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O vento de Aracati

1.

Despertei de um sono pesado, quase como se estivesse bêbado ou tentasse


agarrar-se aos cabelos do mar. Estava a delirar quando vi o céu invertido? No breu
da noite brilhavam imóveis centenas de milhares de luzes. Algo dentro de mim
dizia-me é uma ilusão. Pisquei os olhos, pasmo. Então vi as luzes se deslocando
para cima, flutuando no céu verdadeiro. Noite de quarto crescente em fase inicial,
disse para mim mesmo quando os impulsos nervosos encontraram a memória das
imagens que eu via. Então despertara, a dez mil metros de altitude num vôo com
destino a Fortaleza, para ver neste céu invertido o populoso e laborioso estado do
Ceará. Um estado populoso mas concentrado nas áreas litorâneas, dos rios, nas
serras e vales. Já no final da viagem, ouviria do motorista de táxi a seguinte piada:

- Como tem gente no Ceará!


- É porque a camisinha aqui é feita de renda.

O humor em tom debochado guarda uma moral: quem leva essa vida difícil
de cara feia morre mais depressa.

2.

Na manhã do dia 6 de setembro de 2003 levantei-me da cama e, após o café


matinal no hotel, fui até a Praia do Meireles. O mar verdeazulava na distância. Um
barco se aproximava com seu arrastão. Soprava um vento agradável que ajudava a
resfriar a sensação térmica de calor já forte nesta época do ano. Ao longe, os
cataventos que forneciam energia de origem eólica ao porto do Mucuripe. Não
posso deixar de ir lá, pensei. Logo em seguida – eram apenas 7:30 horas da manhã!
- o motorista da universidade veio buscar-me. Passaram-se 15 anos desde que por
aqui passei. Voltei a avistar a cidade, em sua parte alta onde moram os mais ricos
e baixa, pobre, zona sujeita a enchentes.

Na Universidade, a recepção da professora Irismar, coordenadora do Curso


de Mestrado em Saúde Pública e a conversa com as alunas Lucia, Marlene, Ana
Valéria, Paola, Ilvana, Ana, Josefa, Mônica, Gláucia e um aluno, José Maciel, a
apresentação ao pessoal administrativo, Mardênia, Rocemilda, e de apoio, Cirilo,
sempre acompanhado de Benji, o cão engravatado.

Ao anoitecer, passeio pela orla, em direção a um gigantesco aterro. Mais


tarde, soube que ali existira a famosa Praia de Iracema, lugar da boemia e da
oposição intelectual à elite. Observando a fachada de prédios lembrei-me de
Copacabana. Com uma diferença: um grande número de prédios estava
desocupado. Aos poucos, centenas de pessoas estavam a circular pela orla
marítima. Muitas jovens, mas me pareceu que todas eram maiores de 18 anos.
Teria sido exitosa a repressão à prostituição infantil?
3.

As aulas tiveram intensa participação, permeadas pela angústia dos alunos


de lidar com uma situação nova, a de construir o saber acerca da educação e saúde
em sala de aula, na relação pedagógica imediata.

Entre as aulas e o retorno ao hotel, tive a oportunidade, brindada pela


professora Irismar, de almoçar na companhia de duas alunas num famoso
restaurante, o Sirigado, nome local do comuníssimo (entre nós) badejo. Mas diga-se
de passagem, muito melhor servido. Incomparavelmente. Então soube, pelas
minhas acompanhantes, ao cumprimentarem professoras aposentadas, ter sido,
outrora, um local de jogatina. Ali muitas fortunas se desfizeram, tudo resultando
em infelicidade e concentração do poder. E por falar em jogo, uma delas contou a
história de um criador de galos de rinha que vivia às expensas dos bichos cuidados
pela mãe. O detalhe significativo dessa história tem a ver com a casa, a única casa
num quarteirão de prédios altos. Por que? Ora, lembre-se que se a mulher era
surda e o filho nunca estava em casa à noite, em compensação sofriam os vizinhos
quando o cocoricar de dezenas de galos interrompia abruptamente o silêncio da
madrugada – que se prolongava desesperadamente por um longo tempo.

Nas conversas noturnas, saboreadas na Peixada do Meio e Maria Bonita,


descobri um pouco mais sobre o povo e a história cearenses.

O Ceará deixou de ser uma economia tradicional como fora, ao longo de


último século, agropecuária e extrativista. O latifúndio algodoeiro que havia
sustentado a economia e urbanizado as cidades durante o império, sustentara-se na
exploração do trabalhador rural. Ele foi a sombra da figura social de maior
relevância, o vaqueiro, por sua vez expressão coletiva de uma “civilização” que se
estruturou lentamente em todo o sertão, do norte de Minas até o Piauí, num tempo
longo. É desse Brasil profundo que nos falava o saudoso geógrafo Milton Santos. Mas
o vaqueiro não existe mais praticamente: está imortalizado no Museu memorial, ali
no Dragão do Mar, em Fortaleza.

A economia algodoeira entrou em colapso nos anos 80, assolada pela praga e
pelos preços baixos. Nos interstícios dessa economia desenvolveu-se o artesanato
da renda e um talento para a tecelagem que foi aproveitado, a preço vil e sem o
pagamento de direitos sociais, pelas cooperativas de confecção montadas pelo
capital oriundo em grande parte da Coréia do Sul. Diz-se que o porto de Fortaleza é
uma conexão do comércio internacional de drogas, um ponto de passagem entre a
Colômbia e as ilhas do Cabo Verde. A exportação de confecções serviria a esse
comércio.

Quanto ao extrativismo, falamos um pouco sobre o caranguejo que se come


tradicionalmente na cidade de Fortaleza às quintas-feiras. Ali no Maria Bonita vim a
saber do fim do crustáceo e da lagosta na costa cearense após um período de pesca
intensiva e predatória. Agora vem tudo do Piauí e do Rio Grande do Norte.
Falaram-me do risco de vida dos mergulhadores durante a época do defeso.
Esta conversa sobre os trabalhadores do mar me faz lembrar outra vez do
tempo longo. No livro O poder da peste: a vida de Rodolfo Teófilo, de Lira Neto,
presenteado por Josefa, aluna da UECE interessada em História, lê-se, nos
comentários à margem da biografia de Rodolfo - farmacêutico, sanitarista, escritor,
inventor, intelectual e pesquisador daqueles que se tem notícia do Renascimento
pois além de produzir a vacina contra a varíola e aplicá-la com seus próprios meios,
escreveu uma história da seca e inventou a cajuína – um pouco da história da
província, depois estado, do Ceará. De Rodolfo Teófilo conta José Policarpo
Barbosa, em sua “História da Saúde Pública no Ceará” que, no início, devido ao
temor das mães (por não saberem de que se tratava), o doutor pagava de seu bolso
para aplicar a tal vacina contra a varíola nas crianças.

Vale destacar, nessa história, o papel dos trabalhadores do mar no


movimento abolicionista. Evento importante foi a greve dos jangadeiros na manhã
de 27 de janeiro de 1881, ao impedir o embarque de escravos pelos traficantes a
serviço dos fazendeiros do sul fluminense. Aí se destacou o aracatiense Francisco
José do Nascimento, prático-mor do porto de Fortaleza, vulgo Chico da Matilde, um
mulato que depois receberia o novo apelido de Dragão do Mar. Todo começo é
imprevisível, disse o poeta Fernando Pessoa: assim é que, em decorrência de um
acordo firmado com os abolicionistas, os jangadeiros protagonizaram o momento
decisivo de um processo mais amplo que resultaria, em 1884, na abolição oficial do
trabalho escravo no Ceará, quatro anos antes da chamada abolição imperial. Daí
nasceria também a “cabroeira”, movimento de alianças entre grupos populares
fortalezense que, décadas mais tarde, iria apear o oligarca Accioly do governo e
levá-lo ao exílio político no Rio de Janeiro, em 25 de janeiro de 1912. Movimento
que se defrontaria em 1914 com outros cabras, os do Batalhão Patriótico do Padre
Cícero, numa guerra que não aconteceu. Tempos das oligarquias, onde o povo
ainda não adquirira a autonomia política.

4.

Pela manhã, antes de partir, decidi conhecer o famoso mirante. Lá no alto,


numa pequena praça, fiquei um tempo a observar, pasmo, o fim da paisagem
bloqueada pela muralha de prédios que se estendia ao longo da orla. Onde estavam
as velas do Mucuripe? Retornei ao táxi e Rosaldo, o motorista, comentou que a
violência e a prostituição haviam afastado os turistas.

Mas o senhor quer conhecer um lugar verdadeiramente lindo?

Sem muito ânimo, perguntei onde ficava e qual a distância em relação ao


aeroporto. Assim foi que acabei por conhecer Beach Park e, pela narrativa de
Nonato, a estrutura do poder no estado, a relação entre a economia legal e a
ilegal.

- Está vendo essas terras todas, aqui e lá, a perder de vista? Era tudo
terra de grilagem, disse-me. O dono desse empreendimento, João Gentil é um
posseiro que legalizou as terras dividindo a metade com o Tasso Jereissati. Aquele
de gentil, nada tem. Comanda os negócios de Miami, nem fica aqui.
Enquanto avançávamos, observei no caminho os cataventos, torres de
condensação de energia eólica. É a energia do futuro, comentou. Tudo pertence ao
homem.

- Quem?
- Ao Tasso. Ele tem negócio de turismo e imóveis nas costas Oeste e
Leste. O homem é tão rico que tem mais de 40 empresas, aqui no ceará, Maranhão
e Piauí. Ele é dono da Rede Iguatemi.
- Mas como é que esse cara chegou a ser esse sujeito rico assim?
- Ah, é coisa que tem a ver com o Edson Queiroz, dono da Gás
Nacional. È um herdeiro dele. Aí me contou uma história cheia de meandros para
concluir com essa pérola: os ricos não brigam, arengam.

Afilhado político dele, Ciro Gomes é o “dono” de Sobral. A prefeitura da


cidade instalou, com terrenos grátis e isenções fiscais por 20 anos, a Grandene,
indústria de calçados que saiu lá do sul. Em Sobral, a empresa passou a ocupar 16
mil pessoas, entre empregados diretos e indiretos.

- A empresa lucra, os trabalhadores ganham e o governo tem benefício


político, não é?

Paramos para almoçar na Prainha. O motorista perguntou-me se eu queria a


mais alguma sobremesa. Como eu não havia entendido, sem cerimônia, ele propôs:

Se o doutor quiser se servir de uma menina bonita. Tem umas ali na Tia
Bete que eu conheço, o senhor fique à vontade e tranqüilo.

Então ficou claro que a prostituição infantil não aparecia porque a repressão
oficial simplesmente obrigou ao ocultamento de uma rede que se estruturava de
modo mais frouxo e por outro lado de maneira mais eficaz, porque taxistas e
restaurantes passaram a vincular a clientela à rede clandestina por meio de
telefone.

O que não se discute é que se a fome pode ser o que empurra estas meninas
à prostituição, há quem empurre e são muitas vezes as próprias famílias. Mais, há
um lado obscuro nessas histórias familiares, seduções e estupros de parentes que
ninguém quer esclarecer.

As prostitutas são, historicamente, agentes de doença e de saúde.


Organizadas sob pressão da polícia médica, tornaram-se agentes informais de saúde
pública. Hoje são profissionais do sexo, compõem redes de prevenção das doenças
sexualmente transmissíveis e principalmente da transmissão do HIV-AIDS. Há uma
preocupação com a higiene e o sexo seguro, mais ainda porque desta forma tem
algum controle sobre a violência de que são as maiores vítimas. É interessante
como trazem consigo, nos patuás de proteção, sinais de um tempo antigo,
expressões da resistência de outros povos. No caso, dos negros muçulmanos que
lideraram a chamada revolta dos malês, ocorrida em Salvador nos idos de 1830.

5.

A viagem chegara ao fim. O táxi deixou-me no Aeroporto. Já embarcado,


pensei no mar que convidava o turista, nacional e estrangeiro. Mas também no mar
que fornecia alimento aos pescadores. Gente humilde que retirava das águas
toneladas de piabinhas, vendia os peixes por quase nada e consumia todo o ganho
em cachaça; assim ia levando a vida, dia após dia, neste modo até desaparecer,
subitamente.

A vida popular cearense tem uma riqueza e densidade que a presença


ostensiva da nova oligarquia, expressa na modernização da cidade e do estado,
parece ocultar com sucesso aos olhos do visitante. Mas basta uma conversa mais
demorada e a escolha de caminhos de acesso para perceber a força da sociedade
civil de caráter popular no Ceará. Vera, Felipe, Fátima, Márcia e Irismar, na
conversa sobre a futura organização da educação popular e saúde no estado, ao
puxar os fios de suas memórias, trouxeram nomes, movimentos e grupos que se
foram se entrelaçando nas falas, a dar conta das possibilidades de compor uma
vasta rede entre o mar e o sertão, estendendo-se de Fortaleza a Sobral, Aracati,
Baturité, Quixadá, Quixeramobim, Icó, Juazeiro do Norte e Crato.

Entre o mar e o sertão, o vento. O clima cearense, de janeiro a julho, é


chuvoso. Entre janeiro e fevereiro, há muitos alagamentos, com ressacas. De julho
a dezembro vive-se uma época de calor, com vento e as chuvas do caju. Mais
importante é o veste leste, é saber esperar este vento:

- Muitas vezes, na época em que eu trabalhava em Icó, terminava o dia


de trabalho e ia esperar o vento de Aracati. Chegava depois das 18: 00 horas, era
uma coisa fantástica, disse Lucia.
- E de onde vinha o vento?
- Vinha do mar...
- Demorava para...
- ...chegava lá dias depois, uma brisa fria, a gente sentava no
alpendre da casa, esperava chegar, naquele sertão quente era um sonho.

Eduardo Stotz

Fortaleza, 2005 - Rio de Janeiro, 20013

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