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A SITUAÇÃO ATUAL DA FILOSOFIA1

Quando se alude à situação atual de qualquer coisa, à última


“performance” de um determinado empreendimento humano,
podemos estar certos de propor algo que condiz com a sede de
informações desta segunda metade do século XX. Não existe
tendência mais pessoal de nossos dias do que a que impele a es-
tar ao corrente dos fatos culminantes e decisivos em todos os se-
tores. Devemos reconhecer que não se trata, nesse caso, de uma
curiosidade malsã como em outros tempos, pois se por todas as
partes se amontoam presságios aflitivos, o conhecimento e os
feitos da ciência, da tecnologia e do pensamento político-ideo-
lógico contribuíram decisivamente para alçar o grande espanta-
lho que se nos defronta. Sabemos que as proezas da inteligência
não revestem mais o caráter de inocentes travessuras da mente
individual, mas sim de realizações que podem pôr em xeque o
conjunto do destino mundial. Um certeiro instinto de conser-
vação põe a consciência num alerta permanente, numa procura
afanosa de informações e furos “noticiosos”, na espectativa de
acontecimentos intelectuais que poderiam acometer desastro-
samente a ordem vital em curso.

1
“A Situação Atual da Filosofia”, Diário de São Paulo, São Paulo, 18 jul. 1954.
(N. O.)

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Se o conhecimento assumiu em geral o papel do aprendiz-
feiticeiro, poderíamos indagar se no setor do pensamento filo-
sófico as consequências intelectuais mostram uma fisionomia
mais tranquilizadora. Não pretendemos traçar aqui um digesto
das doutrinas e cosmovisões mais notórias, mas unicamente as-
sinalar certas ideias com as quais se deve contar daqui por diante
e que designo como o ponto de partida de futuras elaborações.
A ideia central do pensamento filosófico atual é a ideia da fini-
tude radical do homem, a ideia do homem como res derelicta nas
praias do mundo. O alcance espantoso dessa ideia, entretanto,
não foi bem compreendido nem por certos insígnes expositores
do pensamento existencialista. A finitude de que aqui se trata não
é a que comparece, por exemplo, no pensamento idealista como
antítese do Infinito, como limitação deste Infinito, como forma
ou configuração continuamente desfeita pelo processo infinito
do espírito. O conceito da finitude expressa agora, pelo contrário,
o estado de subordinação de todo o modo de ser do homem, con-
cebendo-o como um ser lançado ou abandonado ao seu estatuto
próprio. O homem é um ser jungido ao seu grupo de possibili-
dades constitutivas, ao seu papel dramático próprio, sendo esse
papel e esse drama confeccionado por poderes transumanos. As
possibilidades hominídeas de ser, isto é, o próprio homem cons-
titui a repercussão de um gesto de prodigalidade que desenha o
papel que o homem histórico pode em cada caso desempenhar. A
liberdade humana só pode exercer-se nesse campo já dado, nes-
se mundo inaugurado por essa fonte de prodigalidade que põe à
disposição um espaço de ações possíveis.
Essas ações possíveis constituem o papel histórico e, ao mesmo
tempo, o mundo da liberdade e o mundo da finitude. O homem
não pode cavalgar e superar esses limites de sua liberdade, sendo
no fundo toda a liberdade uma liberdade lançada no mundo. A
finitude do homem consiste justamente nesse ser empolgado por
um papel, nesse ser remetido a si mesmo através de um Poder
que escapa ao seu controle. Além da esfera das decisões huma-
nas, do optar por isso ou por aquilo, o pensamento vislumbra

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uma nova dimensão, a dimensão do Ser onde se operam aquelas
“decisões” que fundam o cenário das decisões finitas do homem.
O tipo de mundo em que vivemos, a representação que temos de
nós mesmo, os valores e os deuses que cultuamos, tudo isso nos é
oferecido pronto com o alvorecer de um ciclo de civilização. Nós
nos limitamos a operar dentro dos caminhos pré-traçados pela
capacidade projetante do Ser. Heidegger costuma dizer que o Ser
é o domínio do projetar, sendo em si mesmo um puro projetar,
uma abertura de mundos, uma iluminação que esboça o perfil
das coisas e de nós mesmos. Todos os entes que conhecemos são
dispensados ou oferecidos por esse ofertar do Ser ou por esse
Ser que é um puro ofertar. O pensamento filosófico desse Ser é
a tarefa ingente da filosofia atual. Esse pensamento deve pensar
uma realidade que é uma não-coisa, um não-ente, que está além
de todos os entes e que entretanto os revela, ilumina, desocul-
ta e projeta. O pensamento do Ser, sendo o pensamento de um
não-ente, dever-se-ia identificar com o pensamento do Nada. O
Ser e o Nada são termos que aparecem frequentemente nas pági-
nas dos filósofos atuais. Entretanto, o Nada da filosofia atual não
expressa uma privação vazia de sentido, mas sim uma plenitu-
de dadivosa, um ploutos. O Ser pode manifestar-se como Nada,
quando confrontando com as coisas, quando experimentado
como um poder que derroga a validez independente do mun-
do convencional em que vivemos. O Ser e o Nada expressam no
pensamento atual uma plenitude que exorbita e excede o mundo
estereotipado dos símbolos linguísticos de nossa cultura. Esse
ploutos do Ser transforma em idiosincrasia e subjetivismo, em
aspecto faccioso e unilateral, à perspectiva que comanda a nossa
existência. Do ponto de vista do pensamento do Ser, todo pen-
samento tradicional deve ser superado como expressão de um
mero subjetivismo e uma violentação da realidade, na medida
em que somos capazes de operar essa conversão do pensamento
para a órbita transcendente do Dispensator. O pensamento do
ser pode ainda caracterizar uma atitude intelectual de tipo hu-
manístico? O pensamento da finitude radical do homem ou do
homem como um mero receptor de desempenhos não é de molde

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a nos desencantar em relação a qualquer doutrina da dignidade e
da sublimidade do poder humano? O homem não será um prin-
cípio derivado em relação às forças instituidoras do humano, do
não humano e do transumano? Voltando ao início deste artigo e
lembrando o sentimento aflitivo dos presságios que desconcer-
tam a consciência atual, podemos afirmar que as tendências do
pensamento filosófico possuem os mesmos traços inquietantes
das outras formulações da mente contemporânea.

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ENZO PACI E O PENSAMENTO SUL-AMERICANO1
O professor Enzo Paci, no artigo dedicado ao Congresso In-
ternacional de Filosofia de São Paulo e publicado no último nú-
mero da Revista Brasileira de Filosofia, fez diversas declarações
sobre a situação do pensamento sul-americano e brasileiro que,
por discordarem extraordinariamente dos fatos objetivos, nos
ensejaram essa retificação de pontos de vista. Afirma em primei-
ro lugar o professor Paci que existe como tendência relevante
do pensamento sul-americano atual uma reivindicação autono-
mista, um desejo de afirmar a independência e originalidade da
filosofia sul-americana em relação ao pensamento europeu. No
correr do Congresso, entretanto, essa tese de um possível des-
taque da meditação sul-americana só foi defendida por escrito,
que eu saiba, pelo professor Carlos Astrada, essa vontade de es-
tabelecer limites e soberanias filosóficas processando-se em ter-
mos curiosamente contraditórios, pois se desenvolveu dentro de
uma temática existencialista e marxista e como identificação dos
impulsos surdos da alma americana com a maré montante do so-
cialismo ecumênico e universalista. Nada menos sul-americano,
portanto, do que essa pretensa cosmovisão dos povos de aquém-
mar. Entretanto o professor Paci afirma que eu mesmo me decla-
rei a favor da tese de uma autonomia da filosofia sul-americana.

1
“Enzo Paci e o Pensamento Sul-Americano”, Revista Brasileira de Filosofia, v. 5,
fasc. 18, abr./jun. 1955, p. 287-289. (N. O.)

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Como é fácil verificar na tese que apresentei no Congresso, não
existe sequer uma linha sobre esse assunto, nem poderia existir
dentro das minhas convicções próprias, que compreendem o fe-
nômeno cultural norte e sul-americano como um mero prolon-
gamento pós-renascentista da civilização europeia. A diferença
geográfica não decide sobre as motivações profundas da nossa
civilização em desenvolvimento, que é a mesma que a europeia e
que, segundo a acertada observação do professor Sorokin, man-
tém uma perfeita isocronia com o processo europeu. Também
não podemos aceitar as ideias defendidas por Gilberto Freyre em
diversas obras, que a força miscigenada do português e a conflu-
ência das três etnias existenciais no país está gerando uma nova
cultura com uma fisionomia e uma cosmovisão especial.
No Brasil como no resto da América do Sul, a civilização eu-
ropeia levou de vencida o elemento indígena e depois o elemento
negro, aniquilando os seus valores e a sua percepção interna da
existência, arrastando-as para as finalidades do processo cultural
lusitano. O Brasil ainda é, e sempre será – máxime agora com a
avalanche da civilização tecnológica-industrial – um prolonga-
mento cultural da Europa. Quando se fala portanto numa alie-
nação do espírito brasileiro nas formas de atividade literárias,
filosóficas ou artísticas de outros países, ou não se tem em mente
os fatos acima apontados ou se imagina essa alienação em função
de uma personalidade nacional meramente virtual, em relação a
uma alma secreta do Brasil, que ainda não chegou a expressar-
se. Ninguém menos predisposto do que eu, portanto, para falar
numa autonomia do pensamento sul-americano e a enfrentar a
inteligência europeia com um sentimento não filial. É certo que
houve no decurso deste século alguns movimentos de ruptura
com a vertente europeia, movimentos como a Antropofagia e o
Pau-Brasil, oriundos da Semana de 22 e que se esforçaram por
plasmar uma pretensa autarquia espiritual do país. No fundo
constituem um mero repetir de coisas europeias, do modernismo
e do futurismo, transplantado para aqui e infundido de cor local,
sem maiores consequências sobre o desenvolvimento fenotípico

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do país. Como falar de uma forma de pensamento sul-americano
distinto e oposto ao europeu num meio cultural determinado pe-
las mesmas tábuas de valores e pelos mesmos objetivos sociais?
Segundo o filósofo italiano, os traços característicos desse conjec-
tural pensamento sul-americano, e do qual a minha tese “História e
Meta-História” seria um exemplo, consistiriam num estreito conta-
to desse pensamento com o mundo mitológico primitivo e em geral
na valorização da filosofia dos mitos que, no Brasil, seria sentida de
modo particular. Também nesse ponto devo discordar das asserções
contidas na resenha do professor Paci pelo simples fato das corren-
tes de pensamento sul-americanas desconhecerem até bem pouco
tempo sequer o sentido dessa problemática. No Brasil, a não ser um
reduzido grupo de estudiosos de São Paulo, ninguém se deu ao tra-
balho até agora de ler as obras de Schelling que constituem, como
bem assinalam Walter Otto e Kerényi, o ponto de partida de uma
valorização em profundidade das formações mitológicas.
Podemos pelo contrário afirmar que a forma mentis nacional é
particularmente avessa a esse gênero de pensamento, que impli-
ca uma certa relativização de nossa representação humanística e
um consecutivo estado de disponibilidade para outras represen-
tações da vida, tão dignas quanto a nossa. Em geral, o estudioso
brasileiro, e podemos citar muitos exemplos, se aproxima dessa
mitologia indígena ou negra, se é que podemos assim chamar os
resíduos que ainda se encontram, não como quem desvenda ou-
tras faces do fenômeno religioso, outras manifestações fidedig-
nas dos poderes numinosos, mas sim com a postura de quem,
de posse de uma ciência superior, passa em revista as incríveis
superstições do fetichismo de outrora.
Assim, parece-me fantasia a declaração de que os pensado-
res sul-americanos e brasileiros estão dando a devida atenção ao
mundo mitológico, a esse ciclo de realidades condicionadoras da
História, quando a verdade é bem outra. Afirma, outrossim, o
ilustre professor de Pavia que as ideias de minha tese podem ser
“reconduzidas à última forma do existencialismo de Heidegger”.

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Sabemos como Heidegger reporta à “desocultação do ente”, isto
é, às possibilidades historiáveis, a força iluminadora do Ser.
Interpretar essa “desocultação” não com Poesia, mas sim como
Proto-Poesia, isto é, como Mitologia, é que constitui o coeficiente
de originalidade da minha tese. Em outras palavras, essa origina-
lidade consiste na tentativa de uma aproximação entre o último
Heidegger e a Filosofia da Mitologia de Schelling, cancelando nes-
ta última doutrina a teoria dos deuses terminais e causadores do
processo teogônico. Mas há mais; procurei dar à experiência do
Ser uma tonalidade emocional e pulsional, compreendendo essa
experiência como Fascinação. A presença dos Deuses é o traço ori-
ginário do Fascinator, é aquela proto-poesia que condiciona e en-
volve todas as consecutivas “aberturas da palavra”. A presença dos
Deuses é o oferecer primário que torna tudo o mais pura instância
“oferecida”, puro ente fundado. Dessa maneira, a História, como
teatro do “oferecido” em possibilidades, se reintegra totalmente
na Matriz mítica donde provém; a História é adjetiva e não subs-
tantiva, a História é a aparência e não realidade. Nessa análise da
função adjetiva da História apelo de fato em minha tese para certas
ideias de Hölderlin, mas são justamente certas concepções hölder-
linianas que não foram ainda estudadas por Heidegger, a saber, a
concepção da “conversão infinita”, da Unendlich Umkehr.
Vemos, portanto, como contrariamente ao que afirma o pro-
fessor Paci, a minha posição não pode “ser facilmente reconduzi-
da à última forma do existencialismo de Heidegger”.
Só posso atribuir, além disso, ao espírito humorístico do ami-
go Paci a ideia de que espero um ressurgimento da religião dos
Incas e Aztecas para a superação da unilateralidade da civilização
industrial e tecnológica dos nossos dias. Nunca afirmei tal coisa
nem oralmente nem por escrito e só posso considerar essa afir-
mação um equívoco. No mais, acredito com o professor Paci que
não só no Brasil como também a Europa estão a ponto de recon-
quistar para a especulação filosófica o vasto mundo da Poesia em
si, da Poesia transumana.

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