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METODOLÓGICAS EM PSICANÁLISE
Fernando Aguiar*
RESUMO
*
Doutor em filosofia pela Université tendências à psicologização, revelada, por
Catholique de Louvain (Bélgica), é exemplo, quando se considera a psicanálise uma
professor no Departamento de
Psicologia e no PPG em Psicologia da
psicoterapia. O segundo perigo — a inclinação
Universidade Federal de Santa hermenêutica, adotada por algumas correntes
Catarina (UFSC). contemporâneas (em particular, a IPA) —
Em resumo-comunicação partilharia com uma terceira tendência — a
de sua tese de doutorado (Paris tentativa de cientificidade e seu corolário
VIII), Micheli-Rechtman metodológico — uma mesma vontade de limitar
(2002) defende a urgente o campo teórico próprio da psicanálise freudiana
necessidade de examinar o e lacaniana.
lugar da psicanálise no campo Do lado “de fora”, sabe-se que a
social e de questionar, mesmo psicanálise — à sua revelia, ainda que desde
sustentar, sua epistemologia. sempre às voltas com a resistência, e com a
Esta urgência se deve a que a vexação psicológica dos homens diante de seus
psicanálise estaria hoje à mercê desejos inconscientes (Laplanche & Pontalis,
de três grandes perigos que, 1973) — é parte integrante de inúmeros e
internamente, podem afastá-la instrutivos capítulos da história e filosofia das
de suas perspectivas originais. ciências, nos quais, pelos mais variados
O primeiro refere-se às motivos, Wittgenstein e Popper, Sartre e
cito Freud em “Convém ensinar podem ser detectadas não apenas na situação
psicanálise na universidade?”, clínica, mas também nas produções
de 1919 — é não somente secundarizadas” (Mezan, 1994, p. 67), segue-se
“aplicado ao funcionamento necessariamente que a operacionalidade dessas
psíquico patológico, mas noções e sua imbricação recíproca não se
também à solução de problemas restringe à situação clínica, e se estende também
artísticos, filosóficos e a outras práticas psicanalíticas.
religiosos...” (Freud, Tomemos o conceito de transferência
1919/1996, p. 113). Como se (mas poderia ser algum outro conceito-chave,
sabe, suas incursões nesses como os de repetição, de retorno do reprimido,
domínios resultaram em obras de posterioridade), que amiúde costuma chocar
capitais para o desenvolvimento os defensores da objetividade experimental.
da própria teoria psicanalítica: Revelada de maneira privilegiada na clínica
por exemplo, no terreno da como manifestação de apelo a um sujeito
sexualidade, com o estudo suposto saber (Lacan, 1968) que dá sentido à
sobre Leonardo, sobre o privação, a transferência diz respeito a um
fenômeno totalitário; em “fenômeno humano geral” (Freud, 1924/1992,
Psicologia das massas e análise p. 89), e, como na própria vida, também se
do eu; e não se limitando às manifesta em nossas atividades de pesquisa.
referências etnográficas em Munido do conceito de transferência, quero
Totem e tabu (Roudinesco & supor que a pesquisa psicanalítica é capaz de
Plon, 1997, p. 827). suportar a díade interação mais influência (logo,
Dito de outra maneira, o sugestão), freqüentemente associada ou
exercício da interpretação atribuída à investigação dita “qualitativa”; e se
analítica, como Freud pretendeu diferencia radicalmente, como investigação
desde o livro dos sonhos, seu sujeito-sujeito, do modelo experimental, por sua
livro inaugural, não se restringe vez assentado numa investigação sujeito-objeto.
às condições “ideais” Mas também se distingue da dita pesquisa
proporcionadas pelas livres qualitativa, da qual ela faz parte, no sentido de
associações dos pacientes, que essa interação e essa influência são
estendendose também às moduladas pela “neutralidade analítica” — que,
produções humanas em que tais avancemos mais um pouco, diz respeito à
condições não estão presentes recomendação de no limite manter em suspenso
de maneira genuína. Ora, se as sua própria subjetividade, eivada de valores
mesmas forças que “animam religiosos, morais e sociais, e de se abster de
toda e qualquer produção qualquer conselho. Neutralidade quanto às
mental, individual ou coletiva, manifestações ditas transferenciais, quanto ao
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A implicação transferencial do subitamente angustiado pela lembrança dos horrores sobre
pesquisador em psicanálise na sua os quais eu tinha lido, e não conseguia voltar a dormir. Isso
pesquisa, se intensa, não chega a ser acontecia com maior freqüência quando eu lia sobre as
necessariamente uma experiência tão descrições dos casos de canibalismo. Em Stanlingrado
dramática como a descrita pelo [São Petersburgo], os soldados alemães deixavam os
historiador inglês Anthony Beever, na prisioneiros russos sem comida e eles tinham de comer
revista Veja (04/05/2005), a respeito carne humana para sobreviver. Às vezes, eu me sentia mal
de suas pesquisas sobre a Segunda no almoço ou no jantar só de olhar para a comida e
Guerra e, em particular, sobre “as imaginar o que seres humanos foram forçados a fazer para
atrocidades cometidas pelo soldado não morrer de fome. Tive a mesma reação quando fiz a
comum”. “Quando estava analisando pesquisa sobre a queda de Berlim. Ao terminar o livro, eu
um documento histórico, eu me estava próximo de um colapso nervoso” (p. 137). A noção
concentrava em fazer uma seleção não (clínica) de “neurose de transferência” talvez fosse a mais
emocional das informações que adequada para descrever tais experiências — mas sua
podiam servir ou não para o livro. Só condição (de grau), parafraseando Freud, depende dos
no dia seguinte à noite, às 3 ou 4 horas fenômenos transferenciais possíveis em cada caso.
da madrugada, eu acordava
lhe então quase natural. Assim, suas descobertas” (MijollaMellor, 2004, p. 44).
quando escolhe trabalhar sobre Tais afinidades, mais ainda a dimensão narcísica
Leonardo da Vinci, como nelas implicadas, diriam respeito a esta
dissemos, Freud está em via de dimensão autoanalítica indissociável de toda
refletir sobre as ‘teorias sexuais pesquisa em psicanálise.
infantis’ e os efeitos de inibição A argumentação da autora é precisa:
que elas comportam” (Mijolla- “Leonardo da Vinci, ou Michelangelo, não têm
Mellor, 2004, p. 44). Diversas evidentemente nada a fazer com as
fontes coincidem para levá-lo a interpretações de Freud. Em troca, a teoria
trabalhar sobre este pintor: psicanalítica tem muito a ganhar com o que
primeiro, seu interesse pela Freud nos fala deles, e não apenas de seus
inibição, que não é jamais uma pacientes, porque, frente a Leonardo ou
falta de desejo, mas o resultado Michelangelo, nós estamos na mesma situação
de um conflito de desejos (para de exterioridade em que se encontrava o próprio
Leonardo, o conflito entre a arte Freud”. Como resultado, o estudo de uma obra
e a ciência). Segundo, seu de arte ou de uma obra literária desenvolve e
encontro com um paciente que coloca à prova o método psicanalítico. “Ela o
se parece com Leonardo, ainda impele aos limites de sua compreensão, mas
que, como ele escreve a Jung, também o torna mais facilmente comunicável
sem ter o gênio do mestre que um caso clínico, por definição, apenas
italiano. conhecido pelo analista que fala dele” (Mijolla-
A aplicação da Mellor, 2004, p. 45).
psicanálise a Leonardo da Vinci Eis então uma das razões pelas quais
não é gratuita, afirma a autora. Mijolla-Mellor propõe o termo “interações da
Há uma lógica que impele psicanálise”, diferente de “aplicações” da
Freud para este trabalho, e por psicanálise. O termo “interação” sublinha que,
isso ele ocupa um lugar nos antes de interessar os outros campos do saber ou
prolongamentos da teoria da cultura, a própria psicanálise está interessada
freudiana. Mas há mais do que nesses campos, na medida em que eles são parte
isso. “É provável que Freud, constitutiva dela própria. Tomada assim, a
como descobridor, sentisse aplicação da psicanálise fora do campo do
afinidades profundas com tratamento não é uma ocupação estéril ou um
Leonardo da Vinci, assim como exercício arriscado e perigoso no qual não se
dizia de Copérnico ou de encontraria nada além do já posto desde o início.
Darwin, que, como ele próprio, A autora considera que se pode ir ainda
infligiram grandes feridas mais longe. Ela retorna ao já referido sobre inter
narcísicas à humanidade com ou transdisciplinaridade para afirmar que se
pode tomar um objeto de estudo “coincidência dos opostos”, que pode ser
— um fato de sociedade, ou aproximada àquela do sentido oposto das
uma noção geral — e examiná- palavras primitivas, tal como o lingüista Abel a
lo através dos pontos de vista definiu. A psicanálise retoma a idéia de que uma
específicos de diversas mesma imagem possa exprimir duas coisas
disciplinas. Teremos assim um opostas, e isso vai servirlhe para precisar o
esclarecimento multifocal, mas funcionamento do sonho que ignora o não
disso não se retiraria muita (negação), e representa um elemento pelo desejo
coisa, salvo o interrogar sobre de seu oposto. Segundo a autora, os exemplos
as aproximações possíveis entre poderiam se multiplicar, e seriam em número
esses esclarecimentos. Por correspondente ao de objetos de tese potenciais.
“interações” da psicanálise, a Visto de maneira ampla, a competência
autora entende a confrontação psicanalítica se apoiaria sobre três elementos: “o
dos discursos mantidos por que a própria análise do analista lhe ensina sobre
diversas disciplinas sobre um o funcionamento de seu inconsciente; o que seus
mesmo objeto, de tal forma a pacientes lhe ensinaram do funcionamento do
permitir destacar as inconsciente deles; o que ele aprendeu nos
especificidades de cada uma. textos psicanalíticos, quer se trate de clínica
Não se trata de buscar uma quer de teoria, ambos não sendo jamais
unidade dialógica, a seu ver dissociáveis” (Mijolla-Mellor, 2004, p. 46). A
ilusória, mas ao contrário autora não hesita em dizer que as interações da
permitir a cada disciplina psicanálise constituem uma quarta fonte de
desalojar reais especificidades, abordagem. Ela seria precisa no tanto em que
às vezes mesmo oposições, por permite precisar e relativizar o saber analítico e
trás de aparentes similitudes seu método, comparando-os e confrontando-os
nocionais. com outros campos. Enfim, não somente a
Essa confrontação deve pesquisa sobre a psicanálise teria tudo a ganhar
também permitir precisar os com sua integração ao vasto domínio das
métodos utilizados. Poderíamos Ciências do Homem, mas a pesquisa em
assim trabalhar os empréstimos psicanálise pode se ver renovada e provocada de
de modelos de uma disciplina a maneira fecunda pelos resultados provenientes
outra e a penetração recíproca dessas interações.
dos conceitos. Um exemplo A universidade seria uma base
poderia ser a noção jurídica de privilegiada para pôr em obra e na prática essas
processo, presente inúmeras interações, acrescentando à pesquisa “em”
vezes na obra de Freud. Ou psicanálise (diríamos: metapsicológica e
ainda a noção filosófica de clínica) e “sobre” a psicanálise (histórico-
SUMMARY
RESUMEN
Fernando Aguiar
R. do Calafate, 79/204 — Pantanal
88040-008 Florianópolis, SC
E-mail: fabs@cfh.ufsc.br
Recebido em:
15/04/06 Aceito
em: 01/06/06