Você está na página 1de 26

Entre paquer

e “catações”: A ritualizaç
da busca por parceiros
stas eletrônicas sobralen
ras Entre paqueras
ção e “catações”: A ritualização
da busca por parceiros em
s emfestas eletrônicas sobralenses
nses
FABRÍCIO SOUSA SA MPAIO
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte-UFRN/Natal.
Sampaio, F. S.

ENTRE PAQUERAS E “CATAÇÕES”1: A RITUALIZAÇÃO DA


BUSCA POR PARCEIROS EM FESTAS ELETRÔNICAS SOBRA-
LENSES.
Resumo
A paquera masculina pode ser analisada ‘enquanto’ performance cujos
rituais objetivam instaurar uma situação em que os envolvidos no flerte
e a audiência mais próxima fiquem cientes do processo. Este artigo ob-
jetiva identificar e compreender os rituais que constituem a performan-
ce-paquera tomando como campo de observação etnográfica as festas
eletrônicas que ocorreram na cidade de Sobral/CE no período de 2013
a 2016. Nesta discussão, a paquera foi dividida em fase preparatória,
desfocada e focada a partir das teorizações de Erving Goffman (2009,
2010, 2011). Essas fases, bem como os rituais que as atravessavam, eram
interseccionados por eixos de diferenciação corporal.
Palavras-chave: paquera, ritual, performance.

BETWEEN FLIRTING AND MAKING OUT: THE RITUALIZA-


TION OF THE SEARCH FOR PARTNERS IN ELECTRONIC PAR-
TIES IN SOBRAL
Abstract
Male flirting can be analyzed as a performance whose rituals aim to
establish a situation in which those involved in the flirtation and the
closest audience are aware of the ongoing process. This article aims to
identify and understand the rituals that constitute the flirting- perfor-
mance taking as an ethnographic observation field the electronic parties
that occurred in the city of Sobral/CE during the period from 2013 to
2016. In this discussion, the flirting was divided into preparatory, out of
focused and focused phases based on the theories of Erving Goffman
(2009, 2010, 2011). These phases, as well as the rituals crossing them,
were intersected by axes of body differentiation.
Keywords: flirting, ritual, performance.

174 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

ENTRE COQUETEOS Y “LIGUES”. LA RITUALIZACIÓN DE LA


BÚSQUEDA DE PAREJA EN LAS FIESTAS ELECTRÓNICAS DE
SOBRAL
Resumen
La coquetería masculina puede ser analizada como un performance
cuyos rituales buscan instaurar una situación en la que los implicados y la
audiencia más cercana son conscientes del proceso. Este artículo preten-
de identificar y comprender los rituales que constituyen el performance
de la coquetería, tomando como campo de observación etnográfica las
fiestas electrónicas que ocurren en la ciudad de Sobral/CE, durante el
periodo de 2013 a 2016. Para esta discusión, la coquetería fue dividida
en fase preparatoria, sin foco y enfocada, a partir de los aportes teóricos
de Erving Goffman (2009, 2010, 2011). Esas fases, así como los rituales
que las atraviesan, se cruzan con ejes de diferenciación corporal.
Palabras clave: coqueteo, ritual, performance.

Endereço do autor para correspondência: Rua tenente coronel elzio lima


verde n.688, bairro; Renato parente, cidade -Sobral/ce. Cep -62033150.

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 175


Sampaio, F. S.

INTRODUÇÃO ‘enquanto’ performances-rituais nos


termos de Schechner (2012). A perfor-
Sobral é uma cidade do interior ce- mance – comportamento permeado
arense que possui um território de pelo ritual e jogo – se divide em ritu-
2.122,897 Km2, uma população esti- al e entretenimento nos termos desse
mada, em 2015, de 201.756 habitantes2 autor: a primeira se vincula à eficácia
e se localiza a 250,3 km de distância ou objetivo definido e a segunda busca
da capital cearense, Fortaleza. Além passar o tempo ou obter prazer. Não
da baixa densidade demográfica, os existiria nem uma performance-ritual
jovens entrevistados ratificaram a mar- ou de entretenimento pura. Todas as
cação religiosa do catolicismo como performances transitariam entre esses
elementos que dificultavam a emer- dois polos (Op. Cit.). Assim, a paquera
gência de bares, festas ou espaços pú- foi considerada como entretenimento
blicos de sociabilidade homossexual. e performance-ritual cuja expressivida-
É neste cenário social que surgiram de de cada polo somente poderia ser
festas “guetificadas”3 em suítes de mo- compreendida com relação ao contex-
téis afastados do perímetro urbano da to em que a performance-paquera era
cidade que representavam, na época de realizada.
sua emergência, um contexto cultural
propício ao “soltar a franga” de jovens A concepção de ritual utilizada para
analisar as performances-paquera foi
e adolescentes residentes na cidade ou
balizada pelas considerações de Mari-
em municípios vizinhos – Massapê, Se-
za Peirano (2001). Os rituais não são
nador Sá, Uruoca, Santana do Acaraú,
separados de outros comportamentos.
Forquilha, Coreaú, Moraújo, Groaíras,
Eles destacam, acentuam ou repetem
Reriutaba, Varjota, Cariré, Pacujá, Gra-
os comportamentos usuais. A ritua-
ça, Frecheirinha, Miraíma, Meruoca e
lização da paquera funcionava como
Alcântaras:
acentuação de determinadas atitudes,
E se pode perceber que o maior comportamentos ou ações para definir
público gay, não são daqui de So-
uma situação de flerte reconhecível en-
bral, são de cidades vizinhas, que
tre os envolvidos ou para uma audiên-
vem né? Estuda e aproveita, solta a
franga4, né? Até tem uns que dizem cia qualquer.
assim, uns colegas meus: ‘ah não As festas observadas ocorreram em su-
vejo a hora de chegar sexta-feira ítes de motéis ou em grandes clubes da
para eu poder [...], não vejo a hora cidade de Sobral-CE, tais como o Pal-
de chegar domingo para eu poder meiras Country Clube e o Coqueiros
ir para Sobral’. Aí quando chega clube. Ao todo, foram realizadas quin-
sexta-feira: ‘aí, vou ter que voltar lá ze incursões em cinco diferentes fes-
para minha cidade (Luís, 2016). tas eletrônicas consideradas gays pelos
A etnografia da paquera realizada nas colaboradores da pesquisa. Os eventos
festas eletrônicas sobralenses entre os festivos foram denominados de Estilo,
anos de 2013 a 2016 partiu da con- Instinto, Paraíso, Tropical e Fantástica,
sideração dos processos de paquera cujos nomes surgiram de adjetivações

176 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

extraídas dos discursos dos dezesseis cidiu com a desativação do único bar
jovens entrevistados em profundida- considerado gay da cidade – Bardakal6
de: Emanuel, Sócrates, Fábio, Alysson, - em 2012. As festas se configuraram
João, Dênis, Jorge, Luís, Neto, Tiago, – neste período – como a única opção
Marcos, Olavo, Ricardo, Aurélio, Ivo de entretenimento e paquera “offline”
e Hugo. Este artigo foi construído a entre homens que gostavam de música
partir das discussões engendradas da eletrônica e não queriam, ou não po-
pesquisa de doutoramento, realizada deriam, viajar frequentemente para a
no período de 2013 a 2016, que obje- capital cearense: ritual frequente para
tivou compreender os rituais perfor- os jovens que objetivavam curtir esse
máticos dos corpos masculinos em tipo de festa de acordo com os colabo-
situações de paquera e “catação”, nas radores. João reitera a importância que
festas eletrônicas da cidade de Sobral/ essas festas assumiram para o público
CE. A primeira parte é constituída por gay: “a homossexualidade é grande. E
uma análise do surgimento e desenvol- assim, essas pessoas elas não têm um
vimento das festas na cidade atentando local em que elas possam, em que elas
para três fases que foram assinaladas se sintam mais à vontade, que não nes-
pelos termos segregação, estabeleci- sas festas. Então, essas festas são uma
mento e massificação. A identificação espécie de refúgio para alguns deles”
de uma estrutura comum física e inte- (Hugo, 2016).
racional constitui o segundo momento É uma festa para as pessoas dança-
do artigo, que tem como sequência de rem, se divertirem, porque Sobral é
análise os trânsitos performáticos dos uma cidade que não tem boates e
jovens durante a noite e as fases rituais festas, quando tem, são aquelas fes-
da paquera. E, para finalizar, os crité- tas de forró, de sertanejo, que nem
rios sociais que classificavam o status todo mundo gosta. Sobral nunca
de paquerabilidade dos corpos mascu- teve tradição em ter festa eletrônica
linos são analisados. e coisas parecidas. Então eu acho
ela – principalmente para um públi-
co jovem e também para o público
1 - FESTAS ELETRÔNICAS DE SO- gay – tem uma certa importância,
porque é uma festa que você tam-
BRAL: DO SURGIMENTO À MASSI-
bém pode se sentir livre, seja você
FICAÇÃO
hétero, bissexual, gay, lésbica, não
O contexto social de surgimento das sei. Você pode ser quem você é lá
festas eletrônicas gays de Sobral/CE na festa. Então acho que para esse
se deve à ausência desse tipo de evento público, ela tem uma importância
na cidade e à inexistência de espaços sim (João, 2016).
sociais reconhecidamente direcionados Essas festas gays se tornaram o úni-
à paquera ou “pegação”5 entre homens co espaço de entretenimento, paquera
tais como boates, casas de show, bares, e saídas do armário de homossexuais
praças, cinemas, shopping e saunas. A das cidades vizinhas – principalmente
ocorrência das primeiras festas coin- de estudantes –, pois a cidade con-

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 177


Sampaio, F. S.

centrava duas universidades estaduais, muda os locais, as estratégias, os


uma federal, um campus do instituto nomes, [...] (Olavo, 2015).
federal de ensino, além de duas facul- Nas primeiras festas, o público era
dades particulares: convidado via rede social apenas para
As festas foram ficando falada e as os amigos e amigos de amigos dos or-
pessoas foram perdendo a vergo- ganizadores desses eventos:
nha, tendo mais atitude. O público
E, quando eu fui, as primeiras ve-
gls, sobral aqui está tomando de
zes, as pessoas eram selecionadas,
conta e não são gays que são daqui
pelo grupo, no Facebook, acho que
de sobral, são gays das cidades vizi-
já existia o Facebook ou era Orkut,
nhas. Pelo fato de na cidade deles,
não lembro direito, mas enfim, eles
eles se reprimem diante da família,
faziam uma lista de pessoas e aí só
da sociedade. Então a única total li-
entravam as pessoas que estavam
berdade deles se soltar é onde eles
com o nome na lista, certo! Então
estudam que é aqui [...] (Luís, 2016).
a primeira vez que eu fui, foi assim
Os eventos festivos eletrônicos em So- (Hugo, 2016).
bral surgiram da realização de aniver-
Essas festas iniciais foram considera-
sários, comemorações e festinhas em
das elitizadas pelos colaboradores em
motéis. Alguns sobralenses escolheram
detrimento das outras que ocorrem
as suítes de motel há alguns anos para
atualmente nos clubes sociais da cida-
realizar festas entre pessoas conhecidas
de. Eles acionaram cinco critérios para
por terem baixo custo de realização e
elitizar uma festa eletrônica gay sobra-
pela possibilidade de ultrapassar limites
lense: a classe social, a escolaridade, as
de duração dos eventos. Geralmente,
performances de gênero, a faixa etária
os motéis mais frequentados da cidade
dos participantes e o local de realiza-
se localizavam em bairros não-residen-
ção do evento. Uma festa elitizada ti-
ciais ou nas estradas que ligavam a ci-
nha um ingresso mais caro. A maioria
dade aos municípios vizinhos.
dos frequentadores era de classe mé-
É, não, a festa de motel geralmente
dia ou rica que não morava em bairros
começou [...] fazendo aniversários:
periféricos da cidade e que cursava ou
‘ah eu vou fazer meu aniversário aí
o buffet é muito caro, no caso eu possuía nível superior de escolaridade.
não posso fazer, o que eu posso Normalmente, era uma festa realizada
fazer no motel, então vamos alugar em espaços fechados ou em clubes so-
a suíte e vamos fazer a bagaceira’. ciais da cidade.
Começou assim, aí começou a dar A elitização também era atribuída para
certo, e as pessoas que geralmente
as festas em que frequentavam homens
faziam, e inclusive a Estilo daqui
começou com o aniversário do
mais maduros e ajustáveis ao padrão
cara que é um dos organizadores “fitness”7 e à masculinidade heterosse-
[...] elas vão se adaptando de acor- xual.
do com que vai passando o tempo Eu falo elitizado, mas em relação
e vão mudando de nome, mas na [...] nível social mesmo, nível social,
verdade sempre existiu, certo. Só nem falo, até pelo preço do ingres-

178 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

so que era um pouco mais caro, e gos – que me convidaram – eu não


também acontecia no Palmeiras, tive coragem de dizer para eles que
que na época também era um pou- tinha um cara dando em cima de
co mais raro isso acontecer. Então, mim, que eu ia ficar com esse cara,
as pessoas que iam para Instinto eu não tive coragem (Luís, 2016).
– eu frequentava as duas na época
Os “ficas”9 e as “pegações” eram re-
– mas a Instinto foi a primeira fes-
alizados numa ambiência de “armário
ta que eu fui [...] E principalmente
os rapazes mais velhos, assim... os
para dois”. A festa – ao invés de se
gays mais maduros, eu percebia, configurar num “gueto” gay para os
mais maduros, mais fortes, que até frequentadores, pois a maioria tinha
chamam de barbie, hoje, atualmen- esse evento como único espaço de pa-
te, os gays mais fortes, costumavam quera/ “pegação” e interação liberada
frequentar mais a Instinto. Eu via – funcionava como uma ampliação do
isso. Na Estilo não. Na Estilo dava armário. O medo de ser descoberto e
mais eram os adolescentes como eu ter sua homossexualidade publicizada
na época [...] Mas eu falo em rela- por algum frequentador requeria um
ção a elitizado é mais pelo preço do cuidado ritual nas paqueras/ “pega-
ingresso, pelas pessoas talvez, for- ções” que eram concretizadas em es-
mação mesmo, é, formação acadê-
paços reservados, como os banheiros
mica, que eu via que tinha pessoas
ou estacionamento interno das suítes
mais instruídas na Instinto (Ricar-
do, 2016).
dos motéis.
Aí todos que, estavam lá, eram pes-
Nas primeiras edições, a paquera e a soas que são gays né. Só que se re-
“catação” nessas festas eram sigilosas primia, às vezes não tinha coragem,
e reservadas. A homossexualidade ou tinha vergonha. E então, era todo
a “curtição”8 entre homens deveria ser mundo dançando, bebendo e era
mantida no segredo e, quando desco- aquela coisa, tipo assim, eu paque-
berta, havia um acordo tácito de silên- rava, mas não tinha coragem e nem
cio entre os participantes: “bebeu, se a pessoa vinha. Aí um momento
divertiu e tudo. E ficou ali. Tipo: o que desprevenido do grupo de amigos
a gente viveu no motel pronto, ficou que eu ia, que eu fui, um momento
ali [...]. Porque tipo assim, aí vai ter tes- de fragilidade deles, que eles esta-
vam ali se distraindo, eu pegava e
temunha, aí vai ter outras pessoas que
dava uma fugidinha de ir no ba-
eu não conheço que podem saber o nheiro. Nessa ida no banheiro – eu
que eu estou fazendo aqui e tal” (Jorge, não ia no banheiro – eu ia lá fora
2016). no estacionamento. Aí a pessoa que
Ninguém se beijava, se ficasse era eu estava paquerando estava lá e a
muito escondido para que ninguém gente ficava escondido. E o total
tivesse sabendo do fato que aconte- sigilo danado porque as pessoas
ceu. Até porque das duas vezes que ainda não tinham a atitude de che-
eu fui assim, que foi realmente festa gar, por ser um [...] era tudo novo
reservada, eu fiquei assim no sigilo ali as pessoas [...]. Eram pessoas
total, porque meu grupo de ami- que quando estavam lá, ‘a í valha

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 179


Sampaio, F. S.

fulanin trabalha em tal canto e está trução, de início era só uma festa
aqui! Fulanin estuda em tal canto e reservada, o meio termo foi que
está aqui, valha como assim’ e era realmente todo mundo tomou ini-
um público que acabou se enqua- ciativa, começou a se conscientizar
drando, se encaixando nessa Estilo que era uma festa gls, que as pesso-
(Luís, 2015). as, homens podiam se beijar, mu-
lheres começam a se beijar e ficar.
Nessas festas iniciais guetificadas, a ne-
Foi a fase da construção [...] (Mar-
gociação da visibilidade era ritualmen-
cos, 2016).
te revelada, embora os colaboradores
admitissem que a maioria dos frequen- As festas eletrônicas sobralenses – de
tadores era gay. Essa ambivalência de acordo com o relato dos entrevista-
gueto e de visibilidade seletiva do de- dos – poderiam ser divididas em três
sejo homossexual numa situação de fases em relação aos processos de pa-
“armário para dois” entre os frequen- quera. A primeira estava relacionada à
tadores era justificativa pelo fato de construção do “gueto” gay na cidade
que a cidade possuía baixa densidade em suítes de motel. Neste período, os/
demográfica e havia o risco eminente as participantes selecionados/as não
de algum jovem “rasgar”10 para outras paqueravam diretamente ou flertavam
pessoas os fatos ocorridos na festa: a sigilosamente. E os “ficas” e as “pega-
paquera e “pegação” entre homens. A ções” eram realizadas numa ambiência
maioria dos “ficas” eram praticados no de “armário para dois”. A segunda fase
sigilo para dois. Com o passar das edi- se referia à consolidação da festa como
ções das festas no motel, uma rede de “gueto”, a intensificação da frequência
“estabelecidos”11 foi sendo construída dos “estabelecidos” e a constituição de
numa atmosfera elitizada de festa cuja um “armário para todos”. As paqueras
maioria dos participantes era de conhe- se tornaram frequentes e os “ficas” vi-
cidos entre si, de classe média ou alta, síveis e públicos. Apenas as “pegações”
formados ou estudantes universitários, eram realizadas em espaços propícios
de preferência não “rasgados”12 e de como o “dark room”13 ou em espaços
masculinidade musculosa. Nessa am- exteriores da festa. E, na terceira fase
biência, a paquera/ “pegação” deixou – contemporânea –, houve uma dimi-
de ser tão sigilosa, principalmente, pelo nuição das “catações” e uma intensi-
acordo tácito de não comentar sobre ficação da frequência de casais gays e
os acontecimentos da festa para “out- lésbicas, como, também, heterossexu-
siders” e não-frequentadores. Nessa ais. A massificação suscitou o afasta-
fase, os rituais de paquera poderiam ser mento do público da primeira fase – a
ilustrados da seguinte maneira: autoconsiderada elite gay – promoveu
Houve uma mudança muito gran- a diversificação de frequentadores e, de
de, foram etapas até as pessoas se certa forma, minimizou o estigma que
conscientizarem que ali era uma essas festas carregavam: “[...] uma fes-
festa gls, da atitude [...] da paque- ta que vale tudo. Você chega lá e você
ra, na curtição da paquera, do fica, vai beijar todo mundo e vai transar na
do sexo [...] E tudo teve essa cons- frente de todo mundo. Sendo que não

180 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

é assim, que funciona. Eu já conheci Desde o surgimento, essas festas de-


um relacionamento meu que eu tive e penderam da rede social para selecio-
foi sério, eu conheci lá” (Fábio, 2016). nar os seus participantes – na primeira
A grande frequência das “figurinhas fase – e depois realizar propagandas
carimbadas de festa”14 e essa “mesmi- para atingir o maior número de fre-
ce” apontada por Luís constituíram as quentadores – na terceira fase. Se num
principais razões de afastamento re- primeiro momento, o Facebook repre-
cente de alguns colaboradores dessas sentou uma mídia de guetificação, na
festas. No tocante à paquera/ “pega- fase contemporânea, ele é o principal
ção”, uma festa precisa ter seu público recurso de massificação e sustentáculo
renovado. Sem a frequência de deter- dessas festas.
minada quantidade de “outsiders” ou Através do Facebook, criavam-se uma
“carne nova”: “acaba sendo chato para rede de amigos iminentes participantes
nós organizadores que, sempre vemos dessas festas – anterior e posterior-
as mesmas pessoas e para quem vai mente à realização das edições – que,
também porque as pessoas vão para se por um lado, aumentava a quantidade
divertir, mas faz parte da diversão, en- de “estabelecidos” e por outro, consti-
contrar alguém para se relacionar [...]” tuía um dos principais rituais de paque-
(Ricardo, 2016). ra praticados pelos indivíduos conec-
O reconhecimento social dessas festas tados. No interior dessa rede, rituais
como gays – visto que existiam raves15 de paquera eram realizados, ou seja,
e festas eletrônicas consideradas hé- esses grupos formados no “online” se
constituíam em contextos culturais de
teros na cidade – estava relacionado
busca e/ou seleção por futuros alvos
tanto com a presença majoritária dos
de paqueração anterior à realização dos
gays quanto à homossexualidade pu-
eventos festivos. O Facebook tornava-
blicizada dos organizadores das festas,
-se o contexto cultural “online” em
pelo menos entre os frequentadores e
que as paqueras eram iniciadas ou os
entre os usuários que curtiam a página
pretensos “crush”18 eram selecionados.
das festas no Facebook. A homosse-
As festas, geralmente, se tornavam o
xualidade – ou o rótulo GLS dos par-
espaço social de prosseguimento da
ticipantes e organizadores – era iden- paquera “online” como também o mo-
tificada pelo estilo de música que os mento de realização do “fica”.
frequentadores dessas festas gostavam:
Os colaboradores ratificaram a interde-
As pessoas me perguntam, muitas
vezes ‘ah [...]16 essas festas é somen-
pendência entre as festas e os proces-
te para gays’, eu falei ‘não, vai quem sos de paquera realizados nas mídias
gosta de música eletrônica, de mú- digitais – Facebook e whatsapp, por
sica pop, mas o foco é o gls mesmo, exemplo. Essa conectividade incessan-
é o gls porque, geralmente quem te e o uso dos aplicativos de paquera/
curte música eletrônica, das divas17, “pegação” não diminuíam a frequência
são os gays e as lésbicas, né (Ricar- de pessoas no “offline”: nos bares ou
do, 2016). nas festas. Os indivíduos transitavam

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 181


Sampaio, F. S.

entre os contextos “online” e “offline” festa está rolando e não tem, talvez
sem a possibilidade de afirmar a pre- não tenha, outra coisa no dia para
ponderância de um dos contextos iso- fazer [risos] (Emanuel, 2016).
ladamente. Geralmente, após a entrada – nos
clubes e nas suítes de motel –, existia
um considerável tapete vermelho que
2 - OS ESPAÇOS FESTIVOS E SUAS findava no primeiro espaço da festa –
INTERAÇÕES um painel com a logomarca do even-
As festas eletrônicas gays de Sobral to – onde os frequentadores, no início
possuíam quase a mesma estrutura físi- da noite – tiravam fotos entre si ou
ca e organizacional – telão com clipes, com as atrações performáticas e com
jogo de dança, pista central com DJs, os DJs. Esse espaço era ocupado nas
bares, espaço com som – e eram fre- primeiras horas do evento e, às vezes,
quentadas pela maioria de “figurinhas organizado por um fotógrafo contra-
carimbadas de festas”. Esses eventos tado. Após as edições realizadas, algu-
se diferenciavam das “raves” ou de ou- mas fotos – tanto desse espaço como
tras festas consideradas heterossexuais: também das atrações e dos momentos
[...] agora as festas de tipo rave, das festas – eram selecionadas pelos
o que tem de diferente? O som é organizadores e postadas nas páginas
totalmente diferente, os DJs são do Facebook. Essas postagens fun-
diferentes [...] porque é assim, eles cionavam como meio de divulgação e
tocam uma vertente da música ele- identificação dos indivíduos que não
trônica, que apesar de eu fazer festa tinham ido às festas, mas queriam co-
de música eletrônica, eles tocam, letar informações, especialmente por-
outra vertente, que é um som com que – anexados a essas fotos – sempre
mais batidas por minutos, um som
existiam comentários, sugestões e ava-
mais rápido, um som mais pesado.
E normalmente sem vocal. E nas
liações feitas pelos frequentadores de
minhas festas, a música eletrônica determinada edição. Ricardo descreve
que rola é uma música curta, de rá- um ritual pessoal frequente em relação
dio, música com vocal, música mais a isso: “eu fui, eu visitei o evento da
comercial, música popular. Essa é a festa. E aí, como eu não fui, a gente
diferença. E o público também tem procura saber como foi a festa. E aí en-
diferença. O público em festa, você tão eu fui ver, as postagens de quem foi
percebe que é um público ‘teen’, para saber como foi, como tinha sido
é um público que é mais extrava- a festa”. Outro espaço visualizado na
gante, que veste assim, coisas que
maioria das festas era a projeção de cli-
a gente não vê todo mundo usando
pes através de data show. Inicialmente,
na rua, entendeu? E já nas festas de,
sei lá, de música eletrônica, só mú- alguns jovens ficavam assistindo senta-
sica eletrônica, sem ser música pop, dos em sofás ou mesas com cadeiras,
já é um povo mais comportado, dependendo da festa. Regularmente,
mas é um povo que não conhece depois de uma hora da manhã, duplas
aquele estilo, só estão ali porque a ou grupos de jovens se revezavam em

182 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

performances de dança orquestradas Esse controle era necessário tanto


pelas coreografias que estavam sendo para evitar emoções negativas quanto
exibidas no telão. Em algumas festas, para produzir satisfações positivas que
o telão exibia também as propagandas impulsionassem os frequentadores a
dos patrocinadores do evento. Na Esti- retornarem e também realizarem co-
lo, Tropical e Paraíso – especificamente mentários agradáveis nas redes sociais,
– havia um espaço constituído de telão especialmente o Facebook. Nessas fes-
e um vídeo game de dança, o xbox. As tas, a busca de excitação também era
festas – seus espaços e atrações – po- realizada pelo consumo de bebidas
deriam ser pensadas enquanto perfor- alcoólicas quanto de drogas ilícitas.
mance que objetivavam o controle da Estes “dispositivos de excitação” atu-
excitação de seus participantes. O té- avam quase sempre, de acordo com os
dio, o estresse e a tristeza – emoções colaboradores, como impulsionadores
desagradáveis – deveriam ser afastados nas investidas de paquera:
pela organização dos espaços, das atra- Na festa acho que eles, por causa da
ções artísticas e pela sequência ritual de bebida, têm uma coragem maior, às
músicas tocadas pelos DJs. vezes não chega ou mandar alguém.
É, e, chegar lá com você, como nes-
É, eu também separo o horário de
sa mesma festa que eu fui. O cara
cada DJ de acordo com os momen-
pegou, chegou e me abraçou, por
tos da festa. Tipo, no início da festa
trás. E aí tentou me dar um beijo.
eu boto o DJ que geralmente gosta
Aí eu saí, claro, do abraço (Fábio,
de tocar funk, tocar pop. Quando
2016).
a festa está mais ou menos uma
ou duas horas, coloco um DJ que De forma geral, a performance-festiva
gosta de tocar funk e depois o DJ possuía determinados rituais que eram
que gosta de tocar um eletrônico. E reiterados pelos participantes edição
já de manhã, eu coloco um DJ que por edição. Os grupos de amigos se
gosta de tocar mais batida, porque formavam no início da noite e janta-
as pessoas já estão mais bêbadas, já vam em algum restaurante ou lancho-
escutam coisas mais agitadas. En- nete. Depois, “esquentavam”19 em al-
tão eu penso em vários fatores da gum bar gay da cidade (Tiago, 2014).
festa. Tipo organizar uma festa é Por volta da meia noite, eles chegavam
bem complexo, é bem complicado
aos locais das festas. Nos momentos
(Ricardo, 2016).
iniciais, a performance festiva majo-
Como performance social de excita- ritária dos grupos era caracterizada
ção, as festas eletrônicas sobralenses pelo consumo de “bebidas quentes”,
não apenas buscavam excitação mi- conversas, brincadeiras e pela curti-
mética e a emoção compensadora dos ção das músicas tocadas. Nessa fase,
contextos restritivos da vida ordinária existia uma intensa circularidade dos
(ELIAS, 1992: 105), mas, também, ob- “estabelecidos” entre os grupos for-
jetivavam controlar e/ou maximizar a mados, mas eles sempre retornavam
excitação agradável dos participantes aos seus grupos iniciais. Parece que a
durante a permanência nos espaços. bebida alcoólica comprada, por vezes

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 183


Sampaio, F. S.

com a contribuição de todos integran- tornavam mais “descaradas” (Marcos,


tes do agrupamento, funcionava como 2016). O jogo de vaidades – transversal
elemento aglutinador dos grupos. aos processos de paquera – era secun-
Por volta de uma ou duas horas da ma- darizado em detrimento de uma preo-
nhã, alguns integrantes se desprendiam cupação maior: o “ficar”, ou seja, não
de seus grupos para paquerar. Durante sair da festa sozinho ou sem “pegar
esse período denominado nessa discus- ninguém” (Tiago, 2014).Vale ressaltar
são por “hora da pegação”, alguns gru- que inúmeros eventos marginais ocor-
pos se encontravam totalmente desfei- riam para além dessa estruturação geral
tos e a maioria dos seus participantes descrita. Alguns frequentadores apenas
se encaminhava para a pista de dança chegavam na “hora da pegação” ou
central da festa. Próximo das cinco da adentravam sozinhas a festa. Outros
manhã, os grupos se refaziam com al- participantes não se engajavam em ne-
guns integrantes que “não, [tinha ido] nhum grupo, embora circulassem por
embora, casados” (Luís, 2015) da festa quase todos os grupos presentes. E
e organizavam suas retiradas do even- outros indivíduos permaneciam a fes-
to. ta quase toda em determinado espaço,
Existem pessoas que vão atrás mes- por exemplo, no bar ou nas proximi-
mo, saem, deixa... vem com os ami- dades do vídeo game de dança. As fes-
gos – lembra daquele lance de não
tas sobralenses eram “regiões abertas”
ir só – deixa os amigos lá e se man-
da. O que eles chamam de ‘catar’, já
no tocante aos investimentos focados
ouviu essa expressão? Hoje em dia, de paquera. A pista central de dança
vão catar, entre aspas. E sai e ficam – onde se localizavam os DJs – era o
com dois, três, quatro e por aí vai, principal espaço aberto onde ocorriam
entendeu? (Marcos, 2016). as paquerações interseccionadas pelo
Na “hora da pegação”, a atividade grau de proximidade entre os partici-
principal se dirigia às paquerações, pantes e pela quantidade de frequenta-
a busca por “ficas” ou “catações”. A dores “outsiders” ou novatos. O grau
atenção com as atrações, as bebedeiras de abertura aos investimentos desses
e as brincadeiras entre amigos e co- espaços estava condicionado aos perí-
nhecidos tornavam-se envolvimentos odos de desenvolvimento das festas e
laterais em relação às “catações” e aos dos trânsitos entre os participantes. O
flertes, agora envolvimentos principais “dance” principal poderia, muitas ve-
e dominantes. Nesse período, o tipo zes, se tornar o pior lugar para paque-
de paquera mudava. Nos momentos rar, porque, além de ficar quase vazio, as
iniciais da festa, a paquera era mais pessoas ficavam dispersas nas laterais.
reservada, desfocada20 e caracterizada Nessa situação, as investidas eram fa-
por gestos corporais cautelosos e sele- cilmente visualizadas e, por isso, desen-
tivos. Depois das quatro, a fala se tor- corajadas pela possibilidade do “fora”
nava menos presente, o corpo já cansa- – interação que poderia constranger os
do e alcoolizado perdia um pouco seu paqueradores que tomavam iniciativa.
poder performativo e as investidas se Além disso, o esvaziamento do “dan-

184 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

ce” possibilitava visualizar os “pegado- A “desatenção civil” é um ritual de


res”: indivíduo avaliado negativamen- identificação da presença dos indivídu-
te por “dar em cima de muita gente” os entre si através do olhar nos olhos
(Sócrates, 2014) ou colecionar “ficas”. (GOFFMAN, 2010: 108). A infração
Alguns entrevistados enfatizaram que, a esse ritual poderia iniciar a paquera
geralmente, quando o “dance” estava porque trabalhava os olhares de con-
vazio, contavam a quantidade de “ficas’ firmação da presença um do outro e,
destes “pegadores” e informavam aos dessa confirmação, a mutualidade de
seus amigos e conhecidos que estavam interesse amoroso ou sexual poderia
na festa com a intenção de avisá-los surgir, de acordo com os entrevistados.
para não investirem nesse participante. O “ritual do esquadrinhamento” era o
primeiro e transversal ritual de paque-
ra/ “catação” que objetivava não ape-
3 - RITUAIS DE PAQUERA
nas selecionar os possíveis alvos amo-
A título de análise, aos processos de rosos e/ou sexuais de investimentos a
paquera foi aplicada uma divisão bali- partir de critérios como “afinidade”,
zada nas teorizações de Erving Goff- “beleza física” ou “pessoas de con-
man (2009, 2010, 2011). A paquera foi teúdo” (Hugo/2016). Mas também,
dividida nas fases preparatória, “desfo- buscava minimizar a possibilidade do
cada” e “focada”. Durante a primeira “toco” ou “fora” resultante das previ-
fase, o indivíduo atuava na construção síveis decepções de “não bater a quími-
de um “porte bom”, nas palavras de ca”21 (Fábio/2016).
Goffman (2011): ou a criação e susten- Nos momentos iniciais dos eventos, os
tação de uma imagem de si com quali- indivíduos chegavam, buscavam por
dades desejáveis para os outros. Essa amigos e se integravam em pequenos
fase poderia ocorrer antes de entrar grupos. Ao mesmo tempo em que in-
nas festas ou em momentos que ante- teragiam nos seus grupos, eles obser-
cediam a busca por parceiros durante a vavam os outros participantes da festa.
festa: o cálculo e o desejo atravessavam Os participantes sozinhos que não se
a construção da performance a ser exe- engajavam em nenhum grupo – por
cutada em determinado contexto. opção ou por estarem frequentando
A fase desfocada era auxiliada pelo determinada festa pelas primeiras ve-
“ritual do esquadrinhamento” e pelas zes – ficavam transitando, ‘tateando’ o
infrações a “desatenção civil”. Nas espaço e se posicionavam, geralmente,
“interações desfocadas”, os indivíduos às margens da pista de dança central.
na “copresença” não compartilham de No começo da festa, o esquadrinha-
um único foco de atenção (Op. Cit.) ao mento pretendia: “observo todo mun-
contrário da “interação focada” onde do que está ali ao meu redor. Todo
existe um único foco de “atenção cog- mundo que está ali ao meu redor, co-
nitiva e visual” durante os atos de fala nheço, conheço, conheço. Não conhe-
e gestos dirigidos (GOFFMAN, 2011: ço, bonitinho, não sei o que e aí a gente
128). faz uma pré-analisada, em todo mun-

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 185


Sampaio, F. S.

do” (Neto, 2015). eram identificados.


Eu vou responder mais observan- As olhadelas mútuas instauravam a
do as pessoas e [...]olhando para fase focada da paquera. O olhar de pa-
mim mesmo, dando a minha opi- quera era diferenciado pelos colabora-
nião. O que eu observo muito nas
dores pela fixação, repetição, piscade-
festas é que no início da festa, está
las e sorrisos. Diferentemente de um
todo mundo ali muito calmo, a mú-
sica é mais dançante do que, bati- olhar comum, na paquera:
da. Então está todo mundo muito Acho que paquera é isso, de de-
tímido, no início da festa, está tudo monstrar de alguma forma, pelo
muito assim tímido. E aí as pessoas olhar. É pelo olhar que é diferente
precisam, começar a beber alguma quando a gente olha quando está
coisa para se encorajarem. Para ter interessado em alguém [...] pelas
atitude de chegar, em quem elas, expressões faciais, pela boca, ou até
querem (Ricardo, 2016). algum gesto com a mão chamando
a pessoa [...]. Você olha meio que
Talvez pelo fato de que o “corte” ou de rabo de olho, às vezes, ou pisca
o “fora” seja produtor de constrangi- o olho. Tem gente que chama com
mento, as aproximações no início da a mão [...]. Quem tem mais cora-
festa eram cuidadosamente estudadas gem chama (Alysson, 2016).
pelo paquerador a partir da análise de Se estar em grupos era a regra de con-
vários sinais expressivos do corpo – ri- duta dos participantes das festas, qual-
tual do esquadrinhamento – e, muitas quer saída provisória do engajamento
vezes, era compreensível que ambos nesses grupos era interpretada como
esperassem que o outro se aproxi- paquera ou “catação”. Neste ínterim,
masse. Esperar ser paquerado ou, pela outra regularidade nas sociabilidades
iniciativa de alguém para a interação dessas festas foi sendo construída –
verbal da paquera, foi considerado, pe- o uso do “cupido”: uma espécie de
los entrevistados, tanto uma proteção intermediário/a que possuía a função
contra os constrangimentos quanto de se aproximar do alvo de paquera de
posturas de positivação ou valorização alguém. Ele/ela utilizava a “deferên-
de si durante o mercado noturno da cia”22 nas aproximações e, na maioria
paquera. das ocasiões, perguntava pelo nome e
Durante a fase desfocada da paque- o status amoroso de determinado par-
ra – também denominada pelos co- ticipante. O uso do cupido poderia ser
laboradores de “atirar para todos os realizado estando em grupos. Os cupi-
lados” – que poderia ser realizada a dos geralmente eram acionados para
qualquer momento e espaço da festa, evitar a “catação” – ritual que, muitas
por exemplo, na entrada ou nos trânsi- vezes, era ridicularizado entre alguns
tos pelo “dance” principal – os jovens participantes de determinado grupo.
ofereciam a “desatenção civil”. Através A “performance-cupido” representou
dessa cortesia, o ritual de esquadrinha- uma alternativa sociogrupal construída
mento dos participantes era executado de conciliação entre a regra de perma-
e os futuros alvos de olhadelas mútuas necer em grupos de amigos durante as

186 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

festas, as intencionalidades de paquera Aí: ‘está gostando, está sozinho, está


dos coparticipantes e o medo ou ver- acompanhado” (Olavo, 2015).
gonha de tomar iniciativa por causa da Talvez comece falando, sobre a fes-
possibilidade do “fora”. Mas a ação do tas, falando que está calor, alguma
cupido não era tributária de confiabili- coisa, mas eu vou falar de mim. Eu,
dade por todos os participantes: dependendo da pessoa que for, eu
É mais ou menos assim. O cupi- vou começar com um assunto em
do ele pode ajudar, mas ele pode comum, perguntar... talvez, uma
atrapalhar. Ele pode querer te em- música, perguntar onde ela mora,
purrar a uma pessoa horrível, feia, se é a primeira vez que ela foi na
a uma pessoa errada, um marginal, festa... e aí vai fluindo... eu acho
que a conversa, essa conversa ini-
um usuário de droga, qualquer coi-
cial, pode durar pouco tempo ou
sa do tipo, porque seja amigo dele
não. Dependendo de ambas as par-
e aí tu tens que ficar porque tu és
tes. No meu caso, não dura muito
amigo dele. Em outros casos não,
tempo não essa conversa (Ricardo,
ele te ajuda com pessoas que tu não
2016).
tens contato e tu achou bonitinho,
tu queres, mas tu não tens coragem Outra forma de deferência por rituais
de falar. Aí vai lá o cupido amigo e de apresentação eram os elogios que,
joga na maior para o cara. Aí às ve- frequentemente, eram acionados pela
zes o cara quer e às vezes o cara não sua comprovável eficácia. Conforme
quer [...], ainda mais ele não sendo os relatos, quando os elogios vinham
daqui, aí às vezes o outro nem aí, de surpresa e por pessoas inesperadas,
deu certo deu se não deu, bola para
poderiam causar incômodo e até repul-
frente (Neto, 2015).
sa, principalmente advindos de corpos
De forma geral, o encontro conver- que não interessavam. Regularmente,
sacional – ou interação focada de pa- os elogios praticados durante as inicia-
quera nas festas – iniciava com os tivas de aproximação de algum paque-
rituais da “deferência”, geralmente os rador emitiam a mensagem de que o
de apresentação através de saudações receptor deveria agir, isto é, responder
e elogios. As perguntas iniciais, sau- com outro elogio ou fomentar a con-
dações e comentários – sobre as atra- versa através de perguntas “quebrar
ções ou sobre a festa como um todo gelo”. Os entrevistados, por sentirem
– constituíam ações daquilo que os muita vergonha de “se chegar em al-
colaboradores denominavam “quebra- guém”, esperavam que, depois desses
-gelo”. Esse ritual era constituído pe- rituais de apresentação, o outro já to-
las seguintes perguntas: “oi, tudo bem, masse a iniciativa de beijar ou emitisse
é, está sozinho, está acompanhado...” algum gesto que demonstrasse satisfa-
(Sócrates, 2016); “ah chega pergunta: ção ou interesse por eles terem tido a
‘opa, e aí como é que está, beleza, está coragem de “se chegar”. Depois dos
gostando da festa, como é teu nome? rituais de apresentação – que instau-
’ Às vezes nem pergunta o nome hoje ravam o “engajamento de face”23 da
em dia, eu ainda pergunto o nome. paquera – a interação falada poderia

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 187


Sampaio, F. S.

seguir várias direções: culminar na pondência das intencionalidades da pa-


pegação, ou seja, no “fica” rápido, de- quera e a não identificação de afinida-
nominada, aqui, como a última etapa des com relação aos assuntos tratados
da paquera; um dos envolvidos po- rapidamente: “Se fosse uma pessoa
deria iniciar rituais de evitação com a que me agradasse, se fosse uma pessoa
intenção de terminar o estado focado bonita, e se tivesse um papo legal [...]
de paquera; ou a conversa poderia fluir se tiver conteúdo [risos] é, se estuda
por algum tempo. Durante o encontro [...] se trabalha com algum propósito
conversacional ocorria também o es- legal, alguma...” (Sócrates, 2016).
quadrinhamento da performance lin- Bem, o que me faz desistir logo
guística, especificamente nas paqueras no começo da conversa é que no
sem intenção de “pegação” /“catação” começo você invadir a minha pri-
a priori. Nessa avaliação da conversa, vacidade, se você fizer muitas per-
os discursos proferidos funcionavam guntas, perguntas muito íntimas [...]
como indícios ou pistas da subjetivida- se quiser rolar comigo, você quer se
de do outro. Além disso, analisava-se tornar meu amigo, assim, é, de con-
pela linguagem as (im) possibilidades versar e tudo ... aí já vem logo com
de ocorrer namoros, amizades, “fi- perguntas da minha intimidade,
eu não gosto, eu corto logo. Acho
cas” e/ou “pegações”. As performan-
que primeiro você se torna amigo,
ces linguísticas que impulsionavam os depois, quem sabe, você pergun-
paqueradores continuarem no papo ta, pergunta mais íntima (Alysson,
– após o esquadrinhamento das estili- 2016).
zações corporais via eixos de diferen-
ciação que serão analisados na próxima A exigência do maior envolvimento de
seção – eram os retornos às perguntas, ambos sujeitos durante o papo perpas-
a simpatia, o grau de envolvimento nos sava a interação focada numa tentati-
assuntos propostos e a identificação da va de identificar a possibilidade futu-
mesma intenção de paquera. ra daquele encontro – o “fica”, uma
“pegaçao” ou o “fora” – expressos a
É, mas se a pessoa chegar com ‘oi,
partir de alguma “jogada” linguística
prazer, meu nome é fulano e se
apresenta e conversa um pouco, ou sinal corporal de algum dos corpos
pelo menos conversar, uns dois mi- envolvidos. Na paquera focada,
nutos... não que seja padrão – tem os rituais de apresentação poderiam
que ser dois minutos – mas conver- ser salteados e os paqueradores, depois
sar um pouco antes. Isso, mostra da troca de olhares, poderiam solicitar
que a pessoa não está interessada sem rodeios para “ficar”. Esse tipo de
só no ficar de beijo, não só transar. paquera – sem a deferência – ocorria,
O requisito de eu aceitar é isso (Fá- geralmente, depois das duas ou três
bio, 2016). horas da manhã em diante – na “hora
As principais razões identificadas pelos da pegação”:
colaboradores para emitir desinteresse É, tipo, você está ali, eu quero fi-
pela conversa e, consequentemente, car com você, é claro que eu vou
pelo paquerado, eram a falta de corres- olhar para você. E aí você não vai

188 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

olhar também né, querendo comer desligava do primeiro ritual de instau-


a pessoa. Mas você, é mais troca de ração da situação de paquera, pois:
olhares. E aí, da troca de olhares, aí Primeiramente tem que ter a quí-
vai chega, que normalmente chega mica do olhar, porque o olhar da
a ficar mesmo né. A pessoa chega pessoa tem que ver se rolou uma
e, chega em você e fala, ‘vamos fi- atração e tudo mais. Primeiramen-
car’. É mais ou menos assim (Fá- te, logo pelo olhar, e aí tem que ter
bio, 2016). a coragem de uma das duas, ou am-
Geralmente, a infração aos rituais de bas, ter o pontapé inicial de chegar
“deferência”, ocorriam durante a “ca- para conversar. Eu, no meu caso,
tação” – o tipo de paquera que obje- muitas das vezes, quando eu estou
tivava “pegação”. Ela se assemelhava a fim de uma pessoa, na festa, eu
tomo iniciativa, mas eu acho mui-
ao termo êmico “caçada”, pois se con-
to massa quando a pessoa que eu
figurava numa busca ritual por parcei- estou a fim, toma a iniciativa (Ri-
ros sexuais. Esse tipo de paquera era cardo, 2016).
direta, rápida e o toque corporal era o
ritual que se seguia ao olhar recíproco. Um dos principais marcadores da fase
Nessa situação social, qualquer “de- focada da paquera nas festas era a be-
satenção civil” poderia ser interpreta- bida. Ela foi identificada como um
dispositivo que: produzia excitação,
da como “abertura” não somente aos
alegria e soltura nos eventos; impulsio-
processos de paquera, mas, acima de
nava ou encorajava as investidas de pa-
tudo, ao “fica” ou “pegação”. Olavo
quera; e liberava/subvertia os corpos
denominou essa paquera como “che-
de outros dispositivos tais como o da
gar chegando”:
sexualidade e do gênero performados
Nem estava a fim de ficar com
durante a noite.
ninguém, mas a pessoa já chegou:
‘olha eu gostei de ti’ e já foi dando Tem pessoas que acabam tendo
um beijo. Entendeu assim, pronto, isso como um refúgio, não é o meu
‘chegou chegando’, me desarmou caso né, eu já vi assim pessoas que,
por completo. Eu não tenho assim utilizam a bebida como um certo
essa atitude toda não, mas eu achei refúgio para poder exibir algo que
muito massa e pronto fiquei a noite ela não exibiria em sã consciência,
todinha com essa pessoa. Depois entendeu? Talvez é, estando mais
alcoolizado, digamos assim, teria
mantive contato pelas redes sociais
coragem de chegar na pessoa de
[...] (Olavo, 2015).
dizer que está interessada na pes-
As “catações” ocorriam geralmente soa, que quer ficar com a pessoa,
depois de uma hora de funcionamen- entendeu? É um dos fatores não
to das festas: havia uma intensificação é o meu caso né, hoje né. Mas eu
a partir das três horas da manhã. O já vi pessoas assim. Ficam mais...,
“chegar chegando” poderia ser inter- perdem os pudores quando ficam
pretado como subversão dos rituais de bêbadas, entendeu? (Marcos, 2016).
paquera reconhecidos pelos frequen- O “toco” ou “corte” de paquera foi
tadores das festas. Essa atitude não se identificado como o ritual frequente-

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 189


Sampaio, F. S.

mente utilizado contra participantes versando com alguém que não me


cujo encontro conversacional “não interessa, o assunto, a pessoa, aí eu
bateu a química” ou “não rolou” (Ri- fico meio viajando, olhando para
cardo, 2016). Esse ritual tanto poderia outro canto, meio que dizendo, ‘ah!
ser praticado de forma direta ou indi- ’, indiretamente, só com olhares,
reta. Os rituais de evitação indiretos ‘eu não estou a fim de papo, certo!’.
Então eu fico tirando a minha pró-
acionados para o outro “se mancar”,
pria concentração, enfim, olhando
conforme os entrevistados, eram: não
para os lados, eu acho que é isso
olhar para o outro; não perguntar mui- (Hugo, 2016).
to, “responder com poucas palavras”
(Hugo, 2016); manter o corpo distante A sequência ritual da paquera entre
do outro; fazer brincadeiras tolas e não homens nas festas eletrônicas descrita
corresponder aos toques que o outro acima – fase preparatória, desfocada,
aplicava durante as perguntas dirigidas. focada, “fica” ou “toco – era atravessa-
A pessoa fica falando e eu digo,
da pelo cálculo e pelo desejo amoroso
‘hum, ok! ’ Essas coisas, eu não res- e/ou sexual expresso de maneira per-
pondo também a pergunta, eu faço formática e avaliados pelo ritual trans-
só, responder assim só com um ok, versal do esquadrinhamento. O dese-
que aí eu acho que já demonstra jo e o cálculo constituíam operações
para pessoa que eu não estou a fim. subjetivas de classificar os corpos em
E aí como já aconteceu, pessoas paqueráveis ou não. Entretanto, essa
muito chatas, que continuam com classificação não ocorria de manei-
umas perguntas horríveis, aí eu falei ra voluntarista ou arbitrária. Existiam
mesmo: ‘eu não quero falar sobre
eixos de diferenciação social que os
isso’, fui bem direto, ‘eu não quero
sujeitos acionavam para distinguir os
mais, mais falar’, pronto (Alysson,
2016). corpos de maneira performativa nos
termos de Butler (2002).
Esses rituais de evitação frequente-
mente executados de forma isolada
– ou em conjunto – eram deduzidos 4 - EIXOS DE DIFERENCIAÇÃO COR-
pelos frequentadores como permissão PORAL
para terminar o estado de fala ou a in-
teração focada. Mesmo diante desses Durante as fases dos processos ritu-
rituais, se o outro não se “tocava”, a ais da paquera, o ritual de esquadri-
alternativa era a verbalização ou o nhamento objetivava classificar/dife-
“toco” direto: “vou procurar meus renciar os corpos masculinos numa
amigos”, “vou ao banheiro”, “vou pe- espécie de atribuição de níveis de
gar cerveja”, “vou dar um rolé, volto desejabilidade e/ou paquerabilidade
já”. Alguns insistiam: “bora, vou com para alavancar investidas ou “cortar”
você” (Dênis, 2014). paquerações iniciadas. Os corpos eram
Cara eu procuro ser o mais sincero singularizados e classificavam os seus
possível, senão as palavras, as mi- alvos de paquera a partir de eixos so-
nhas, ações. É, quando estou con- ciais de diferenciação com a finalidade

190 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

de valorizar ou estigmatizar determi- tizados: os afeminados que se “rasga-


nadas performances ou configurações vam” ou seja, dançavam de maneira
corporais. Nas paquerações, certos feminina durante a festa. Esse estilo fe-
marcadores sociais da diferença eram minino de dançar era avaliado pela cor-
acionados para designar corpos como respondência das coreografias com as
fonte de emergência do desejo amo- danças praticadas pelas “divas do pop”
roso e/ou sexual. Sexo, “performance e seus/suas bailarino/as. A esse polo,
de gênero”24, sexualidade, padrão “fit- outros marcadores negativos poderiam
ness”, classe, geração e “performance se entrelaçar para inviabilizar determi-
grupal”25 constituíram os eixos que nado corpo como desejável e paquerá-
diferenciavam os corpos no mercado vel: se pertencesse a periferia, era de-
noturno das paqueras nas festas eletrô- nominado “gay de bairro” ou “viado
nicas sobralenses. pão com ovo”; se não fosse malhado
Os corpos que paqueravam eram ava- e acima dos trinta anos, era chamado
liados como: homens afeminados e/ de “maricona”. Em suma, as “perfor-
ou “rasgados” ou másculos; homos- mances de gênero” sublinhadas nessa
sexuais ou “que curtiam outros ho- discussão como polos opostos perfor-
mens”26, malhados ou não-malhados, máticos – másculo e “rasgado” – re-
adolescentes, jovens, “coroas” ou presentavam os tentáculos da heteros-
“mariconas”; “gays de bairro” ou “gay sexualidade obrigatória nos processos
fino”27; e que participavam de grupos de paquera masculina e se entrecruzava
de sociabilidade bem-sucedidos ou com outros marcadores para definir o
não. Essa classificação binária geral nível de paquerabilidade e desejabilida-
dos corpos para definir seus níveis de de dos corpos.
paquerabilidade estavam subordinadas Os colaboradores também eram guia-
e entrelaçadas de certa maneira a dois dos – nas interações de paquera e “ca-
polos performáticos de gênero que fo- tação” durante as festas – por um tipo
ram detectados durante o desenrolar de correlação entre estilo musical, se-
das entrevistas: a “performance más- xualidade, performance de gênero, pa-
cula” e a “performance rasgada”. Vale drão “fitness”, “performance grupal”
ressaltar que os colaboradores tanto e faixa etária. Em seus trânsitos du-
se identificaram como afeminados ou rante a noite, os corpos eram avaliados
másculos, mas em nenhum momento através de dois polos de identificação
como “rasgados”. O primeiro polo e atribuição possíveis, embora eles re-
era mais valorizado e poderia positivar conhecessem as possibilidades de sub-
marcadores sociais considerados nega- versão dessas sequências de identifica-
tivos como a classe social menos favo- ção na totalidade dos participantes das
recida e a faixa etária: por exemplo, um festas. O primeiro polo de categoriza-
homem másculo acima de trinta anos ção era formado pela sequência: ado-
era denominado de “coroa” e se fosse lescentes – estilo musical pop – dança
malhado, “coroa enxuto”. O segundo coreografada – afeminado – passivo. E
polo representava os corpos estigma- o segundo, iniciava com os “gays ma-

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 191


Sampaio, F. S.

duros” ou mais velhos – estilo house bilidade e conhecimento performático


ou tribal – dança reservada e solta – sobre as coreografias das “divas” e,
másculo – ativo. por consequência, seriam passivos. Os
Eu acho que o jeito de dançar in- “gays maduros” másculos se identifi-
fluencia muito. Quando a gente vai cariam com os estilos de batidas mais
dizer que uma pessoa é afeminada. fortes, como o tribal e o house29 e por
É, principalmente quando toca o via de regra, seriam ativos.
funk, na festa eletrônica, a gente Então quem se identifica com esse
pode ver quem são os rapazes mais nome [pop] são mais os adoles-
afeminados e os que não são [...]. centes que querem dançar... e tudo
Bem, assim, os gays mais velhos que mais [...]Tipo, os adolescentes, os
vão para a festa, eles são mais reser- mais jovens, tipo de dezoito e vin-
vados. Entretanto tem também os te anos, eles curtem mais um pop
que são afeminados, que dão pinta, mesmo, aquele pop que toca nas
que dançam, que não estão nem aí rádios, mais as divas. Já o público
para a opinião dos outros. Mas, os mais velho, assim, os rapazes de
gays mais maduros são mais conti- vinte e cinco para cima, eles já gos-
dos, eu acho isso [...], mas é porque tam de um house que é uma batida
na nossa sociedade, no nosso gru- mais forte, dos DJs de fortaleza.
po ‘gls’, a gente acaba, rotulando Isso, eu venho percebendo, duran-
né, os mais afeminados, as pesso- te as festas, mas o povo também
as que curtem mais pop, que gosta curte muito o funk [...]. Na música
mais de... dançar, se expor, já fala, eletrônica, quando toca, geralmen-
‘ah viu aquele cara que dança, sobe te o pop, quando toca Lady Gaga
no pole dance, dança igual a diva e ou Beyoncé, essas duas, Lady Gaga
tudo mais.’. Aí fala, ‘ah, é passivo...’. e Beyoncé, o público que é mais
E aí as pessoas acabam é, dizendo, afeminado sabe as coreografias. E
rotulando se esse homem é passivo. aí dançam, se soltam mais, também
Pelo fato da festa tocar mais pop, no funk quando toca Anita, eles sa-
de ir pessoas que gostam mais disso bem fazer bem as coreografias que,
e....acontece! (Ricardo, 2016). de certa forma, eles saem do ar-
mário, ficam mais afeminadas [...].
Esses binarismos de atribuição categó-
Geralmente os que não são afemi-
rica entre os participantes ligavam he- nados – os que aparentam não ser
teronormatividade28 a gostos musicais – eles não dançam muito na festa.
numa pretensão de constituir dois ro- Eles geralmente mexem um pé ou
teiros performáticos-padrão por onde outro, um pouco a mão [...], mas
os homens circulavam ou reiteravam eles não se soltam muito, eles ficam
no decorrer dos eventos. Nessa atri- mais observando em pé os outros
buição, o binarismo de gênero deter- dançarem na festa [...] (Ricardo,
minava o binarismo etário como dois 2016).
polos opostos, cuja valorização recaia Nem todos os colaboradores partilha-
sobre o polo másculo. Os adolescentes vam dessas sequências: “há gays para
afeminados eram identificados por sua todo os tipos de gosto, que gosta de
preferência pelo estilo musical pop, ha- balada, que gosta disso, que gosta da-

192 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

quilo. Têm gays que gostam de pago- de. A marcação da diferença corporal
de, tem gays que gostam forró, tem objetivava eleger determinados corpos
gays que gostam de internacional, tem como alvos de paquera. Assim, o de-
gays que gostam de brega, entendeu? ” sejo que justificava o investimento em
(Neto, 2015). algum ritual de paquera, era raciona-
A performance de dança também mar- lizado através desses eixos. De forma
cava a paquera nas festas eletrônicas e geral, os corpos considerados desejá-
agenciava o desejo ou poderia levar ao veis eram performativamente constru-
“corte” dos processos de paquera em ídos com auxílio desses eixos oposicio-
curso: nais que funcionavam como moldes
Eu acho que o jeito de dançar in- estilísticos por onde os corpos eram
fluencia muito. Quando a gente vai diferenciados.
dizer que uma pessoa é afemina-
da. É, principalmente quanto toca
o funk, na festa eletrônica, a gen- CONSIDERAÇÕES FINAIS
te pode ver, quem são os rapazes
mais afeminados e os que não são As performance-rituais de paquera
[...]. Bem, assim, os gays mais ve- analisados das festas eletrônicas so-
lhos que vão para a festa, é, eles são bralenses corroboraram a reprodução
mais reservados. Entretanto tem da heteronormatividade nas sociabi-
também os que são afeminados, lidades homossexuais. Este artigo de-
que dão pinta, que dançam, que monstrou processos gerais e hierárqui-
não está nem aí para a opinião dos cos de paquera cujo eixo norteador era
outros. Mas, os gays mais maduros
a classificação dos corpos em “perfor-
são mais contidos, eu acho, isso [...]
mas é porque na nossa, sociedade, mance máscula” ou “rasgada” que se
no nosso grupo, no nosso grupo entrecruzava com os marcadores so-
de, gls, a gente acaba, rotulando ciais da sexualidade, sexo, padrão “fit-
né, os mais afeminados, as pesso- ness”, geração e “performance geral”.
as que curtem mais, pop, que gosta Vale ressaltar que durante a etnografia
mais de... dançar, se expor, já fala, foram observados outros processos de
‘ah viu aquele cara que dança, sobe paquera não-hegemônica, ou seja, para
no pole dance, dança igual a diva e além do binário “másculo-rasgado”.
tudo mais.’. Aí fala, ‘ah, é passivo...’.
Os afeminados paqueravam entre si,
E aí as pessoas acabam, é, dizendo,
rotulando se esse homem é passivo. por exemplo. Esses processos de pa-
Pelo fato da festa tocar mais pop, quera podem constituir objetos de
de ir pessoas que gostam mais disso análise de pesquisas futuras correlacio-
e....acontece (Ricardo/2016). nadas.
Em suma, os processos de paquera
encerravam políticas de diferenciação
NOTAS
dos corpos masculinos numa classifi-
cação oposicional e hierárquica para 1
Esse termo êmico se refere à “pegação”
definir os seus níveis de desejabilida- ou “cruising”.

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 193


Sampaio, F. S.

2
Dados extraídos do site: http://cidades. culto ao corpo e do hiperconsumo, este
ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codm termo vem sendo utilizado para justificar
un=231290&search=||infogr%E1ficos:- sentidos e valores sociais relacionados à
-informa%E7%F5es-completas. Acesso prática de exercício físico. Os malhados re-
em: 14 ago. 2016. presentavam o estilo corporal hegemônico
3
As primeiras festas eletrônicas sobralen- a ser perseguido para vencer a concorrên-
ses ocorriam numa atmosfera de “armário cia na paquera e na “catação”.
para todos” onde as práticas realizadas 8
Termo êmico que se referia aos engaja-
nesses contextos não deveriam ser publi- mentos amorosos e/ou sexuais não-ho-
cadas de acordo com os colaboradores. mossexuais entre homens nas festas.
4
Expressão êmica que significa liberação 9
Termo êmico que significa beijar ou “dar
performática de estilos principalmente afe- um amassos” (Neto, 2015) rápido com al-
minados e/ou “rasgados”, estigmatizados guém sem demonstrar, inicialmente, inten-
nos contextos familiares e citadinos especí- ção sexual.
ficos de cada participante que frequenta o 10
Publicar de alguma forma os “ficas” ou
evento e habita cidades com menor densi- “pegações” homossexuais ocorridas nas
dade demográfica do que Sobral/CE. festas.
5
Relaciona-se a buscas por sexo casual em 11
Metáfora analítica tomada de emprésti-
locais públicos ou já consensualmente per- mo de Norbert Elias e John Scotson (2000)
cebidos para esta finalidade: saunas, cine- para definir tanto os participantes mais as-
mas de sexo explícito, banheiros públicos síduos das festas e que estavam familiariza-
e outros. dos com os códigos de sociabilidade (“es-
6
De acordo com o relato, os jovens que tabelecidos”) quanto os frequentadores
frequentavam as festas eletrônicas julga- novatos ou que não estavam familiarizados
vam as pessoas que participavam desse com estes códigos (“outsiders”).
bar muito “afeminadas” e “rasgadas”. 12
Termo êmico que representava os fre-
Eles temiam que – ao frequentarem esse quentadores afeminados que expressavam
bar – suas homossexualidades poderiam seu efeminamento através de performan-
ser publicadas por esses jovens “afemina- ces de dança pop durante as festas.
dos”. Sobral é uma cidade pequena e “to- 13
Locais semifechados, escuros, em que
dos se conhecem e sabem da vida de todo
a ordem é a liberação da “pegação”, ou
mundo” (Dênis, 2014). O simples ato de melhor, práticas sexuais diversificadas.
frequentar o bar, embora não ficando ou Quando as festas ocorriam nos motéis, um
paquerando com nenhum homem, já era dos quartos das suítes era autorizado para
considerado marca essencial para a popu- ocorrer as “pegações”.
lação estigmatizar tal visitante de ‘gay’. A
maioria dos frequentadores permanecia
14
Expressão utilizada para se referir aos
nesse bar sob uma espécie de “proteção jovens que frequentavam quase todas as
heterossexual”, ou seja, com amigos héte- festas eletrônicas que ocorriam na cidade
ros ou com casais héteros. 15
Festas eletrônicas organizadas com in-
7
A expressão “fitness” designa tanto uma tuito de duração prolongada como, por
capacidade orgânica quanto um estilo ou exemplo, 12 ou 24 horas de duração.
jeito de ser e de se comportar (GOELL- 16
Supressão da palavra que identificava o
NER, SILVA, 2012). Na sociedade do colaborador.

194 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016


Entre paqueras e “catações”: A ritualização da busca por parceiros em festas eletrônicas sobralenses

17
Cantoras pop como Beyouncé, Lady – funcionam para confirmar aos recepto-
Gaga, Rihana, Britney Spears e Katy Perry. res que são estimados em determinada in-
Além da cantora de funk Anita. Elas são teração e sinalizam para o tratamento que
consideradas como um semideus por al- está por vir, ou seja, eles especificam o que
guns frequentadores das festas eletrônicas, deve ser feito (Ibid.:72).
principalmente pelos os afeminados e que 23
Encontro social onde os indivíduos se
servem como inspiração coreográfica para juntam com a finalidade de sustentar um
suas performances de dança nos eventos único foco de atenção visual e cognitiva
(Ricardo, 2016). (GOFFMAN, 2010: 101).
18
Tanto poderia ser o processo de paque- 24
A concepção de gênero enquanto per-
ra em si, quanto o sujeito paquerado, um formance, “repetição estilizada de atos”,
“fica” atual ou alguém que se paquera sem da filósofa Judith Butler (2010), foi crucial
o outro ter consciência de ser paquerado. na problematização das concepções e prá-
19
O “esquenta” significava beber sozinho ticas de masculinidades que eram encena-
e entre amigos em determinados bares, das e avaliadas pelos colaboradores.
restaurantes ou casas de amigos. Nesse 25
Essa denominação foi aplicada ao con-
período de interação regada pelo álcool, junto padronizado de comportamentos a
os jovens conversavam sobre as festas que serem encenados e compartilhados pelos
planejavam frequentar e se preparavam integrantes de determinado grupo de ami-
para possíveis flertes, comentando suas gos durante a festa. Essa “performance
intenções em relação às festas e, às vezes, grupal” demarcava ações, atitudes, gostos,
compartilhando pretensos parceiros já preferências e intencionalidades que qual-
marcados via Facebook. quer integrante poderia possuir de acordo
20
Os olhares não se dirigiam apenas para com os colaboradores. Neto assevera que
um determinado participantes: não possu- determinado indivíduo que estava “na
íam um único foco. companhia” de outros que somente pensa-
vam em “colecionar ficas” e beberem mui-
21
Expressão êmica que objetivava nomear
to, geralmente não serviam “pra namorar”.
a situação interacional onde existia corres-
pondência de desejos e interesses amoro-
26
Alguns colaboradores ratificaram a pre-
sos e/ou sexuais durante a paquera. sença de homens que não se identificavam
como gays mas que gostavam de “ficar”
22
A deferência – percebida em saudações, com outros homens nas festas.
elogios e desculpas – é um meio simbólico
de comunicar apreciação ou estima para
27
Geralmente identificado como aquele
um receptor ou para algo que ele simboli- sujeito de classe média ou alta que possuía
za ou representa (GOFFMAN, 2011: 59). escolaridade de nível superior e consumia
É um componente básico da cerimônia e as melhores e mais caras bebidas durante
pode assumir a forma de “ritual de evi- as festas (Ricardo, 2016).
tação” e “ritual de apresentação”. Os ri- 28
Termo criado por Wagner (1993) que
tuais de evitação são empregados onde a identifica um conjunto de disposições –
deferência leva o ator a manter distância discursos, valores e práticas – que naturali-
do receptor através de proscrições, proibi- za, sanciona e legitima a heterossexualida-
ções e tabus que objetivam respeitar esse de como a única possibilidade de expressão
direito do receptor (Ibid.:65). Os rituais de dos sujeitos (JUNQUEIRA, 2012: 66).
apresentação – segundo tipo de deferência A heteronormatividade é sustentada pela

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016 195


Sampaio, F. S.

heterossexualidade obrigatória – confor- ______. 2009. A representação do eu na vida


me Louro (2012). E, além disso, reforçada cotidiana. 16.ed. Tradução de Maria Celia
pela efeminofobia – medo ou pavor de se Santos Raposo. Petrópolis: Vozes.
efeminar – no caso das relações amorosas JUNQUEIRA, R. D. 2014. “A pedagogia
e sexuais entre homens. do armário: heterossexismo e vigilância de
29
Estilos de música caracterizados por ba- gênero no cotidiano escolar”. Revista Edu-
tidas fortes – tribal – e fracas – house – e cação On-line, Rio de Janeiro, PUC, n. 10,
com pouca vocalidade (Ricardo, 2016). p. 64-83, 2012. Disponível em: <http://
www.maxwell.lambda.ele.pucrio.br/rev_
edu_online.php?strSecao=input0>. Aces-
REFERÊNCIAS so em: 20 mar.
PEIRANO, Mariza (Org.). 2001. O dito e
BUTLER, Judith. 2010. Problemas de Gênero: o feito: ensaios de Antropologia dos rituais.
feminismo e subversão da identidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Relumé Dumará.
Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira. SCHECHNER, R. 2012: 21-45. “Uma
tarde com Richard Schechner – Os anos
______. 2002. Cuerpos que importan: sobre sessenta, a palavra performance e o nas-
los limites materiales y discursivos del cimento dos Performance Studies” (En-
‘sexo’. 1.ed. Buenos Aires: Paidós. trevista). In: LIGIÈRO, Zeca (Org.). Per-
ELIAS, N. & SCOTSON, J. L. 2000. Os formance e Antropologia de Richard Schechner.
estabelecidos e os outsiders: sociologia das re- Tradução de Augusto Rodrigues da Silva.
lações de poder a partir de uma pequena Rio de Janeiro: Mauad X.
comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______; DUNNING, E. 1992. A busca da
excitação. Tradução de Maria Manuela Al-
meida e Silva. Lisboa: DIFEL. Recebido entre 24 a 27/02/17
GOELLNER, S. V. & SILVA, A. L. S. Aprovado em 21/03/17
2012: 187-210. “Biotecnologia e neoeuge-
nia: olhares a partir do esporte e da cultura
“fitness””. In: COUTO, Edvaldo Souza;
GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). O
triunfo do corpo: polêmicas contemporâneas.
Petrópolis: Vozes.
GOFFMAN, E. 2011. Rituais de interação:
ensaios sobre o comportamento face a
face. Tradução de Fabio Rodrigues Ribeiro
da Silva. Petrópolis: Vozes, [Coleção So-
ciologia].
______. 2010.Comportamento em lugares pú-
blicos: notas sobre a organização social dos
ajuntamentos. Tradução de Fabio Rodri-
gues Ribeiro da Silva. Petrópolis: Vozes,
[Coleção Sociologia].

196 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 172 - 196, 2016

Você também pode gostar