Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
O romance de Luiz Ruffato, Eles Eram Muitos Cavalos, publicado em 2001, é
um livro que brinca com a estética do romance literário, a exemplo dos modernistas, e
que escreve um romance constituído de fragmentos de textos, de vozes, por vezes sem
rostos, de fluxo de pensamento misturado a vozes físicas. Considerado, por vezes, como
romance, por outras como livro de contos, porém, uma coisa é certa: ele é o
estilhaçamento da prosa e sua reconstituição em 69 pedaços, cujo plano de fundo é a
megalópole Paulista.
1. A Estética do romance
1.1 Fragmentos
Ao escrever seu romance, Ruffato utiliza inúmeros fragmentos de textos – tais
como, panfletos, artigos de jornal, horóscopo – que podemos notar já no início do
romance com o primeiro fragmento intitulado, “cabeçalho”, em que é fixada uma data e
um local para esta narrativa.
São Paulo, 9 de maio de 2000.
Terça-feira.2
Carolina Santos3, no seu artigo intitulado Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz
Ruffato: a metáfora de uma metrópole em ruína, afirma que Ruffato segue o exemplo
do que fez o movimento cubista, que utilizava o artifício da colagem de diferentes tipos
de textos para atribuir ao texto literário proximidade com o cotidiano da vida real.
1
RUFFATO, Luiz. Eles Eram Muitos Cavalos. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
2
Op. Cit. (p. 7)
3
SANTOS, Carolina Barbosa Lima e. Eles Eram Muito Cavalos, de Luiz Ruffato: a metáfora de uma
metrópole em ruínas. REVEL – ISSN: 2179-4456 – v.1, n.15 – VI Encontro de Estudos Literários. P. 148 à
163). Disponível em: https://dialnet.uniriojo.es/descarga/articulo/5915301.pdf . Consultado em
20/11/2023.
Santos vai ainda mais longe na análise estética do romance e afirma que além do
movimento cubista, Ruffato serve-se ainda do movimento futurista para a composição
de alguns de seus fragmentos. A autora afirma que o movimento modernista italiano
contribuiu para a exaltação de temáticas do cotidiano moderno da sociedade, voltadas à
apreciação das tecnologias, da velocidade, do movimento de multidões, bem como de
ruídos provenientes das máquinas, encontrados também no fragmento “Mãe”, onde a
personagem viaja, no sufoco do ônibus, até a cidade de São Paulo.
A narrativa é atravessada pela repetição de “o motor zunindo em-dentro do
ouvido (zuuuummmm)” 4, fazendo ressoar o som do motor do ônibus, que corta os
diálogos internos da personagem misturados aos sons que se acumulam dentro do
veículo físico.
4
Op. Cit. p. 13
torna-se evidente, a polifonia torna-se presente e dela a possibilidade da presença de
fluxo de consciência.
Humphrey discorre longamente sobre o conceito de fluxo de consciência no
início do século XX dentro do livro O fluxo da consciência: um estudo sobre James
Joyce, Virginia Woolf, Dorothy Richardson, Wiliam Faulkner e outros 5. Já na
introdução do livro, o teórico apresenta o conceito de fluxo de consciência, baseado em
estudos da psicologia, explicando que se trata de uma tentativa de descrever de maneira
fiel o que é a realidade subjetiva de um indivíduo, levando em conta as suas apreensões
de si e do ambiente em que se encontra.
Humphrey chama esse movimento de entra e sai da apreensão do “quem” e do
“onde”, feita de modo tão fluido que o foco narrativo transita entre a essência do
concreto (onde) e do abstrato (quem), deixando de fora desse processo a necessidade de
explicação do processo, e consequentemente abrindo mão do uso dos verbos discentes.
Dentro de um dos fragmentos do romance, “A caminho”, é possível notar o uso
do recurso fluxo de consciência somado à polifonia, uma vez que a voz interna de uma
das personagens se confunde com a voz externa, física, de uma outra personagem, e há
ainda a marca de intervenção de um possível narrador acrescentando ao texto
informações pontuais.
[...]
mais neguim pra se foder
um metro e setenta e dois centímetros está no certificado de alistamento
militar calça e camisa Giorgio Armani, perfume Polo borrifado no
pescoço, sapatos italianos, escanhoado, cabelo à-máquina-dois, Rolex
de ouro sob o tapete,
mais neguim pra se foder
ela deve estar chegando, uma dessas estrelas que sobrevoam a estrada, a
mulher, o patrão
compromisso inadiável em brasília expliquei pra
sim, claro, ele o trata como
filho que gostaria de ter tido
sim, claro, o filho um babaca o cocainômano passeia sua arrogância
pelas salas da corretora,
5
Robert Humphrey, O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf, Dorothy
Richardson, Wiliam Faulkner e outros. Trad. Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.
sim, claro, o filho um babaca o cocainômano desfila seus esteroides por
mesas de boates e barzinhos — que já quebrou —, por rostos de
leões-de-chácara [...]6
Esse tipo de artificio, a somatória de foco narrativo, polifonia e fluxo de
consciência pode ser encontrado em vários outros fragmentos de texto ao longo do
romance.
Até agora dissemos que o romance de Ruffato não possuía uma personagem
principal, mas isso só se sustenta se pensarmos que a personagem principal é sempre
uma voz e/ou uma figura constantemente presente ao longo do texto. Como no romance
em questão não há a recorrência de mesmos personagens, ou vozes, em diferentes
fragmentos dessa colagem, essa teoria não se sustentaria.
Por outro lado, autores como Carolina Santos, citada no início deste trabalho,
defendem que a cidade de São Paulo seja a personagem fio condutora dos fragmentos
narrados, uma vez que ela seria a responsável por criar as condições necessárias a cada
um dos textos.
São Paulo é a maior cidade do Brasil. Desde seu nascimento ela pouco prometia
e era mesmo impossível para o imaginário coletivo nacional que ela viesse a tomar as
proporções megalomaníacas que assume no início do século XX.
7
Nicolau Sevcenko demonstra em números o crescimento demográfico da
capital cafeeira do Brasil. Segundo o sociólogo, a cidade passa de 19 mil habitantes em
1872 para quase 65 mil em 1890, de 578 mil em 1920 para 1 milhão e 120 mil pessoas
em 1934. São Paulo não tinha estrutura física para comportar tanta gente no seu
6
Op. Cit. p. 10.
7
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na Metrópole. São Paulo: sociedade e cultura nos frementes anos
20. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
perímetro urbano, por isso as pessoas passam a se instalar como podiam, em
apartamentos cujos cômodos são habitados por famílias completas, em bairros sem
esgoto ou eletricidade, gerando, dessa forma, uma grande camada de pobreza e miséria
que coexistia com a beleza e riqueza dos bairros nobres do centro da cidade.
Sevcenko recorre a um dos textos publicados pelo cronista de O Estado de São
Paulo, a quem denomina P., a fim de demonstrar qual era a situação vivida por certa
parcela da sociedade.
2.2 A Violência
8
P., “Uma rua de cortiços”, O Estado de São Paulo, 01/02/1921, p. 5, Apud SEVCENKO, Nicolau. Orfeu
extático na Metrópole. São Paulo: sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
Ao lançar a luz do palco sobre os cenários multifacetados da população menos
favorecida, marginalizada e explorada de São Paulo – assim como a mais favorecida
que se dobra diante da violência da organização social paulista –, Ruffato passa a
integrar o grupo de escritores de literatura brasileira que, de algum modo, tentam dar
voz a essa população à margem das grandes histórias.
Fazendo uso de um Neorrealismo brutal, que visa olhar as personagens a partir
de um viés realista, sem cobrir nenhum desgosto com adjetivos superficiais, Ruffato
constrói seu livro a partir de diversos recortes das diferentes histórias que constituem
esse cenário urbano, pobre e sujo da megalópole brasileira. Há, ao longo do livro, uma
normalização e banalização da miséria, como se pode ver a seguir num extrato do texto
“Ratos”:
3. CONCLUSÃO
Claro que alguns poderiam afirmar que São Paulo é a personagem principal pois
dela surgem todas as histórias e sem ela nenhum dos recortes seriam possíveis. Alguns
afirmariam que colocá-la como plano de fundo seria assumir que os fragmentos que
compõem o romance poderiam ser contados em qualquer outro contexto.
Ao entender que a cidade de São Paulo existe contra todas as chances e
previsões feitas para o seu futuro. Que, como afirma Sevcenko, aquela cidade úmida
pela chuva, e que se desenvolvia no alto de uma colina, se tornaria a megalópole
brasileira, responsável pela confluência de imigrantes de todos os cantos, responsável
10
ROCHA, Glauber. EZTETYKA DA FOME. 1965. Disponível em
https://hambrecine.files.wordpress.com/2013/09/eztetyka-da-fome.pdf - consultado em 20/11/2023.
11
“art. cit" p. 3.
por abrigar a semana de arte moderna, responsável pela criação dos clubes de futebol
operários.
Ao entender que São Paulo, no início do século XX, abriga a grande aristocracia
cafeeira responsável pela maior exportação de café no mundo, e que mais tarde, no
início do século XXI se transformaria na capital brasileira do rap e do grafite,
denunciando toda a barbárie e sujeira da nova sociedade paulistana, cai por terra a
possibilidade de que qualquer outra grande cidade brasileira pudesse ser o palco para o
romance de Ruffato.
Por outro lado, a Violência, característica do povo latino americano, que herdou
suas terras e origens a partir da violência da exploração da terra e seus seres, compõe os
brasileiros como um órgão vital, independentemente de sua ascendência. A Violência
pulsa nessa nação, como fome de tudo ou simplesmente como a desesperança de um
futuro melhor.