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Descortinando a Cidade: a ‘Montagem’ da

Fortaleza ‘Babado’

Unveiling the city: the ‘montagem’ of the ‘babado’ Fortaleza

Juliana Frota da Justa Coelho


Universidade Federal do Ceará
Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança
Instituto Superior de Teologia Aplicada
julianafjusta@gmail.com

Resumo Abstract
As sociabilidades homossexuais, na cidade de The homosexual sociability in Fortaleza city and its
Fortaleza, e suas territorialidades constroem­se em territoriality are built in the midst of open and
meio a espaços abertos e fechados, por entre brechas e closed spaces, through loopholes and gimmicks
astúcias galgadas através das décadas. Um dos developed over the decades. One of the important
importantes espaços para as ressematizações ou spaces for ressignifications or ratifications of
mesmo ratificações das experiências homossexuais são homosexual experiences are the gay clubs in which
as boates gays nas quais as performances de travestis, the performances of transvestites, transformists and
transformistas e drag queens são atrações. Os aludidos drag queens are highlighted. The alluded
performers, ao embaralhar signos culturalmente performers shuffle signs culturally attributed to the
atribuídos ao masculino e ao feminino em suas masculine and feminine in their “montagens”,
montagens, proporcionam frestas nas concepções providing openings in naturalized conceptions of
naturalizadas de gênero e sexualidade, deixando gender and sexuality, letting on that the plasticity of
entrever que a plasticidade dos corpos, os desejos e os bodies, desires and possibilities of becoming can
devires nunca podem ser inteiramente esquadrinhados, never be fully scanned, building brands also in the
construindo marcas também no corpo da cidade. body of the city.

Palavras­chave: Gênero; Sexualidade; Performance; Keywords: Gender; Sexuality; Performance; City.


Cidade.

Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 1, n. 2, p. 176-189, ago. / dez. 2010.
Descortinando a Cidade: a ‘Montagem’ da Fortaleza
‘Babado’

Introdução não apenas dão seu ‘close’, mas também podem


reconfigurar esse espaço em direção a novas formas de
visibilidade.
Problematizar o surgimento dos espetáculos trans
nas boates da capital cearense não é algo fácil,
Nota etnográfica
principalmente se a temporalidade em questão não está
30.06.09 (terça-feira)
restrita ao carnaval. Em minha busca por literatura que
discutisse sobre as boates da cidade nas quais as
Perto da hora do pôr­do­sol, encontro­me
performances de travestis, transformistas e drag
dentro de um ônibus que passa pelo bairro
queens fossem atração, deparei­me com uma relativa
Messejana quando uma cena chama a
escassez de fontes, principalmente no que se refere aos
minha atenção. Apesar de já ter visto a
estabelecimentos pioneiros. Os trabalhos de Coelho
estátua de Iracema (que adorna a Lagoa de
(2006), Fontenele (1999) e Vale (2000, 2005),
Messejana e representa a beleza da mulher
contribuem sobremaneira para o debate sobre as
cearense) em diversas outras ocasiões, sou
travestis de Fortaleza, mas nem todos contemplam
afetada por outras percepções. Lembrei­me
diretamente o contexto das boates, já que têm como
da travesti que entrevistei no mês anterior,
principais motes de discussão os processos de
residente em um bairro próximo ao da
transformação corporal e suas experiências no campo
‘Iracema’. Quando da entrevista, fiquei
da prostituição na cidade e/ou em outros países. Em
impressionada com a sua beleza
Gadelha (2007), encontrei as primeiras referências
“desmontada”, ou seja, sem os luxuosos
sobre performances drag nas boates gay locais
vestidos e maquiagens utilizados nos dias de
existentes no período de setembro de 2004 a outubro
espetáculos nas boates (claro que a travesti
de 2005.
dificilmente se desmonta, mas o “desmonte”
A ida a boates gays como uma importante rede de
aqui se relaciona àquele do glamour dos
sociabilidade para a vivência das homossexualidades,
shows). Outra lembrança que
dos citadinos da capital cearense, ficou patente no
imediatamente me veio, foi a de fotos da
trabalho de Paiva (2007), mesmo que a ênfase do autor
mesma junto aos amigos, próxima à
não recaísse sobre as aludidas performances nem sobre
Iracema banhada pela Lagoa, publicadas
os estabelecimentos nas quais elas ocorriam. Ao ler as
em um site de relacionamentos! Ambas, a
narrativas sobre o ethos íntimo das parcerias
travesti e a Iracema (agora já me refiro à
homoeróticas, foi possível observar que em quase
descrição da personagem de José de
todas há referência a boates, o que acaba por mostrar
Alencar) possuem uma pele morena e
que esses estabelecimentos podem ser considerados
longos cabelos negros. Alencar, assim como
espaços privilegiados de sociabilidade homossexual.
a travesti, inspirou­se em modelos de beleza
No entanto, quase no final de minha pesquisa, tive
para construir sua personagem. Rememorei,
acesso a duas obras raras, pois não foram oficialmente
também, tantas outras travestis,
publicadas ou divulgadas para um público maior. Na
transformistas e drags que sobem todos os
década de 70, Manoel Amorim, antigo morador do
finais de semana aos palcos da Divine,
Prédio Jalcy , localizado no Centro de Fortaleza,
tornando­se para muitas pessoas ícones de
escreveu dois livros de ficção sobre o cotidiano de
beleza. Perguntei­me: será que esses
‘bonecas’ e seus ‘casos’. Ilca (1971) e Nós­Eles­Nós
performers poderiam ser considerados
(1972), por mais que sejam obras de ficção, retratam a
“Iracemas de pênis” da noite fortalezense?

Travestis, transformistas e drag queens, no homossocialidade fortalezense, perpassando o âmbito


carnaval, animam blocos de rua, participam de bailes e da família, do lazer (há referências ao carnaval, festas
concursos de beleza, enfim, transitam por diversos e boates, porém sem citar nomes), das conquistas e
espaços sociais com uma visibilidade mais desilusões amorosas, dos preconceitos, dos concursos
“legitimada” do que nos outros períodos do ano. Essa de ‘bonecas’, das gírias da época (‘broto’, ‘mora? ’,
propagada “legitimidade”, no entanto, está mais para ‘fita bárbara’, etc.), das músicas marcantes (Roberto
uma falsa tolerância do que para uma aceitação mais Carlos é praticamente onipresente com as canções
concreta das homossexualidades (GONTIJO, 2009; “Amada Amante”, “As Curvas de Santos”, entre
GREEN, 2000; TREVISAN, 2007). Por outro lado, outras), dos filmes polêmicos (“Teorema”, de Pier
ignorar a relevância da presença trans no carnaval é Paolo Pasolini; e “O Bebê de Rosemary”, de Roman
desconsiderar uma das vias pelas quais essas pessoas Polanski, ambos de 1968).
Todas essas obras que, direta ou indiretamente,

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contemplavam o que eu procurava, impulsionaram­me até as primeiras décadas do século XIX.


a (re) construir o percurso das performances de O processo de remodelação urbana empreendido na
transformistas, travestis e drag queens nas boates de segunda metade do referido século, conhecido como a
Fortaleza, tecendo­o a partir de uma costura entre a belle époque de Fortaleza (PONTE, 2001), teve
literatura levantada e as entrevistas feitas por mim no reverberações também nos costumes de sua população.
período de abril de 2008 a julho de 2009. Estas foram Novas configurações arquitetônicas importadas da
realizadas com pessoas que atuavam ou atuam nos França; a construção e aformoseamento de praças; a
espetáculos desde o que consideram o início das boates tentativa de incorporar costumes franceses ao modo de
que realizavam performances trans, e com aquelas viver cearense, resultando em um peculiar
mais jovens, que mal eram nascidas quando do ‘afranceseamento’; a construção de instituições
surgimento dos primeiros estabelecimentos. Diretores científicas, literárias e educacionais; bem como o
artísticos, performers, donos de boates, DJs e incremento dos serviços urbanos, de transporte e de
organizadores de concursos de beleza gay narraram a comunicação, deixavam transparecer o desejo
mim suas vivências, trazendo à tona importantes fortalezense pela ordem e pelo progresso, de acordo
acontecimentos que contribuíram para a atual com o Zeitgeist positivista da época.
visibilidade das performances trans na capital do A expansão da cidade implicava também na
Ceará. formulação de estratégias para disciplinar qualquer
Não pretendo aqui realizar uma extensa discussão resquício de desordem. Uma das mais marcantes,
sobre o surgimento de Fortaleza, mas situar alguns de nesse sentido, foi a contratação do engenheiro
seus principais acontecimentos históricos para, pernambucano Adolf Hebster para remodelar a planta
posteriormente, entender a dinâmica dessa cidade em de Silva Paulet, que deixava a desejar por conta dos
sua inter­relação com o surgimento das boates, nas becos sinuosos e perigosos para manutenção da ordem.
quais a grande atração são as performances Inspirado pelas reformas de Paris empreendidas pelo
supracitadas. Inicialmente, foco em aspectos mais Barão de Haussman, a nova planta deixaria a cidade
gerais do desenvolvimento da cidade, compreendendo “aberta” e transparente, dificultando revoltas. Outra
o período do século XVII até o atual. No segundo recomendação era a do embelezamento do centro a
momento, teço uma discussão sócio­antropológica partir da construção de três boulevares
mais aprofundada, enfatizando a construção das boates (correspondentes, atualmente, às Avenidas Duque de
da capital cearense e das performances trans que nelas Caxias, Imperador e Dom Manoel).
ocorriam ou ainda ocorrem. Ressalto, também, que O tratamento paisagístico dessa parte da cidade era
meu recorte histórico­temporal centra­se, uma das prioridades, já que o centro de uma capital
principalmente, da década de 70 até os dias atuais, deveria mostrar organização, limpeza e riqueza. Um
período esse que compreende o “nascimento” das dos ícones arquitetônicos e históricos da belle époque
boates pioneiras e os estabelecimentos que estão em é o imponente Theatro José de Alencar, concluído em
voga até o momento, conforme aludido pelas pessoas 1910, “com estrutura metálica importada da Escócia,
por mim entrevistadas (COELHO, 2009). importante exemplar da arquitetura eclética, de
inspiração francesa, que caracteriza as construções da
época” (GONDIM, 2007, p. 103). Por outro lado a
belle époque também mostrava seu lado terrible:
Invasões, emancipações e
aformoseamentos: ergue-se a Fortaleza
O outro lado dessa “belle époque” era o
Nascida a partir de um povoado que se constituiu
quadro de miséria e degradação formado
no século XVII ao lado do forte Schoonemborch, o
pela população que acorria em massa para a
qual foi erguido pelos holandeses na segunda invasão
capital a cada período de estiagem [...] A
às terras cearenses até então sob o domínio dos
concentração de um grande número de
portugueses, Fortaleza surgiu de forma não planejada
pessoas sem recursos e sem condições
pelos invasores. Com a sua expulsão pelos portugueses
adequadas de higiene e saneamento
em 1656, a povoação foi então renomeada de Fortaleza
acarretava epidemia e toda sorte de
de Nossa Senhora da Assunção (GONDIM, 2007). Sua
problemas sociais (op. cit, p. 103).
elevação à categoria de vila e capital da província
ocorreu apenas em 1713, época na qual o Ceará ainda
As primeiras favelas, as atividades consideradas
pertencia à jurisdição de Pernambuco . Apenas em
ilícitas (roubo, furto, prostituição, mendicância) e a
1799 emancipa­se administrativamente, mas Fortaleza
aglomeração, amalgamadas à instalação crescente de
ainda permanece como um núcleo urbano inexpressivo
estabelecimentos comerciais, fizeram com que a elite

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se deslocasse do outrora abastado cento para bairros transformando­se em um espaço de acesso conturbado
adjacentes já em 1911. Os bairros Benfica e e de intensa aglomeração. Os referidos shopping
Jacareacanga eram os mais procurados pelos centers e o boom imobiliário das áreas supracitadas
economicamente favorecidos nos anos 30, formando os favoreceram um processo de verticalização de
primeiros bairros de classe média e alta. É a partir Fortaleza nas décadas de 70 e 80.
dessa década, afirma Gondim (2007), que tal processo Os anos posteriores foram palco de importantes
começa a demonstrar um certo padrão de reformas urbanísticas empreendidas pelo chamado
espacialização das desigualdades sociais. Moradias “governo das mudanças”. Os governos municipal e
irregulares nas dunas das praias, sobretudo na parte estadual, apesar das divergências políticas e
oeste da cidade, passavam a fazer parte da paisagem ideológicas, juntaram forças para modernizar a capital
antes ocupada principalmente pela indústria. No lado do Estado do Ceará e transformá­la em relevante
leste, o bairro Aldeota começa a estruturar­se, destino turístico. Ao grande investimento na
passando a abrigar luxuosas moradias de uma construção do novo aeroporto internacional, do
burguesia emergente. sistema de transporte integrado, do Centro Cultural
Na década de 50, a praia, além de habitat de Dragão do Mar e de outras obras, somou­se intensa
moradia, foi agregada aos hábitos de lazer da campanha publicitária (local, nacional e internacional)
população. Sedes de clubes sociais frequentadas pelas que preconizava os louros conquistados pela prefeitura
classes média e alta lá foram construídas, com e pelo governo do Estado (GONDIM, 2007).
destaque para o Náutico Atlético Cearense, situado à A Fortaleza do novo milênio, detentora do posto de
Praia do Meireles. Em algumas praias ao leste, a um dos maiores pontos turísticos do Brasil, lida com
frequência era limitada por conta da proximidade de uma mácula em sua imagem por ser também
favelas (no Mucuripe e no Farol) e também por conta conhecida nacional e internacionalmente como uma
da privatização do acesso ao mar. Antes da abertura da das capitais do turismo sexual e da exploração sexual
Avenida Beira­Mar, em 1964, o espaço da Volta da de crianças e adolescentes (DIÓGENES, 2008). As
Jurema era um dos “restritos”, ocupados por casas de políticas públicas de segurança, lazer, educação,
veraneio. habitação e saúde ainda continuam em pauta nas
A intervenção do Estado com o recurso do Banco reivindicações dos movimentos sociais organizados e
Nacional de Habitação, a partir do final da década nos motes das campanhas eleitorais, seguindo a euforia
seguinte, foi decisiva na reestruturação urbana por e as frustrações da eleição e reeleição para presidente
meio da construção de conjuntos habitacionais (ex: da República do petista Luís Inácio “Lula” da Silva, na
Ceará, Jereissati, Marechal Rondon e José Walter) para primeira década dos anos 2000.
a população mais desfavorecida e de edifícios O que o por ora foi discutido tem a ver com boates
residenciais para a classe média, reforçando a e shows de travestis, transformistas e drag queens na
segregação espacial e contribuindo para a cidade? Como as mudanças sóciopolíticas do contexto
metropolização. Ao mesmo tempo, parte do comércio fortalezense reverberaram na cena gay dos
localizado no Centro migrou para outros bairros, espetáculos? O que o percurso de performances trans e
principalmente para a Aldeota: boates podem nos dizer do cotidiano citadino de uma
das mais importantes capitais do Nordeste?
Prejudicado pelo sistema viário em xadrez
com ruas estreitas e insuficientes espaços
para estacionamento, bem como pela
Luzes na ribalta gay fortalezense
ausência de transporte coletivo de qualidade, A Galeria Alaska, em meados de 70, divulgava o
o trânsito na área central tornou­se caótico, espetáculo “Os Leopardos” na noite carioca.
o que contribuiu para afugentar Admiradores desses eventos que não moravam no Rio
consumidores com maior poder aquisitivo. de Janeiro, quando tinham condições para tal,
Estes, sobretudo a partir da construção em costumavam viajar a Cidade Maravilhosa para assisti­
1982 do Shopping Iguatemi, no bairro da los e, quem sabe, posteriormente ingressar nesse ramo.
Água Fria, a sudeste, passaram a contar com Em uma de suas apresentações, um cearense lá estava
um número crescente de shopping centers, e, maravilhado com o que via, pensou na possibilidade
inclusive na parte oeste (North Shopping) de realizar algo parecido onde morava: em Fortaleza.
(GONDIM, 2007, p. 110­11). Afonso Matos, à época professor universitário e de
escola pública, costumava passar suas férias no Rio de
O centro, portanto, perdia parte de sua importância Janeiro. Essas e outras viagens o influenciaram a
funcional e simbólica para grande parte da população, investir no ramo dos espetáculos na capital cearense:

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quais também aconteciam na boate 1530. A relevante


Tudo começou quando ia passar férias no década de 70, por ele citada como essencial para a sua
Rio. Eu sempre ia ao Rio de Janeiro e lá a resolução de montar shows em Fortaleza, é também
gente frequentava as casas noturnas que aqui emblemática do começo da construção das primeiras
não tinham, ou até como uma forma de não boates da cidade nas quais transformistas, travestis e,
se mostrar em Fortaleza, eu frequentava as posteriormente, drag queens, eram as principais
boates do Rio. Nas boates, víamos algumas estrelas da noite.
performances não só de rapazes, mas Na Fortaleza da segunda metade da década de 70,
também de drags – que na época não eram uma boate em forma de navio chamada Navy
drags, eram as travestis, as pessoas que se (Marinha, em inglês), considerada pelos entrevistados
montavam. A minha história e a minha como a primeira boate onde ocorriam performances
vontade de passar a produzir espetáculos, trans na cidade, aportou no bairro Meireles, na
construir coreografias, montar visuais do Avenida Abolição, local nobre da cidade e próximo ao
povo que trabalhava na noite partiu de tradicional Náutico Atlético Cearense. Espaço
quando eu vi um show: “Os Leopardos”, na destinado principalmente ao público homossexual,
Galeria Alaska, do Rio, na década de 70, por tinha em sua programação, entre outras atrações,
aí. Era a Eloína, a Rogéria, aquele povo shows de transformismo. À época, os frequentadores lá
todo, daí pensei em fazer isso em Fortaleza. entravam geralmente de forma discreta, no intuito de
Porque aqui já havia boates gays, a Navy, não serem pegos em “flagrante”: “A Navy era muito
etc. e tal. restrita, era aquela coisa de gente que vinha, descia do
táxi e já ia boate adentro para ninguém ver” .
As caminhadas de Afonso por outras cidades e As obras ficcionais de Amorim (1971, 1972)
países fizeram com que ele olhasse com outros olhos a retratam uma Fortaleza na qual as homossexualidades
sua terra natal. Transformar em outra coisa cada (‘bonecas’, ‘bofes’, ‘machudas’) transitavam entre
significante espacial; atualizar os espaços; ressignificar amarguras e momentos de felicidade. Em Ilca (1971),
lugares como espaços praticados, construindo a personagem homônima é o foco da narrativa, na qual
paisagens que não faziam parte da rigidez de planos os amores mal­sucedidos (o ‘bofe’ que a troca por uma
urbanísticos... As enunciações pedestres de Certeau ‘rachuda’), as festas com as ‘amigas’, as idas ao
(2000, p.179) comparam o ato de caminhar com os cinema, ao carnaval, e a dinâmica familiar
atos de fala: “A arte de ‘moldar’ frases tem como demonstram um cotidiano no qual o exercício da
equivalente uma arte de ‘moldar percursos’”. Portanto, homossexualidade encontra portas abertas e fechadas.
com sua nova forma de caminhar em Fortaleza, Afonso Sem cair em uma vitimização extrema das
maturou seus planos e, no começo da década de 90, personagens, mas deixando transparecer que o
começou a produzir shows de rapazes que se despiam preconceito caminha junto às pessoas não
no palco, na boate 1530, localizada à Rua General heterossexuais, Amorim parece desabafar e levantar
Sampaio, centro da cidade. Fazendo uma analogia uma “bandeira” em prol de seus semelhantes no
entre as realidades fortalezense e carioca, Afonso prefácio de sua obra:
apelidou seus conterrâneos:
Ao escrever este volume, não quis neste
trabalho, estarrecer ou modificar nenhuma
regra ou ética deste nosso mundo. Quero
Então, quando eu montei essa história

dizer e mostrar a vocês as facetas de um


mesmo, montei um show de rapazes que se

mundo onde muitos não andaram e só vêem


desnudavam no palco, o primeiro em

com olhos reprovativos e escarnecedores


Fortaleza. Eu até brincava com os meninos

[...] Se queres julgar, faça um exame. Olhe


– No Rio, são os Leopardos, e aqui em

para dentro de si. Não encontrando


Fortaleza, como não temos rapazes tão

nenhuma imperfeição, nenhum defeito então


fisicamente estruturados, vamos chamar ‘As

poderás julgar e condenar. Mas não, as


Jaguatiricas’ (risos).

Afonso faz referência ao ineditismo das pessoas só que¬rem condenar sem se dar ao
“jaguatiricas”, ou seja, dos go go boys locais, em trabalho de primeiro estudar, ou medir “prós
performances que aconteciam na noite gay e contras”, procurando assim encontrar a
fortalezense. No entanto, o mesmo ressalta que a causa dos fatos (p. 2).
cidade já contava com shows de travestis e
transformistas antes da estreia das ‘jaguatiricas’, os

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As contestações mais veementes contra, a hoje não via o sutiã, porque o cabelo dela vinha
chamada homofobia , direcionaram­se para uma até a cintura. Quando virava, era aquele
sistematização mais consistente também nessa década. homem sem peito e o povo ficava
No que diz respeito aos movimentos sociais escandalizado. Resultado desse marketing,
organizados, os relatos de Trevisan (2007), autor, poeta desse outdoor ambulante vivo na Praia do
e ativista do movimento gay, apontam o que considera Futuro: filas e filas de casais, homens
os primórdios desse movimento no Brasil. A década de simpatizantes, não mulheres lésbicas nem
70, época em que a ditadura ainda imperava no país, gays, mas famílias, marido e mulher
aparece como momento histórico privilegiado. O exílio querendo ver aquela performance à noite.
decorrente de ações consideradas subversivas teve Foi numa primeira vez no Café Teatro
consequências ambíguas, ao mesmo tempo em que Transação, uma casinha de praia, com mesa
forçou a distância do país natal, acarretou em um de madeira sem estar nem envernizada, mas
contato com uma diversidade de práticas provenientes lotado de gente. Em Fortaleza, foi onde se
de outras culturas: viu o primeiro Streep frontal feminino e o
primeiro masculino. Depois entravam
Paradoxalmente, a compulsória fazendo a performance de Maria Bethânia,
modernização deste período da vida vinha Marcos fazendo uma Alcione, depois
brasileira ocorreu, no terreno cultural, por a Luciano Apate fazendo uma Streisand.
força dos próprios militares que, ao Quer dizer, isso foi um choque e não
provocar o exílio de inúmeros intelectuais, agrediu a sociedade, pois ela prestigiava.
colocaram­nos em contato brutal com o Isso de noite, porque de dia ninguém queria
mundo (p. 336, grifos do autor). saber quem era porque eram pessoas do
seguimento LGBTT e que ali só fazia
O contato com a militância gay norte­americana, interesse saber e ver e prestigiar à noite
ainda no furor da gay liberation , fez com que alguns porque era uma diversão (Afonso) .
exilados, ao retornarem ao país, reunissem forças para
se organizarem de forma mais sistemática e melhor As performances do grupo Transação foram citadas
fundamentada. O “Somos”, primeira organização somente por dois entrevistados, Afonso e Beto. Esse,
brasileira de luta por direitos de homossexuais, surgiu inclusive, considera que o referido grupo teatral fez o
oficialmente em 1979, ano em que a anistia no país primeiro espetáculo realizado apenas por
começava a ser instaurada, impulsionando o boom da transformistas em terras fortalezenses, opinião que não
criação de ONGs no país inteiro nos anos subsequentes é compartilhada por todos os entrevistados. Afonso
e as ressemantizações das homossexualidades. enfatizou que as performances do Transação tinham
No mesmo ano de 1979, voltando à atenção a uma audiência grande e não restrita ao público gay,
Fortaleza, chega à cidade um grupo de Recife ­ ligado tornando­se um marco para a visibilidade homossexual
ao teatro ­ chamado “Transação”, que se estabelece em na cidade, pois, em suas palavras, “foram o choque na
um casarão na Praia do Futuro. Entre seus integrantes, era moderna pra que as pessoas vissem não só a
havia um transformista, Luciano Apate, que costumava prostituição, mas uma arte gay. Contextualizavam o
confundir as pessoas que frequentavam a praia com gay dentro do teatro e dava numa coisa certíssima”
sua figura andrógina: (grifos meus).
Retomando o contexto das boates, a discrição dos
O Transação foi uma coisa importada. Isso é frequentadores da Navy não era tão frequente no
muito importante de se falar porque esse estabelecimento que abriu suas portas após a pioneira:
grupo veio de Recife. É muito engraçado a boate Casa Blanca, no centro, inaugurada por volta
Fortaleza... Eles chegaram, se estabeleceram de 1982. Lá, os espetáculos começaram a crescer em
em um casarão na Praia do Futuro (década número e qualidade, pois eram o carro­chefe da
de 80 já) – 79, 80, 85... Eles ficaram seis programação. Não por acaso, todos os entrevistados
anos aqui. Eram pessoas que mexiam com (dos mais experientes aos mais novos) consideram­na
teatro em Recife. Entre eles havia um o berço da primeira geração de performers
transformista, a Luciano Apate – um homem transformistas e travestis da capital cearense.
de 1,85m de altura, com um cabelo
lindíssimo na cintura. Quando ia à Praia do O Casa Blanca foi que abriu as portas para
Futuro, você podia jurar que era uma loira muita gente com trabalhos artísticos e deu o
lindíssima de costas, de biquíni, só que você seguimento. Aqui em Fortaleza, foi à casa

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de shows mais sofisticada, bem no começo nas boates, enfatiza Dayany Princy, as performances se
dos anos 80, em 82, por aí (Beto). diferenciavam em seu formato. Se no teatro a atenção
Na Casa Blanca já houve mais abertura, era dos espectadores se volta para o espetáculo como o
no Centro, todo mundo estava vendo quem ápice do entretenimento, nas boates o leque de
entrava e quem saía, era maior o espaço, foi possibilidades é maior: além dos shows há o barzinho,
marcada pela realidade dos shows (Dayany o dark room, as salas de cine pornô, etc. Tendo em
Princy). vista que nem todos que as frequentam estão
interessados nos shows, as performances eram mais
A boate Casa Blanca, citada por todos os rápidas e primavam por uma interação maior com o
colaboradores como o lugar que realmente apoiou público, visando capturar sua atenção.
pessoas com trabalhos artísticos relacionados ao Grupos performáticos integrados por transformistas
transformismo, foi o palco inicial de um dos principais e travestis, assim como o cearense Metamorfose, já
grupos de transformistas da capital, o Metamorfose. atraíam um grande público na década de 60, porém no
Encabeçado por Luciano Costa, tinha entre seus Estado do Rio de Janeiro (GREEN, 2000). Em 1964,
integrantes Noélio Mendes, Marusa Gattai e Dayany na já aludida Galeria Alaska, a casa noturna Stop
Princy, que faziam performances, respectivamente, de apresentava o espetáculo The International Set,
Ney Matogrosso, Maria Bethania e Tânia Alves. estrelando travestis que ficaram famosos nos bailes
Principal destaque da boate, o grupo marcou presença carnavalescos. Entretanto, a grande sensação da noite
nos finais de semana por quase 8 anos, fazendo carioca na aludida década foram os espetáculos teatrais
performances, principalmente, de cantoras brasileiras do Les Girls (segundo espetáculo do estilo realizado na
de renome, como Gal Costa, Clara Nunes e Ângela Stop), nos quais os performers cantavam, dançavam e
Maria. O grupo Metamorfose alcançou um prestígio desfilavam.
que os fez excursionar por outros Estados do país, O sucesso do Les Girls fez com que seus
como Piauí, Recife e Natal. Em Fortaleza, realizou espetáculos lotassem, atraindo inclusive um público
espetáculos em lugares tradicionais da cidade, como o não homossexual que passou a frequentar a Galeria
Theatro José de Alencar: Alaska, conhecido reduto homossexual do Rio.
Excursões por outros Estados e até mesmo para o
O primeiro aconteceu e sentimos que as Uruguai proporcionaram uma visibilidade para esse
pessoas foram, fizemos quase dois meses no tipo de espetáculo, colaborando para que performances
Teatro Universitário e toda vida era lotado! de gênero não heterocentradas fizessem parte do
Quer dizer, você do Ceará, fazendo um cotidiano da programação de lazer de algumas cidades.
espetáculo gay e as pessoas indo assistir, Alguns artistas conseguiram fama ao ponto de serem
pagando para assistir, ta entendendo? contratados por empresários europeus, a exemplo da
Começamos naquele teatro pequeno até que travesti Rogéria, famosa até os dias atuais.
resolvemos montar o Metamorfose Show no No contexto do Ceará, é possível pensar que o
Theatro José de Alencar. Fizemos o primeiro grupo Metamorfose, duas décadas depois do The
final de semana, lotou, depois o segundo, International Set e do Les Girls, abriu importante
lotou também. Depois que aconteceu no precedente para que transformistas e travestis
Teatro Universitário e foi pro Theatro José mostrassem ao público homossexual e não
de Alencar, nós começamos a viajar. Fomos homossexual uma outra visibilidade que não a
pro Piauí, viajamos pra Recife, Natal... Um necessariamente carnavalesca ou prostituída. A mais
elenco de 11 transformistas, entre trans e famosa travesti cearense da atualidade, Lena Oxa ,
bailarinos (Dayany Princy). relembra que adentrar esse grupo requeria grande
talento na realização das performances, fato que fez
Em cerca de 10 anos de existência, o Metamorfose com que muitos tivessem seu sonho de fazer parte de
dividiu­se entre teatros e boates, moldando suas seu cast fracassados: “ninguém me dava crédito na
performances de acordo com cada contexto. Nos época do Metamorfose ”. Seus integrantes eram
teatros, os espetáculos tinham maior duração, sua admirados e serviam de inspiração para aquelas
estrutura parecia mais com uma peça de teatro. Desta pessoas que sonhavam em fazer parte do Grupo.
feita, os espetáculos “Metamorfose Show”, “O Cassino Contudo, a década de 80 foi difícil para quem não
das Bonecas Virgens” , “Fresgayética – Uma frescura seguia os padrões heteronormativos, principalmente
gay com ética”, “Bonecas com RXPTO” e “Nem fora do período limitado do carnaval. Beto lembra de
Bicha, nem Gay, muito pelo contrário” aconteceram no alguns fatos significativos de violência gratuita nessa
Teatro Universitário e no Theatro José de Alencar. Já época. Em uma das ocasiões, ele e cerca de 60

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‘Babado’

transformistas foram presos por conta de uma possível Nas primeiras edições do Miss Gay Abolição (hoje
infração cometida por uma travesti; Miss Gay Ceará), nos anos 70, por exemplo, os
organizadores faziam a divulgação trocando o nome do
Era uma perseguição, até. Os anos 80 era bairro onde o evento iria acontecer para despistar a
uma época de muita repressão, a gente tinha polícia. À época, não existia nenhum tipo de lei contra
de ter muito cuidado. Tanto que em um a homofobia. Somente em no ano de 2000 foi
sábado à noite aconteceu um probleminha regulamentada a primeira lei, em âmbito municipal,
na cidade com um travesti. Nessa mesma que estabelece sanções a estabelecimentos comerciais
noite, houve uma ordem vinda da secretaria e pessoas que praticam discriminação por conta de
de polícia para recolher todos os homens orientação sexual. De autoria do então vereador do
que estivessem vestidos de mulher, inclusive Partido dos Trabalhadores (PT), Durval Ferraz, a Lei
eu estava no meio. Então, nessa noite, foram 8221 não surtiu o efeito esperado, continuando
mais de 60 transformistas presos. Eles desconhecida pela grande maioria da população de
começaram pela área do Centro. No trecho Fortaleza.
da General Sampaio até Sólon Pinheiro era No decorrer das 10 entrevistas semiestruturadas, de
tudo point homossexual, barzinhos, Duques dezenas de conversas nos corredores da Divine, em
e Barões, Netinho, tudo gueto, né? Aqui diálogos ao telefone ou mesmo virtualmente, dois
embaixo desse prédio chamado Jalcy, tinha outros nomes de boates que faziam parte do cenário
muito barzinho. Bom, enfim, esse trecho da dos espetáculos trans nos anos 80 fizeram­se presentes,
General até a Sólon Pinheiro era um trecho ambas no centro, apesar de serem menos citadas:
dito só para homossexuais. Todas as pessoas Sótão, na Duque de Caxias; e Flamingo, na General
que estavam vestidas de mulher, na época, Sampaio.
foram presas. Por sinal, pouco travesti. Só Após o fechamento da Casa Blanca, vieram, entre
os transformistas, que eram os maiores outras, as boates 1530, no Centro (1990); Dreams
frequentadores dessas casas, foram presos. Disco Show (1991­1993), “na esquina da Abolição
com a Estados Unidos, que hoje é a Virgílio Távora,
Dayany relembra outra situação de repressão aquele lugar mais chique e vip”, nas palavras de
ocorrida na mesma época: Afonso, ex­proprietário dessa boate; Joy Disco Bar
(1993­1995), na Avenida Monsenhor Tabosa, bairro
Então tudo era festa, queríamos um local Praia de Iracema; Degraus, também na Praia de
pra festa, apesar de naquela época ter muita Iracema; Rainbow, Capitão Gancho... No entanto, não
perseguição. Houve cenas terríveis, da há um consenso entre os entrevistados do número e do
polícia entrar, bater nas pessoas, quebrar nome das casas de espetáculos trans até o momento,
tudo. A gente começou a se impor, a lutar nem mesmo das datas exatas de suas aberturas e
pelos direitos, nós estávamos ali, ninguém fechamentos. Flávia Fontenelle afirma que a boate
fazia aquilo no meio da rua, dançamos que sucedeu o Casablanca em termos de importância
homem com homem e mulher com mulher, para a cena foi a Style, inaugurada no ano de 1995
mas dentro de um local restrito. O início foi (funcionou até por volta do ano 2000), na Rua General
assim, teve muita coisa boa, lógico, apesar Sampaio ­ centro. Tendo a transformista Dayany
do preconceito das pessoas que hoje ainda Princy como apresentadora e diretora artística, foi
tem, mas em proporção bem menor, eu acho. palco de importantes festas e concursos de novos
talentos voltados para transformistas e travestis.
As batidas policiais nas boates eram algo Os anos 90, foram marcados pela estreia de dois
corriqueiro, geralmente com a justificativa de inibir o tipos de performances até então inéditas na cidade: a
tráfico de drogas, a prostituição e a entrada de menores dos aludidos go go boys e a das drag queens.
de 18 anos nas boates. Driblar ou enfrentar a polícia, Consideradas por muitos entrevistados como
ainda sob o espectro da ditadura, exigia não apenas ‘modernas’, as drags começaram a ter mais
coragem, mas também inteligência. As ações visibilidade em meados dessa década, influenciadas
empreendidas iam contra um planejamento para a urbe, pela efervescente cena drag de São Paulo. A performer
no qual pontos de encontro de homossexuais não drag paulistana Saick Samssaha, radicada em
estavam contemplados. Esses acontecimentos parecem Fortaleza desde 1994, disse­me em entrevista que a
ratificar o que Certeau (1994) afirma sobre a vida primeira drag queen que viu, ainda em São Paulo, foi
urbana: ela sempre deixa remontar àquilo que o projeto Márcia Pantera, em 1985, na boate The Club, na
urbanístico dela excluía. Alameda Jaú. Pantera foi sua mãe na arte da

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montagem drag, contratando­a, inclusive, para fazer um pouco parecida com o modo como as
shows com ela como sua sósia. Com o tempo, a mulheres se produzem. Mas essa montagem
“tutora” incentivou­a a seguir fazendo performances não pode ser igualzinha à maneira como as
por si própria. No entanto, revela Saick, “em São Paulo mulheres costumam se produzir. Drag é
eu era só mais uma” . sempre mais exagerada. [...] eu monto de
É interessante observar que Gontijo (2009) e amapô quando tô com preguiça de fazer
Trevisan (2007) aludem à década de 90 quando falam uma montagem andrógena, esta sempre dá
do boom drag no Rio de Janeiro e em São Paulo, e não mais trabalho de fazer. Ela leva mais tempo
aos anos 80. No contexto carioca, o primeiro afirma pra ser executada. Quando eu me monto
que diferentes mídias – o cinema, com o filme androgenamente eu levo no mínimo três
australiano “Priscila, a Rainha do Deserto”; e a música, horas pra ficar pronta, enquanto uma
com a banda americana Army of Lovers – ajudaram a montagem amapô pode ser feita em uma
vulgarizar o termo. Em São Paulo, Trevisan conta que hora e meia [...] Agora uma montagem que
as drags entraram em cena atuando a partir de uma eu nunca fiz é a caricata. Eu até acho as
conceituação mais flexível de “travestismo”. O autor drags caricatas realmente engraçadas, mas
parece confuso ao tentar descrever o que seria uma elas são muito feias, elas não tem glamour.
drag: “Além de atores transformistas, eles se As drags andrógenas podem ser esquisitas,
distinguem dos travestis comuns por andarem vestidos mas ainda assim são glamorosas. Elas têm
de homem, no cotidiano, e até exercerem profissões um aspecto artístico, parecem obras de arte.
respeitáveis” (TREVISAN, 2007, p. 246). Mas as drags caricatas parecem palhaços.
Satyne Haddukan e Sayck Samssaha, ícones drag As caricatas fazem de tudo para ficarem
locais, mencionaram que a primeira drag de Fortaleza engraçadas. Elas passam o batom de modo
foi a humorista Romeirinha Escrachada, no começo da que deixa a boca torta, só usam peruca de
década de 90. O estilo de Romeirinha estava mais para plástico. As drags caricatas são tão caricatas
“caricata”, ou seja, para um tipo de performance na que no momento que alguém as vê já sente
qual o principal atrativo era o que consideram uma vontade de rir. É impressionante! (p.49­50).
paródia exagerada da mulher, com muitos enchimentos
nos seios e nas ancas, algo que remetia, segundo elas, a Em Fortaleza, conforme os entrevistados, a boate
um palhaço. que ‘catapultou’ as drags para a fama foi a Broadway,
As drags de Fortaleza, tendo por referência a inaugurada entre 1997 e 1998, situada no bairro nobre
pesquisa etnográfica de Gadelha (2007), podem se Aldeota, mais especificamente à Rua Carolina
montar de três maneiras. A montagem caricata (a de Sucupira. Nas palavras de Saick, em entrevista por
Romeirinha Escrachada, por exemplo) é voltada mim realizada:
principalmente para o riso. Já a amapô aproxima­se
mais da imagem da mulher clássica dos padrões Foi a Broadway. Na verdade, já existiam as
heteronormativos de feminilidade, sem tantos exageros drag queens aqui, quem fazia as histórias
na montagem e na maquiagem, aproximando­se da era a Romeirinha Escrachada, por mais que
montagem transformista. A “andrógina”, que junto ela fosse uma caricata, fazia a linha drag
com a caricata faz parte do rol das montagens drag queen. Tinha ela, o Benita, a Roberta Killer,
“exageradas”, “abusa” de cores flúor, de brilhos, outras duas que não estão mais entre nós.
adereços como chifres, caudas, fogo, carne crua etc. As perucas delas eram muito montadas,
Músculos e pelos também podem fazer parte das estilo penteados de época, o delas.
“andrógenas”. Satyne Haddukan, em entrevista cedida
a Gadelha (2007, p.49­50), faz uma síntese das três Por falar em perucas, os famosos ‘picumãs’, Saick
montagens, deixando claro que, muitas vezes, a drag considera­se a precursora das perucas lisas e do bate­
pode transitar entre elas: cabelo entre as drags de Fortaleza. “Sou a mãe de
todas daqui de Fortaleza, da maioria que bate cabelo!”.
Mas eu às vezes me monto de amapô, que é O bate cabelo é uma das técnicas mais características
uma montagem mais simples. Na montagem das drags, na qual o ‘picumã’ é ‘chacoalhado’ para
amapô eu faço um corpo com muita diversos lados em um intenso movimento da cabeça e
feminilidade, eu procuro não mostrar do corpo. No entanto, em algumas performances o
nenhuma característica de bicho, assim, eu corpo pode permanecer parado enquanto pescoço,
não uso rabo nem chifre. Amapô significa cabeça e “picumã” movem­se freneticamente. Bater
racha, então a montagem amapô tem que ser cabelo exige muita arte, já que um picumã mal

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colocado que venha a descolar e cair pode ser um Fortaleza sempre esteve dividida entre duas boates: a
verdadeiro desastre e estigmatizar a drag em seu meio. ‘rica’ e a do ‘povão’, esta última localizada sempre no
Além da Broadway, o bar The Birdcage e as boates Centro da cidade. Vimos com Gondim (2007) e Ponte
Renassaince, Thor, Kiss e Queens, todas na Praia de (2001) que o centro, outrora enaltecido como símbolo
Iracema, foram espaços nos quais as performances de beleza e poder na belle époque, passou por
drag tiveram seu auge, já nos primeiros anos do século sucessivos problemas estruturais que acabaram
XXI. Todas as citadas, no entanto, já fecharam suas modificando o seu espaço no imaginário da cidade. A
portas. Atualmente, as drag queens são as estrelas de saída das elites por conta da crescente aglomeração do
um concorrido concurso que acontece na boate Divine, trânsito de pessoas e de automóveis, a função cada vez
o Top Drag Divine, e das festas de réveillon da casa. mais comercial do bairro, o surgimento de outros
Palco de importantes concursos tais quais o pontos comerciais e de lazer contribuíram para uma
“Transformistas do Ano” e o citado “Top Drag”, a espécie de “rebaixamento” do centro no ranking de
Divine é, atualmente, a boate “ativa” que mais perdura locais atrativos para determinada porção da população,
no cenário LGBTT de Fortaleza. Inaugurada em de que prefere se divertir nos shopping centers (que
janeiro de 2000, continua a apresentar espetáculos de englobam muitas possibilidades de entretenimento e de
transformistas, travestis e drag queens todos os finais compras em um relativamente mais “limpo e calmo”).
de semana desde então, configurando­se como o ápice A divisão entre ‘rica’ e ‘povão’, entretanto, não
para a visibilidade do performer na opinião de todos os significava necessariamente uma rígida segmentação
entrevistados. Nas palavras da transformista Condessa do público. No começo dos anos 80, alguns dos
Mireille Blanche : “... se não passarem pelo palco da entrevistados já observavam que as ‘bichas chiques’ e
Divine pra dar o nome delas lá, é como se tivessem ido as ‘bichas cangalhas’, apesar das diferenças
à Roma sem ver o Papa”. econômicas, acabavam se divertindo nos mesmos
A boate Donna Santa, localizada na Praia de lugares:
Iracema, próximo ao Centro Cultural Dragão do Mar,
também abre espaço para performances trans, porém Além do Casa Blanca, na Duque de Caxias,
de forma não tão sistemática (não há shows das trans próximo à praça Coração de Jesus, existia a
todo final de semana, por exemplo). A principal boate Navy. Sempre Fortaleza dividiu­se em
característica são as festas temáticas voltadas aos duas boates, incrível, não passa de duas!
LGBTT. Sua estrutura é bem maior, mas se assemelha Tem a rica e a do povão, que fica sempre no
à proposta da Divine. O primeiro espaço é uma enorme centro da cidade. Mas não quer dizer nada,
pista de dança, com iluminação e decoração colorida e fazer show nas duas é gratificante.
chamativa. Pequenos blocos pretos, espécies de mini Complicado é fazer shows em boates de
palcos, são colocados na pista, servindo de ribalta para gente chique, porque elas não aplaudem,
os frequentadores, que muitas vezes sobem neles e fazem de conta que não é nada. Só que
fazem seu próprio ‘show’. Há um outro espaço, quando elas vão para a boate do povão, elas
destinado principalmente a bandas de forró, axé e pop aplaudem e viram a perna de tanto rir,
rock, com diversas mesinhas e cadeiras. Outro consequência da mudança de caráter. Isso é
diferencial é o preço do ingresso, que geralmente gira porque querem seguir um padrão de
em torno de 15 reais, praticamente o dobro daquele “chiquereza” que elas chamam, mas é tudo
cobrado na Divine. A maior amplitude do espaço e o igual, não muda nada, até porque quem
pequeno tamanho do palco em relação ao resto do frequenta a chique, frequenta a do povão, e
recinto fazem com que a interação dos performers e nesta entram na concepção, elas observam,
plateia pareça ser um pouco menor. curtem o show, brincam com as pessoas. Lá
Divine e Donna Santa são, atualmente, as únicas na das chiques elas só vão para repudiar,
boates que oferecem esse tipo de performances para o tipo uma mudança de comportamento, uma
público de Fortaleza. Isso não significa, entretanto, que lavagem cerebral que elas fazem, mas isso
elas não possam ocorrer em outros locais e faz parte do comportamento humano, do
circunstâncias. Os shows em saunas são bastante nosso mundo GLS (Lena, grifos meus).
comuns, alguns performers animam festa de É o seguinte, o povo dizia, na época da
aniversário, despedida de solteiro, encerramento de Navy, que tinham as ‘Perolitas’, que eram as
congressos, paradas pela diversidade sexual, etc. filhas de empresários, tinham dinheiro,
Fazendo uma espécie de “mapeamento” das usavam bons perfumes... E tinham aquelas
localizações das boates da cidade em seus 27 anos de que iam a esses locais sem ter dinheiro, mas
experiência em espetáculos, Lena Oxa assegura que se chamavam as ‘Bichas Sabonetes’. Muito

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lindinhas, perfumadinhas e ‘lisinhas’ , mas que ali tem o produto do pecado e do prazer
sempre reinando no mesmo local. É tanto [...] A avenida Duque de Caxias era cheia
que na boate Casa Blanca, do centro, o de inferninhos, barzinhos. O mais famoso
pessoal diz que vão às cangalhas, só que deles era o Duques e Barões, onde toda a
não! Iam pra Navy, essa gente fina? Iam, galera se reunia e enchia a cara antes de ir
mas iam também pro Casa Blanca porque lá às poucas boates que existiam. Isso era
o pessoal era mais light, à vontade. Quando muito forte no centro, não só aqui, no Rio
começava o show, eu não sabia se dizia também, os Arcos da Lapa, a Via Ápia... Em
‘sejam bem­vindos à boate Casa Blanca’ ou São Paulo também. As pessoas não queiram
sejam bem­vindos a “La Maison Blanc”. me dizer “Ah, eu não estou no centro”. Se
Cito esses dois nomes da boate, porque ali você fica plantado numa esquina de
tinha tanto as finas, as requintadas, como as madrugada dá pra ver muita gente fina
minhas amigas cangalhas, jogadérrimas, passando no centrão atrás dum bom vigia,
mas finas, que estão vivendo, como todas. dum bom pedreiro, de um bombeiro que está
Então, gente, vamos esquecer. Somos todos ali a fim de te dar prazer... Isso é patente e
seres humanos (Dayany Princy)! quem diz que isso não existe é porque faz
O High Society está lá e com direito a parte da linha pseudofina, isso é besteira.
infiltrações de subúrbio, os rapazinhos, as
bichinhas bonitinhas, juntam seu dinheiro
pra pagar a entrada, mas estão lá marcando
Considerações Finais
presença. É besteira dizer que só vai fina. Algo como um ‘paraíso perdido’. Boates, bares,
Tendo ingresso, todo mundo entra em todo saunas, cinemões, cabarés... Por mais que esses
lugar. Lá dentro todos se igualam, mesmo a estabelecimentos existam em outros lugares da cidade,
que usa perfume da Lady Di e a outra que o centro aparece nas falas nativas como um importante
usa Água de Alfazema. Todas se igualam no reduto gay. Em minhas incursões noturnas por esse
instinto de encontrar alguém ou ver o show bairro, em conversas com amigos, performers,
da drag, de se espelhar na drag, porque frequentadores, garçons, taxistas, transeuntes,
todas elas têm seu público, né (Afonso)? profissionais do sexo, militantes do movimento LGBT,
pude escutar que ali é possível ter acesso a prazeres
Contudo, pessoas de diferentes classes sociais se (homoeróticos ou não, pagos ou não) de forma mais
divertindo em um mesmo recinto não é, aberta e legitimada do que em outros locais.
necessariamente, sinônimo de igualdade entre pares. É interessante observar que atores sociais os mais
Como bem ressaltou Benítez (2007, p.138), existem diversos podem significar os espaços da cidade de
locais nos quais é possível ‘brincar’ com as barreiras maneira diferenciada e que essas significações podem
sociais, “sem querer dizer com isso que as barreiras entrar em conflito com outras, como aquela do centro
venham a desaparecer”. decadente e cotidianamente caotizado pelo intenso
No entanto, é importante ressaltar que o centro fluxo de carros, vendedores gritando suas ofertas,
também exerce grande fascínio para outras pessoas e mendigos acostados nas paredes de lanchonetes ou nas
possibilidades de lazer nem sempre compartilhadas praças, trabalhadores distribuindo pequenos folhetos
com a maioria. Essa parte da cidade foi enfaticamente de planos odontológicos ou de cursos preparatórios
citada por todos os entrevistados como importante para concursos públicos...
reduto da boemia gay. Afonso, que brincava em sua A Praia de Iracema também foi lembrada pela
juventude nos carnavais que aconteciam nas ruas transformista Flávia Fontenelle, para quem, nos dias
Duque de Caxias e Dom Manoel, nas décadas de 60 e de hoje “a vida gay fortalezense se resume a General
70, tem uma interessante hipótese sobre o porquê de o Sampaio, à Divine nos finais de semana, e à Praia de
centro ter um “algo a mais” sedutor para os Iracema”. Talvez não seja por acaso que os lugares
homossexuais daquele tempo e os de agora: referidos pela transformista sejam aqueles nos quais
estão localizados as boates Divine e Donna Santa.
O centro de todas as cidades é um objeto A cidade metafórica, que se insinua no texto claro
muito afrodisíaco. A “pegação” existe muito das cidades, pode votar certos lugares à inércia e ao
no centro de todas as cidades, isso é no esquecimento, assim como compor os chamados
mundo inteiro. A beira da praia existe, o “torneios” acidentais e raros, fazendo referência à
pontão existe, mas parece que o centro cidade transumante de Certeau (1994). Fazendo uma
exerce um fascínio nas pessoas por achar analogia com Perlongher (1987, 1995) e Butler (2001,

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2003, 2005), as caminhadas podem significar certos cruzamento com a rua General Sampaio), o prédio
lugares da cidade como territórios marginais, nos quais Jalcy possui grande relevância para a cena gay e trans
a dinâmica não vai ao encontro do que é propagado da cidade. Muitos de seus moradores eram do
como moralmente correto e saudável, criando seres “à atualmente chamado “segmento LGBTT”. Outro
margem” do socialmente recomendável. aspecto importante é sua localização. A “Duque”, uma
A “marginalidade” também pode ser remetida ao das avenidas mais importantes do centro da cidade,
drama social de Turner por provocar uma quebra no ainda hoje é considerada um point gay e trans,
que tradicionalmente é considerado como seguro. Os “abrigando” bares reconhecidos como gay, tais como o
atributos liminares do “marginal”, no entanto, não Disney Lanches e o Mega Lanches. A proximidade
necessariamente permanecem com esse status com a boate Divine, localizada na rua General
estigmatizado. Sair da liminaridade e conquistar um Sampaio; com a ONG Grupo de Resistência Asa
espaço outro no tecido social depende de rituais Branca – GRAB, na Rua Tereza Cristina; e com uma
públicos, que nem sempre surtem os efeitos esperados, grande quantidade de “cinemões” (cine­vídeos pornôs
podendo manter a situação anterior. nos quais há uma intensa interação sexual) situados na
A construção das boates gays nas quais as rua Assunção e adjacências fazem dessa área do centro
performances de transformistas, travestis e drag tradicionalmente também um perímetro gay, nos quais
queens são a grande atração, levando­se em conta encontram­se entretenimento, prostituição e militância.
também as redes de sociabilidades (homossexuais ou No entanto, é preciso relativizar a “aura gay” da
não) que se constroem nesse processo (já que a boate avenida Duque de Caxias, já que esse e os demais
não se situa em uma cidade só de homossexuais), logradouros citados não estão necessariamente
contribuíram para redesenhar a Fortaleza de circunscritos às homossocialidades. Sem a referida
determinados mapas e planos estratégicos. relativização, corre­se o risco de incorrer em uma
No entanto, o abrir e fechar das boates, as idas e guetificação.
voltas das principais estrelas para a Europa, as batidas 2 Antes de pertencer à jurisdição de Pernambuco,

policiais (menos corriqueiras, porém, ainda existentes), O Ceará integrava o Estado do Maranhão e do Grão­
as participações em programas de televisão (tanto nos Pará desde o ano de 1621.
de entretenimento quanto nos policiais) mostram 3 Famoso espetáculo carioca no qual homens
avanços e retrocessos que se interpenetram, sendo másculos exibiam seus corpos em performances
impossível chegar a uma “conclusão” sobre o papel sensuais, vestindo trajes sumários que remetiam aos
das boates gays e seus performers trans em Fortaleza. leopardos. Os Leopardos abriram precedentes desse
Isso pressuporia uma cristalização dos acontecimentos tipo de show em diversos outros Estados do país. Em
históricos, das subjetividades, das indeterminações 1989, o programa Documento Especial, da extinta TV
intrínsecas aos processos sociais. Afinal, como Manchete, exibiu um documentário chamado
poeticamente afirmou Certeau (1994, p.183), “Profissão: prostituto”. Nele, o jornalista Roberto
“caminhar é ter falta de lugar”, ou seja, os percursos Maya proclamava que seu programa trouxe, pela
pela cidade não estão imunes a práticas significantes primeira vez na televisão, um show dessa natureza,
que podem compor outros espaços ou mantê­los em juntamente a uma reportagem sobre prostituição
sua inércia. masculina. Assim anuncia o jornalista: “Você vai
conhecer também os bastidores dos espetáculos mais
polêmicos dos últimos anos, onde a grande atração é o
__________________________ nu masculino”. Disponível em:
http://www.youtube.com/ >. Acesso em: 25 jul. 2009.
* Utilizo­me da palavra montagem em uma dupla 4 Entrevista realizada com Afonso Matos em 30 de

acepção: (1) fazendo uma clara alusão ao seu uso pelas outubro de 2008.
trans quando se referem aos processos de construção 5 As enunciações pedestres, de acordo com a
de seus corpos, de suas personagens e de suas analogia que Certeau (2000) faz com os atos de fala,
subjetividades; e (2) referindo­me à construção do têm uma tripla função enunciativa: (1) é um processo
cenário dos espetáculos de performers trans em boates de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre;
gays na cidade. Já o termo ‘babado’, corriqueiramente (2) uma realização espacial do lugar (da mesma forma
usado em diversas situações seja como substantivo que o ato da palavra é uma realização sonora da
(ex.: “O babado é fortíssimo!”) quanto como adjetivo língua); e (3) implica posições diferenciadas, ou seja,
(ex.: “Aquele boy é babado!”), alude geralmente a algo “contratos” pragmáticos sob a forma de movimentos.
que chama a atenção, que impressiona, que afeta. 6 Entrevista realizada com a transformista Dayany
1 Situado na Avenida Duque de Caxias (no Princy em 15 de janeiro de 2009.

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7 Homofofobia diz respeito à discriminação de sonho de se transformar em mulher, que era a Carla
pessoas por conta de sua orientação sexual. No Montini, hormonizada, corpo perfeito, entrava e fazia
Progama “Brasil sem Homofobia”, lançado em 2004 um Streep, não pra ficar nua, mas terminava de
pelo Ministério da Saúde, lê­se: “A violência mais letal calcinha e sutiã. Tu imagina? Já era um arraso naquele
contra homossexuais ­ e mais especialmente contra tempo”.
travestis e transgêneros – é, sem dúvidas, uma das 12 Lena Oxa é uma das apresentadoras do
faces mais trágicas da discriminação por conta da programa “Manias de Você”, veiculado pela TV
orientação sexual ou homofobia” (BRASIL, 2004, Diário, emissora cearense com penetração nacional.
p.16). Tendo como principal mote “falar de sexo”, esse
8 Há 40 anos, em 28 de junho de 1969, um grupo programa é transmitido nas madrugadas de terça para
de homossexuais que frequentava o bar gay Stonewall, quarta, com reprises nas madrugadas dos sábados.
em Nova York, reagiu à recorrente homofobia policial. 13 Entrevista realizada com a travesti Lena Oxa em

Desde então, essa data ficou simbolicamente 09 de julho de 2008.


reconhecida como o Dia Mundial da Consciência 14 É interessante pensar o contexto da criação e da

Homossexual (também conhecida como The Stonewall implementação dessa Lei, e o porquê de sua pouca
Celebration ou Gay Pride). No Brasil e no mundo, esse aplicabilidade em Fortaleza, apesar das campanhas de
dia e o restante do mês de junho são consagrados à conscientização promovidas pelos movimentos sociais
realização de manifestos, paradas pela diversidade organizados. Ela reflete, penso eu, a tentativa de
sexual e atos políticos em defesa dos direitos humanos penetração de novos conceitos políticos, jurídicos e
de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais identitários (relacionados aos LGBT) no cotidiano da
(LGBT). cidade. Isto não se dá sem seus ganhos e retrocessos, já
9 Afonso Matos. Professor universitário que subentende mudanças em arraigados padrões
aposentado, Afonso foi diretor artístico de importantes morais e éticos, muitas vezes naturalizados.
casas de espetáculos de transformismo na cidade, 15 Entrevista com a transformista Flávia
dentre elas a boate 1530, fundada no início dos anos Fontenelle, realizada em 07 de julho de 2008.
90. Entrevista realizada em 30 de outubro de 2008. 16 Entrevista realizada com a drag queen Saick
10 Beto, gerente administrativo da Boate Divine Samssaha em 14 de maio de 2009.
desde sua inauguração. Entrevista realizada em 10 de 17 Amapô, no bajubá, significa “mulher”.

maio de 2008. 18 Entrevista realizada com a transformista


11 Ricardo Dione, intérprete da transformista Condessa Mireille Blanche em 3 de dezembro de
Dayany Princy e integrante do grupo Metamorfose, 2008.
contou­me em entrevista o script do espetáculo “O 19 O Ibiza Club, boate localizada na Av. Domingos

Cassino das Bonecas Virgens”. Ei­lo: “Era um cassino Olímpio, 1400, no Bairro Benfica, inaugurada em
mesmo, lá havia um garçom, o único totalmente 2009, por vezes tem como atrações de suas festas,
homem, os outros todos eram gays, e ele é quem voltadas principalmente aos LGBT, performances de
sonhava em ser gay. Era um sonho, ele vinha, contava transformistas, sendo Rayanna Rayovac a mais
aquilo e acontecia o episódio, o sonho de se onipresente. No entanto, assim como na boate Donna
transformar e fazer show, o sonho de ser bailarino, o Santa, os shows de trans não são o carro­chefe do
sonho do carnaval, o de dançar. Tinha a parte cômica referido estabelecimento.
também, feita por dois atores maravilhosos, que estão 20 Aqui, Dayany utiliza uma conhecida expressão

lá no ‘andar de cima’, era a Karina Rossi e a Mary cearense para qualificar uma pessoa que não possui
Blue. Elas duas arrasavam, entravam vendendo boa condição financeira: lisa.
bombom no teatro, havia aquela integração dos dois
com o público. O Wilton Rodrigues, que era o Willa
Jamaica, que também ta no ‘andar de cima’ ­ é tanta
gente no ‘andar de cima’, mas que bom que eles estão
lá vendo que a gente tá lembrando deles ­ fazia a dona
Referências
do Cassino, eu diria a ‘puta­chefe’. Ele era muito AMORIM, Manoel. Ilca. Fortaleza, 1971.
engraçado, as pessoas se divertiam muito. Tinha a
Daniele, que fazia o sonho dele se transformar em ______. Nós­Eles­Nós. Fortaleza, 1972.
atriz. Ela vinha de vestido muito lindo, foi logo quando
começaram a usar canutilho, strass... As pessoas BENÍTEZ, Maria Elvira Dias. Buraco da lacraia:
esperavam a hora em que ela descia as escadarias do interação entre raça, classe e gênero. In: VELHO,
teatro com esse vestido. Tinha também a parte do Gilberto (Org). Rio de Janeiro: cultura, política e

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Recebido em 5 de agosto de 2010.
Aceito em 19 de outubro de 2010.

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