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Dados Internacionais de Catal�o na Publica�o (CIP)

(Ornara Brasileira do Livro, SP. Brasil)

2•ed.

Bachelard, Gaston, 1884·1962.


A intuição do instante I Gaston Bachelard ; tradução
Antonio de Padua Danesi. - 2•ed.- Campinas, SP : Verus
Editora, 2010.

Titulo original: L'intuition de rinstant


Bibliografia
ISBN 97B·85·7686-010·5

I. Instante (Filosofia) 2. Tempo Percepção I. Titulo.


07·0720 CDD·115

lndices para catalogo sistemático:


1. Instante : Intuição : Filosofia 115
GASTON BACHELARD

A intuição do instante

2• edição

Tradução

Antonio de Padua Danesi

VERUS

w
SAPIENTIA
Título original
L'int11ition dr l'instant

Editora
Rai'ssa Castro

Coordenadora Editorial
Ana Paula Gomes

Copidesque
Ana Paula Gomes

Revisio
Carlos Eduardo Sigrist

Diagramaçio
Daiane Avelino

Capa e Projeto gráfico


André S. Tavares da Silva

Copyright O Editions STOCK, 1931, 1992, 1993

Todos os direitos reser v ados , no Brasil, por


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Sumário

Prefacio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

CAPÍTULO 1
O instante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

CAPÍTULO 2
O problema do hábito e o tempo descontínuo . . . . . . . . . . 57

CAPÍTULO 3
A ideia do progresso e a
intuição do tempo descontínuo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

ANEXO
Instante poético e instante metafisico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Prefácio

O título or iginal desta obra de Bachelard é L'intuition de l'instant


- Etude sur la Siloe de Gaston Roupnel. O historiador francês Gas­
ton Roupnel ( 1 872- 1 946) notabilizou-se por seu estudo da his­
tória social da França, principalmente por sua Histoire de la cam­
pagnefrançaise, na qual já está presente uma abordagem regional
e estrutural que o aproxima da Ecole des Annales. A proposta
de uma história total, como preconizada por Roupnel, tem por
contrapartida a menor estrutura de tempo possível em histó­
ria, o instante. A contraposição entre a história como totalidade
e o instante como fragmento mínimo resolve-se, para Roupnel,
numa metafisica. O delineamento dessa metafisica ser ia o obje­
tivo de Siloe no conjunto de sua obra .
Entretanto, o problema do instante e de como ele é conhe­
cido, ou seja, o problema da intuição, não deve ser qualificado,
na filosofia francesa, apenas como recor rente, mas também co­
mo fundante.

7
A I NTUIÇAO DO I NSTANTE

É certo que a passagem mais conhecida da intuição na fi­


losofia francesa é o cogito de Descartes ( 1 596- 1 650) , que pro­
põe a intuição como o fundamento do conhecimento - pois
não posso duvidar de que sou. Entretanto, ainda na cr istandade,
Hugo de São Vítor ( 1 096- 1 1 4 1 ) j á havia colocado a intuição
como contraposição entre uma totalidade e o instante, uma vez
que a contemplatio era a intuição do olhar contemplativo e co­
nhecimento último sobre a totalidade - e i nfinitude - divina.
A conj unção entre o instante e a eterrridade. A contemplatio era
o último passo do conhecimento, precedido pela cognitio - que
se refer ia à observação sensível e à imaginação - e pela medita­
tio - que se referia a uma reflexão racional cuj o ápice era o re­
conhecimento do divino. Se usássemos os olhos de Hugo de
São Vítor para ler Descartes, julgaríamos que o cogito, embora
dito como intuição, é, ainda, meditatio.A contempla tio exige sem­
pre uma metafísica mais profunda e radical, porém sempre uni­
tiva, isto é, que conceba o mundo não como ruptura, mas co­
mo continuidade e, mesmo, ascensão da observação sensível à
contemplação de Deus.
Roupnel faz a proposta de uma tal metafísica, contudo sua
finalidade não é o conhecimento de Deus, mas da história como
totalidade. Quando desviamos da contemplação divi na para a
histór ia o enfoque da intuição, surpreendemo-nos com o fato
de que a tradição, os valores e as práticas culturais consistiram
sempre em instantes e repetições, que se constituíram em hábi­
tos, os quais, por fim, receberam o significado de valores . Tal co­
mo na visão unitiva de Hugo de São Vítor, a singular idade do
instante e a totalidade da história encontram-se e pr incipiam sua
conjunção na intuição do instante, ou seja, a intuição não é um
ato único ou distinto, como a sentença cartesiana, mas um ato
uno, de consciência e mundo, própr io de uma metafísica monis-

8
PREFACIO

ta como Roupnel quer propor, em que o mundo é o sempre­


-presente e, de um modo radical, o instante.
Outro caminho de unidade entre consciência e totalidade
foi proposto por Henri Bergson ( 1 859- 1 94 1 ) , notadamente em
sua obra mais conhecida, A evolução criadora. Porém j á em seu
trabalho inicial, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, en­
contrará como dado imediato o tempo psicológico, por ele no­
meado de duração psicológica, sendo o instante a conj u nção
entre a duração compactada - ou seja, ainda não expressa - e
a duração distendida - expressa em palavras, números e símbo­
los. Desse modo, o instante bergsoniano é uma escolha em que,
da heterogeneidade do emaranhado de significados possíveis,
a consciência elegesse uma expressão homogênea, compreen­
sível, contável, compatível com o tempo externo e mecânico
compartilhado pelas pessoas, permitindo propor um significado
único ou principal ao i nstante. O instante, assim, é a síntese da
contraposição entre a totalidade heterogênea da consciência e
a expressão homogênea de um significado.
A metafisica de Siloe chama Bachelard a esse debate sobre
a intuição e o instante, enfrentando as diferenç�s e críticas em
relação a Bergson e Roupnel. A caminho da caracterização da
intuição metafisica e da intuição poética, Bachelard se aproxi­
mará do matemático e também filósofo Henri Poincaré, para
quem a intuição era, mais que um ponto de partida explicativo,
a centelha da criação e da invenção, necessária tanto à ciência
quanto à po€sia .

PAULO DETARSO GOMES

9
lntrodução

Quando uma alma sensível e culta se lembra de seus esforços


para desenhar, de acordo com seu próprio destino intelectual,
as grandes linhas da Razão, quando estuda, pela memória, a his­
tória de sua própria cultura, ela se dá conta de que, na base das
certezas íntimas, fica sempre a lembrança de uma ignorância es­
sencial. No reino do próprio conhecimento há, assim , um erro
original: o de ter uma origem; o de faltar à glória de ser in tem­
poral; o de não despertar a si mesmo para permanecer como
si mesmo, mas esperar do mundo obscuro a lição de luz.
Em que água lustrai encontraremos não somente a renova­
ção do frescor racional, mas também o direito ao eterno retorno
do ato da Ra ião? Que Siloé, marcando-nos com o signo da
Razão pura, porá ordem o bastante em nosso espírito para nos
permitir compreender a ordem suprema das coisas? Que gra­
ça divina nos dará o poder de outorgar o princípio do ser e o
p rincípio do pensamento e, começando-nos verdadeiramente,

11
A I NTU I ÇIIO DO I N STA NTE

num pensamento novo, de retomar em nós, para nós, em nosso


próprio espírito, a tarefa do Criador? É essa fonte de Juvência
intelectual que Roupnel procura, como bom feiticeiro, em to­
dos os donúnios do espírito e do coração. Atrás dele, incapazes
nós mesmos de manejar a varinha de aveleira , sem dúvida não
reencontraremos todas as águas vivas, não sentiremos todas as
correntes subterrâneas de uma obra profunda . Pelo menos, gos­
taríamos de dizer em que pontos de Siloe recebemos os impul­
sos mais eficazes e que temas inteiramente novos Roupnel traz
para o filósofo que quer meditar os problemas da duração e do
instante, do hábito e da vida .
Primeiro, essa obra tem um foco secreto. Não sabemos o
que é que faz o calor e a claridade. Não podemos fixar a hora
em que o mistério se tornou claro o bastante para se enunciar
como um problema . Mas que diferença faz? Quer ela venha do
sofrimento, quer venha da alegria, todo homem tem na vida es­
sa hora de luz, a hora em que ele compreende subitamente sua
própria mensagem, a hora em que o conhecimento, iluminando
a paixão, desvenda ao mesmo tempo as regras e a monotonia
do Destino, o momento verdadeiramente sintético em que o
malogro decisivo, propiciando a consciência do irracional, se
torna ainda assim o sucesso do pensamento. É aí que se situa o
diferencial do conhecimento, o fluxo newtoniana que nos per­
mite perceber como o espírito surge da ignorância, a inflexão
do gênio humano na curva descrita pelo progresso da vida . A
coragem intelectual consiste em manter vivo e ativo esse ins­
tante do conhecimento nascente, em fazer dele a fonte inexaurí­
vel de nossa intuição e em desenhar, com a história subjetiva
de nossos er ros e equívocos, o modelo obj etivo de uma vida
melhor e mais clara . Ao longo de todo o livro de Roupnel, sen­
timos o valor dessa ação persistente de uma intuição filosófica

12
I NTRODUÇAO

oculta . Se o autor não nos mostra sua fonte primeira, nem por
isso nos podemos enganar a respeito da unidade e da profundi­
dade de sua intuição. O lirismo que conduz esse drama filosófi­
co que é Siloe constitui o signo de sua intimidade, porque, co­
mo escreve Renan , " o que se diz de si é sempre poesia " . 1 Esse
lirismo, porque inteiramente espontâneo, encerra uma força de
persuasão que certamente jamais conseguiríamos transportar
para nosso estudo. Seria necessário reviver todo o livro, segui­
lo linha a linha para compreender quanto o caráter estético lhe
acrescenta de clareza . Aliás, para ler bem Siloe, deve-se ter pre­
sente que se está diante da obra de um poeta, de um psicólo­
go, de um historiador que ainda se nega a ser um filósofo no
momento mesmo em que sua meditação solitária lhe entrega
a mais bela das recompensas filosóficas - a de voltar a alma e o
espírito para uma intuição original.
Nossa tarefa principal nos estudos que se segu em será es­
clarecer essa intuição nova e mostrar seu interesse metafísico.

Antes de iniciar nossa exposição, algumas observações se­


rão úteis para j ustificar o método que escolhemos.
Nosso obj etivo não é resumir o livro de Roupnel . Siloe é
um livro rico em pensamento e em fatos. Melhor seria desen­
volvê-lo que resumi-lo. Enquanto os romances de Roupnel são
animados por uma verdadeira alegria do verbo, por uma exis­
tência numerosa de palavras e ritmos, é notável que ele tenha
encontrado em seu Siloe a frase condensada, colhida no âmago
da intuição. Desde logo nos pareceu que, aqui, explicar seria ex­
plicitar. Retomamos, pois, as intuições de Siloe tão perto quan­
to possível de sua fonte e empenhamo-nos em seguir em nós
mesmos a animação que essas intuições poderiam dar à medi-

1 Souvrrrirs d'rf!{allcr rt de jermessr, Prefacio 111.

13
A I NTUIÇAO DO I N STANTE

tação filosófica. Fizemos dela , durante vários meses, a moldura


e o :�rcabouço de nossas construções. Aliás, uma intuição não
se prova, se vivencia. E se vivencia multiplicando-se ou mesmo
modificando-se as condições de seu uso. Samuel Butler diz com
razão : "Se uma verdade não é sólida o bastante para suportar
que a desnaturemos e a maltratemos, não é de uma espécie bem
robusta" . 2 Pelas deformações que impusemos às teses de Roup­
nel, poder-se-á talvez medir sua verdadeira força . Servimo-nos,
pois, com toda a liberdade, das intuiç�es de Siloe e, finalmente,
mais que uma exposição objetiva, o que apresentamos aqui é
nossa experiência do livro.
Todavia, se nossos arabescos deformam em demasia o tra­
çado de Roupnel, sempre se poderá restituir a unidade retor­
nando-se à fonte misteriosa do livro. Aí se encontrará , como
buscaremos mostrar, sempre a mesma intuição. Aliás, Roupnel
nos diz3 que o título estranho de sua obra só tem verdadeira
inteligência para ele mesmo. Não será isso convidar o leitor a
colocar também, no limiar de sua leitura, sua própria Siloé, o
misterioso refúgio de sua personalidade? Recebe-se, então, da
obra uma lição estranhamente emocionante e pessoal que lhe
confirma a unidade num novo plano. Digamos numa palavra :
Siloe é uma lição de solidão. Eis por que sua intimidade é tão
profunda, eis por que ela conserva, acima da dispersão de seus
capítulos - apesar do jogo não raro demasiado grande de nossos
comentários -, a unidade de sua força íntima.
Tomemos portanto, desde já, as intuições diretivas sem nos
limitarmos a seguir a ordem do livro. São essas intuições que
nos darão as chaves mais convenientes para abrir as múltiplas
perspectivas em que a obra se desenvolve.

2 La l'ie 1'1 l'llabitudr, p. 17, trad . Larbaud .

.l Si/oi', p. 8.

14
C A P ÍT U L O

O instante

O virgíneo, o vivaz e o belo hoje.


MALLARME

Teremos perdido até a memória de nosso encontro ...


Mas nos reencontraremos,
para tiOS separarmos e nos encontrarmos de novo,
Ali onde os mortos se reencontram: nos lábios dos vivos.
SAMUEL BUTLER

A ideia metafísica decisiva do livro de Roupnel é esta : O tempo


só tem uma realidade, a do Instante. Noutras palavras, o tempo é
uma realidade encerrada no instante e suspensa entre dois na­
das . O tempo poderá sem dúvida renascer, mas primeiro terá

15
A I NTUIÇAO DO I N STANTE

de morrer. Não poderá transportar seu ser de um i nstante para


outro, a fim de f.12er dele uma duração. O instante é já a soli­
dão . . . É a solidão em seu valor metafisico mais despojado. Mas
uma solidão de ordem mais sentimental confirma o trágico iso­
lamento do instante: por uma espécie de violência criadora, o
tempo limitado ao instante nos isola não apenas dos outros, mas
também de nós mesmos,já que rompe nosso passado mais dileto.
Já no limiar de sua meditação - e a meditação do tempo é
a tarefa preliminar a qualquer metafisi� -, eis, portanto, o filó­
sofo diante da afirmação de que o tempo se apresenta como o
instante solitário, como a consciência de uma solidão.Veremos
mais adiante como se reformarão o fantasma do passado ou a
ilusão do fu turo ; mas, antes de tudo, para bem compreender
a obra que vamos explicar, será necessário penetrar-se da total
igualdade do instante presente e do real . Como poderia o que
é real escapar à marca do instante presente? Mas, reciprocamente,
como o instante presente deixaria de imprimir-se no real? Se
meu ser só toma consciência de si mesmo no instante presente,
como não ver que o instante presente é o único domínio no
qual se vivencia a realidade? Se tivéssemos de eliminar nosso ser
em seguida, seria necessário partir de nós mesmos para provar
o ser. Tomemos, pois, de i nício, nosso pensamento e o sentire­
mos apagar-se incessantemente contra o instante que passa , sem
lembrança do que acaba de nos deixar, sem esperar tampouco,
porqu e sem consciência, pelo que o instante subsequente nos
entregará . "É do presente, e só do presente, que temos consciên­
cia " , diz-nos Roupnel . "O instante que acaba de nos escapar é
a mesma morte imensa a que pertencem os mundos abolidos
e os fi rmamentos extintos. E o mesmo desconhecido temível
contém, nas mesmas trevas do fu turo, tanto o instante que se

16
O INSTANTE

aproxima de nós como os Mundos e os Céus que ainda se ig­


noram." 1
E Roupnel acrescenta u m argumento que vamos contestar
com o único intuito de acentuar ainda mais seu pensamento:
" Não há grau nessa morte que é tanto o futuro quanto o pas­
sado " . Para reforçar o isolamento do instante, quase diríamos
que há graus na morte e que o que está mais morto que a morte
é o que acaba de desaparecer. . . De fato, a meditação do instante
nos convence de que o esquecimento é ainda mais nítido por­
que destrói um passado mais próximo, da mesma sorte que a
incerteza é ainda mais emocionante porque colocada no eixo
do pensamento que vai vir, no sonho que solicitamos, mas que
sentimos já ser enganador. Do passado mais distante, por efei­
to de uma permanência totalmente formal que teremos de es­
tudar, um fantasma algo coerente e sólido poderá talvez retor­
nar e viver, mas o instante que acaba de soar, não o poderemos
conservar com sua individualidade, como um ser completo. É
necessária a memória de muitos instantes para fazer uma lem­
brança completa . Como o luto mais cruel é a consciência do
futuro traído e, ·q uando sobrevém o instante lancinante em que
um ente querido fecha os olhos, imediatamente se sente com
que novidade hostil o instante seguinte "assalta " nosso coração.
Esse caráter dramático do instante é talvez suscetível de fa­
zer pressentir sua realidade. O que gostaríamos de sublinhar é
que, nessa ruptura do ser, a ideia do descontínuo se impõe de
forma inconteste. Objetar-se-á talvez que esses instantes dramá­
ticos separam duas durações mais monótonas. Mas chamamos
de monótona e regular toda evolução que não examinamos com
atenção apaixonada . Se nosso coração fosse amplo o bastante
para amar a vida em seus pormenores, veríamos qu e todos os

I Sih>i', p. I 08.

17
A I NTU IÇAO DO I N STANTE

instantes são a um tempo doadores e espoliadores e que uma


novidade recente ou trágica, sempre repentina, não cessa de ilus­
trar a descontinuidade essencial do Tempo.

11
Porém essa consagração do instante como elemento temporal
primordial só pode, evidentemente, ser definitiva se for primei­
ro confrontada com as noções de ins�ante e de duração. Desde
logo, apesar de Siloe não apresentar nenhum traço polêmico, o
leitor não pode deixar de evocar as teses bergsonianas. V isto que
neste trabalho nos propomos a tarefa de confiar todos os pensa­
mentos de um leitor atento, cumpre-nos enunciar todas as obje­
ções que nascem de nossas lembranças dos temas bergsonianos.
Aliás, é talvez opondo a tese de Roupnel à de Bergson que com­
preenderemos melhor a intuição que apresentamos aqui.
Eis, então, o plano que vamos cumprir nas páginas que se
seguem.
Lembraremos a essência da teoria da duração e desenvolve­
remos o mais claramente possível os dois termos da oposição:

1) A filosofia de Bergson é uma filosofia da duração.


2) A filosofia de Roupnel é uma filosofia do instante.

Em seguida, buscaremos indicar os esforços de conciliação


que tentamos operar pessoalmente, mas não daremos nossa ade­
são à doutrina intermediária que nos reteve por um momento.
Se a delineamos, é porque ela acode muito naturalmente, segun­
do parece, ao espírito de um leitor eclético e porque pode re­
tardar sua decisão.
Enfim, após uma exposição de nossos próprios debates, ve­
remos que, a nosso ver, a posição mais clara, mais prudente, a que-

18
O I NSTANTE

la que corresponde à consciência mais direta do tempo, é ainda


a teoria roupneliana.

Examinemos, pois, para começar, a posição bergsoniana.


De acordo com Bergson , temos uma experiência íntima e
direta da duração. Essa duração é mesmo um dado imediato da
consciência . Decerto ela pode ser subsequentemente elaborada,
objetivada, deformada . Os físicos, por exemplo, com todas as
suas abstrações, fazem dela um tempo uniforme e sem vida, sem
termo nem descontinuidade. Entregam, então, o tempo inteira­
mente desumanizado aos matemáticos. Penetrando no pensa­
mento desses profetas do abstrato, o tempo reduz-se a uma sim­
ples variável geométrica, a variável por excelência, doravante
mais apropriada para a análise do possível que para o exame do
real. De fato, a continuidade é, para o matemático, mais o es­
quema da possibilidade pura que o caráter de uma realidade.
Então, para Bergson, o que é o instante? Nada mais que um
corte artificial que ajuda o pensamento esquemático do geôme­
tra. A inteligência, em sua inaptidão para seguir o vital, imobi­
liza o tempo num presente sempre factício. Esse presente é um
mero nada que não consegue sequer separar realmente o pas­
sado e o futuro. Parece, com efeito, que o passado leva suas for­
ças para o futuro, e parece também que o futuro é necessário
para dar passagem às forças do passado e que um único e mesmo
impulso vital solidariza a duração. O pensamento, fragmento da
vida, não deve ditar suas regras à vida . Totalmente imersa em
sua contemplação do ser estático, do ser espacial, a inteligência
deve empenhar-se em não desconhecer a realidade do futuro.
Finalmente, a filosofia bergsoniana reúne de forma indissolúvel
o passado e o futuro. Assim, é preciso tomar o tempo em seu
bloco para tomá-lo em sua realidade. O tempo está na própria

19
A I NTUIÇAO DO I N STANTE

fonte do impulso vital . A vida pode receber ilustrações instan­


tâneas, mas é a duração que explica verdadeiramente a vida .
Evocada a intuição bergsoniana, vejamos de que lado, con­
tra ela, as dificuldades vão se acumular.
Eis, em primeiro lugar, uma repercussão da crítica bergso­
niana à realidade do instante.
Com efeito, se o instante é uma falsa cesura, o passado e o
futuro hão de ser bem difíceis de distinguir, porque são sem­
pre artificialmente separados. Cumpt'e, então, tomar a duração
como uma unidade indestrutível. Daí todas as consequências da
filosofia bergsoniana: em cada um de nossos atos, no menor de
nossos gestos, poder-se-ia apreender o caráter acabado do que
se esboça, o fim no começo, o ser e todo o seu devi r no impul­
so do germe.
Mas admitamos que se possa misturar definitivamente pas­
sado e futuro. Nessa hipótese, uma dificuldade nos parece apre­
sentar-se para quem quer levar até o fim o emprego da intuição
bergsoniana .Tendo triunfado ao provar a irrealidade do instan­
te, como falaremos do começo de um ato? Que potência so­
brenatural, situada fora da duração, fará então o favor de mar­
car com um signo decisivo uma hora fecunda que, para durar,
deve, apesar de tudo, começar? Como essa doutrina dos come­
ços, cuja importância veremos na filosofia roupneliana, há de
permanecer obscura numa filosofia oposta que nega o valor do
instantâneo? Sem dúvida, para tomar a vida por seu meio, em
seu crescimento, em sua ascensão, tem-se toda a possibilidade,
com Bergson, de mostrar que as palavras antes e depois encerram
apenas um sentido de ponto de referência , j á que entre o pas­
sado e o futuro se segue uma evolução que em seu sucesso ge­
ral se afigura contínua . Mas, se passarmos ao domínio das mu­
tações bruscas, em que o ato criador se inscreve abruptamente,

20
O INSTANTE

como não compreender que uma nova era se abre sempre por
um absoluto? Ora, toda evolução, na medida em que é decisiva ,
é pontuada por instantes criadores.
Esse conhecimento do instante criador, onde o encontrare­
mos mais seguramente que no fluxo de nossa consciência? Não
é aí que o impulso vital se mostra mais ativo? Por que tentar
remontar a alguma potência surda e escondida que falhou mais
ou menos em seu próprio impulso, que não o concluiu, que
nem sequer o continuou, enquanto se desenrolam sob nossos olhos,
no presente ativo, os mil acidentes de nossa própria cultura, as
mil tentativas de nos renovar e de nos criar? Voltemos, pois, ao
ponto de partida idealista, concordemos em tomar como campo
de experiência nosso próprio espírito em seu esforço de conhe­
cimento. O conhecimento é, por excelência, uma obra tempo­
ral . Tentemos, então, apartar nosso espírito dos laços da carne,
das prisões materiais. Tão logo o liberamos, e na proporção em
que o liberamos, percebemos que ele recebe mil incidentes, que
a linha de seu sonho se quebra em mil segmentos suspensos a
núl picos. O espírito, em sua obra de conhecimento, apresen­
ta-se como uma fila de instantes nitidamente separados. É escre­
vendo a história que o psicólogo, artificialmente, como todo
historiador, coloca nela o vínculo da duração. No fu ndo de nós
mesmos, ali onde a gratuidade tem um sentido tão claro, não
percebemos a causalidade que daria força à duração, e é um pro­
blema complicado e indireto procurar as causas em um espírito
no qual só nascem ideias.
Em suma, não importa o que se pense da duração em si,
apreendida na intuição bergsoniana, a qual não temos a preten­
são de haver examinado por inteiro numas poucas páginas é -

necessário pelo menos, ao lado da duração, conceder uma rea­


lidade decisiva ao i11sta11te.

21
A I NTUI ÇÃO DO I N STANTE

Teremos, aliás, a oportunidade de retomar o debate contra


a teoria de uma duração tomada como dado imediato da cons­
ciência. Para isso mostraremos, utilizando as intuições de Roup­
nel, como se pode construir a duração com instantes sem du­
ração, o que dará a prova - de um modo inteiramente positivo,
queremos crer - do caráter metafisico primordial do instante
e, por conseguinte, do caráter indireto e mediato da duração.

Mas retomemos desde logo um2 exposição positiva . Aliás,


o método bergsoniano nos autoriza doravante a lançar mão do
exame psicológico. Devemos então conclui r com Roupnei: "A
Ideia que temos do presente é de uma plenitude e de uma evi­
dência positiva singulares. Instalamo-nos nele com nossa per­
sonalidade completa . Somente ali, por ele e nele, é que temos
2 sensação de existência. E há uma identidade absoluta entre o

sentimento do presente e o sentimento da vida " .2


Será necessário, por conseguinte, do ponto de vista da pró­
pria vida , buscar compreender o passado pelo presente, longe
de um empenho incessante de explicar o presente pelo passado.
Por certo, depois disso a sensação da duração deverá ser escla­
recida . Vamos tomá-la , por ora, como um fato: a duração é uma
sensação como as outras, tão complexa quanto as outras. E não
façamos nenhuma cerimônia ao sublinhar seu caráter aparente­
mente contraditório: a duração é feita de instantes sem duração,
como a reta é feita de pontos sem dimensão. No fundo, para
se contradizerem, é preciso que as entidades atuem na mesma
zona do ser. Se estabelecermos que a duração é um dado rela­
tivo e secundário, sempre mais ou menos factício, como pode­
ria a ilusão que temos sobre ela contradizer nossa experiência

2 Ibidem.

22
O INSTANTE

imediata do instante? Todas essas ressalvas são feitas aqui para que
não nos acusem de círculo vicioso formal quando tomamos as
palavras no sentido vago, sem nos atermos ao sentido técnico.
Tomadas essas precauções, podemos dizer com Roupnel :

Nossos atos de atenção são episódios sensoriais extraídos daquela


continuidade denominada duração. Mas a trama contínua, ali on­
de nosso espírito borda desenhos descontínuos de atos, não pas­
sa da construção laboriosa e artificial de nosso espírito. Nada nos
autoriza a afirmar a duração. Tudo em nós lhe contradiz o sen­
tido e lhe arruína a lógica. E, aliás, nosso instinto é mais bem es­
clarecido sobre isso do que nossa razão. O sentimento que temos
do passado é o de uma negação e de uma destruição. O crédito
que nosso espírito concede a uma pretensa duração que já não
seria, e na qual ele já não seria, é um crédito sem provisão.3

Convém sublinhar, de passagem, o lugar do ato de atenção


na experiência do instante. É que, de fato, não existe verdadei­
ramente evidência senão na vontade, na consciência que se em­
penha em decidir um ato.
A ação que se desenvolve por trás do ato entra já no domí­
nio das consequências lógica ou fisicamente passivas . E há aí
um matiz importante que distingue a filosofia de Roupnel da
de Bergson: afilosofia bergsoniana é umafilosofia da ação; afilosofia
roupneliana é umafilosofia do ato. Para Bergson, uma ação é sem­
pre um desenrolar contínuo que se situa entre a decisão e o ob­
jetivo - ambos mais ou menos esquemáticos -, uma duração
sempre original e real. Para um partidário de Roupnel, um ato
é antes de tudo uma decisão instantânea, e é essa decisão que

·' Op. cit., p. I 09.

23
A I NTU I ÇAO DO I N STA NTE

encerra toda a carga de originalidade. Falando mais fisicamente,


o fato de a impulsão em mecânica apresentar-se sempre como
a composição de duas ordens infinitesimais diferentes leva-nos a
comprimir até o limite puntiforme o instante que decide e aba­
la . Uma percussão, por exemplo, explica-se por uma força in­
finitamente grande que se desenvolve num tempo infinitamen­
te curto. Seria possível, aliás, analisar o desenrolar consecutivo
a uma decisão em termos de decisões subalternas. Ver-se-ia que
um movimento variado - o único q�. com toda razão, Bergson
considera real - continua seguindo os mesmos princípios que
o fazem começar. Mas a observação das descontinuidades do
desenrolar torna-se cada vez mais difícil, à medida que a ação
que segu e o ato é confiada a automatismos orgânicos menos
conscientes. Eis por que nos cabe remontar, para sentir o ins­
tante, aos atos claros da consciência .
Quando chegarmos às últimas páginas deste ensaio, teremos
necessidade, para entender as relações do tempo e do progresso,
de voltar a essa concepção atual e ativa da experiência do ins­
tante. Veremos então que a vida não pode ser compreendida nu­
ma contemplação passiva; compreendê-la é mais que vivê-la, é
efetivamente impulsioná-la . Ela não corre ao longo de uma en­
costa , no eixo de um tempo objetivo que a receberia como um
canal . É uma forma imposta à fila dos instantes do tempo, mas
é sempre num instante que ela encontra sua realidade primeira .
Assim, s e nos voltarmos para o núcleo da evidência psicológica,
em que a sensação já não é senão o reflexo ou a resposta sempre
complexa do ato voluntário sempre simples, quando a atenção
reduz a vida a um único elemento, a um elemento isolado, per­
ceberemos que o instante é o caráter verdadeiramente especí­
fico do tempo. Quanto mais profundamente penetra nossa me­
ditação do tempo, mais ela se reduz. Só a preguiça é duradoura

24
O INSTANTE

-o ato é instantâneo. Como não dizer então que, reciprocamen­


te, o instantâneo é o ato?Tomemos uma ideia pobre, reduzamo­
-la a um instante - ela ilumina o espírito. Ao contrário, o re­
pouso do ser é já o nada.
Como, pois, não ver que a natureza do ato, por um singu­
lar encontro verbal, é ser atual? E como não ver, em seguida,
que a vida é o descontínuo dos atos? É essa intuição que Roup­
nel nos apresenta em termos particularmente claros:

Pode-se dizer que a duração é a vida . Sem dúvida. Mas é preciso


ao menos situar a vida no âmbito do descontínuo que a contém
e na forma agressiva que a manifesta . Ela já não é aquela conti­
nuidade fluida de fenômenos orgânicos que se escoavam uns nos
outros, confundindo-se na unidade funcional . O ser, estranho lu­
gar de lembranças materiais, não passa de um hábito em si mesmo.
O que pode haver de permanente no ser é a expressão não de
uma causa imóvel e constante, mas de uma justaposição de resul­
tados fugidios e incessantes, cada um dos quais com sua base so­
litária e cuja ligadur a , que nada mais é que um hábito, compõe
um indivíduo.�

Sem dúvida, ao escrever a epopeia da evolução, Bergson de­


via negligenciar os acidentes. Roupnel, como historiador mi­
nucioso, não podia ignorar que cada ação, por simples que seja ,
rompe necessariamente a continuidade do devir vital . Se obser­
varmos a história da vida em seus pormenores, veremos que ela
é uma história como as outras, cheia de repetições desnecessárias,
anacro nismos, esboços, fracassos e recomeças. Entre os aciden­
tes, Bergson reteve apenas os atos revolucionários nos quais o

• Ibidem .

25
A INTU IÇAO DO INSTANTE

impulso vital se cindia, nos quais a árvore genealógica se partia


em ramos divergentes. Para traçar tal afresco, não havia neces­
sidade de desenhar os detalhes - vale dizer, não havia necessi­
dade de desenhar os obj etos. Ele devia resultar, portanto, nessa
tela impressionante que é o livro L'évolution créatríce [ed. bras.:
A evolução criadora, Martins Fontes, 2005]. Essa intuição ilustra­
da é mais a imagem de uma alma que o retrato das coisas.
Porém o filósofo que pretende descrever a h � stória das coi­
sas, dos seres vivos e do espírito, áto rv o por átomo, célula por
célula , pensamento por pensamento, deve conseguir separar os
fatos u ns dos ou tros, porque fatos são fatos, porque fatos são
atos, porque os atos, se não terminam, se terminam mal, devem
contudo, necessariamente, começar no absoluto do nasci mento.
É preciso, pois, descrever a história eficaz com os começos; é
preciso, seguindo Roupnel, instaurar uma doutrina do aciden­
te como princípio.
Numa evolução verdadeiramente criadora, existe apenas uma
lei geral, segundo a qual um acidente está na raiz de qualquer
tentativa de evolução.

Assim, nessas consequências relativas à evolução da vida, co­


mo em sua primeira forma intuitiva, vemos que a intuição tem­
poral de Roupnel é exatamente o inverso da intuição bergso­
niana. Antes de ir mais longe, resumamos com um duplo esquema
a oposição das duas doutrinas:

• Para Bergson, a verdadeira realidade do tempo é sua dura­


ção; o instante é apenas uma abstração, desprovida de rea­
lidade. Ele é imposto do exterior pela inteligência, que só
compreende o devir demarcando estados imóveis. Repre­
sentaríamos, então, bastante bem o tempo bergsoniano por
uma reta preta sobre a qual tivéssemos colocado, para sim-

26
O INSTANTE

balizar o instante como um nada, como um vazio fictício,


um ponto branco.
• Para Roupnel, a verdadeira realidade do tempo é o instante;
a duração é apenas uma construção, desprovida de realidade
absoluta. Ela é feita do exterior, pela memória , potência de
imaginação por excelência, que quer sonhar e reviver, mas
não compreender. Representaríamos, então, bastante bem o
tempo roupnelíano por uma reta branca, i nteiramente em
potência, em possibilidade, na qual de repente, como um
acidente imprevisível, viesse inscrever-se um ponto preto,
símbolo de uma realidade opaca.

Note-se, aliás, que essa disposição linear dos instantes con­


tínua sendo, tanto para Roupnel como para Bergson, um artifí­
cio da imaginação. Bergson vê, nessa duração que se desenrola
no espaço, um meio indireto para medir o tempo. Mas o com­
primento de um tempo não representa o valor de uma dura­
ção, e seria necessário remontar do tempo extensível à duração
íntensíva . Aínda aqui, a tese descontínua adapta-se sem dificul­
dade: analisa-se a intensidade pelo número de Ín<:tantes em que
a vontade se aclara e se retesa, tão facilmente quanto o enrique­
cimento gradual e fluente do eu.5
Abramos agora um parêntese antes de esclarecer um pouco
mais o ponto de vista de Siloe.

111
Dizíamos mais acima que, entre as duas intuições precedentes,
havíamos hesitado longamente, buscando mesmo, nas vias da

' Cf.llergson, Essai sur ft•s douuérs immédiatt•s de /,t C<IIISCÍetrct•, p. 82 [ed . port .: Er�­
saio sobre <IS d.tdtlS Íllll'diatos da ((l/ISCÍCIICÍa, Edições 70, 1988[.

27
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE

conciliação, reunir sob um mesmo esquema as vantagens de am­


bas as doutrinas. Esse ideal eclético acabou por revelar-se insa­
tisfatório. Entretanto, como nos propusemos estudar em nós mes­
mos as reações intuitivas emanadas das intuições mestras, devemos
ao leitor a confidência pormenorizada de nosso fracasso.
Queríamos inicialmente conferir uma dimensão ao instan­
te, fazer dele uma espécie de átomo temporal que conservasse
em si mesmo certa duração. Dizíamos que um aconteci mento
isolado devia ter uma breve história lógica com referência a si
mesmo, no absoluto de sua evolução interna. Compreendíamos
que seu começo podia ser relativo a um acidente de origem ex­
terna, mas para brilhar, e depois para declinar e morrer, pedía­
mos que se atribuísse ao ser, por isolado que fosse, sua parcela
de tempo. Admitíamos que o ideal da vida fosse a vida ardente
do eremero, mas reivindicávamos para o eremero, da aurora ao
voo nupcial, seu tesouro de vida íntima. Queríamos sempre, por­
tanto, que a duração fosse uma riqueza profunda e imediata do
ser. Essa foi nossa primeira posição no que concerne ao imtante,
que seria então um pequeno fragmento do contínuo bergso­
mano.
Eis o que apreendíamos, em seguida, do tempo roupnelia­
no. Imaginávamos que os átomos temporais não podiam tocar­
-se, ou, antes, que não podiam fundir-se um no outro. O que
impediria sempre essa fusão seria a imprescritível novidade dos
instantes, da qual a doutrina do acidente colhida em Siloc nos
convencera . Numa doutrina da substância, que aliás não está
longe de ser tautológica, transferir-se-ão sem dificuldade, de um
instante para outro, as qualidades e as lembranças; o permanen­
te nunca há de explicar o devir. Se, pois, a novidade é essencial
ao devir, tem-se tudo a ganhar atribuindo-se essa novidade ao
próprio Tempo: não é o ser que é novo num tempo uniforme,

28
O INSTANTE

é o instante que, renovando-se, remete o ser à liberdade ou à


oportunidade inicial do devir. Aliás, por seu ataque, o instante
impõe-se prontamente, inteiramente; ele é o fator da síntese do
ser. Nessa teoria, o instante salvaguarda necessariamente, por­
tanto, sua individualidade. O problema de saber se os átomos
temporais se tocavam ou se eram separados por um nada pare­
cia-nos secundário. Ou melhor, dado que aceitávamos a consti­
tuição dos átomos temporais, éramos levados a pensá-los iso­
ladamente e, para a clareza metafisica da intuição, nos dávamos
conta de que um vazio era necessário - quer ele exista de fato,
quer não - para imaginar corretamente o átomo temporal. Pa­
recia-nos, então, vantajoso condensar o tempo ao redor de mí­
cleos de ação nos quais o ser se reencontrava em parte, colhendo
do mistério de Siloé o que se requer de invenção e de energia
para tornar-se e progredir.
Enfim, aproximando as duas doutrinas, chegávamos a um
bergsonismo fragmentado, a um impulso vital que se fracionava
em impulsões, a um pluralismo temporal que, aceitando dura­
ções diversas, tempos individuais, nos parecia apresentar meios
de análise tão flexíveis quanto ricos.
Porém é muito raro que as intuições metafisicas construí­
das num ideal eclético tenham força duradoura. Uma intuição
fecunda deve dar primeiro a prova de sua unidade. Não tardamos
a nos aperceber de que, por nossa conciliação, havíamos reunido
as dificuldades das duas doutrinas. Era preciso escolher, não ao
cabo de nossos desenvolvimentos, mas na base mesma das in­
tuições.
Agora, portanto, vamos dizer como passamos da atomização
do tempo, em que nos detivéramos, à aritmetização temporal ab­
soluta , tal qual Roupnel a afirma peremptoriamente.

29
A I NTU IÇÃO DO I N STANTE

Primeiro, o que nos havia seduzido, o que nos levara ao im­


passe em que acabamos de entrar, fora uma falsa concepção da
ordem das entidades metafisicas: sem perder o contato com a
tese bergsoniana, gostaríamos de colocar a duração no próprio
espaço do tempo. Tomávamos essa duração, sem discussão, como
a única qualidade do tempo, como um sinônimo do tempo. Re­
conheçamos: isso não passa de um postulado. Não precisamos
aj uizar seu valor senão em função da clareza e do alcance da
construção que esse postulado favoreoe. Mas sempre temos o
direito, a priori, de partir de um postulado diferente e tentar uma
construção nova na qual a duração seja deduzida, e não postu­
lada .
Porém essa consideração a priori não bastaria, naturalmente,
para nos reconduzir à intuição de Roupnel. A favor da concep­
ção da duração bergsoniana, com efeito, havia ainda todas as pro­
vas que Bergson reuniu sobre a objetividade da duração. Sem
dúvida , Bergson instava-nos a sentir a duração em nós, numa
experiência íntima e pessoal . Mas não parava aí. Ele nos mostra­
va objetivamente que éramos solidários de um único impulso,
arrastados todos por uma mesma vaga . Se nosso tédio ou nossa
impaciência alongava a hora, se a alegria abreviava o dia, a vida
impessoal, a vida dos outros nos reconduzia à j usta apreciação
da Duração. Bastava colocarmo-nos diante de uma experiência
simples - um torrão de açúcar que se dissolve num copo de
água - para compreendermos que, a nosso sentimento da dura­
ção, correspondia uma duração objetiva e absoluta . O bergso­
nismo pretendia aqui, portanto, alcançar o donúnio da medida,
sempre conservando a evidência da intuição íntima . Tínhamos
em nossa alma uma comunicação imediata com a qualidade tem­
poral do ser, com a essência de seu devir, mas o reino da quan­
tidade do tempo, por indiretos que sejam nossos meios de estu-

30
O INSTANTE

dá-lo, era a salvaguarda da objetividade do devir.Tudo, portanto,


parecia salvaguardar a prirnitividade da Duração: a evidência in­
tuitiva e as provas discursivas.
Eis, agora, como nossa própria confiança na tese bergsonia­
na se abalou .

Despertamos d e nossos sonhos dogmáticos pela crítica eins­


teiniana da duração objetiva .
Bem depressa nos pareceu evidente que essa crítica destruiu
o absoluto daquilo que dura, ao mesmo tempo em que conser­
vava , como veremos, o absoluto daquilo que é - vale dizer, o
absoluto do instante.
O que o pensamento de Einstein chama de relatividade é
o lapso de tempo, é o "comprimento" do tempo. Esse compri­
mento se revela relativo a seu método de medição. Diz-se que,
fazendo uma viagem de ida e volta no espaço a uma velocidade
alta o bastante, reencontraríamos a Terra envelhecida alguns sé­
culos, ao passo que teríamos marcado apenas algumas horas no
relógio que levamos na viagem. Bem menos longa seria a via­
gem necessária para aj ustar à nossa impaciência o tempo que
Bergson postula como fixo e necessário para dissolver o torrão
de açúcar no copo de águ a .
Aliás, cabe sublinhar desde logo que n ã o s e trata aqui d e j o­
gos vãos de cálculo. A relatividade do lapso de tempo para siste­
mas em movimento é, doravante, um dado científico. Se pensás­
semos ter o direito de recusar a esse respeito a lição da ciência,
teríamos de permitir-nos duvidar da intervenção das condições
fisicas na experiência da dissolução do açúcar e da interferência
efetiva do tempo nas variáveis experimentais. Por exemplo, to­
dos concordam que essa experiência de dissolução põe em jogo
a temperatura? Pois bem, para a ciência moderna, ela põe igual-

31
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE

mente em j ogo a relatividade do tempo. Não se leva a ciência


parcialmente em conta, é preciso tomá-la por inteiro.
Assim, pois, subitamente, com a relatividade, tudo que di­
zia respeito às provas externas de uma Duração única, princí­
pio claro de ordenação dos acontecimentos, se via arruinado.
O Metafísico devia debruçar-se sobre seu tempo local, fechar­
-se e m sua própria duração íntima . O mundo não oferecia -
ao menos imediatamente - garantia de convergência para nossas
durações individuais, vividas na intilll.i dade da consciência.
Eis, porém, o que merece agora ser observado: o instante, es­
tabelecido com bastante precisão, permanece, na doutrina de Einstein,
um absoluto. Para conferir-lhe esse valor de absoluto, basta con­

siderar o instante em seu estado sintético, como um ponto do


espaço-tempo. Nou tras palavras, é preciso tomar o ser como
uma síntese apoiada simultaneamente no espaço e no tempo.
Ele é o ponto de encontro do lugar e do presente: hic et IHittc,
não aqui e amanhã nem ali e hoje. Nessas duas últimas fórmu­
las, o ponto se dilataria num eixo das durações ou num eixo do
espaço; essas fórmulas, subtraindo-se por um lado a uma sínte­
se precisa, ensej ariam um estudo inteiramente relativo da dura­
ção e do espaço. Mas, desde que se concorde em soldar e fundir
os dois advérbios, eis que o verbo ser recebe enfim sua potência
de absoluto.
Neste exato lugar e neste exato momento, eis onde a simul­
taneidade é clara, evidente, precisa; eis onde a sucessão se ordena
sem esmorecimento e sem obscuridade. A pretensão de tomar
como clara em si a simultaneidade de dois acontecimentos lo­
calizados em pontos diferentes do espaço é refutada pela dou­
trina de Einstein . Seria necessária, para estabelecer essa simulta­
neidade, uma experiência na qual pudéssemos fundar-nos sobre
o éter fixo. O fracasso de Michelson proíbe-nos a esperança de
realizar essa experiência . Cumpre, pois, difinir illdiretamettte a si-

32
O INSTANTE

multa neidade em dois lugares diversos e, por consequência, aj us­


ta r a medida da duração que separa instantes diferentes a essa
d efin ição sempre relativa da simultaneidade. Não há concomi­
tância assegurada que não se acompanhe de uma coincidência.
Voltamos, assim, à nossa incursão no donúnio do fenômeno
com essa convicção de que a duração só se aglomera de mo­
do artificial, numa atmosfera de convenções e definições pré­
vias, e de que sua unidade vem somente da generalidade e da
preguiça de nosso exame. Ao contrário, o instante revela-se sus­
cetível de precisão e objetividade; sentimos nele a marca da fi­
xidez e do absoluto.
Vamos, então, fazer do instante o centro de condensação ao
redor do qual colocaríamos uma duração evanescente, exatamen­
te o que falta de contínuo para pôr um átomo de tempo iso­
lado em relevo sobre o nada e para dar à cavidade do Nada suas
duas figuras falazes, conforme se olhe em direção ao passado ou
se volte na direção do futuro?
Essa foi - antes de adotar enfim, sem compromisso algum,
o ponto de vista claramente distinto de Roupnel - nossa últi­
ma tentativa .
Digamos, pois, a razão que consumou nossa conversão.

Quando ainda tínhamos fé na duração bergsoniana e, para


estudá-la, nos empenhávamos em depurá-la e, por conseguinte,
em despojá-la do dado, nossos esforços deparavam sempre com
o mesmo obstáculo : nunca consegu íamos vencer o caráter de
pródiga heterogeneidade da duração. Naturalmente, acusávamos
apenas nossa inaptidão para meditar, para nos desprender do aci­
dental e da novidade que nos assaltavam. Nunca conseguíamos
perder-nos o suficiente para tornar a nos achar, nunca lográva­
mos alcançar e seguir esse fluxo uniforme no qual a duração
desenrolava uma história sem histórias, uma incidência sem in-

33
A INTUIÇAO DO INSTANTE

cidentes. Teríamos preferido um devir que fosse um voa num


céu límpido, voa que não deslocasse nada, ao qual nada se opu­
sesse, o impulso no vazio - em suma, o devir em sua pureza e
simplicidade, o devi r em sua solidão. Quantas vezes procuramos
no devir elementos tão claros e tão coerentes quanto aqueles
que Spinoza colhia na meditação do ser!
Mas, ante nossa impotência para encontrar em nós mesmos
essas grandes linhas uniformes, esses grandes traços simples pe­
los quais o impulso vital deve desenhar o devir, éramos levados,
natu ralmente, a buscar a homogeneidade da duração limitando­
-nos a fragmentos cada vez menos extensos. Mas era sempre o
mesmo fracasso: a duração não se limitava a durar, ela vivia ! Por
pequeno que fosse o fragmento considerado, um exame micros­
cópico bastava para ler nele uma multiplicidade de aconteci­
mentos: sempre os bordados, jamais o pano ; sempre as sombras
e reflexos no espelho movediço do rio,jamais o fluxo límpido.
A duração, como a substância, só nos envia fantasmas . Duração
e substância desempenham mesmo, uma em relação à outra, nu­
ma recíproca desesperadora, a fabula do enganador enganado :
o devir é o fenômeno da substância, a substância é o fenômeno
do devir.
Por que, então, não aceitar, como metafisicamente mais pru­
dente, igualar o tempo ao acidente, o que equ ivale a igualar o
tempo a seu fenômeno? O tempo só se observa pelos insta ntes;
a duração - veremos como - só é sentida pelos instantes. Ela
é uma poeira de instantes, ou melhor, um grupo de pontos que
umfenômetw de perspectiva solidariza de forma mais ou menos
estreita . 1'

" Guyau já dizia, de um ponto de vista, é verdade, mais psicológico que o nos­
so: " A ideia do tempo [ . . . J se reduz a um efeito de perspectiva" (LA J!Cuesc de
l'idée du temps, Prefacio).

34
O INSTANTE

Porque se percebe bem que agora é preciso descer até os


p on tos temporais sem nenhuma dimensão individual. A linha
qu e reú ne os pontos e esquematiza a duração não passa de uma
fu n ção panorâmica e retrospectiva, cujo caráter subj etivo indi­
re to e secundário mostraremos a seguir.
Sem querer desenvolver longamente provas psicológicas, in­
diquemos simplesmente o caráter psicológico do problema.Aper­
cebamo-nos, pois, de que a experiência imediata do tempo não
é a experiência tão fugaz, tão dificil, tão complexa da duração,
mas a experiência displicente do instante, apreendido sempre
como imóvel . Tudo quanto é simples, tudo quanto é forte em
nós, tudo quanto é duradouro mesmo, é o dom de um instante.
Para combater desde já no terreno mais dificil, sublinhemos,
por exemplo, que a lembrança da duração está entre as lembran­
ças menos duradouras. Lembramo-nos de ter sido - não, porém,
de ter durado. A distância no tempo deforma a perspectiva do
comprimento, porque a duração depende sempre de um ponto
de vista . Aliás, o que é a lembrança pura da filosofia bergsoniana
senão uma imagem tomada em seu isolamento? Se tivéssemos
tempo, numa obra mais longa, para estudar o problema da loca­
lização temporal das lembranças, não teríamos dificuldade em
mostrar como elas se situam mal, como encontram artificial­
mente uma ordem em nossa história íntima . Todo o excelente
livro de Halbwachs sobre "os quadros sociais da memória" nos
provaria que nossa meditação não dispõe de uma trama psico­
lógica sólida, esqueleto da duração morta, em que pudéssemos,
naturalmente, psicologicamente, na solidão de nossa própria
consciência, fixar o lugar da lembrança evocada . No fundo, te­
mos necessidade de aprender e reaprender nossa própria cro­
nologia , e para este estudo recorremos aos quadros sinóticos,
verdadeiros resumos das coincidências mais acidentais. É assim

35
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE

que, no mais humilde dos corações, vem i nscrever-se a história


dos reis. Conheceriamos mal nossa própria história, ou pelo me­
nos nossa própria história estaria cheia de anacronismos, se fôs­
semos menos atentos à História contemporânea . É pela eleição
tão insignificante quanto a de um presidente da República que
localizamos com rapidez e precisão uma dada lembrança ínti­
ma - não será isso a prova de que não conservamos o menor
vestígio das durações defuntas? A memória, guardiã do tempo,
guarda apenas o instante; ela não cdhserva nada, absolutamente
nada, de nossa sensação complicada e factícia que é a duração.
A psicologia da vontade e da atenção - essa vontade da in­
teligência - prepara-nos igualmente para admitir como hipó­
tese de trabalho a concepção roupneliana do instante sem du­
ração. Nessa psicologia, é já bem certo que a duração só pode
in tervir indiretamente; vê-se com toda facilidade que ela não
é uma condição primordial: com a duração, pode-se talvez me­
dir a espera, mas não a própria atenção, que recebe todo seu
valor de intensidade num único instante.
Esse problema da atenção apresentou-se naturalmente no
mesmo nível das meditações que desenvolvemos a propósito da
duração. De fato, visto que pessoalmente não podíamos fixar
por muito tempo nossa atenção nesse nada ideal que representa
o eu despojado, devíamos ser tentados a fragmentar a duração
ao ritmo de nossos atos de atenção. Ainda aqui, diante do míni­
mo de imprevisto, tentando reencontrar o reino da intimidade
nua e crua, perceberiamos de repente que essa atenção em nós
mesmos trazia, por seu próprio funcionamento, aquelas delicio­
sas e frágeis novidades de um pensamento sem história, de um
pensamento sem pensamentos. Esse pensamento inteiramente
encerrado no cogito cartesiano não dura . Ele só tem a evidência
de seu caráter instantâneo; só toma uma consciência clara de si

36
O INSTANTE

mes m o porque é vazio e solitário. Então ele aguarda, numa du­


ração que é apenas um nada de pensamento e, por conseguinte,
u m nada efetivo, o ataque do mundo. O mundo lhe traz um
conhecimento, e é ainda num instante fecundo que a consciên­
cia atenta será enriquecida por um conhecimento obj etivo.
Aliás, como a atenção tem a necessidade e o poder de se re­
tomar, ela está, em essência, inteiramente em suas retomadas. A
atenção é também uma série de começos, é feita dos renasci­
mentos do espírito que regressa à consciência quando o tempo
marca instantes. Além disso, se levássemos nosso exame àquele
estreito domínio em que a atenção se torna decisão, veríamos
o que há de fulgurante numa vontade em que vêm convergir
a evidência dos motivos e a alegria do ato. Seria então que po­
deríamos falar de condições propriamente instantâneas. Essas
condições são rigorosamente preliminares, ou melhor, pré-ini­
ciais, por serem anteriores ao que os geômetras chamam de con­
dições iniciais do movimento. E é nisso que elas são metafisica­
mente, e não abstratamente, instantâneas. Contemplando o gato
de tocaia, vereis o instante do mal inscrever-se no real, ao passo
que um bergsoniano sempre vem a considerac a trajetória do
mal, por estrito que seja o exame que ele faz da duração. Sem
dúvida , o salto, ao se desencadear, desenrola uma duração de
acordo com as leis físicas e fisiológicas, leis que regulam con­
juntos complexos. Houve porém, antes do processo complicado
do impulso, o instante simples e criminoso da decisão.
De resto, se voltarmos essa atenção para o espetáculo que
nos cerca, se, em vez de atenção ao pensamento íntimo, nós a
tomarmos como atenção à vida , perceberemos imediatamente
q ue ela nasce sempre de uma coincidência. A coincidência é o
mínimo de novidade necessário para fixar nosso espírito. Não
p oderíamos dar atenção a um processo de desenvolvimento no

37
A I NTU IÇAO DO I N STANTE

qual a duração fosse o único princípio de ordenação e diferencia­


ção dos acontecimentos. Requer-se o novo para que o pensa­
mento intervenha, requer-se o novo para que a consciência se
afirme e a vida progrida. Ora, em princípio a novidade é, evi­
dentemente, sempre instantânea.
Por fim, o que permitiria analisar melhor a psicologia da
vontade, da evidência, da atenção, é o ponto do espaço-tempo.
Infelizmente, para que essa análise se tornasse clara e compro­
batória, seria preciso que a linguageftl filosófica, ou mesmo a
linguagem comum, tivesse assimilado as doutrinas da Relativi­
dade. Sente-se desde logo que essa assimilação começou , mas
está longe de ter acabado. Acreditamos, contudo, que é nesse
caminho que se poderá realizar a fusão do atomismo espacial
com o atomismo temporal . Quanto mais íntima for essa fusão,
tanto mais se compreenderá o mérito da tese de Roupnel. É
assim que se apreenderá melhor seu caráter concreto. O comple­
xo espaço-tempo-consciência é o atomismo de tripla essência,
é a mônada afirmada em sua tripla solidão, sem comunicação
com as coisas, sem comunicação com o passado, sem comuni­
cação com as almas alheias.

Mas todos esses pressupostos vão parecer tanto mais frágeis


quanto têm contra si muitos dos hábitos de pensamento e ex­
pressão. Percebemos muito bem, aliás, que a convicção não será
suplantada repentinamente e que o terreno psicológico pode
afigurar-se, para muitos leitores, pouco propício a essas inves­
tigações metafísicas.
Que é que esperávamos ao acumular todas essas razões? Sim­
plesmente mostrar que, se necessário, aceitaríamos o combate
nos terrenos mais desfavoráveis. Mas a posição metafísica do pro­
blema é, no fim das contas, mais forte. É para lá que vamos agora

38
O INSTANTE

dirigir nossos esforços. Tomemos, pois, a tese em toda sua ni­


tidez. A intuição temporal de Roupnel afirma :

1 ) o caráter absolutamente descontínuo do tempo;


2) o caráter absolutamente puntiforme do instante.

A tese de Roupnel realiza, portanto, a aritmetização mais


completa e mais franca do tempo. A duração não passa de um
número cuja unidade é o instante.
Para mais clareza, enunciemos de novo, como corolário, a
negação do caráter realmente temporal e imedjato da duração.
Roupnel diz que "o Espaço e o Tempo só nos parecem infini­
tos quando não existem".7 Bacon já observara que "nada é mais
vasto que as coisas vazias" . Inspirando-nos nessas fórmulas, po­
demos dizer - sem deformar, queremos crer, o pensamento de
Roupnel - que somente o nada é realmeute contíuuo.

IV
Ao escrever essa fórmula, bem sabemos que réplica vamos sus­
citar. Dir-nos-ão que o nada do tempo é precisamente o inter­
valo que separa os instantes verdadeiramente marcados por acon­
tecimentos. Se necessário admitirão, para melhor nos derrotar,
que os acontecimentos têm nascimento i nstantâneo, que são
mesmo, se necessário, instantâneos, mas reivindicarão um inter­
valo dotado de existência real para distinguir os instantes. Que­
rerão fazer-nos dizer que esse intervalo é verdadeiramente o
tempo, o tempo vazio, o tempo sem acontecimentos, o tempo
que dura, a duração que se prolonga, que se mede. Nós, porém,

7 Silor, p . 1 26.

39
A I NTU IÇÃO DO I N STANTE

nos obstinaremos em afirmar que o tempo nada é se nada acon­


tece, que a Eternidade antes da criação não tem sentido; que
o nada não se mede, que ele não pode ter uma grandeza .
Sem dúvida , nossa i ntuição do tempo totalmente aritme­
tizado opõe-se a uma tese comum, e por isso pode chocar-se
com as ideias comuns, mas convém que nossa intuição seja jul­
gada em si mesma . Ela pode parecer pobre, mas convém reco­
nhecer que até aqui, em seus desenvolvimentos, ela é coerente
consigo mesma .
Aliás, se introduzirmos um princípio que estabeleça um su­
cedâneo da medição do tempo, teremos, quero crer, virado uma
curva - a última, sem dúvida, onde a crítica nos espera .
Formulemos essa crítica tão brutalmente quanto possível .
Em sua tese, dir-nos-ão, você não pode aceitar uma medida
do tempo, tampouco uma divisão do tempo em partes alíquotas;
no entanto você diz, como todo mundo, que a hora dura ses­
senta minutos, que o minuto vale sessenta segundos. Acredita ,
pois, na duração. Não pode falar sem empregar todos os advér­
bios, todas as palavras que evocam o que dura, o que passa , o
que espera . Em sua discussão, você é forçado mesmo a dizer:
muito tempo, durante, enquanto. A duração está na gramática,
na morfologia, tanto quanto na sintaxe.
Sim, as palavras estão aí, antes do pensamento, antes de nos­
so esforço para renovar u m pensamento. Temos de nos servir
delas como são. Mas a função do filósofo não será a de defor­
mar o sentido das palavras o suficiente para extrair o abstrato
do concreto, para permitir ao pensamento evadir-se das coisas?
Não deve ele, como o poeta, "dar um sentido mais puro às pa­
lavras da tribo" {Mallarmé) ? E , se quiserem refletir no fato de
que todas as palavras que traduzem os caracteres temporais es­
tão implicadas em metáforas, já que tomam uma parte de seu

40
O INSTANTE

radical em aspectos espaciais, perceberão que no terreno polê­


mico não estaríamos desarmados e nos isentarão, sem dúvida,
dessa acusação de círculo vicioso verbal.
Mas o problema da medida permanece, e é evidentemente
aí que a crítica deve parecer decisiva; uma vez que se mede a du­
ração, é porque ela tem uma grandeza . Traz, portanto, o signo
claro de sua realidade.
Vejamos, então, se esse signo é realmente imediato. Tente­
mos mostrar como, a nosso ver, deveria colocar-se, na intuição
roupneliana, a apreciação da duração.

Que é, pois, que confere ao tempo sua aparência de conti­


nuidade? É o fato de podermos, segundo parece, impondo um
corte onde quisermos, designar um fenômeno que ilustra o ins­
tante arbitrariamente designado. Teríamos assim a certeza de que
nosso ato de conhecimento está entregue a u ma plena liber­
dade de exame. Noutras palavras, pretendemos colocar nossos
atos de liberdade numa linha contínua, pois a qualquer momento
podemos experimentar a eficácia de nossos atos. De tudo isso temos
certeza, mas de nada mais que isso.
Vamos exprimir o mesmo pensamento numa linguagem al­
go diferente, que à primeira vista, aliás, deve parecer sinônima
da primeira expressão. Diremos assim: todas as vezes que quisermos,
poderemos experimentar a eficácia de nossos atos.
Eis, agora, uma objeção. Será que o primeiro modo de nos
exprimir não supõe tacitamente a continuidade de nosso ser,
e não será essa continuidade suposta como evidente que trans­
portamos para a conta da duração? Mas que garantia temos, en­
tão, da continuidade assim atribuída a nós mesmos? Bastaria que
o ritmo de nosso ser desconexo correspondesse a um ritmo do
Cosmos para que nosso exame tivesse êxito a cada passo ; ou ,

41
A INTU IÇAO DO INSTANTE

mais simplesmente, para provar a arbitrariedade de nosso corte,


bastaria que nossa ocasião de ação íntima correspondesse a u ma
ocasião do universo, em suma, que uma coincidência se afirmas­
se num ponto do espaço-tempo-consciência. Assim, e tal é nos­
so argu mento maior, todas as vezes nos parece, pois, na tese do
tempo descontínuo, o sinônimo exato da palavra sempre tomada
na tese do tempo contínuo. Se nos permitirem essa tradução,
toda a linguagem do contínuo nos será entregue. pelo uso des-
sa chave. �

A vida, aliás, coloca à nossa disposição uma riqueza tão pro­


digiosa de instantes que, em face da percepção que temos deles,
ela parece bem indefinida. Apercebemo-nos de que poderíamos
gastar muito mais, donde a crença de que poderíamos gastar sem
contar. É aí que reside nossa impressão de continuidade íntima .
Quando compreendemos a importância de uma concomi­
tância que se exprime por um acordo de instantes, a interpreta­
ção do sincronismo torna-se evidente na hipótese do descon­
tínuo roupneliano, e também aqui se deve traçar um paralelo
entre as intuições dt: Bergson e as de Roupnel :
Dois fenômenos serão sincrônicos, dirá o filósofo bergso­
niano, se estiverem sempre de acordo. Trata-se de aj ustar os de­
vires e as ações.
Dois fenômenos serão si ncrônicos, dirá o filósofo roupne­
liano, se, todas as vezes em que o primeiro estiver presente, o
segu ndo estiver igualmente. Trata-se de aj ustar as retomadas e
os atos.
Qual é a fórmula mais prudente?
Dizer, com Bergson, que o sincronismo corresponde a dois
desenvolvimentos paralelos é ultrapassar um pouco as provas
obj etivas, é estender o domínio de nossa verificação. Recusa­
mos essa extrapolação metafisica que afirma um contínuo em si,

42
O INSTANTE

e mb ora estejamos, sempre, somente diante do descontínuo de


no ssa experiência . O sincronismo aparece, então, sempre numa
nu m eração concordante dos instantes eficazes,jamais como me­
dida, de algu m tipo geométrico, de uma duração contínua.

Neste ponto, é provável que nos interrompam com outra


objeção : mesmo admitindo que o fenômeno de conj u nto se­
ja suscetível de exame sobre o exato esquema temporal da to­
mada cinematográfica, você não pode ignorar, dir-nos-ão, que
na realidade uma divisão do tempo permanece sempre possível,
ou mesmo desej ável , se quisermos seguir o desenvolvimento do
fenômeno em todas as suas sinuosidades; e citar-nos-ão um ul­
tracinematógrafo que descreve o devir por dez milésimos de
segu ndo. Por que, então, seríamos interrompidos na divisão do
tempo?
A razão pela qual nossos adversários postulam u ma divisão
sem termo é que eles sempre colocam seu exame no nível de
uma vida de conj unto, resumida na curva do impulso vital . Co­
mo vivemos uma duração que parece contínua a um exame ma­
croscópico, somos levados, pelo exame dos detalhes, a considerar
a duração em frações sempre menores das unidades que esco­
lhemos.
Mas o problema mudaria de sentido se considerássemos a
construção real do tempo a partir dos i nstantes, em vez da di­
visão do tempo, sempre factícia, a partir da duração. Veríamos
então que o tempo, longe de dividir-se no esquema do fraciona­
mento de um contínuo, se multiplica no esquema das corres­
pondências numéricas .
Aliás, a palavra_fração já é ambígua . A nosso ver, seria preciso
evocar aqui a teoria da fração tal como Couturat a resumiu. Uma
fraç ão é o agrupamento de dois números inteiros no qual o de-

43
A INTU IÇAO DO INSTANTE

nominador não divide verdadeiramente o numerador. Entre os


partidários do contínuo temporal e nós, sob esse aspecto aritmé­
tico do problema , a diferença é a seguinte: nossos adversários
partem do numerador, que tomam como uma quantidade ho­
mogênea e contínua - e sobretudo como uma quantidade dada
imediatamente - para as necessidades da análise; dividem esse
"dado" pelo denominador, que desse modo é entregue à arbitra­
riedade do exame, arbitrariedade tanto maior quanto mais fino
é o exame; eles poderiam mesmo rêtear "dissolver" a duração
se levassem longe demais a análise infinitesimal .
Nós, ao contrário, partimos do denominador, que é a mar­
ca da riqueza de instantes do fenômeno, base da comparação;
ele é conhecido naturalmente com mais finura - sustentamos,
com efeito, que seria absurdo ter menos finura no aparelho de
medição que no fenômeno a medir. Com base nisso, pergunta­
mos então quantas vezes, a esse fenômeno fina mente escandido,
corresponde uma atualização de um fenômeno mais indolente;
os êxitos do sincronismo nos dão, enfim, o numerador da fração.
As duas frações assim constituídas podem ter o mesmo va­
lor. Mas não são construídas da mesma maneira .

Entendemos decerto a objeção tácita : para fixar a conta dos


êxitos, não será necessário que um misterioso maestro marque
o compasso fora e acima dos dois ritmos comparados? Noutras
palavras, não é de temer, dir-nos-ão, que sua análise utilize ta­
citamente a palavra enquanto, que você não pronunciou ? Toda
a dificuldade da tese roupneliana está , com efeito, em evitar as
palavras tiradas da psicologia usual da duração. Mas, ainda uma
vez, se quisermos exercitar-nos em meditação indo do fenôme­
no rico em instantes para o fenômeno pobre em instantes - do
denominador para o numerador -, e não o inverso, perceberemos

44
O INSTANTE

que se pode prescindir não só das palavras que suscitam a ideia


de duração, o que seria apenas um sucesso verbal, mas, enfim,
da ideia da própria duração, o que prova que nesse donúnio, no
qual reinava como senhora, ela só pode ser empregada como
serva .
Mas, para maior clareza, tracemos um esquema da corres­
pondência; depois, sobre esse esquema, façamos as duas leituras,
aquela em linguagem de duração e aquela em linguagem de
i nstantes, sempre permanece11do, para essa dupla leitura, na tese roup­
neliana.
Suponhamos que o fenômeno macroscópico sej a represen­
tado pela primeira linha de pontos:

1)

Colocamos esses pontos sem nos preocuparmos com o in­


tervalo porque, para nós, não é aí que a duração assume seu sen­
tido, ou seu esquema, visto que para nós o intervalo contínuo
é o nada , e o nada, naturalmente, não tem mais "comprimen­
to" que duração.
Suponhamos que o fenômeno mais finamente escandido
seja representado, sempre com as mesmas ressalvas, pela segun­
da linha de pontos:

2)

Comparemos os dois esquemas.


Se lermos, à maneira dos partidários do contínuo, de cima
para baixo - leitura roupneliana, porém -, diremos que, enquan­
to o fenômeno 1 se produz uma vez, o fenômeno 2 se produz
três vezes. Apelaremos para uma duração que domina as séries,

45
A I NTU IÇAO DO INSTANTE

duração na qual nossa palavra enquanto assume sentido, o qual


se esclarecerá em donúnios cada vez mais grosseiros, como aque­
les do minuto, da hora, do dia . . .
Se, a o contrário, lermos o sincronismo à maneira dos par­
tidários absolutos do descontínuo, de baixo para cima, diremos
que, uma vez em cada três, aos fenômenos de aparições numero­
sas (fenômenos que são os mais próximos do tempo real) cor­
responde um fenômeno de tempo macroscópico.
As duas leituras são no fundo e q uivalentes, mas a primeira
é um pouco figurada demais, e a segunda está mais próxima do
texto primitivo.
Esclareçamos nosso pensamento por uma metáfora. Na or­
questra do mundo, há instrumentos que se calam com frequên­
cia, mas é falso dizer que sempre há um instrumento tocando.
O mundo é regulado por um compasso musical imposto pela
cadência dos instantes. Se pudéssemos ouvir todos os i nstantes
da realidade, compreenderíamos que não é a colcheia que é fei­
ta com fragmentos da mínima, mas é a núnima que repete a col­
cheia. É dessa repetição que nasce a impressão de continuidade.
Compreende-se, pois, que a riqueza relativa em instantes nos
prepara uma espécie de medida relativa do tempo. Para poder
fazer a conta exata de nossa fortuna temporal, medir, em suma,
tudo que se repete em nós mesmos, seria preciso viver efetiva­
mente todos os instantes do Tempo. É nessa totalidade que se
obteria o verdadeiro desdobramento do tempo descontínuo, e
é na monotonia da repetição que se reencontraria a impressão
da duração vazia e, por conseguinte, pura. Fundado numa com­
paração numérica com a totalidade dos instantes, o conceito de
riqueza temporal de uma vida ou de um fenômeno particulares
assumiria, então, sentido absoluto, segundo a maneira pela qual
essa riqueza é utilizada, ou, antes, segundo a maneira pela qual ela

46
O INSTANTE

n ã o al cança sua realização. Mas, como essa base absoluta nos é


rec usa da , devemos contentar-nos com balanços relativos.
Eis, portanto, que se prepara uma concepção da duração­
-ri qu eza que deve prestar os mesmos serviços que a duração-
-ext ensão. Pode-se ver que ela leva em conta não apenas os fatos,
mas também, e sobretudo, as ilusões - o que, psicologicamente
falando, é de u ma importância decisiva, porque a vida do espí­
rito é ilusão antes de ser pensamento. Compreendemos tam­
bém que nossas ilusões constantes, incessantemente reencontra­
das,já não são ilusão pura e que, ao meditar em nosso erro, nos
aproximamos da verdade. La Fontaine tem razão quando nos fa­
la das ilusões "que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre".
O duro rigor das metafisicas científicas pode então se des­
contrair, e podemos retornar às margens de Siloé, onde se re­
conciliam, completando-se, o espírito e o coração. O que f.1 Z
o caráter afetivo da duração, a alegria ou a dor de ser, é a pro­
porção ou a desproporção das horas de vida utilizadas como
hora de pensamento ou como hora de simpatia. A matéria des­
cura de ser, a vida descura de viver, o coração descura de amar.
É dormindo que perdemos o paraíso. Sigamos agora a perspec­
tiva de nossa indolência: o átomo irradia e existe com frequên­
cia, utiliza u m grande número de instantes, porém não utiliza
todos os instantes.Já a célula viva é mais avara de seus esforços,
utiliza somente uma fração das possibilidades temporais que lhe
são entregues pelos átomos que a constituem. Quanto ao pen­
samento, é por lampejos irregulares que ele utiliza a vida . Três
filtragens através das quais muito poucos instantes vêm à cons­
ciência ! Sentimos então um surdo sofrimento quando saímos
em busca dos insta11tes perdidos. Lembramo-nos daquelas horas ri­
cas que se marcam ao compasso dos mil sons dos sinos de Pás­
coa, desses sinos da ressurreição cujas batidas não se contam por-

47
A INTU IÇAO DO INSTANTE

que todas elas contam, porque cada qual tem um eco em nossa
alma desperta. E essa lembrança de alegria é já um remorso quan­
do comparamos, a essas horas de vida total, as horas intelectual­
mente lentas porque relativamente pobres, as horas mortas por­
que vazias - vazias de desígnio, como dizia Carlyle do fundo
de sua tristeza -, as horas hostis intermináveis porque nada dão.
E sonhamos com uma hora divina que daria tudo. Não a
hora plena, mas a hora completa. A hora em que todos os instantes
do tempo seriam u tilizados pela m:Héria, a hora em que todos
os instantes realizados na matéria seriam utilizados pela vida, a
hora em que todos os instantes vividos seriam sentidos, ama­
dos, pensados. A hora , por conseguinte, em que a relatividade
da consciência seria apagada, porque a consciência seria a exata
medida do tempo completo.
Finalmente, o tempo objetivo é o tempo máximo; é aquele que
contém todos os instantes. Ele é feito do conj unto denso dos
atos do Criador.

v
Restaria agora explicar o caráter vetorial da duração, indicar o
que faz a direção do tempo, em quê uma perspectiva de ins­
tantes desaparecidos pode chamar-se passado, em quê uma pers­
pectiva de espera pode chamar-se futuro.
Se pudemos compreender a significação primordial da in­
tuição proposta por Roupnel, devemos estar prontos para ad­
mitir que o passado e o futuro - como a duração - correspon­
dem a impressões essencialmente segundas e indiretas. Passado
e futuro não tocam a essência do ser, e muito menos a essência
primeira do Tempo. Para Roupnel, convém repetir, o Tempo é
o instante, e é o instante presente que tem toda a carga tempo-

48
O INSTANTE

ral . O passado é tão vazio quanto o futuro. O futuro está tão


mo rto quanto o passado. O instante não contém uma duração
e m seu seio, não impele uma força num sentido ou noutro. Ele
não tem duas faces, é inteiro e único. Por mais que lhe medi­
temos a essência, não encontraremos nele a raiz de uma dua­
lidade suficiente e necessária para pensar uma direção.
Aliás, quando se quer, sob a inspiração de Roupnel, exerci­
tar-se na meditação do I nstante, percebe-se que o presente não
passa, porque só se sai de um instante para reencontrar outro;
a consciência é consciência do instante, e a consciência do ins­
tante é consciência - duas fórmulas tão vizinhas que nos colo­
cam na mais próxima das recíprocas e afirmam uma assimilação
da consciência pura e da realidade temporal . Uma vez encer­
rada numa meditação solitária, a consciência tem a imobilidade
do instante isolado.
É encerrado no isolamento do instante que o tempo pode
receber uma homogeneidade pobre, mas pura . Essa homoge­
neidade do instante, de resto, nada prova contra a anisotropia
que resulta dos agrupamentos que permitem reencontrar a in­
dividualidade das durações, tão bem assinalada por Bergson .
Noutras palavras, como n o próprio instante nada h á que nos
permita postular uma duração, pois j á não há nada que possa
explicar imediatamente a razão de nossa experiência - que, no
entanto, é real - daquilo que chamamos de passado e futuro,
cumpre-nos tentar construir a perspectiva dos instantes que de­
signa apenas o passado e o futuro.
Ora, quando se escuta a sinfonia dos instantes, sentem-se as
frases que morrem, as frases que tombam e são arrastadas em
direção ao passado. Mas essa fuga para o passado, pelo fato mes­
mo de ser uma aparência segunda, é toda relativa . Um ritmo
extingue-se relativamente a outra partitura da sinfonia que con-

49
A I NTU IÇAO DO I N STANTE

tinua. Poderíamos representar bastante bem esse decréscimo re­


lativo pelo seguinte esquema :

Três por cinco torna-se dois por cinco, depois um por cin­
co, depois é o silêncio de um ente q '\e nos deixa , enquanto em
derredor o mundo continua a ressoar.
Com esse esquema , compreende-se o que existe de poten­
cial e ao mesmo tempo relativo no que chamamos, sem lhe es­
pecificar os limites, de hora presente. Um ritmo que continua
inalterado é um presente que tem uma duração; esse presente
que dura compõe-se de múltiplos instantes que, de um ponto
de vista particular, apresentam perfeita monotonia. É de tais mo­
notonias que são feitos os sentimentos duradouros que deter­
minam a individualidade de uma alma particular. A unificação
pode estabelecer-se em meio a circunstâncias bem diversas. Pa­
ra quem continua a amar, um amor defunto é ao mesmo tempo
presente e passado ; é presente para o coração fiel, é passado para
o coração sofrido. É, pois, sofrimento e reconforto para o cora­
ção que aceita ao mesmo tempo o sofrimento e a recordação.
Chega-se mesmo a dizer que um amor permanente, sign o de
uma alma duradoura, é algo diverso de sofrimento e felicidade
e que, transcendendo a contradição afetiva, um sentimento que
dura assume um sentido metafisico. Uma alma amante experi­
menta efetivamente a solidariedade dos instantes repetidos com
regularidade. Reciprocamente, um ritmo uniforme de instantes
é uma forma a priori de simpatia.
Um esquema inverso ao primeiro esquema nos representa­
ria um ritmo que nasce e nos daria os elementos da medida re-

50
O IN STANTE

!a tiva de seu progresso. O ouvido musical escuta o destino da


melo dia, sabe como terminará a frase começada . Nós pré-ouvi­
mos o futuro do som como prevemos o futuro de uma traj etó­
ria . Voltamos todas as nossas forças para o futuro imediato, e é
essa tensão que faz nossa duração atual. Como diz Guyau, é nos­
sa intenção que ordena verdadeiramente o futuro como uma
perspectiva da qual somos o centro de projeção. "É preciso de­
sejar, é preciso querer, é preciso estender a mão e caminhar para
criar o futuro. O futuro não é aquilo que vem em nossa direção,
mas aquilo em direção ao qual nos dirigimos."K O sentido e o alc:m­
ce do fu turo estão inscritos no próprio presente.
Assim , construímos tanto no tempo como no espaço. Há
aqui uma persistência metafórica que teremos de esclarecer. Re­
conheceremos então que a lembrança do passado e a previsão
do futuro se fundam em hábitos . E, como o passado não passa
de uma lembrança e o futuro nada mais é que u ma previsão,
afirmaremos que passado e futuro são apenas, no fundo, hábitos .
Esses hábitos estão longe de ser imediatos e precoces. Enfim, os
caracteres que fazem com que o Tempo nos pareça durar, co­
mo aqueles que fazem com que o Tempo se delineie segu ndo
as perspectivas do passado e do futuro, não são, a nosso ver, pro­
priedades de primeiro aspecto. O filósofo deve reconstruí-los
apoiando-se unicamente na realidade temporal dada imediata­
mente ao Pensamento, na realidade do Instante.
Veremos que é nesse ponto que se condensam todas as difi­
culdades de Siloe. Mas essas dificuldades podem provir das ideias
preconcebidas do leitor. Se segurarmos fortemente as duas pon­
tas da corrente que vamos fixar, compreenderemos melhor, em
seguida, o encadeamento dos argumentos. Eis, portanto, nossas

• Guya u , op. cit., p. 33.

51
A INTU IÇAO DO INSTANTE

duas conclusões, aparentemente contrárias, que teremos de con­


ciliar:

1) A duração não tem força direta; o tempo real só existe verda­


deiramente pelo instante isolado, está inteiramente no atual,
no ato, no presente.
2) Entretanto, o ser é um lugar de ressonância para os ritmos
dos instantes e, como tal, poder-s� -ia dizer que ele tem um
passado como se diz que um eco tem uma voz. Mas esse pas­
sado não passa de um hábito presente, e esse estado presen­
te do passado é ainda uma metáfora. Com efeito, para nós
o hábito não está i nscrito numa matéria, num espaço. Só
pode tratar-se de um hábito todo sonoro que permanece,
queremos crer, essencialmente relativo. O hábito que, para
nós, é pensamento é demasiado aéreo para ser registrado,
demasiado imaterial para dormir na matéria. É um jogo que
continua, u ma frase musical que deve recomeçar porque faz
parte de uma sinfonia na qual desempenha um papel . Pe­
lo menos é assim que tentaremos solidarizar, pelo hábito, o
passado e o futuro. Naturalmente, do lado do futuro, o rit­
mo é menos sólido. Entre os dois nadas, ontem e amanhã,
não há simetria. O futuro não passa de um prelúdio, de uma
frase musical que avança e é ensaiada . Uma única frase. O
M undo só se prolonga por uma curtíssima preparação. Na
sinfonia que se cria, o futuro só é assegurado por uns poucos
compassos. Humanamente, a dissimetria do passado e do fu­
turo é radical . Em nós, o passado é uma voz que encontrou
um eco. Damos assim uma força ao que já não passa de uma
forma, ou melhor, damos uma forma única à pluralidade de
formas. Por essa síntese, o passado assume então o peso da
realidade. Porém o futuro, por tenso que seja nosso desejo,

52
O I NSTANTE

é uma perspectiva sem profundidade. Não tem verdadeira­


mente nenhum vínculo sólido com o real. Daí dizermos que
ele está no seio de Deus.

Tudo isso se esclarecerá, talvez, se pudermos resumir o se­


gundo tema da filosofia roupneliana . Falamos do hábito. Roup­
nel o estuda em primeiro lugar. Se subvertemos a ordem de
nosso exame, foi porque a negação absoluta da realidade do pas­
sado é o postulado tenúvel que cumpre admitir a princípio para
bem avaliar a dificuldade que há em assimilar as ideias correntes
sobre o hábito. Em suma, no capítulo seguinte nos pergu nta­
remos como se pode conciliar a psicologia usual do hábito com
uma tese que não reconhece no passado uma ação direta e ime­
diata sobre o instante presente.

VI
Todavia , antes de iniciar esse capítulo, poderíamos, se tal fosse
nosso objeto, procurar no donúnio da ciência contemporânea
razões para fortalecer a intuição do tempo descontínuo. Roup­
nel não deixou de traçar um paralelo entre sua tese e a descrição
moderna dos fenômenos de radiação na hipótese dos qum1 ta . �
No fundo, a contabilidade da energia atômica é feita empregan­
do-se mais a aritmética que a geometria . Essa contabilidade se
exprime mais com frequências que com durações, e a lingua­
gem em quantas vezes suplanta pouco a pouco a linguagem em
quanto tempo.
Aliás, no momento em que escrevia , Roupnel não podia
p rever toda a extensão que assumiriam as teses da descontinui-

• Cf. Si/"e, p. 1 2 1 .

53
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE

dade temporal , tais como foram apresentadas no Congresso do


I nstituto Solvay, em 1 927 . Se lermos também os trabalhos mo­
dernos sobre as estatísticas atômicas, veremos que há hesitação
em fixar o elemento fundamental dessas estatísticas. Que é que
se deve recensear: elétrons, quanta, grupos de energia? Onde co­
locar a raiz da individualidade? Não é absurdo remontar a uma
realidade temporal em si mesma para encontrar o elemento mo­
bilizado pelo acaso. Assim, um c �nceito estatístico dos instan­
tes fecundos, tomados cada qual em seu isolamento e em sua
independência, é concebível.
Haveria igualmente interessantes paralelos a traçar entre o
problema da existência positiva do átomo e sua manifestação
sempre instantânea . Em certos aspectos, interpretaríamos bas­
tante bem os fenômenos de radiação dizendo que o átomo só
existe no momento em que muda . Se acrescentarmos que es­
sa mudança se dá de maneira brusca, tenderemos a admitir que
todo o real se condensa no instante; deveríamos medir sua ener­
gia utilizando não velocidades, mas impulsões .
Por outro lado, mostrando-se a importância do i nstante no
acontecimento, far-se-ia ver tudo quanto há de frágil na obje­
ção, sempre evocada, do caráter dito real do "intervalo" que se­
para dois instantes. Para as concepções estatísticas do tempo, o
intervalo entre dois instantes é apenas um intervalo de proba­
bilidade; quanto mais seu nada se alonga, maior é a chance de
que um instante venha terminá-lo. É essa acentuação da chan­
ce que lhe mede a grandeza. A duração vazia, a duração pura
tem somente, então, uma grandeza de probabilidade. O átomo,
quando deixa de irradiar, passa a uma existência energética de
todo em todo virtual; não despende mais nada, a velocidade
de seus elétrons não usa nenhuma energia; não economiza tam­
pouco, nesse estado virtual, um potencial que ele poderia libe-

54
O I N STANTE

ra r ap ós um longo repouso. Na verdade, ele é apenas um brin­


q ue do abandonado; menos ainda, é apenas uma regra de jogo
in t eiram ente formal que organiza meras possibilidades. A exis­
tê n cia retornará ao átomo com a chance; noutras palavras, o áto­
mo receberá o dom de um instante fecundo, mas o receberá por
acaso, como u ma novidade essencial, de acordo com as leis do
cálculo das probabilidades, porque é preciso que cedo ou tarde
o Universo tenha, em todas as suas partes, a partilha da realida­

de temporal, porque o possível é uma tentação que o real sem­


pre acaba por aceitar.
Aliás, o acaso obriga sem vincular a uma necessidade absolu­
ta. Compreende-se, então, que o tempo que não tem efetiva­
mente uma ação real possa causar a ilusão de uma ação fatal . Se
muitas vezes um átomo permanece inativo enquanto os átomos
vizinhos irradiam, a vez de agir torna-se cada vez mais provável
para esse átomo há tempos adormecido e isolado. O repouso
aumenta a probabilidade da ação, ele não prepara realmente a
ação. A duração não age "à maneira de uma causa " , 10 mas à ma­
neira de um acaso. Aqui, ainda , o princípio de causalidade exprime­
-se melhor na linguagem da numeração dos atos que tw linguagem da
geometria das ações que duram.

Mas todas essas provas científicas estão fora da presente in­


vestigação. Se fõssemos desenvolvê-las, desviaríamos o leitor do
obj etivo visado. O que queremos empreender aqui , com efeito,
é apenas uma tarefa de libertação pela intuição. Como a intuição
do contínuo nos oprime com frequência, é indubitavelmente
útil interpretar as coisas com a intuição inversa . Não importa
o que se pense da força de nossas demonstrações, é inegável o

1" Uergso n , op. c i t . , p. 1 17 .

55
A INTU IÇAO DO INSTANTE

interesse que existe em multiplicar as intuições diferentes na


base da filosofia e da ciência. Nós mesmos ficamos surpresos,
lendo o livro de Roupnel, com a lição de independência intui­
tiva que se recebia ao se desenvolver uma intuição dificil. É pe­
la dialética das intuições que se pode lançar mão das intuições
sem risco de ser por elas ofuscado. A intuição do tempo descon­
tínuo, tomada no aspecto filosófico, ajuda o leitor que quer se­
guir, nos mais variados domínios �s ciências fisicas, a introdu­
ção das teses da descontinuidade. É o tempo que é mais dificil
de pensar sob forma descontínua. É, pois, a meditação dessa des­
continuidade temporal realizada pelo Instante isolado que nos
abrirá os caminhos mais diretos para uma pedagogia do descon­
tínuo.

56
C A P IT U L O 2

O p robl em a d o h ábito
e o tem p o d escontinu o

Toda alma é uma melodia que convém renovar.


MAllARMÉ

À primeira vista, como indicávamos, o problema do hábito pa­


rece insolúvel com base na tese temporal que acabamos de desen­
volver. De fato, negamos a persistência real do passado; mostra­
mos que o passado estava inteiramente morto quando o instante
novo afirmava o real . E eis que, em conformidade com a ideia
que se costuma fazer do hábito, seremos obrigados a resti tuir
ao hábito - esse legado de um passado defunto - a força que
confere ao ser uma figura estável sob o devir movente. Pode­
-se, pois, recear que estejamos enredados num impasse. Vamos
ver como, seguindo Roupnel com confiança nesse terreno di-

57
A I NTU IÇÃO DO I N STANTE

fiei!, poderemos reencontrar as grandes vias das intuições filo­


sóficas fecundas.
O próprio Roupnel indica o caráter de sua tarefa : "Cum­
pre-nos agora i nvestir o átomo das realidades que subtraímos
ao Espaço e ao Tempo e tirar partido dos despoj os arrancados
a esses dois espoliadores do Templo" . 1 É que, com efeito, o ata­
que dirigido à realidade atribuída ao espaço contínuo não é
menos vivo que o ataque que desfechamos contra a realidade
atribuída à duração, tomada como um cb ntínuo imediato. Para
Roupnel, o átomo tem propriedades espaciais da mesma sorte e
tão indiretamente quanto tem propriedades químicas. Noutras
palavras, o átomo não se substantifica tomando um pedaço de
espaço que seria assi m o vigamento do real - o que ele fa z é
apenas se expor no espaço. O plano do átomo só faz organizar
pontos separados, como seu devir organiza instantes isolados.
O espaço já não é senão o tempo que traz verdadeiramente as
forças de solidariedade do ser. O alhures não age mais sobre o
aqui do que o outrora age sobre o agora.
O ser que é visto de fora está duplamente bloqueado na so­
lidão do instante e do ponto. A essa solidão fisica redobrada se
acrescenta, como dissemos, a solidão da consciência quando
se tenta apreender o ser por dentro. Como não ver aí um fortale­
cimento das intuições leibnizianas? Leibniz negava a solidarie­
dade direta e ativa dos seres distribuídos no espaço. Por outro
lado, a harmonia preestabelecida supunha, no seio de cada mô­
nada, uma verdadeira continuidade, realizada pela ação de um
tempo universal e absoluto ao longo do qual se ilustrava a per­
feita concordância de todas as mônadas. Encontra-se em Síloe
uma negação suplementar, a da solidariedade direta do ser pre-

1 Silor, p. 1 27 .

58
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO

sen te com o ser passado. Mas, ainda uma vez, se essa solidarie­
da de dos i nstantes do tempo não é nem direta nem dada, se,
n o utros termos, não é a duração que liga imediatamente os ins­
ta n tes reunidos em grupos segundo certos princípios, torna-se
ma is n ecessário que nunca mostrar como u ma solidariedade
nã o direta, não temporal, se manifesta no devir do ser. Em suma,
temos de encontrar u m princípio para substituir a hipótese da
harmonia preestabelecida . É a isso que tendem, a nosso ver, as
teses roupnelianas a respeito do hábito.
Nosso problema será então mostrar, em primeiro lugar, que
o hábito ainda é concebível, mesmo quando o separamos de
seu apoio num passado postulado, de forma gratuita e errônea,
como diretamente eficaz. Em seguida teremos de mostrar que
esse hábito, definido agora na intuição dos instantes isolados,
explica ao mesmo tempo a permanência do ser e seu progresso.
Mas antes abramos um parêntese.

Se nossa posição é dificil, a de nossos adversários é, ao con­


trário, de espantosa facilidade.Vejamos, por exemplo, como tudo
é simples para o pensamento realista, para o pensamento que
"realiza" tudo. Primeiro, o ser é a substância, a substância que é
ao mesmo tempo, pela graça das definições, o suporte das qua­
lidades e o suporte do devir. O passado deixa um traço na ma­
téria; coloca, pois, um reflexo no presente; está , portanto, sem­
pre vivo materialmente. Se se fala do germe, o futuro aparece
como preparado materialmente com a mesma facilidade com
q ue a célula cerebral conserva a lembrança . Quanto ao hábito,
é escusado explicá-lo, visto que é ele que explica tudo. Basta
dizer que o cérebro é a reserva dos esquemas motores para com­
p reender que o hábito é um mecanismo colocado à disposição
do ser pelos esforços antigos. O hábito diferenciará, pois, a ma-

59
A INTU IÇAO DO INSTANTE

téria do ser, a ponto de organizar a solidariedade do passado e


do futuro. No fundo, qual é a palavra-força que esclarece toda es­
sa psicologia realista? É a palavra que traduz uma inscrição. Quan­
do se diz que o passado ou o hábito estão inscritos na matéria,
tudo está explicado - a questão deixou de existir.
D evemos ser mais exigentes para conosco. Uma inscrição,
a nosso ver, não explica nada. Formulemos i nicialmente nossas
obj eções contra a ação material do instante presente sobre os
i nstantes futuros, como aqueles que Ô germe seria suscetível de
exercer na transmissão das formas vitais. Como observa Roup­
nel, é sem dúvida

uma conveniência de linguagem particularmente facil investir o


germen de todas as promessas que o indivíduo realizará e depo­
sitar nele o patrimônio reunido dos hábitos que realizarão no ser
suas formas e funções. Mas, quando dizemos que o total desses
hábitos está contido no germen, temos de nos entender quanto ao
sentido da expressão, ou, antes, quanto ao valor da imagem . Nada
seria mais perigoso que imaginar o germen como um continente
cujo conteúdo seria um conjunto de propriedades. Essa associação
do abstrato e do concreto é impossível e, de resto, não explica
nada.2

É
curioso aproximar dessa crítica uma obj eção metafisica
apresentada por Koyré em sua análise do pensamento místico:

J Gostaríamos de insistir, contudo, na concepção do germe que se


� reencontra, oculta ou expressa, em toda doutrina organicista . A
i ideia do germe é, com efeito, um m ysterium. Ela concentra, por

z Op. c it . , p. 34.

60
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO

assim dizer, todas as particularidades do pensamento organicis­


ta. É uma verdadeira união dos contrários, ou mesmo dos con­
traditórios. O germe é, poderíamos dizer, o que não é . Ele já é
o que ainda não é, o que apenas será. E o é porque, do contrário,
não poderia vir a sê-lo. Não o é porque, do contrário, como vi­
ria a sê-lo? O germe é, ao mesmo tempo, a matéria que evolui e
a potência que a faz evoluir. O germe age sobre si mesmo. É uma
causa sui - se não a de seu ser, pelo menos a de seu desenvolvi­
mento. Parece que o entendimento não é capaz de apreender es­
se conceito: o círculo orgânico da vida, para a lógica linear, trans­
forma-se necessariamente num círculo vicioso.3

A razão dessa confusão cheia de contradições provém, sem


dúvida, de se haverem unido duas definições diferentes da subs­
tância que deve conter ao mesmo tempo o ser e o devir, o ins­
tante real e a duração-pensamento, o concreto e o construído,
ou , para dizê-lo melhor com Roupnel , o concreto e o abstrato.

Se na geração dos seres vivos - ainda que se possa conce­


ber um plano normativo - não se consegu e compreender cla­
ramente a ação do instante presente sobre os instantes futuros,
quão mais prudente se deveria ser quando se postula a inscri­
ção de mil acontecimentos confusos e baralhados do passado
na matéria encarregada de atualizar o tempo desaparecido !
Em primeiro lugar, por que a célula nervosa registraria cer­
tos acontecimentos e não outros? De maneira mais precisa , se
não há uma ação normativa ou estética, como pode o hábito
conservar uma regra e uma forma? No fundo, é sempre o mes­
mo debate. Os partidários da duração não deixam de multipli-

·' A. Koyré, Boclrmr, p. 1 3 1 .

61
A I N TU IÇAO DO I NSTA NTE

car e prolongar as ações temporais. Querem beneficiar-se, a um


tempo, da continuidade gradual da ação e da descontinuidade
de u ma ação que permaneceria latente e aguardaria, ao longo
da duração, o instante propício para renascer. Segundo eles, é
tanto durando quanto se repetindo que um hábito se reforça.
Os partidários do tempo descontínuo são antes impressionados
pela novidade dos instantes fecundos que conferem ao hábito
sua flexibilidade e sua eficácia; é sobretudo pelo ataque do há­
bito que eles gostariam de explicar süa função e sua persistên­
cia, assim como é o ataque do arco do violino que determina
o som que se segue. O hábito só pode u tilizar a energia se esta
se sucede segundo um ritmo particular. É talvez nesse sentido
que se pode interpretar a fórmula roupneliana : "A energia não
passa de u ma grande memória".4 Com efeito, ela só é utilizá­
vel pela memória, ela é a memória de um ritmo.
Para nós, o hábito é, portanto, sempre um ato restituído a
sua novidade; as consequências e o desenvolvimento desse ato
são e ntregu es a hábitos subalternos, sem dúvida menos ricos,
mas que despendem, também eles, energia própria obedecendo
a atos primeiros que os dominam. Samuel B utler já observava
que a memória é afetada principalmente por duas forças de ca­
ráter opostas, "a da novidade e a da rotina, pelos incidentes ou
obj etos que nos são ou os mais familiares, ou os menos fami­
liares" . 5 A nosso ver, diante dessas duas forças, o ser reage mais
sintética que dialeticamente, e de bom grado definiríamos o há­
bito como a assimilação rotineira de uma novidade. Mas, com
essa noção de rotina, não estamos introduzindo uma mecaniza­
ção inferior, o que nos exporia a uma acusação de círculo vi-

• Si/oi', p. 1 0.

5 13utler, La vie cl l 'l111bitudr, trad. Larbaud, p. 1 49.

62
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONT[NUO

ci os o. Não, pois intervém aqui uma questão de relatividade de


p o ntos de vista , e, quando se leva seu exame ao domínio da
ro tin a, percebe-se que ela se beneficia, da mesma sorte que os
háb itos intelectuais mais ativos, do impulso fornecido pela novi­
da de radical dos instantes. Examine-se o j ogo dos hábitos hierar­
qui za dos: ver-se-á que uma aptidão só continua sendo aptidão
se se esforça para se ultrapassar, se é um progresso. Se o pianista
nã o quer tocar hoj e melhor que ontem, ele se abandona a hábi­
tos menos claros. Se está ausente da obra, seus dedos logo perde­
rão o hábito de correr sobre o teclado. É efetivamente a alma que
comanda a mão. Cumpre, pois, apreender o hábito em seu cres­
cimento para captá-lo em sua essência; ele é assim, por seu in­
cremento de sucesso, a síntese da novidade e da rotina, e essa
síntese é realizada pelos instantes fecundos.�>
Compreende-se assim que as grandes criações - a criação
de um ser vivo, por exemplo - requerem de início u ma maté­
ria de algum modo fresca, própria para acolher a novidade com
fé. É a palavra que vem sob a pena de Butler: " Quanto a tentar
explicar como a menor parcela de matéria pôde impregnar-se
de tanta fé a ponto de se dever considerá-la o cu meço da Vida,
ou determinar em que consiste essa fe, eis uma coisa impossí­
vel, e tudo que se pode dizer é que essa fé faz parte da essên­
cia mesma de todas as coisas e não repousa sobre nada" .7
Ela é tudo, diríamos, porque atua no próprio nível da sínte­
se dos instantes; mas, substancialmente, ela é ttada, porque pre­
tende tra nscender a realidade do instante. Ainda aqui, a Fé é ex­
pectativa e novidade. Nada menos tradicional que a fe na vida.
O ser que se oferece à vida , em sua embriaguez de novidade,

'' Cf. idem, op. cit . , pp. 1 50, 1 5 1 .


7 Idem, op. cit., p. 1 28 .

63
A I NTU IÇAO DO I N STANTE

está mesmo disposto a tomar o presente como uma promessa


de futuro. A maior das forças é a ingenuidade. Roupnel sublinhou
precisamente o estado de recolhimento em que se encontra o
germe de onde vai sair a vida. Ele compreendeu tudo quanto
havia de liberdade afirmada num começo absolu to. O germe
é, sem dúvida, um ser que em certos aspectos imita, que reco­
meça, mas só pode recomeçar verdadeiramente na exuberân­
cia de um início. I niciar é sua verdadeira função. " O germen não
traz consigo outra coisa senão um iníêio de procriação celular."H
Noutras palavras, o germen é o início do hábito de viver. Se lemos
uma continuidade na propagação de uma espécie, é porque nos­
'
sa leitura é grosseira; tomamos os indivíduos como testemunhas
da evolução, quando eles são seus atores. Com toda razão, Roup­
nel descarta todos os princípios mais ou menos materialistas
propostos para assegurar uma continuidade formal dos seres vi­
vos. " Pode ter parecido", diz ele,

que raciocinamos como se os germens não constituíssem elementos


descontínuos. I nvestimos o gameta da herança dos tempos como
se ele houvesse assistido a eles. Mas declaremos de uma vez por
todas que a teoria das partículas representativas nada tem a ver
com a teoria presente. Não é necessário introduzir no gameta ele­
mentos que teriam sido constantes legatários do passado e eternos
atores do fu turo. Para desempenhar o papel que lhe atribuímos,
o gameta não precisa das micelas de Nageli, das gêm11las de Darwin,
dos pmtgenes de De Vries, do plasma germi11ativo de Weissmann . Ele
se basta a si mesmo, só depende de sua substância atual , de sua
virtude atual e de sua hora, e vive e morre inteiramente como
contemporâneo. A herança que lhe é particular, e que ele reco-

• ::>ifoe, p. 33.

64
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO

lhe, ele não a recebe do ser atual. Foi ele que a construiu com
zelo apaixonado, e como se as chamas de amor em que nasceu
o houvessem despojado de todas as suas servidões funcionais. res­
tabelecido em sua potência original e restituído às suas indigên­
cias iniciais.')

No fundo, mais que a continuidade da vida, é a desconti­


nuidade do nascimento que convém explicar. É aí que se po­
de medir a verdadeira potência do ser. Essa potência, como ve­
remos, é o retorno à liberdade do possível, àquelas ressonâncias
múltiplas nascidas da solidão do ser.
Mas esse ponto aparecerá, talvez, com mais clareza depois
que tivermos desenvolvido, valendo-nos dos temas do tempo
descontínuo, nossa teoria metafisica do hábito.

11
Para fins de clareza, formulemos nossa tese opondo-a imedia­
tamente às teses realistas.
Costuma-se dizer que o hábito está inscrito no ser. A nosso
ver, seria melhor dizer, empregando a linguagem dos geôme­
tras, que o hábito está exscrito ao ser.

Primeiro o indivíduo, na medida em que é complexo, cor­


responde a uma simultaneidade de ações instantâneas; só reen­
contra a si mesmo na proporção em que essas ações simultâneas
recomeçam . Exprimiríamos isso bastante bem, talvez, dizendo
que um indivíduo, tomado na soma de suas qualidades e de seu
devir, corresponde a uma harmonia de ritmos temporais. De

• Op. cit ., p. 38.

65
A I NTU IÇAO DO I NSTANTE

fato, é pelo ritmo que se compreenderá melhor essa continui­


dade do descontínuo que nos cabe agora estabelecer para reli­
gar os pináculos do ser e delinear sua u nidade. O ritmo transpõe
o silêncio, da mesma sorte que o ser transpõe o vazio temporal
que separa os instantes. O ser continua pelo hábito, assim como
o tempo dura pela densidade regular dos instantes sem duração.
É pelo menos nesse sentido que interpretamos a tese roupne­
liana :

O indivíduo é a expressão não de uma causa constante, mas de


uma justaposição de lembranças incessantes fixadas pela matéria
e cuja ligadura não passa, ela própria, de um hábito que se sobre­
põe a todos os demais. O ser já não é senão um estranho lugar
de lembranças; e quase se poderia dizer que a permanência de
que ele se acredita dotado nada mais é que a expressão do hábi­
to a si mesmo. 10

No fundo, a coerência do ser não é feita da inerência das


qualidades e do devir à matéria; ela é toda harmônica e aérea.
É frágil e livre como uma sinfonia. Um hábito particular é u m
ritmo sustentado, no qual todos o s atos s e repetem igualando
com bastante exatidão seu valor de novidade, mas sem jamais
perder esse caráter dominante de ser uma novidade. A diluição
do novo pode ser tamanha que às vezes o hábito pode passar
para o inconsciente. Parece que a consciência , tão intensa no
primeiro ensaio, se perdeu ao se repartir entre todas as repeti­
ções desnecessárias. Mas, ao se economizar, a novidade se orga­
niza; ela inventa no tempo em vez de inventar no espaço. A vida
já encontra a regra formal numa regulação temporal ; o órgão

111
Op. cit., p. 36.

66
O PROBLEMA DO HÁBITO E O TEMPO DESCONTINUO

se constrói pela função; e, para que os órgãos sejam complexos,


basta que as funções sejam ativas e frequentes. Tudo equivale
sempre a utilizar um número crescente dos instantes que o Tem­
po oferece. Segundo parece, o átomo que deles se serve em maior
número encontra aí hábitos tão sólidos, tão duradouros, tão re­
gulares que acabamos por tomar j ustamente seus hábitos por
propriedades. Assim, caracteres que são feitos com tempo bem
utilizado, com instantes bem ordenados, passam por atributos
de uma substância . Não admira, pois, encontrar em Siloe fórmu­
las que parecem obscuras para quem hesita em fazer descer à
matéria as instruções que recebemos do exame de nossa vida
consciente : "A obra dos Tempos idos está inteiramente em vigi­
lância na potência e na imobilidade dos elementos e em toda
parte é afirmada pelas provas que preenchem o silêncio e com­
põem a atenção das coisas". 1 1 Porque para nós, como para Roup­
nel, são as coisas que dão mais atenção ao Ser, e é a atenção de­
las com a finalidade de apreender todos os instantes que faz sua
permanência . A matéria é, assim, o hábito de ser mais uniforme­
mente realizado, porque se forma no mesmo nível da sequência
dos instantes .
Mas voltemos ao ponto de partida do hábito psicológico,
porquanto aí se encontra a fonte de nossa instrução. Dado que
os hábitos-ritmos, que compõem a vida do espírito como a vida
da matéria, se representam por registros múltiplos e diferentes,
tem-se a impressão de que se pode encontrar sempre, sob um
hábito efemero, um hábito mais estável . Existe, pois, para carac­
terizar um indivíduo, uma hierarquia de hábitos. Seríamos facil­
mente tentados a postular um hábito fundamental. Ele corres­
penderia a esse simples hábito de ser, o mais uniforme, o mais

11 O p. c i t . , p. to I .

67
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE

monótono, e consagraria a unidade e a identidade do indivíduo;


apreendido pela consciência, ele seria, por exemplo, o sentimen­
to da duração. Mas acreditamos ser necessário conservar, para
a intuição trazida por Roupnel, todas as possibilidades de inter­
pretação. Ora, não nos parece que o indivíduo sej a tão nitida­
mente definido quanto o ensina a filosofia escolar: não se deve
falar nem da unidade nem da identidade do eu fora da síntese
realizada pelo instante. Os problemas da fisica contemporânea
nos inclinam mesmo a crer que é tão P.erigoso falar da u nidade
quanto da identidade de um átomo particular. O indivíduo, em
qualquer nível que o apreendamos, na matéria, na vida ou no
pensamento, é um somatório bastante variável de hábitos não
recenseados. Como todos os hábitos que caracterizariam o ser
- caso fossem conhecidos - não se aproveitam simultaneamente
de todos os instantes que os poderiam atualizar, a unidade de
um ser parece sempre tocada de contingência . No fundo, o in­

divíduo j á não é mais que uma soma de acidentes - mas, além


disso, essa soma é , ela própria, acidental . Da mesma maneira, a
identidade do ser nunca se realiza plenamente, ela é afetada pe­
lo fato de a riqueza dos hábitos não ter sido regida com aten­
ção suficiente. A identidade global é feita, então, de repetições
desnecessárias mais ou menos exatas, de reflexos mais ou menos
detalhados. Sem dúvida, o indivíduo empenha-se em copiar o
hoj e do ontem; essa cópia é aj udada pela dinâmica dos ritmos,
mas nem todos esses ritmos estão no mesmo ponto de sua evo­
lução, e é assim que a mais sólida das permanências espirituais,
de identidade desejada, afi r mada num caráter, se degrada em se­
melhança . A vida, então, conduz nossa imagem de espelhos em
espelhos; somos, assim, reflexos de reflexos, e nossa coragem é
feita da lembrança de nossa decisão. Mas, por firmes que sejamos,
jamais nos conservamos inteiros, porque nunca fomos conscien­
tes de todo o nosso ser.

68
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO

Pode-se hesitar acerca do sentido em que se deve ler uma


hierarquia . A verdadeira potência está na ordem ou na obediên­
cia? Eis por que resistimos finalmente à tentação de procurar
os hábitos dominantes entre os mais inconscientes. Ao contrário,
a concepção do indivíduo como somatório integral dos ritmos
é, talvez, suscetível de uma interpretação cada vez menos subs­
tancialista, cada vez mais longe da matéria e mais perto do pen­
samento. Formulemos o problema na linguagem musical. Que
é que produz a harmonia, que é que lhe dá verdadeiramente
o movimento? A melodia ou o acompanhamento? Não se pode
dar a força de evolução à partitura mais cantante? D eixemos as
metáforas e falemos claro : é o pensamento que conduz o ser.
É pelo pensamento obscuro ou claro, pelo que foi compreen­
dido e, sobretudo, pelo que foi desejado, na unidade e na ino­
cência do ato, que os seres transmitem uns aos outros sua heran­
ça. Assim, todo ser individual e complicado dura na medida em
que se constitui uma consciência, na medida em que sua vonta­
de se harmoniza com as forças subalternas e encontra esse es­
quema do dispêndio econômico que é um hábito. Nossas ar­
térias têm a idade de nossos hábitos.
É por esse viés que um aspecto finalista vem aqui enrique­
cer a noção de hábito. Roupnel só concede um lugar à finali­
dade cercando-se das mais estritas precauções. Seria evidente­
mente anormal conferir ao futuro uma força de solicitação real,
numa tese em que se recusa ao passado uma força real de cau­
salidade:
Mas, se quisermos situar-nos em face da intuição primeira
de Roupnel e estabelecer, com ele, as condições temporais no
mesmo plano que as condições espaciais - embora a maior par­
te das filosofias atribua ao espaço um privilégio de explicação
inj ustificado -, veremos muitos problemas se apresentarem sob

69
A I N T U I ÇAO DO I N S TANTE

uma luz mais favorável . É o caso do fi nalismo. Com efeito, é


notável que no mundo da matéria toda direção privilegiada seja,
em última análise, um privilégio de propagação. Destarte, em nossa
hipótese poderemos dizer que, se um acontecimento se pro­
paga mais depressa num certo eixo de um cristal, é porque mais
instantes são utilizados nesse eixo do que noutra direção. De
igual modo, se a vida aceita a afirmação dos i nstantes segundo
uma cadência particular, ela cresce com mais rapidez numa di­
reção particular; ela se apresenta como uin a série linear de cé­
lulas, porque é o resumo da propagação de uma força de geração
bem homogênea. A fibra é um hábito materializado ; é fei ta de
instantes bem escolhidos, fortemente solidarizados em um rit­
mo. Assim, se nos colocarmos diante da enorme riqueza de esco­
lhas que os instantes descontínuos ligados por hábitos oferecem,
veremos que poderíamos falar de cronotropismos que correspon­
dem aos diversos ritmos que constituem o ser vivo.
É assim que interpretamos, na hipótese roupneliana, a mul­
tiplicidade de durações reconhecida por Bergson . Ele faz, de seu
ponto de vista, uma metáfora quando evoca um ritmo e quando
escreve: " Não existe um ritmo único da duração; podem-se ima­
ginar ritmos diferentes que, mais lentos ou mais rápidos, me­
diriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências e,
desse modo, fixariam seus respectivos lugares na série dos se­
res" . 12 Dizemos exatamente a mesma coisa, porém numa lingua­
gem direta , traduzindo, queremos crer, diretamente a realidade.
Conferimos, de fato, a realidade ao i nstante, e é o grupo dos
instantes que forma naturalmente, para nós, o ritmo temporal.
Para Bergson, como o instante não passa de uma abstração, é

12
Bergs o n . !vlc1th\n· ct mémoirc, p . 23 1 [ e d . bras . : !lclatéria c mcmária, M a rt i ns Fon­
tes, 2006] .

70
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO

com os intervalos de "elasticidade desigual" que cumpriria fa­


zer ritmos metafóricos. A multiplicidade das durações é mui­
to justamente evocada, mas ela não se explica por essa tese da
elasticidade temporal . Ainda uma vez, é à nossa consciência que
cabe a tarefa de estender sobre a tela dos instantes uma trama
suficientemente regular para dar ao mesmo tempo a impressão
da continuidade do ser e da rapidez do devir. Como indicare­
mos mais adiante, é dirigindo nossa consciência para um pro­
jeto mais ou menos racional que encontraremos efetivamente
a coerência temporal fundamental que corresponde, para nós,
ao simples hábito de ser.
Essa repentina possibilidade de escolha dos instantes cria­
dores, essà liberdade em sua ligação em ritmos distintos, forne­
cem duas razões muito apropriadas para nos fazer entender a
imbricação dos devires das diversas espécies vivas. Há muito fi­
camos impressionados pelo fato de as diferentes espécies ani­
mais serem coordenadas tanto histórica quanto funcionalmente.
A ordem da sucessão das espécies propicia a ordem dos órgãos
coexistentes num indivíduo particular. A ciência natural é, a nos­
so ver, uma história ou uma descrição: o tempo é o esquema
que a mobiliza , a coordenação finalista , o esquema que a des­
creve com mais clareza . Noutras palavras, num único ser par­
ticular, a coordenação e o finalismo das funções são as duas re­
cíprocas de um mesmo fato. A ordem do devi r é desde logo o
devir de uma ordem. O que se coordena na espécie subordi­
nou-se ao tempo e vice-versa . Um hábito é uma certa ordem
de instantes escolhida com base no conj unto dos instantes do
tempo; ele ressoa com uma altura determinada e com um tim­
bre particular. É um feixe de hábitos que nos permite continuar
a ser na multiplicidade de nossos atributos, deixando-nos a im­
pressão de que já fomos mesmo que não pudéssemos encon-

71
A INTU IÇAO DO INSTANTE

trar em nós, como raiz substancial, senão a realidade que nos


entrega o i nstante presente. Do mesmo modo, é porque o há­
bito constitui uma perspectiva de atos que propomos objetivos
e fi ns ao nosso futuro.
Esse convite do hábito a perseguir o ritmo de atos bem or­
denados é, no fundo, uma obrigação de natureza quase racio­
nal e estética. São, então, menos forças que razões que nos obri­
gam a perseverar no ser. É essa coerência racional e estética dos
ritmos superiores do pensamento que f"orma a chave de abó­
bada do ser.
Essa unidade ideal confere à filosofia não raro amarga de
Roupnel um pouco daquele otimismo racional - medido e co­
raj oso - que inclina o livro em direção aos problemas morais.
Somos assim levados a estudar, num novo capítulo, a ideia de
progresso em suas relações com a tese do tempo descontínuo.

72
C A P fT U L O 3

A i d ei a d o pro gresso
e a i n tu i çã o d o tempo
d escon ti n u o

Se "o ser que mais amo tw mundo (viesse) me


perguntar que escolh a ele deve fazer, c qual é o
refúgio mais prqfimdo, mais inatacável c mais doce,
eu lhe diria para abrigar seu destino no rcJIÍgio da
alma que se apeifeiçoa " .
M A ETER L I N C K

Resta , na tese de Roupnel sobre o hábito, uma dificuldade apa­


rente que gostaríamos de elucidar. É por esse esforço de escla­
recimento que seremos muito naturalmente levados a estabe­
lecer uma distinção entre metafisica e progresso em relação às
intuições de Si/oi!.
Essa dificuldade é a seguinte: para penetrar todos os senti­
dos da idcia de hábito, é preciso associar dois conceitos que pa-

73
A I N TU IÇAO DO I NSTA NTE

recem à primeira vista se contradizer: a repetição e o começo. Ora,


essa obj eção se desvanecerá se observarmos que todo hábito par­
ticular permanece na dependência desse hábito geral - claro e
consciente - que é a vontade. Assim sendo, de muito bom grado
definiríamos o hábito, tomado no sentido pleno, por esta fór­
mula que concilia os dois contrários que a crítica se apressou
em opor: o hábito é a vontade de começar a repetir a si mesmo.
Se compreendermos bem a teoria de Roupnel, não será ne­
c essário tomar o hábito como um met anismo desprovido de
ação inovadora. Haveria contradição nos termos se disséssemos
que o hábito é uma potência passiva. A repetição que o carac­
teriza é uma repetição que, instruindo-se, constrói.
Aliás, o que comanda o ser são menos as circunstâncias ne­
cessárias para subsistir do que as condições suficientes para pro­
gredir. Para suscitar o ser, é necessária uma j usta medida de no­
vidade. Butler diz, com muita propriedade :

A introdução de elementos ligeiramente novos em nossa maneira


de agir nos é vantajosa: o novo funde-se então com o antigo, e
isso nos aj uda a suportar a monotonia de nossa ação. Mas, se o
elemento novo nos é demasiado estranho, a fusão do antigo com
o novo não se faz, pois a Natureza parece ter em igual horror qual­
quer desvio demasiado grande de nossa prática ordinária e a au­
sência de qualquer desvio. 1

É assim que o hábito se torna um progresso. Daí a necessi­


dade de desejar o progresso para conservar a eficácia do hábito.
Em todos os recomeças, é esse desejo de progresso que confere
verdadeiro valor ao instante inicial que desencadeia um hábito.

1 Bu tler, LA vir et l'ilabitudt', trad. Larbaud, p. 1 59.

74
A IDEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO

Sem dúvida, a ideia do eterno retorno acudiu a Roupnel, mas


logo em seguida ele compreendeu que essa ideia, fecunda e ver­
da d eira, não podia ser um absoluto. Renascendo, acentuamos
a vida .

Porque não ressuscitamos e m vão! . . . O recomeço não é feito de


um eterno sempre, perenemente idêntico a si mesmo ! . . . Nossos
atos cerebrais, nossos pensamentos, são retomados segu ndo o rito
de hábitos cada vez mais adquiridos e são investidos de fidelidades
físicas sempre aumentadas! Se nossas faltas agravam seus contornos
funestos, especificam e pioram suas formas e efeitos [ . . . ) , nossos
atos úteis e benfazejos preenchem, também eles, com marcas mais
firmes a pista dos passos eternos. A cada recomeço, alguma firme­
za nova passa a revestir o ato e, nos resultados, traz consigo, pou­
co a pouco, a abundância desconhecida. Não dizemos que o ato
é permanente : ele é sempre acrescentado da precisão de suas ori­
gens e de seus efeitos. Vivemos cada vida nova como a obra que
passa, mas a vida lega à vida todas as marcas recentes. Cada vez
mais apaixonado por seu rigor, o ato recapitula suas intenções e
suas consequências e completa aí o que jamais s.: consuma . E as
generosidades crescem em nossas obras e multiplicam-se em nós! . . .
Nos dias dos mundos antigos, aquele que nos viu, sensual argila
e lama dolente, arrastar na terra uma alma primitiva nos reconhe­
ceria sob os grandes sopros? . . . Viemos de longe com nosso san­
gue tépido. . . e eis que somos a Alma com as asas e o Pensamento
na Tempestade! . . . 2

Um destino tão longo prova que, ao retornar eternamen­


te às fontes do ser, encontramos a coragem do voo renovada .

75
A I NTUIÇÃO DO I N STANTE

Mais que uma doutrina do eterno retorno, a tese roupneliana


é , pois, uma doutrina do eterno recomeço. Ela representa a conti­
nuidade da coragem na descontinuidade das tentativas, a con­
tinuidade do ideal apesar da ruptura dos fatos. Todas as vezes
que Bergson fala3 de uma continuidade que se prolonga (conti­
nuidade de nossa vida interior, continuidade de um movimento
voluntário) , podemos traduzir dizendo que se trata de uma for­
ma descontínua que se reconstitui.Todo prolongamento efeti­
vo é uma adj u nção; toda identidade; uma semelhança . Reco­
nhecemo-nos em nosso caráter porque imitamos a nós mesmos
e porque nossa personalidade é, assim, o hábito de nosso pró­
prio nome. É porque nos unificamos em torno de nosso nome
e de n ossa dignidade - essa nobreza do pobre - que podemos
transportar para o futuro a unidade de uma alma . A cópia que
refazemos sem cessar deve melhorar, senão o modelo inútil em­
pana-se e a alma, que não passa de uma persistência estética, dis­
solve-se.
Para a mônada, nascer e renascer, começar ou recomeçar, é
sempre a mesma ação que é tentada . Porém as ocasiões nem sem­
pre são as mesmas, nem todos os recomeças são sincrônicos e
nem todos os instantes são uti � izados e ligados pelos mesmos
ritmos. Como as ocasiões são meras sombras de condições, toda
a força permanece no seio dos instantes que fazem renascer o ser
e retomam a tarefa encetada. Uma novidade essencial que pas­
sa por liberdade manifesta-se nesses recomeças, e é assim que
o hábito, pela renovação do tempo descontínuo, pode tornar­
-se um progresso em toda a acepção do termo.
Assim a teoria do hábito se concilia , em Roupnel, com a
negação da ação fisica e material do passado. O Passado pode,

·' Cf . Bergson, Durér et simultarréité, p. 70 [ed. bras. : Duraçã,, e simultaneidade, Mar­


tins Fontes, 2006] .

76
A IDEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO

sem dúvida, persistir, mas, a nosso ver, somente como verdade,


somente como valor racional, somente como um conjunto de
harmoniosas solicitações em direção ao progresso. Ele é, se se
quiser, um domínio fãcil de atualizar, mas só se atualiza na pro­
porção em que obtém um êxito. O progresso é, então, assegu­
rado pela permanência das condições lógicas e estéticas.
Essa filosofia da vida de um historiador é esclarecida pela
confissão da i nutilidade da história em si, da história como so­
matório de fatos. Há decerto forças históricas que podem re­
viver, mas para isso elas devem receber a síntese do instante, as­
sumir o "vigor dos atalhos" - nós mesmos diríamos: a dinâmica
dos ritmos. Naturalmente, Roupnel não separa a filosofia da his­
tória e a filosofia da vida . E também aqui o presente domi na
tudo. A propósito da gênese das espécies, ele escreve :

Os tipos que se conservam o fazem na proporção não de seu pa­


pel histórico, mas de seu papel atual . As formas embrionárias já
não podem lembrar senão bem de longe as formas específicas
adaptadas às antigas condições de vida histórica. A adaptação que
as realizou já não tem qualidades presentes. São, se quiserdes, adap­
tações desafetadas. São os despojos dos quais um raptor se apo­
dera, porque são formas de tipos passados a serviço de outrem .
Sua interdependência ativa substitui sua independência abolida .
Elas têm valor na medida em que se intitulam [ . . . ] . 4

Reencontra-se, assim, sempre a supremacia da harmonia pre­


sente sobre uma harmonia preestabelecida que, segundo a in­
tuição leibniziana, sobrecarregaria o passado com o peso do des­
tino.

• Si/oi', p. 55.

77
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE

Por fim, são as condições de progresso que constituem as


razões mais sólidas e mais coerentes para enriquecer o ser, e
Roupnel resume seu argumento nesta fórmula que tem tanto
mais sentido quanto está inscrita na parte do livro consagrada
ao exame de teses totalmente biológicas: "A assimilação pro­
grediu à medida mesma que progredia a reprodução" . 5 O que
persiste é sempre o que se regenera.

11
Naturalmente, Roupnel sentiu tudo quanto o hábito, tomado
no aspecto psicológico, traz de facilidade ao progresso. " A ideia
de progresso" , diz ele,

está logicamente associada à ideia do recomeço e da repetição.


O hábito já tem, por si só, a significação de um progresso; o ato
que recomeça, pelo efeito do hábito adquirido, recomeça com
mais rapidez e precisão; os gestos que o executam perdem sua
amplitude excessiva, sua complicação inútil; eles se simplificam
e se encurtam. Os movimentos parasitas desaparecem. O ato re­
duz o gasto ao estrito necessário, à energia suficiente, ao tempo
mínimo. Enquanto o dinamismo melhora e se especifica, aper­
feiçoam-se a obra e o resultado.1'

Todas essas observações são clássicas o bastante para que


Roupnel deixe de insistir nelas, mas ele acrescenta que sua apli­
cação à teoria da instantaneidade do ser comporta dificuldades.
No fundo, a dificuldade de assegurar o progresso acima de um

" Op. cit., p. 74.

'' Op. cit., p. 1 57 .

78
A I DE IA DO PROGRESSO E A I NTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO

passado que se demonstrou ineficaz é a mesma que aquela com


a qual deparamos quando quisemos fixar nesse mesmo passado
as raízes do hábito. É preciso, portanto, voltar incessantemente
ao mesmo ponto e lutar contra a falsa clareza da eficácia de um
passado abolido, visto que essa eficácia é o postulado de nossos
adversários. A posição de Roupnel é particularmente franca. Pos­
tulando essa eficácia, diz ele,

somos sempre os crédulos da constante ilusão que nos faz acre­


ditar na realidade de um tempo objetivo e aceitar seus pretensos
efeitos. Na vida do ser, dois instantes que se sucedem têm entre
si a independência que corresponde à independência dos dois
ritmos moleculares que eles interpretam. Essa independência, que
ignoramos quando se trata de duas situações consecutivas, se nos
afirma quando consideramos fenômenos que não são imediata­
mente consecutivos. Mas então queremos lançar, à conta da dura­
ção que os aparta, a indiferença que os separa. Na realidade, quando
começamos a reconhecer na duração essa energia dissolvente e
essa virtude separativa, é somente então que começamos a fazer
justiça à sua natureza negativa e às suas capacidades de nada. Quer
seja tomada em dose fraca, quer em dose forte, a duração é sem­
pre apenas uma ilusão. E a potência de seu nada separa tanto os
fenômenos de aparência menos consecutivos quanto os fenôme­
nos de aparência menos contemporâneos.
En tre fenômenos consecutivos há, pois, passividade e indiferen­
ça. A verdadeira dependência, como mostramos, é feita das sime­
trias e referências entre situações homólogas. É sobre essas simetrias,
é sobre essas referências que a energia esculpe seus atos e molda
seus gestos. Os verdadeiros parentescos de instantes seriam, pois,
adaptados aos verdadeiros parentescos de situações do ser. Se qui­
séssemos a todo custo construir uma duração contínua, seria sem-

79
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE

pre uma duração subjetiva, e os instantes-vida referir-se-iam aí


às séries homólogas.

Mais um passo, partindo-se dessa homologia ou dessa sime­


tria dos i nstantes agrupados, e se vai chegar àquela ideia de que
a duração - sempre apreendida indiretamente - só tem força
por seu progresso. É

o aperfeiçoamento, bem fraco sem dúvicta, mas logicamente ine­


gável, e que basta para introduzir uma diferenciação dos instantes
e, por conseguinte, para introduzir o elemento de uma duração.
Mas percebemos assim que essa duração nada mais é que a ex­
pressão de um progresso dinâmico. E então nós, que reduzimos
tudo ao dinamismo, diremos simplesmente que a duração con­
tínua, se existe, é a expressão do progresso. 7

Compreende-se então que uma escala de perfeição possa


aplicar-se diretamente sobre o grupo dos instantes reunidos por
cronotropismos ativos. Por uma estranha recíproca, é porque
existe um progresso no sentido estético, moral ou religioso que
pode ser dada como certa a marcha do Tempo. Os instantes são
distintos porque são fecundos. E não são fecundos em virtude
das lembranças que podem atualizar, mas pelo fato de a eles se
acrescentar uma novidade temporal convenientemente adaptada
ao ritmo de um progresso.

Mas é nos problemas mais simples ou mais simplificados que


melhor se reconhecerá, talvez, essa equação entre a duração pu­
ra e o progresso; é aí que se compreenderá melhor a necessi-

7 Op. c i t . , p. 1 58.

80
A IDEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO

dade de inscrever na conta do tempo seu valor essencial de re­


novação. O tempo só dura inventando.
Com o fim de simplificar o dado temporal, Bergson tam­
bém parte de u ma melodia; mas, em vez de sublinhar que uma
melodia só tem sentido pela diversidade de seus sons, e m vez
de reconhecer que o próprio som possui uma vida diversa, ele
tenta , eliminando essa diversidade entre os sons e no interior
mesmo de u m som, mostrar que no limite se chega à uniformi­
dade. Noutras palavras, removendo-se a matéria sensível do som,
encontrar-se-ia a uniformidade do tempo fundamental . A nosso
ver, por esse caminho só se chega à uniformidade do nada . Se
examinarmos um som que seja tão unido objetivamente quanto
possível, veremos que esse som unido não é uniforme subjetiva­
mente. É impossível manter um sincronismo entre o ritmo da
excitação e o ritmo da sensação. À menor experiência reconhe­
ceremos que a percepção do som não é um simples somatório;
as vibrações não podem ter um papel idêntico porque não têm
o mesmo lugar - a tal ponto que um som prolongado sem va­
riação se torna uma verdadeira tortura, como observou finamen­
te Octave Mirbeau. Depararíamos com a mesma cdtica do uni­
forme em todos os donúnios, porque a repetição pura e simples
tem efeitos similares no mundo orgânico e no mundo inorgâni­
co. Essa repetição demasiado uniforme é um princípio de rup­
tura para a matéria mais dura, que acaba por se quebrar sob
certos esforços rítnúcos monótonos. Logo, como se poderia, se­
guindo a psicologia da sensação acústica, falar com Bergson de
uma "continuação daquilo que precede naquilo que se segue",
da " transição ininterrupta, multiplicada sem diversidade " , e de
uma "sucessão sem separação" , quando basta prolongar o som
mais puro para que ele mude de caráter? Mas, mesmo sem to­
mar o som que, por seu prolongamento, se torna u ma dor, re-

81
A I NTUIÇAO DO I N STANTE

conhecendo no som seu valor musical, devemos admitir que


num prolongamento medido ele se renova e canta ! Quanto mais
se atenta numa sensação aparentemente uniforme, mais ela se
diversifica. É verdadeiramente ser vítima de uma abstração ima­
ginar uma meditação que simplifique um dado sensível. A sen­
sação é variedade, é a única memória que u niformiza . Entre
Bergson e nós há sempre, portanto, a mesma diferença de mé­
todo; ele toma o tempo cheio de acontecimentos no mesmo
nível da consciência dos acontecimentos � depois suprime gra­
dativamente os acontecimentos, ou a consciência deles; e che­
garia então, ele acredita , ao tempo sem acontecimentos, ou à
consciência da duração pura. Nós, ao contrário, só sabemos sen­
tir o tempo multiplicando os instantes conscientes. Se nossa in­
dolência distende nossa meditação, sem dúvida pode restar ainda
um número suficiente de instantes enriquecidos pela vida dos
sentidos e da carne, para que conservemos o sentimento mais
ou menos vago de que duramos; mas, se quisermos esclarecer
tal sentimento, de nossa parte só encontraremos esse esclareci­
mento numa multiplicação de pensamentos. A consciência do
tempo é sempre, para nós, uma consciência da utilização dos
instantes, é sempre ativa, nunca passiva - em suma, a consciên­
cia de nossa duração é a consciência de um progresso de nosso
ser íntimo, seja esse progresso efetivo, imitado ou, ainda, simples­
mente sonhado. O complexo assim organizado num progresso
é, então, mais claro e mais simples; o ritmo bem renovado, mais
coerente que a repetição pura e simples. Ademais, se chegarmos
em seguida - por uma construção lógica à uniformi dade em
-

nossa meditação, parece-nos que isso será mais uma conquista,


pois encontraremos essa uniformidade numa ordenação dos ins­
tantes criadores, num daqueles pensamentos gerais e fecundos,
por exemplo, que têm sob sua dependência mil pensamentos

82
A IOEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO

ordenados. A duração é, pois, uma riqueza - não a encontramos


por abstração. Sua trama é construída colocando-se um atrás do
outro - sempre sem que se toquem - os instantes concretos, ri­
cos de novidade consciente e bem medida. A coerência da dura­
ção é a coordenação de um método de enriquecimento. Só se
pode falar de uma u niformi dade pura e simples num mundo
de abstrações, numa descrição do nada . Não é do lado da sim­
plicidade que se deve passar ao limite, é do lado da riqueza.
A única duração uniforme real é, a nosso ver, uma duração
uniformemente variada, uma duração progressiva .

111
Neste ponto de nossa exposição, se nos pedissem para assina­
lar com u ma etiqueta filosófica tradicional a doutrina tempo­
ral de Roupnel, diríamos que essa doutrina corresponde a um
dos fenomenismos mais nítidos que se conhecem. Seria, com
efeito, caracterizá-la muito mal dizer que, como substância, só
o tempo conta para Roupnel, porque o tempo é sempre toma­
do simultaneamente, em Siloe, como substância e como atributo.
Explica-se, então, essa curiosa trindade sem substância que faz
com que duração, hábito e progresso estejam em perpétua troca de
efeitos. Quando se compreende essa perfeita equação dos três
fenômenos fundamentais do devir, percebe-se que seria inj us­
to levantar aqui uma acusação de círculo vicioso. Sem dúvida,
se partíssemos das intuições comuns, objetaríamos facilmen te
que a duração não pode explicar o progresso, porque este, para
se desenvolver, requer a duração; e objetaríamos ainda que o
hábito não pode atualizar o passado, porque o ser não tem como
conservar um passado inativo. Porém a ordem discursiva nada
prova contra a unidade intuitiva que se vê esclarecer quando
se medita Siloe. Não se trata , com efeito, de classificar realida-

83
A I NTU IÇAO DO I N STANTE

des, mas de fazer entender os fenômenos reconstruindo-os de


múltiplas maneiras. Como realidade, só existe uma: o instante.
Duração, hábito e progresso são apenas agrupamentos de ins­
tantes, são os mais simples dos fenômenos do tempo. Nenhum
desses fenômenos temporais pode ter um privilégio ontológico.
Estamos livres, portanto, para ler sua relação nas duas direções,
para percorrer o círculo que os liga nos dois sentidos .

A síntese metafísica do progresso e dp duração leva Roup­


nel, no fim do livro, a garantir a Perfeição inscrevendo-a no pró­
prio âmago da Divindade que nos dispensa o Tempo. Por lon­
go tempo, Roupnel permanece com uma alma expectante. Mas
dessa própria expectativa parece que Roupnel faz um conheci­
mento. Numa fórmula surpreendente de humildade intelectual,
ele nos indica que a transcendência de Deus se molda sobre a
imanência de nosso desej o : "O incognoscível já não está fora
de nossas expectativas quando percebemos, se não a causa que
o explica, ao menos a forma em que ele se esquiva"." Nossos
desej os, nossas esperanças e nosso amor desenhariam, portan­
to, de fora do Ser supremo . . .
A luz passa, então, da razão ao coração : " O Amor! Que ou­
tra palavra poderia propiciar um invólucro verbal adaptado de
nossas espiritualidades no íntimo acordo que compõe a nature­
za das coisas e ao ritmo grave e grandioso que realiza todo o
Universo?"9 Sim, no fundo mesmo do Tempo, para que os ins­
tantes façam a duração, para que a duração faça o progresso,
cumpre inscrever o Amor. . . Quando lemos essas páginas amo­
rosas, sentimos o poeta novamente em marcha rumo à fonte
íntima e misteriosa de sua própria Siloé . . .

• Op. c i t . , p. 1 72 .
., Op. c i t . , p. 1 62.

84
A I DElA DO PROGRESSO E A I NTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO

Que cada um siga , pois, seu caminho.Visto nos ser permiti­


do tirar do livro o que era para nosso espírito a aj uda mais efi­
caz, indiquemos então que, de nossa parte, é antes em direção
a um esforço no qual encontramos o caráter racional do Amor
que prosseguimos nosso sonho.
A nosso ver, os caminhos do progresso íntimo são os cami­
nhos da lógica e das leis gerais. As grandes reminiscências de
uma alma, aquelas que dão a uma alma sentido e profundida­
de, percebe-se um dia que estão em vias de tornar-se racionais.
Só se pode chorar por muito tempo um ser que é racional cho­
rar. É então a razão estoica que consola o coração sem lhe pe­
dir o olvido. No próprio amor, o singular é sempre pequeno,
permanece anormal e isolado : não pode tomar lugar no ritmo
regular que constitui um hábito sentimental . Pode-se colocar,
em torno de suas lembranças de amor, todo particular que se
quiser, a sebe de pilriteiros ou o portal florido, a noite outonal
ou a aurora de maio. O coração sincero é sempre o mesmo. A
cena pode mudar, mas o ator é sempre o mesmo. A alegria de
amar, em sua novidade essencial, pode surpreender e maravilhar.
Mas, vivendo-a em sua profundidade, nós a vivemos em sua
simplicidade. Os caminhos da tristeza não são menos regulares.
Quando um amor perdeu seu mistério perdendo seu fu turo,
quando o destino, fechando o livro abruptamente, pôs termo
à leitura, reconhecemos na recordação, sob as variações da sau­
dade, o tema - tão claro, tão simples, tão geral - do sofrimen­
to humano. À beira do túmulo, Guyau dizia ainda um verso de
filósofo :

"A felicidade mais doce é aquela que se espera ".

Nós mesmos lhe responderemos, evocando

85
A I NTUIÇAO DO I NSTA NTE

A felicidade mais pura, aquela que se perdeu.

Sem dúvida, nossa opinião é uma opinião de filósofo, terá


contra si toda a experiência dos romancistas. Mas não podemos
subtrair-nos à impressão de que a riqueza dos caracteres singu­
lares, muitas vezes heteróclitos, situa o romance numa atmos­
fera de realismo ingênuo e facil que não é, em última análise,
senão uma forma primitiva da psicologia.Ao contrário, de nosso
ponto de vista, a paixão será tanto mais vuiada em seus efeitos
quanto mais simples e mais lógica for em seus princípios. Uma
fantasia nunca tem duração suficiente para totalizar as possibi­
lidades do ser sentimental . Ela não é precisamente senão uma
possibilidade, quando muito uma tentativa, um ritmo sufocado.
Ao contrário, um amor profundo é uma coordenação de todas
as possibilidades do ser, pois é essencialmente uma referência
ao ser, um ideal de harmonia temporal em que o presente es­
tá incessantemente ocupado em preparar o futuro. É ao mes­
mo tempo uma duração, um hábito e um progresso.
Para fortalecer um coração, é preciso duplicar a paixão pe­
la moral, encontrar as razões gerais de amar. É então que se com­
preende o alcance metafísico das teses que vão buscar na simpa­
tia, no zelo, a força mesma da coordenação temporal . É porque
se ama e se sofre que o tempo se prolonga em nós e dura. Meio
século antes das teses hoje célebres, Guyau já reconhecera que
"a memória e a simpatia têm [ . . . ] no fundo a mesma origem". 10
Ele mostrara que o Tempo é essencialmente afetivo : " A ideia de
passado e futuro", dizia ele com profundidade, " não é somente
a condição necessária de todo sofrimento moral; é, de certo pon­
to de vista, o princípio" . 1 1 Fazemos nosso tempo como nosso

1"
Guyau, La genrse de l'idée du temps, p. 80.
11
I dem, o p . c i t . , p . 82.

86
A IDEIA DO PROGRESSO E A INTU IÇÃO DO TEMPO DESCONTINUO

espaço pela simples preocupação que temos com nosso futu­


ro e pelo desej o de nossa própria expansão. É assim que nosso
ser, em nosso coração e em nossa razão, corresponde ao Uni­
verso e reivindica a Eternidade. Como diz Roupnel, numa frase
que restabelecemos em sua redação primitiva: "Está aí o gênio
mesmo de nossa alma ávida de um espaço sem fim, faminta de
uma duração sem limite, sedenta de Ideal, perseguida pelo In­
fi nito, cuja vida é a inquietude de um perpétuo alhures e cuja
natureza é apenas o longo tormento de uma expansão em di­
reção a todo o Universo" .
Assim, pelo próprio fato d e vivermos, pelo próprio fato de
amarmos e de sofrermos, estamos inscritos nos caminhos do
universal e do permanente. Se nosso amor se revela por vezes
sem força, é quase sempre porque somos vítimas do realismo
de nossa paixão. Ligamos nosso amor a nosso nome, quando ele
é a verdade geral de uma alma; não queremos ligar, num con­
junto coerente e racional, a diversidade de nossos desej os, por­
quanto eles só são eficazes quando se completam e se revezam.
Se tivéssemos a sabedoria de escutar em nós mesmos a harmonia
do possível, reconheceríamos que os mil ritmos dos instantes
trazem a nós realidades tão exatamente complementares que
devemos compreender o caráter fi nalmente racional das dores
e das alegrias colocadas na fonte do Ser. Um sofrimento está
sempre ligado a uma redenção; uma alegria, a um esforço in­
telectual . Tudo se redobra em nós mesmos quando queremos
tomar posse de todas as possibilidades da duração : "Se amais",
diz Maeterlinck,

não é esse amor que faz parte de vosso destino; é a consciência


de vós mesmo que tereis encontrado no fu ndo desse amor que
modificará vossa vida. Se alguém vos trai, não é a traição que im-

87
A INTU IÇAO DO INSTANTE

porta; o que importa é o perdão que ela fez nascer em vossa al­
ma, e a natureza mais ou menos geral, mais ou menos elevada,
mais ou menos refletida desse perdão é que voltará vossa existên­
cia para o lado aprazível e mais claro do destino em que vereis
melhor do que se esse alguém vos tivesse permanecido fiel. Mas,
se a traição não aumentou a simplicidade, a confiança mais alta,
a extensão do amor, tereis sido traído inutilmente e podereis di­
zer a vós mesmo que nada aconteceu . 1 2

Como dizer melhor que o ser só pode conservar do passado


aquilo que serve a seu progresso, aquilo que pode entrar num
sistema racional de simpatia e afeto? Só dura o que tem razões
para durar. A duração é, assim, o primeiro fenômeno do prin­
cípio da razão suficiente para a ligação dos instantes. Em outras
palavras, nas forças do mundo há apenas um princípio de conti­
nuidade: é a permanência das condições racionais, das condições
de sucesso moral e estético. Essas condições comandam tanto
o coração como o espírito. São elas que determinam a solida­
riedade dos instantl!s em progressão. A duração íntima é sem­
pre a sabedoria . O que coordena o mundo não são as forças do
passado, é a harmonia toda em tensão que o mundo vai realizar.
Pode-se falar de uma harmonia preestabelecida, mas não se po­
de tratar de uma harmonia preestabelecida nas coisas - só exis­
te ação por uma harmonia preestabelecida na razão. Toda a for­
ça do tempo se condensa no instante inovador em que a vista
se descerra , j u nto à fonte de Siloé, ao toque de um divino re­
dentor que nos dá , num mesmo gesto, a alegria e a razão, e o
meio de ser eterno por via da verdade e da bondade.

12
M aeterlinck, S<�grssr ri destirrér, p. 27 [ed. bras . : A S<lbcdMi<l I' " dcstirr<•, Pe nsa­
mento, s.d . ] .

88
Con cl u sã o

O ser entregue à razão encontra forças na solidão. Traz em si


mesmo os meios de seus recomeças. Tem por si a eternidade do
verdadeiro, sem ter o encargo e a guarda da experiência passa­
da. É j ustamente o que Jean Guéhenno dizia ( Caliban par/e) : " A
razão, essa estrangeira sem memória e sem herança, que gostaria
sempre que tudo recomeçasse", porque é efetivamente pela ra­
zão que tudo pode recomeçar. O fracasso não passa de uma pro­
va negativa, o fracasso é sempre experimental. No donúnio da
razão, basta comparar dois temas obscuros para que sobrevenha
a clareza da evidência. Então, com o antigo mal compreendi­
do, faz-se uma novidade fecunda. Se há um eterno retorno que
sustenta o mundo, é o eterno retorno da razão.
Não é nessa inocência racional que Roupnel procura os ca­
minhos da redenção do ser. Ele encontra na Arte um meio mais
diretamente adaptado aos princípios mesmos da criação. Em
páginas que se dirigem ao próprio núcleo da intuição estética,

89
A INTUIÇAO DO I N STANTE

ele nos reconduz a esse frescor da alma e dos sentidos que re­
nova a força poética. É

a Arte que nos liberta da rotina literária e artística [ . . . ) . Ela nos


cura a fadiga social da alma e remoça a percepção gasta. Restitui
à expressão aviltada o sentido ativo e a representação realista. Re­
conduz a verdade à sensação e a probidade à emoção. Ensina-nos
a lançar mão de nossos sentidos e de nossa alma como se nada
ainda lhes houvesse depravado o vigor ou arruinado a clarividên­
cia. Ensina-nos a ver e a escutar o Universo como se só agora ti­
véssemos dele a sã e súbita revelação. Reconduz a nossos olha­
res a graça de uma Natureza que desperta . Devolve-nos as horas
encantadoras da manhã primitiva banhada de criações novas. De­
volve-nos, por assim dizer, o homem maravilhado que ouviu nas­
cer as vozes na Natureza, que assistiu à aparição do firmamento
e diante de quem o Céu se ergueu como um Desconhecido. 1

Ainda uma vez, porém, se a Arte, como a Razão, é solidão,


eis que a Solidão é a própria Arte. Após o sofrimento, somos
entregues "à altiva solidão de nosso coração [ . . . ] então, nossa al­
ma, que rompeu suas correntes infames, torna a entrar em seu
templo sepultado" . E Roupnel continua :

A Arte é a escuta dessa voz interior. Ela nos traz o murmúrio en­
terrado. É a voz da consciência sobrenatural que habita em nós
no fundo inalienável e perpétuo. Ela nos reconduz ao sítio pri­
mordial de nosso Ser e ao Lugar imenso no qual estamos no Uni­
verso inteiro. Nossa parcela miserável assume aí seu grau univer­
sal e nos entrega a autoridade que ela detém . Triunfando sobre

1 Siloe, p. 1 96.

90
CONCLUSÃO

todos os temas descontínuos que separam o Ser e compõem o


Indivíduo, a Arte é o senso de Harmonia que nos restitui ao doce
ritmo do Mundo e nos devolve ao Infinito que nos chama.
Então, tudo em nós se faz partícipe do ritmo absoluto em que se
desenvolve o fenômeno completo do M undo. Assim, em nosso
âmago, tudo se ordena nas supremas direções, tudo se aclara sob
as clarividências íntimas. As luzes assumem significado mensagei­
ro. As linhas desenvolvem a graça de uma associação misteriosa
com os acordes infinitos. Os sons desenvolvem sua melodia na
via interior onde canta todo o Universo. Um amor veemente,
uma simpatia universal nos busca o coração e quer ligar-nos à
alma que freme em todas as coisas.
O Universo que assume sua beleza é o Universo que assume seu
sentido; e as imagens desusadas que lhe emprestaríamos tombam
da face absoluta que emerge do mistério. 2

Existe, a nosso ver, na raiz dessa redenção contemplativa, uma


força que nos permite aceitar, num único ato, a vida com todas
as suas contradições íntimas. Colocando o nada absoluto nas
duas margens do instante, Roupnel devia ser le .'a do a uma in­
tensidade de consciência tamanha que toda a imagem de um
destino era, por um clarão súbito, legível no próprio ato do es­
pírito. A causa profunda da melancolia roupneliana liga-se tal­
vez a esta necessidade metafísica: devem-se manter num mes­
mo pensamento o pesar e a esperança . Síntese sentimental dos
contrários, eis o instante vivido. Somos capazes, aliás, de girar
o eixo sentimental do tempo e de depositar a esperança numa
recordação cujo frescor, em nosso devaneio, nós restituímos. Por
outro lado, podemos ser desencorajados ao contemplar o futu-

Op. c i t . , p. 1 98 .

91
A INTU IÇAO DO INSTANTE

ro, porque em certos momentos, no ápice da idade, por exemplo,


percebemos que já não podemos deixar para amanhã a guarda
de nossas esperanças. A amargura da vida é o desgosto de não
poder esperar, de já não ouvir os ritmos que nos exortam a to­
car nossa parte na sinfonia do devir. É então que a "lamentação
risonha" nos aconselha a convidar a Morte e a aceitar, como
i.tma canção que acalenta, os ritmos monótonos da Matéria .
É nessa atmosfera metafisica que nos apraz situar Siloe; é com
essa interpretação pessoal que gostamos•üe ler essa obra estra­
nha. Ela nos fala, então, na força e na tristeza porque ela é ver­
dade e coragem. Nessa obra amarga e terna, com efeito, a ale­
gria é sempre uma conquista ; a bondade ultrapassa por sistema
a consciência do mal, porque a consciência do mal é já o de­
sej o da redenção. O otimismo é vontade mesmo quando o pes­
simismo é conhecimento claro. Espantoso privilégio da intimi­
dade ! O coração humano é verdadeiramente a maior potência
de coerência para as ideias contrárias. Lendo Siloe, percebemos
bem que trazíamos, por nosso comentário, um quinhão de pesa­
das contradições; mas a simpatia não tardaria, com a obra, a nos
exortar a ter confiança nas lições que tiramos de nossos próprios
erros.
Eis por que Siloe é um belo livro humano. Ele não ensi na,
ele evoca . Obra da solidão, é uma leitura para solitários. Reen­
contramos o livro como nos reencontramos ao reentrar em nós
mesmos . Se o contradizemos, ele nos responde. Se o seguimos,
ele nos dá um impulso. Mal o fechamos e já renasce o desejo
de reabri-lo. Mal se calou e um eco já acorda na alma que o
compreendeu .

92
ANEXO

l n sta n te p oéti co
e i n sta n te m eta fi si co*

A poesia é uma metafisica i nstantânea. Num curto poema, ela


deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, um
ser e objetos, tudo ao mesmo tempo. Se segu e simplesmente o
tempo da vida, ela é menos que esta ; só pode ser mais que a
vida imobilizando-a, vivendo no próprio lugar a dialética das
alegrias e das dores . Ela é, então, o princípio de uma simulta­
neidade essencial em que o ser mais disperso, mais desunido,
conquista sua unidade.
Enquanto todas as demais experiências metafisicas são pre­
paradas em intermináveis prólogos, a poesia recusa os preâm-

* Este texto de Bachelard, apresentado na edição francesa como complemen­


to a A iutuiçtio do instaure, foi originalmente publicado na revista Mcssagrs : Mc­
taph ysique ct H•ésic, nY 2, 1 939, e prolonga a meditação do au tor sobre a ques­
tão do tempo.

93
A I NTUIÇAO DO I NSTA NTE

bulas, os princípios, os métodos, as provas . Recusa a dúvida .


Quando muito, ela tem necessidade de um prelúdio de silêncio.
Primeiro, valendo-se de palavras ocas, ela faz calar a prosa ou os
trinados que deixariam na alma do leitor uma continuidade de
pensamento ou de murmúrio. Depois, após as sonoridades va­
zias, ela produz seu instante. É para construir um instante com­
plexo, para atar, nesse instante, simultaneidades numerosas, que
o poeta destrói a continuidade simples do tempo encadeado.
-
Em todo poema verdadeiro, po dem-se, então, encontrar os
elementos de um tempo interrompido, de um tempo que não
segue a medida , de um tempo que chamaremos de vertical para
distingui-lo de um tempo comum que foge horizontalmente
com a água do rio, com o vento que passa . Daí o paradoxo que
cumpre enunciar claramente: enquanto o tempo da prosódia é
horizontal, o tempo da poesia é vertical. A prosódia organiza
apenas sonoridades sucessivas, regula cadências, administra ím­
petos e emoções, por vezes, infelizmente, de modo inoportuno.
Aceitando as consequências do instante poético, a prosódia per­
mite chegar à prosa , ao pensamento explicado, aos amores vi­
vidos, à vida social, à vida comum, à vida escorregadia, linear,
contínua. Mas todas as regras prosódicas não passam de meios,
de velhos meios . A meta é a verticalidade, a profundidade ou a
altura; é o instante estabilizado em que as simultaneidades, or­
denando-se, provam que o instante poético tem uma perspec­
tiva metafísica.
O instante poético, portanto, é necessariamente complexo :
ele comove, ele prova - convida, consola -, é espantoso e fami­
liar. Essencialmente, o instante poético é a relação harmônica
de dois contrários. No instante apaixonado do poeta, há sempre
um pouco de razão; na recusa racional , resta sempre um pouco
de paixão. As antíteses sucessivas agradam ao poeta . Mas, para

94
INSTANTE POETICO E INSTANTE M ETAFISICO

o encanta mento, para o êxtase, é preciso que as antí teses s e con­


traiam em ambivalência. Surge então o instante p oético . . . Quan­
do menos, o instante poético é a consciência de uma ambivalên­
cia. Mas ele é mais, porque é uma ambivalência excitada, ativa,
dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar ou a des­
valorizar. No i nstante poético o ser sobe ou desce, sem aceitar
o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o
simultâneo ao sucessivo.
Verificaremos facilmente essa relação da antítese com a am­
bivalência se quisermos comunicar-nos com o poeta , que, evi­
dentemente, vive em um instante os dois termos de suas antí­
teses. O segundo termo não é evocado pelo primeiro. Os dois
termos nasceram juntos. Encontraremos, então, os verdadeiros
instantes poéticos de um poema em todos os pontos nos quais
o coração humano pode inverter as antíteses. Mais intuitivamen­
te, a ambivalência bem atada revela-se por seu caráter tempo­
ral: em vez do tempo masculino e intrépido que arremete e que­
bra, em vez do tempo melífluo e submisso que lastima e chora,
eis o instante andrógino. O mistério poético é uma androginia.

11
Mas será que também é tempo esse pluralismo de acontecimen­
tos contraditórios encerrados num só instante? Será que é tem­
po toda essa perspectiva vertical que se proj eta sobre o instante
poético? Sim, porque as simultaneidades acumuladas são simul­
taneidades ordenadas. Elas conferem uma dimensão ao instante,
porque lhe dão uma ordem interna . Ora, o tempo é uma or­
dem, e nada mais que uma ordem . E toda ordem é um tempo.
A ordem das ambivalências no instante é, portan to, um tem­
po. E é esse tempo vertical que o poeta descobre quando recu-

95
A I NTU IÇAO DO I N STA NTE

sa o tempo horizontal, ou seja, o devir dos outros, o devir da


vida, o devir do mundo. Eis, portanto, as três ordens de expe­
riências sucessivas que desacorrentam o ser encadeado no tem­
po horizontal :

1 ) habituar-se a não referir o tempo próprio ao tempo dos ou­


tros - romper os contextos sociais da duração;
2) habituar-se a não referir o tempo próprio ao tempo das coi­
sas - romper os contextos fenomênieos da duração;
3) habituar-se - duro exercício - a não referir o tempo pró­
prio ao tempo da vida; não mais saber se o coração bate, se
a alegria avança - romper os contextos vitais da duração.

Somente então se alcança a referência autossincrônica no


centro de si mesmo, sem a vida periférica. D e repente toda a
horizontalidade plana se desfaz. O tempo já não corre. Ele jorra.

111
Para conservar, ou, antes, para reencontrar esse instante poético
estabilizado, poetas há, como Mallarmé, que brutalizam direta­
mente o tempo horizontal, que invertem a sintaxe, que inter­
rompem ou desviam as consequências do instante poético. As
prosódias complicadas põem seixos no riacho para que as ondas
pulverizem as imagens ruteis, para que os redemoinhos desfaçam
os reflexos. Lendo Mallarmé, tem-se com frequência a sensação
de um tempo recorrente que vem pôr termo a instantes idos.
Vivemos, então, retardatariamente os instantes que deveríamos
ter vivido - sensação tanto mais estranha quanto não participa
de nenhum pesar, de nenhum arrependimento, de nenhuma nos­
talgia. Ela é feita simplesmente de um tempo trabalhado que sabe

96
INSTANTE POETICO E INSTANTE METAFISICO

por vezes colocar o eco antes da voz e a recusa antes do con­


sentimento.
Outros poetas, mais felizes, apreendem naturalmente o ins­
tante estabilizado. Baudelaire vê, como os chineses, a hora no
olho dos gatos, a hora insensível em que a paixão é tão com­
pleta que desdenha de realizar-se: " No fundo de seus olhos ado­
ráveis, vej o sempre a hora distintamente, sempre a mesma, uma
hora vasta , solene, grande como o espaço, sem divisões de mi­
nutos nem de segu ndos, uma hora imóvel que não é marcada
pelos relógios [ . . . )" . 1 Para os poetas que realizam assim o ins­
tante com facilidade, o poema não se desenrola, ele se amarra,
se tece de nó em nó. Seu drama não se efetua. Seu mal é uma
flor serena.
Equilibrando-se sobre a meia-noite, sem nada esperar do
sopro das horas, o poeta alija-se de toda vida inútil; vivencia a
ambivalência abstrata do ser e do não ser. Nas trevas, ele vê me­
lhor a própria luz. A solidão lhe traz o pensamento solitário,
pensamento sem diversão, pensamento que se eleva, que se acal­
ma exaltando-se puramente.
O tempo vertical eleva-se. Às vezes ele tat.lbém soçobra. A
meia-noite, para quem sabe ler O corvo, nunca mais soa hori­
zontalmente. Ela soa na alma, descendo, descendo. . . Raras são
as noites em que tenho coragem de ir até o fundo, até a déci­
ma segu nda badalada, até a décima segunda batida, até a décima
segu nda lembrança .. .Volto então ao tempo plano; mcadeio, tor­
no a me encadear, volto para perto dos vivos, para a vida . Para
viver, é preciso sempre trair os fantasmas . . .
É n o tempo vertical - descendo - que se escalonam as pio­
res dores, as dores sem causalidade temporal, as dores agudas que

1 Baudelaire, CErlvrcs, tomo I, Plêiade, p. 429.

97
A I NTUIÇAO DO I N STANTE

atravessam um coração para nada, sem jamais enlanguescer. É


no tempo vertical - subindo - que se estabiliza a consolação
sem esperança, essa estranha consolação autóctone, sem protetor.
Em suma, tudo quanto nos aparta da causa e da recompensa,
tudo quanto nega a história íntima e o próprio desej o, tudo
quanto desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro, en­
contra-se no instante poético.

Deseja-se um estudo de um pequeno fragmento do tem­


po poético vertical? Tome-se o instante poético da lamentação
risonha, no momento mesmo em que a noite adormece e con­
solida as trevas, em que as horas mal respiram, em que a solidão
por si só já é um remorso ! Os polos ambivalentes da lamentação
risonha quase se tocam . A menor oscilação os substitui um ao
outro. A lamentação risonha é, portanto, uma das mais sensíveis
ambivalências de um coração sensível. Ora, ela se desenvolve,
evidentemente, num tempo vertical , porque nenhum dos dois
momentos, sorriso ou lamentação, é antecedente. O sentimento
é aqui reversível, ou, melhor dizendo, a reversibilidade do ser é
aqui sentimentalizada: o sorriso lamenta e a lamentação sorri, a
lamentação consola . Nenhum dos tempos expressos sucessiva­
mente é a causa do outro - tal é, portanto, a prova de que se
exprimem mal no tempo sucessivo, no tempo horizontal. Mas
existe ainda assim, de um ao outro, um devir, um devir que só
se pode vivenciar verticalmente, subindo, com a impressão de
que o pesar se alivia , de que a alma se eleva , de que o fantasma
perdoa . Então, verdadeiramente, a desventura floresce. Um me­
tafisico sensível encontrará assim, na lamentação risonha, a beleza
formal da desdita . É em fu nção da causalidade formal que ele
compreenderá o valor de desmaterialização em que se reconhe­
ce o instante poético. Outra prova de que a causalidade formal

98
INSTANTE POETICO E INSTANTE METAFISICO

se desenrola no boj o do instante, no sentido de um tempo verti­


cal, enquanto a causalidade eficiente se desenrola na vida e nas
coisas, horizontalmente, agrupando instantes de intensidades va­
riadas.
Naturalmente, na perspectiva do i nstante, podem-se viven­
ciar ambivalências de mais longo alcance:"Criança, senti no co­
ração dois sentimentos contraditórios: o horror da vida e o êxtase
da vida " . 2 Os instantes em que esses sentimentos são vivencia­
dos juntos imobilizam o tempo, porque são vivenciados j untos
ligados pelo interesse fascinante pela vida. Eles removem o ser
da duração comum.Tal ambivalência não pode descrever-se em
tempos sucessivos, como um vulgar balanço das alegrias e dores
passageiras . Contrários tão vivos, tão fundamentais, pertencem
ao domínio de uma metafisica imediata .Vivemos-lhes a oscila­
ção num único instante, por êxtases e quedas que podem mes­
mo estar em oposição aos acontecimentos: o desgosto de viver
nos acomete no gozo tão fatalmente quanto a altivez no infor­
túnio. Os temperamentos cíclicos que se desenrolam na duração
usual, seguindo a lua, dos estados contraditórios só apresentam
paródias da ambivalência fundamental. Soment�.: uma psicologia
aprofundada do instante poderá dar-nos os esquemas necessá­
rios para a compreensão do drama poético essencial .

IV
É notável que um dos poetas que mais fortemente apreenderam
os instantes decisivos do ser seja o poeta das correspondências. A
correspondência baudelairiana não é, como tantas vezes se afir-

2 I d e m , Mo11 m·ur mis à 1111, p. 88 ]ed. bras . : Meu comçào dcsrwdt�do, Nova Fron­
teira, 1 98 1 ] .

99
A I NTUIÇÃO DO INSTANTE

ma, uma simples transposição que daria um código de analo­


gias sensuais. É um somatório do ser sensível num ú nico ins­
tante. Mas as simultaneidades sensíveis que reúnem os perfumes,
as cores e os sons só fazem esboçar simultaneidades mais dis­
tantes e mais profundas. Nessas duas u nidades da noite e da luz,
reencontra-se a dupla eternidade do bem e do mal. O que há
de "vasto" na noite e na claridade não deve sugerir-nos uma vi­
são espacial . A noite e a luz não são evocadas por sua extensão,
por seu infinito, mas por sua unidade.A noite não é um espaço.
É uma ameaça de eternidade. Noite e luz são instantes imóveis,
instantes escuros ou claros, alegres ou tristes, escuros e claros,
tristes e alegres. Nunca o instante poético foi mais completo
que nesse verso em que se pode associar ao mesmo tempo a
imensidade do dia e da noite. Nunca se fez sentir tão fisicamen­
te a a mbivalência dos sentimentos, o maniqueísmo dos prin­
cípios.
Meditando nesse caminho, chega-se repentinamente a esta
conclusão : toda moralidade é instant�nea. O imperativo categóri­
co da moralidade não tem o que fazer com a duração. Não re­
tém nenhuma causa sensível, não espera nenhuma consequência.
Vai direto, verticalmente, ao tempo das formas e das pessoas. O
poeta é, então, o guia natural do metafisico que quer compreen­
der todas as potências de ligações instantâneas, o ímpeto do sa­
crifício, sem se deixar dividir pela dualidade filosófica grosseira
do suj eito e do obj eto, sem se deixar deter pelo dualismo do
egoísmo e do dever. O poeta anima uma dialética mais sutil.
Revela ao mesmo tempo, no mesmo instante, a solidariedade
da forma e da pessoa. Prova que a forma é uma pessoa e que a
pessoa é uma forma . A poesia torna-se, assim, um instante da
causa formal, um instante da potência pessoal. Ela se desinte­
ressa , então, daquilo que desfaz e daquilo que dissolve, de uma

1 00
INSTANTE PO�TICO E I NSTANTE M ETAF !SICO

duração que dispersa ecos. Ela busca o instante. Só tem neces­


sidade do instante. Cria o instante. Fora do instante há apenas
prosa e canção. É no tempo vertical de um instante imobilizado
que a poesia encontra seu dinamismo específico. Há um dina­
mismo puro da poesia pura. É aquele que se desenvolve verti­
calmente no tempo das formas e das pessoas.

1o1

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