emancipada”. Define o primeiro casa-
mento como “tradicional”. Depois da separação, sentiu-se perdido,
confuso. Procurou várias terapias para conseguir “se encontrar”.

Agora, o homem que está nesse processo de adaptação,


enquanto não se encontrar... Quem tá levando a porrada
na cabeça é o homem porque até ajustar... Isso já foi muito
pior, os movimentos femininos radicais, pô, pregavam
a luta da mulher versus o homem e agora tá começando
melhorar, a mulher não vê mais o homem como inimigo,
como parceiro. E o homem tá ali, meio encolhido, sem saber
o que fazer (Cícero).

Os homens que participaram de organizações de Esquerda


têm um discurso muito marcado, até hoje, pela ideia do social, do
compromisso com o coletivo, embora nenhum deles tenha uma
190 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

militância partidária atualmente. Para eles, o questionamento das


relações de gênero só ocorre de forma mais aprofundada na década
de 1980, e, de uma forma geral, a mulher (seja a esposa, a namorada
ou a mãe) tem um papel muito importante neste processo de ques-
tionamento. Para Olavo, a vida no partido não propiciava este tipo de
questionamento. Ao contrário, reforçava a intolerância, a arrogância
e a hierarquia entre os gêneros. Só a partir da morte de sua mãe e de
um processo autocrítico aprofundado, propiciado pela terapia, é que
passou a ter uma atitude mais humilde diante da vida e a reconhecer
a mulher como igual.
Olavo, Paulo, Aluízio, Rui, Fábio e Marcelo participaram de
organizações que se estruturavam a partir dos princípios leninistas,
princípios baseados na homogeneidade da atuação e das posições
políticas. Para Paulo, existia uma grande violência tanto na organi-
zação que fazia parte quanto no próprio movimento estudantil que,
de uma forma geral, reproduzia a dinâmica interna das organizações
e partidos, o que acaba por reforçar as estruturas sociais hierárqui-
cas em geral, e as de gênero em particular. O homem tinha que ser
valente, provar que não tinha medo, pegar em arma para defender
seus princípios revolucionários. Este modelo de militante reforçava
o padrão de masculinidade hegemônico, sendo, inclusive, a presença
da mulher vista com certo mal-estar tanto nas universidades como
dentro das organizações.

Eu via o quanto a gente endurecia. Eu percebi uma coisa:


o curso de Sociologia era um horror, todos estavam sob
questão, era um ambiente carregado de suspeitas e descon-
fianças. Qualquer um podia ser do SNI e, nesse clima de
horror, as mulheres sofriam muito. Eu me lembro como eu
era cruel, cruel mesmo, com as meninas que se formaram
lá, que se tornaram profissionais excelentes, mas questio-
nava até o fato de elas serem classe alta, estarem ali, dizí-
amos que não dariam coisa nenhuma. Era um negócio
Berenice Bento
191

muito terrível. Nós dizíamos: “o que estas burguesinhas


estão fazendo aqui?”. Era o curso de Sociologia na Federal
do Rio Grande do Sul. Além disso, a dureza do movimento,
a dureza que a situação te impunha com uma dureza que é
inerente àquela cultura gaúcha, muito séria (Paulo).

O que se pode notar pela fala de Paulo é que havia certo


desconforto em ver as mulheres compartilhando espaços historica-
mente masculinos. Mais do que compartilhando, elas estavam “ques-
tionando tudo”. Mesmo sendo militante, tendo uma postura crítica
diante da situação ditatorial na qual o Brasil estava inserido, tal pos-
tura não teve um desdobramento das relações de gênero. A discus-
são dava-se em um plano de projetos políticos globais: burguesia x
proletariado, capitalismo x socialismo, explorados x exploradores. O
confronto não se dava entre indivíduos e sociedade.
Fazer história significava estar engajado em um discurso uni-
versalizante, globalizante. Todas as questões referentes ao campo da
intimidade deveriam ser submetidas ao projeto coletivo. Seria perda
de tempo discutir questões referentes à individualidade, pois só em
uma nova sociedade baseada no modo de produção coletivista que
novas relações sociais estabeleceriam-se, inclusive as de gênero.

Não havia espaço para uma reflexão sobre o indivíduo,


não. A gente era massa de manobra dentro do partido.
A gente militava, mas assim tudo pelo coletivo, né, tudo
pelo social. E a questão individual sempre ficava para trás.
Sempre relegada ao segundo plano. Tanto que os militantes
da época, profissionalmente demoraram muito a se firmar.
Ficaram afastados muito tempo do mercado de trabalho.
Alguns deixaram a faculdade em função da militância
e foram ficando para trás, ficando para trás, e a questão
grana, por exemplo, ficou em último lugar... Eu estava tão
envolvido politicamente que meu casamento foi por água
192 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

abaixo. Eu estava com 20 anos, 21. Aí eu larguei o casa-


mento em função do partido político... Quer saber, eu era
muito intolerante naquela época. Começava o relaciona-
mento, não dava certo, “tchau”. Tipo assim: tenho coisa
mais importante para tratar. Depois de levar muita pan-
cada na cabeça, de sofrer muito, e tratar minhas inseguran-
ças, aprendi a ser mais tolerante, mais humilde (Olavo).

Embora houvesse um clima de grande questionamento do


autoritarismo da sociedade burguesa, eles não conseguiam escapar
da sua condição de autoritários de Esquerda (VAITSMAN, 1994).
Se alguns tinham como eixo central de suas críticas de militância os
aspectos referentes à infraestrutura da sociedade, e outros aos aspec-
tos superestruturas, a questão é que havia um ambiente de insatis-
fação social no Brasil deste período marcado pelo questionamento
e rupturas. E, de certa forma, essas duas concepções (uma voltada
mais para o coletivo e outra para o individual) acabaram por se
influenciar mutualmente.

Os novos movimentos sociais, as novas linguagens de


expressão da subjetividade, inclusive com o apoio da psi-
canálise, os direitos das minorias, todos estes eram ele-
mentos que levavam à emergência da problemática do
“outro”, o que, no âmbito das relações de gênero, expres-
sou-se na constituição das mulheres como sujeitos, indi-
víduos, desafiando discursos e práticas patriarcais [...]. A
crítica ao autoritarismo e às concepções totalizantes que
haviam se revelado totalitárias colocava-se agora como
autocrítica, por parte de inúmeros representantes da pró-
pria esquerda. Este seria também um dos sinais a indicar
o desenvolvimento de novas maneiras de realocar-se num
mundo que apresentava-se cada vez mais fragmentado –
econômico, político, social e culturalmente. Daí a busca
de novos caminhos existenciais, discursivos, culturais,
Berenice Bento
193

que se expressariam com a contracultura, o tropicalismo,


a poesia marginal, a cultura da droga, da psicanálise, do
corpo e o desbunde dos anos 1970. Daí também a emer-
gência de novas formas de ver e conceber o social e o polí-
tico (VAITSMAN, 1994, p. 51).

Alguns entrevistados afirmaram que as conquistas femininas


representam “ganhos para homem”, pois foi a partir da contestação
do movimento feminista que muitos homens começaram a ver como
realmente eram duros nas suas relações. Foi a partir da crítica femi-
nista à exploração e dominação masculina que os homens começa-
ram a pensar sobre a relação entre os próprios homens, e mais, a
relação que cada um tinha consigo mesmo. É nesse sentido que, para
eles, as conquista da sensibilidade, de uma nova forma de organizar a
subjetividade é, de certa forma, um débito dos homens às feministas.
É preciso destacar, mais uma vez, que a forma como cada
um dos entrevistados processou individualmente tais mudanças e as
incorporou devem ser também contextualizadas a partir da história
de vida de cada um deles. A liberação feminina e a emergência da
ideologia individualista se articulam em graus e formas diferencia-
das para propiciar o questionamento da identidade de gênero ges-
tada na socialização primária.
Considerações finais

T entou-se discutir ao longo deste trabalho como um grupo


de homens repensa suas identidades de gênero. A tipologia
“tradicional-moderno” traduz esse movimento que ocorre nas subje-
tividades dos homens, sendo o tradicional identificado com a socia-
lização primária, que estabelece um padrão comportamental para os
homens marcado por interdições. Segundo este modelo “homem que
é homem” não deve falar de cansaço, de insatisfação, insegurança ou
de medo; precisa ser audacioso, viril, corajoso. A família, a escola,
os colegas e a igreja aparecem nas falas dos entrevistados como os
responsáveis pela transmissão da pedagogia da virilidade.
Como a identidade de gênero se constrói relacionalmente,
o movimento feminista, fortemente estabelecido a partir da década
de 1960, tem colocado em xeque o modelo de relações de gênero
estruturado na hierarquia e assimetria. Além da emergência do
movimento feminista, outros fatores (conforme Capítulo VI) têm se
combinado para propiciar a estes homens uma reflexão em torno de
suas identidades de gênero, entre eles: a incorporação da ideologia
196 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

individualista e o acelerado processo de transformações macros,


perceptíveis através de indicadores econômicos, pelas quais o Brasil
passou nos últimos trinta anos.
Esses homens têm buscado reconstruir suas identidades
de gênero utilizando como referência um modelo de masculini-
dade conectado com a sensibilidade. Denominou-se essa forma de
organizar a subjetividade de endo-referência, na medida em que
os questionamentos, reflexões e queixas passam, inicialmente, por
um processo interior de equacionamento marcado por conflitos e
dúvidas, e identificado pelos entrevistados como um processo de
descondicionamento.
Esse tipo de masculinidade, denominada no Capítulo III de
“masculinidade crítica”, convive com outras configurações de prá-
tica de homens, ou seja, com outras masculinidades. Isto aponta para
outro aspecto tratado desta pesquisa: a possibilidade da coexistência
num mesmo contexto social de múltiplas masculinidades, ressal-
tando que se tratou na pesquisa empírica, de um grupo de homens
pertencente a um segmento da camada média urbana que tem como
marcas de distinção serem psicologizados e intelectualizados, deli-
mitando, assim, fronteiras dentro da própria camada média.
O leitor pode colocar a seguinte questão: o que se pode espe-
rar desses homens que estão repensando sua condição de homem,
que defendem a igualdade entre os gêneros? Por que não transfor-
mam seus discursos num movimento que busque dar visibilidade aos
seus questionamentos e insatisfações e não se contrapõem de forma
mais incisiva à masculinidade hegemônica? Não estão estes homens
numa posição excessivamente cômoda, visto que são homens bran-
cos, de meia-idade, heterossexuais, da camada média urbana? Não
seria mais correto qualificá-los como “cúmplices”, segundo tipologia
proposta por Connell (1995)?
Berenice Bento
197

Na nossa sociedade, homens que têm os atributos aponta-


dos acima (brancos, heterossexuais, meia-idade, camada média) são
potencialmente poderosos, são homens que podem falar. No entanto,
esta ideia de homens poderosos, que buscam o sucesso obsessiva-
mente através do trabalho e de outras artimanhas, foi bastante criti-
cada pelos entrevistados. Todos reconhecem que o trabalho tem um
papel fundamental nas suas vidas, não se imaginando desemprega-
dos ou dependentes financeiramente de uma mulher, mas o apego
que têm ao trabalho está muito mais vinculado a um ethos constitu-
tivo das sociedades modernas (WEBER, 1992; GEREMEK, 1994), do
que, propriamente, a uma busca de sucesso e poder.
O tipo de masculinidade que eles representam não consegue
ter visibilidade social porque a ideologia da masculinidade hegemô-
nica, que se pauta na divisão hierárquica e assimétrica das relações de
gênero e que formula um discurso que busca desvalorizar tudo que
se refere ao feminino, consegue um nível de hegemonia que tenta
calar ou intimidar outras masculinidades. A homofobia, a violência,
o racismo e o machismo são algumas das práticas da masculinidade
hegemônica na sociedade brasileira.
Isto faz com que a masculinidade crítica não consiga trans-
formar suas insatisfações e posições dentro da relação de gênero num
movimento social. Esse tipo de masculinidade consegue se expressar
de forma mais visível através da arte. Algumas músicas falam desse
tipo de masculinidade. Entre elas pode-se citar: Pai e mãe, Esotérico,
Fé-menino, Logunedé, Corações a Mil e Superhomem. Nesta última,
Gilberto Gil (1979) declara:

Um dia
Vivi a ilusão
de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino
tudo me daria
Do que eu quisesse ter
198 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

Que nada
Minha porção mulher
que até então se resguardara
É a porção melhor
que trago em mim agora
É que me faz viver

Esses versos podem ser lidos como exemplo da busca pela


constituição do que se chamou (no Capítulo IV) de “identidade
comum de dois gêneros”, apontando uma das tendências na cons-
tituição das identidades de gênero que é a interseção crescente de
modelos comportamentais entre os gêneros.
Além de conseguir se expressar na arte, a ênfase da crítica
à masculinidade hegemônica é filtrada como ganhos pessoais que
são postos em prática nas microinterações, principalmente nas rela-
ções amorosas e na forma como passam a organizar suas subjetivida-
des. Tais redefinições não são suficientes para se falar de “um novo
homem”, que vive as transformações interiores ao mesmo tempo
em que constrói um projeto igualitário de funcionamento político e
social nas relações de gênero, conforme posição de Nolasco (1993)81
e de Badinter (1992). Sendo que, para Badinter (JORNAL DO
BRASIL, 1993), um novo homem está nascendo, agora finalmente
reconciliado consigo mesmo e que “o machão está desaparecendo
de nossa civilização. Ele não tem mais legitimidade ideológica nem
politica. Restam alguns casos de machismo, mas são poucos”. Tais
afirmações excedem em otimismo.
O fato de alguns homens passarem a ter um discurso identi-
ficado com a ideologia igualitária não faz com que passem automa-
ticamente a estruturar suas práticas única e exclusivamente segundo

81 Na entrevista que realizei com Nolasco, ele assumiu que tinha traçado uma pos-
tura muito “otimista” no seu livro O mito da masculinidade (1993, Capítulo VIII
– “O novo homem”) e que estava revendo tal posição.
Berenice Bento
199

tal configuração e nem que se possa proceder a generalizações. A


partir do conceito de desmapeamento, tentou-se mostrar que a ide-
ologia hierárquica também está presente nas subjetividades destes
homens, gerando conflitos e contradições que são potencializados
quando efetivam suas práticas nas relações de gêneros, conforme se
discutiu no Capítulo V. Não existe qualquer garantia que este tipo
de masculinidade venha a se afirmar como hegemônica, ou que as
relações de gênero serão estruturadas hegemonicamente de acordo
com a ideologia individualista, em que não exista a precedência de
um gênero sobre o outro.
Ao mesmo tempo em que nota-se a configuração de novas
práticas dos homens na ordem de gênero, ou de novas masculini-
dades, há também o reforço e a retomada da configuração hege-
mônica. As teses que Fukuyama (apud BRECHA, 1997) divulga em
seu último livro, Fin del orden, servem para ilustrar tal retomada.
Segundo o autor, a razão pela qual as sociedades asiáticas carecem
dos problemas que conhecem às da América do Norte e da Europa é
que naquelas há uma maior resistência a igualdade entre os gêneros,
sendo a emancipação feminina a responsável pela crise social. Assim,
segundo Fukuyama, o crescimento exponencial da criminalidade, da
violência doméstica, do analfabetismo, do alcoolismo e outras chagas
sociais têm como origem a grande ruptura gerada pelo ingresso mas-
sivo das mulheres no mercado de trabalho. A ruptura nas relações
assimétricas e hierárquicas, provocada pelo movimento feminista,
é a responsável, em última instância, pelo fim da ordem. Para que
a ordem se restabeleça, segundo a tese de Fukuyama, é necessário
que a mulher volte a ocupar suas tradicionais funções de provedora
moral da prole e guardiã da família nuclear.
Kimmel (apud CONNELL, 1995) aponta que o futuro das
relações de gênero é incerto, mas o que se nota nas últimas décadas
é o reforço do modelo de masculinidade que exalta a violência e a
200 Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas

segregação sexual, exemplo disso seria o alto consumo de seriados


no estilo Rambo. Segal (1990) é cautelosa em relação ao ritmo de
mudanças, mas não tem dúvidas sobre as possibilidades, através de
um trabalho contínuo nas instituições familiares, nos locais de traba-
lho, nos sindicatos e nos partidos políticos.
Conforme foi explicitado no Capítulo III, falar de gênero e
da forma como as sociedades estruturam suas relações é reportar-se
para uma narrativa que parece descolada da práxis social. Essa é uma
esfera muito reticente às mudanças e nem sempre acompanha o ritmo
das mudanças macros. No caso desta pesquisa, tentou-se demonstrar
que os homens entrevistados buscam redefinir suas identidades de
gênero, mas que vivenciam tal processo através de conflitos internos
e limitações externas, o que nos faz lembrar Mark Twain, quando
afirmou “a gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela:
é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau” (1894, p. 77,
tradução anônima).
Para concluir, é importante ressaltar, mais uma vez, o caráter
desta pesquisa. Refere-se a um tipo específico de masculinidade, não
se pretendeu fazer generalizações. Talvez a contribuição deste tra-
balho esteja em chamar a atenção para necessidade de a Sociologia
incorporar o estudo sobre homens como um tema fundamental para
o entendimento das relações de gênero no Brasil. Muitas questões e
problemas sociológicos precisam ser pensados e pesquisados, entre
elas pode-se destacar: seria possível estabelecer uma tipologia da
masculinidade para nossa sociedade? Caso seja possível, quais seriam
os tipos que coexistem nos contextos sociais? Quais as variáveis que
se cruzam para sua constituição? Como se transforma esta configu-
ração da prática dos homens nas relações de gênero? Como ocorre
a estruturação da masculinidade hegemônica na nossa sociedade?
A desconstrução analítica da representação substantivada do
“masculino” certamente terá que passar pela formulação de novos
Berenice Bento
201

instrumentos conceituais, alimentados pela pesquisa empiríca.


O que se tentou, ao longo do texto, foi lançar algumas luzes sobre
uma problemática social, que ainda carece de um amadurecimento
sociológico.
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Berenice Bento
1. A flor e a letra

Homem não tece a dor


Ana Laudelina Ferreira Gomes
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2. A ideologia do "Terceiro
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Homem não tece a dor
Gabriel Eduardo Vitullo (Org.)

3. Auta de Souza
queixas e perplexidades masculinas
Ana Laudelina Ferreira Gomes

4. Ensaios de complexidade 3
Maria da Conceição de Almeida
Alex Galeno
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5. Homem não tece a dor


Berenice Bento

6. No limite da traição
Josimey Costa da Silva

7. O Espelho de Procrusto
Orivaldo Pimentel Lopes Júnior

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