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KNAPP, P & SPECTOR, A.J.

Crisis & Changc: Basic Questions of Marxist So-


cíoIoít\'. 2. ed. Londres: Rowman and Littlcficld, 2011.
Introduz a teoria marxista usando um formato pergunta c resposta que c especial-
mente adequado aos estudantes. Trata de uma ampla variedade de temas com uma
perspcctiva global e de um modo que convida a um vigoroso debate.

LE BLANC, P. Marx, Lenin, and the Revolutionary Expcrience. Nova York:


Routledge, 2006.
Uma discussão abrangente sobre os movimentos revolucionários democráticos cm
ação da década de 1930 ate o presente; argumenta em favor da importância de Marx
c Lenin; discute os direitos civis americanos c o encontro global entre o marxismo e
a religião.
MeLELLAN, D. Marxism and Rtligion. Nova York: Harper & Row, 1987.
Uma das melhores descrições do tema em inglês, essa análise se estende de Mane c de
seus seguidores iniciais ate a teoria marxista recente.

. KarlMarx. Modern Masters Series. Harmondsworth/Middlcsex: Pen-


guin, 1976.
Uma breve descrição biográfica da carreira, controvérsias c ideias de Marx; fornece
uma visão geral clara c sucinta.

PLAMENATZ, J. KarlMarx’s Philosoplry ofMan. Oxford: Clarcndon, 1975.


Um exame acadêmico sutil das ideias e argumentos no centro do pensamento de
Marx.
ROCKMORE, T. Marx After Marxism. Oxford: Blackwell, 2002.
Uma outra tentativa, ocasionada pelo grande colapso de 1989, de recuperar a voz de
Marx, o filósofo político, que reagiu contra Hegcl e, assim, libertou o Marx real dos
“marxismos” posteriores.

SPERBER, J. Karl Marx: A Nineteenth-Century Life. Nova York: Liveright.


2013.
Essa ambiciosa biografia expansiva foi amplamcntc elogiada e está destinada a ser
a discussão-padrão pelos próximos anos. Escrita por um importante historiador da
Europa, apoia-se na recentemente publicada edição completa dos escritos de Marv
e Engcls c cobre todos os aspectos da vida e assuntos pessoais de Marx, com scj
trabalho como teórico, polemista brilhante, formidável colega intelectual e anvist:
comprometido.

162
5
Uma fonte de ação social
Max Weber

O ctitc humano é um animal suspenso cm redes de significação


que cie próprio tramou113.

Sc tomarmos Frcud, Durkhcim c Marx conjuntamente, uma coisa parece


clara: cada um desenvolve uma visão decididamente funcional de religião. De
suas várias perspcctivas, não basta dizer que alguns hindus cultuam Shiva porque
acreditam cm seu poder ou que os muçulmanos seguem o Alcorão porque ele
sustenta verdades reveladas por Deus. Eles escolhem, em troca, mostrar como
essas crenças são rastreáveis até as condições ou necessidades mais profundas -
abaixo da superfície da aquiescência da mente. Além disso, eles acreditam que es­
sas abordagens funcionalistas levam logicamente a conclusões reducionistas. Isso
não diz respeito apenas a explicar um aspecto da religião enquanto outras teorias
explicam outros aspectos. A premissa desse funcionalismo é que ele descobriu o
que é básico e fundamental. A religião - toda a religião - pode ser completamcn-
tc descrita ao se conectá-la a uma única circunstância subjacente ou causa ele­
mentar: o estado de neurose universal da humanidade, às exigências da sociedade
sobre o indivíduo, ou ao mundo da dinâmica da luta de classes. Essas explanações
têm um alcance amplo para jogar as evidências de todos os casos na adoção de
uma única fórmula. Essa é a chave para seu apelo. Mesmo assim, podemos ainda
perguntar se essas são as melhores descrições? Essas teorias reducionistas talvez
cheguem às suas conclusões ousadas muito facilmente? E se devêssemos começar,
cm troca, na obstinada complexidade do comportamento religioso e perguntar se
um composto assim pode ser facilmente destilado em um substrato único?
Na virada do século XIX, nenhum teórico estava mais intrigado pela des­
concertante complexidade do comportamento humano do que o cientista social
alemão Max Weber, que começara seus estudos, como Marx, um século antes,

113. CiEERTZ, C. “Thick Description: Toward an Intcrprctivc Thcory of Culmrc”. In: The ínter-
prctation ofCulture: Sclccrcd Essays. Nova York: Basic Books, 1973, p. 5.

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na Universidade de Berlim, onde seu principal interesse não era a religião, mas a
economia e o direito. Embora muitas vezes apareça ao lado de Durkhcim como
um dos dois fundadores da sociologia moderna, o termo “sociólogo” não faz
justiça à variedade ampla de interesses intelectuais de Weber. Sua mente era en­
ciclopédica e absorvente, imersa cm conhecimentos que abarcavam não apenas
direito e economia, mas também história, filosofia, arte, religião, literatura e mú­
sica. Enquanto lia c escrevia, trabalhava metodicamente para encontrar conexões
c delinear contextos. Ele traçou as ligações entre política, geografia c história
cultural; explorou as raízes do conflito de classes; descreveu as características
dos grupos de stntus sociais; distinguiu os tipos de ação humana c as formas de
autoridade social; examinou o papel das instituições administrativas; e intuitiva-
mente compreendeu o poder do comportamento c da crença religiosos na vida
social. A sociedade, no seu ver, é mais bem compreendida como uma tapeçaria
de fios muito diferentes, mas estreitamente entremeados, da atividade humana,
onde cada fio se entremeia acima c abaixo do próximo. O status da religião sob
esse aspecto é equivalente ao de outros comportamentos humanos. Para Frcud,
Durkhcim e Marx, parece óbvio que a religião deveria sempre ser considerada
um efeito e nunca identificada como uma causa. Para Weber, isso não é tão
óbvio. Nos assuntos humanos, os trens causais não viajam em trilhos dc uma via;
a explicação c mais complicada. Como uma atividade completamente humana,
a religião nem sempre é causa e nem sempre é efeito; pode ser um dos dois ou
ambos conforme somente a circunstância específica pode determinar.

Antecedentes: família, política e bolsa de estudos

Karl Emil Maximilian “Max” Weber (1864-1920) era o mais velho dos oito
filhos de Max (pai) e Hclene Fallenstein Weber. Embora a família Weber tivesse
há muito prosperado como fabricante de linho na região da Westfália, o pai de
Max escolheu uma carreira no direito e se tornou ativo no governo. Enquanto seu
primeiro filho ainda era criança, mudou-sc para Berlim, onde desfrutou de unu
longa carreira parlamentar, servindo primeiro na Câmara de Deputados prussiana e
mais tarde na Reichstag alemã como membro do Partido Liberal Nacional. Extro­
vertido, autoconfiante e apoiador do “Chanceler dc Ferro” do império, Otto von
Bismarck, ele se encaixava bem na vida social e política da cidade, abrindo sua casa
regularmente a colegas e amigos. Helcne, a filha de um ministro dc governo em
Berlim, também vinha da riqueza. Altamente educada para uma mulher de sua épo­
ca, era mais introspectiva do que seu esposo e dedicadamente religiosa, com unu
forte consciência social intensamente em sintonia com as dificuldades dos pobrts.
Esses temperamentos parentais contrastantes convergiram, um pouco inco­
modamente, na personalidade de seu filho. Max júnior partilhava do interesse

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ativo de seu pai pela política c pelo governo, mas herdou dc sua mãe a atitude
reflexiva, assim como sua sensibilidade ética e idealismo humanitário. Descrever
sua vida inicial como “cerebral” seria uma meia-verdade114. Desde o início, ler era
tão rotineiro quanto respirar. Aos treze anos, sua ideia dc um presente de Natal
para seus pais foi um par dc ensaios: um sobre história medieval alemã, outro
sobre o Império Romano tardio. A casa de Weber fazia pouca distinção entre
aprendizagem e lazer. Visitantes da elite política e intelectual dc Berlim eram uma
ocorrência regular. Nas salas repletas de discussões entrecruzadas sobre econo­
mia e sociedade, política, direito e história (convenientemente temperadas com
fofoca social), Weber adolescente encontrou algumas das figuras mais reluzentes
em uma era de ouro do conhecimento alemão. O filósofo Wilhclm Dilthey, o
eminente classicista romano Theodore Mommsen, o historiador Heinrich von
Trcitschke, o teólogo Emst Troeltsch - esses e outros eram não apenas autores em
uma página; eram amigos da família encontrados pessoalmentc.
A educação formal de Weber não foi menos estelar. Na escola preparatória em
Berlim assumiu um interesse por filosofia e pela história antiga e medieval. Lia
amplamente autores clássicos - Homero, Heródoto, Virgílio e Cícero - enquanto
também lia os trabalhos dc Goethe, principalmente como uma distração pessoal
de aulas pouco estimulantes. Em 1882 ingressou na Universidade de Heidelberg
para estudar história legal e económica, assim como filosofia c teologia. Ele tam­
bém se filiou a uma fraternidade, onde, como Marx, aprendeu a duelar e beber -
ambos com mais vigor do que sabedoria, a julgar pelos registros infelizes de sua
mãe. Após um ano de estudos e serviço militar combinados em Estrasburgo, onde
formou uma amizade com o historiador (e também seu tio) Hermann Baumgar-
ten, Weber retomou para trabalhar também na universidade cm Berlim. Lá, pelos
próximos oito anos e embora ainda vivendo com seus pais, buscou estudos avan­
çados em história legal e económica. Em 1889 obteve o grau de doutor com uma
tese sobre as companhias dc comércio italianas medievais; logo após, completou
seu trabalho em direito e assumiu uma posição nas cortes de Berlim. Em 1892,
obteve sua Habilitation, ou licença, de professor universitário com um estudo
sobre agriculmra e direito na Roma antiga. Em torno dessa época, ele também se
envolveu com Mariannc Schnitgcr, uma prima distante; eles se casaram um ano
mais tarde, assim que Weber iniciou sua vida profissional.
Com seu casamento aos vinte e nove anos, a história de vida de Weber se di­
vide cm uma história de dois .tf/m. Profissionalmente, havia se estabelecido como
estudioso extremamente promissor; posições esperavam por ele tanto no gover­
no como na universidade. Ele havia se tomado ativo na Vnrinfiir Socialpolitik, ou

114. Uma breve, mas detalhada, descrição desses primeiros anos c da educação c fornecida cm:
KASLER, D. Max Weber. An Introduction to His Life and Work. Chicago: University of Chicago
Press, 1988, p. 1-25.

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União pela Política Social, uma organização de economistas profissionais para a
qual cie preparou um importante estudo sobre imigração e trabalho agrícola no
Leste da Alemanha. Ele também publicou uma análise sobre o recém-estabele­
cido mercado de ações alemão115. Em 1895, aceitou uma indicação para a uni­
versidade (notável para um acadêmico de sua idade) como professor de regime
integral de Economia Política cm Freiburg, c no ano seguinte aceitou um posto
similar, com maior prestígio, na Universidade de Hcidclberg.
Em um nível pessoal, contudo, sua vida deu uma virada perturbadora. O ca­
samento com Marianne terminou sendo inusual, ao menos pelas medidas normais
de afeição. Embora ele e sua nova esposa fossem pessoas ideais c companheiros
intelectuais, escolheram, aparentemente por consentimento mútuo, uma relação
marital que seria não apenas sem filhos, mas quase ccrtamentc também asscxuaL
Não é claro exaramente por quê. A capacidade dc Wcber para autonegação era bem
conhecida, e parece ter convergido para algo similar em sua esposa - uma aparente
aversão à sexualidade física. A verdade inteira sobre esse assunto íntimo está pro­
vavelmente longe dc ser descoberta. (Marianne, que escreveu a primeira biografia
sobre seu esposo, queimou todos os papéis pessoais após sua morte116.) Contudo,
prepara, certamcnte, as condições para a perturbação emocional, que foi ainda
mais com plicada por outras tensões. Embora respeitasse seus pais, Weber na vida
adulta se aproximou mais dc sua mãe c sentia necessidade de apoiá-la contra seu
pai, que poderia ser pcssoalmente dominador. Na ocasião de uma altercação vio-
lenta sobre o direito dc sua mãe a visitar seu filho e sua nora recém-casados, agora
vivendo longe de Berlim, Max júnior tomou o partido dc sua mãe, opondo-se fu­
riosamente ao seu pai. Alguns meses mais tarde, antes que pudessem se reconciliar.
seu pai morreria repentinamente de um ataque cardíaco. Sc sentimentos dc culpj
estiveram envolvidos ou não, Wcber em breve se encontraria se encaminhando par J
um sério colapso emocional. De 1897 a 1901, c mesmo depois disso, ele luto I
com episódios de ansiedade paralisante que o deixavam a cada vez exausto, inquicI
to, insone e incapaz de funcionar em seu papel de professor. Após várias licenç. I
para tratamento de saúde, renunciou à sua nomeação em Heidelberg, retirando--I
eferivamente de qualquer posição profissional117. Somente em 1918, aceitou no\ I
mente um posto acadêmico, dessa vez na Universidade de Viena. Menos de d*. I

115. Para descrições c discussões sobre esses primeiros estudos, cf. BENDIX, R. Max IIHw.
Intellcctual Portrait. 2. cd. Bcrkelcy: University of Califórnia Press, 1978, p. 13-48.
116. Sua memória ricamcntc anedótica, mas também muito formal c protetora, c Marianne (Schnirp I
Wcber (Max Wcber: A Biography. Londres: John Wilcy & Sons, 1975). j
117. Uma tentativa notável (embora também controversa) dc fornecer uma descrição “pio ' I
tórica” da vida c pensamento dc Wcber que culmina em sua crise emocional c o trabalho de An I
Mitzman, TJjc Irou Cagc (Nova York: Alfred A. Knopf, 1970). I

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anos depois, contraiu pneumonia. Inadequadamente tratada, tomou sua vida aos
cinquenta e nove anos, no auge de sua carreira intelectual.
Embora a desordem nervosa o tenha afastado de seus deveres universitários,
Webcr ao longo do tempo recuperou gradualmentc sua capacidade para o traba­
lho acadêmico. Conseguiu viajar pela Europa c Estados Unidos, onde participou
de conferencias sobre teoria c política sociais. Embora não mais em uma posição
professoral, foi capaz em 1904 de aceitar um cargo de editor (junto aos econo­
mistas Werner Sombart e Edgar Jaffe) em uma importante revista acadêmica, a
Archiv fiir Sozialwissctischaften uni Sozialpolitik [Arquivo para as ciências sociais
e política social]. Esse passo foi cmocionalmentc terapêutico c intclcctualmcntc
oportuno. Auxiliado pelos fundos familiares e (após 1907) por uma confortável
herança, Webcr começou a trabalhar como pesquisador independente, seguindo
um programa de pesquisa que se tornava a cada ano cada vez mais produtivo,
mesmo em meio às ocasionais recaídas nervosas. Ele fez do Archiv o fórum onde
parte de seu trabalho, incluindo a maior parte de sua importante pesquisa sobre
religião, foi publicada. Durante dezesseis anos notavelmente produtivos, da data
de sua nomeação como editor ao dia de sua morte, em 1920, ele produziu em
suas páginas c cm outros lugares um fluxo contínuo de artigos, revisões críticas
c extensos ensaios de qualidade extraordinariamente elevada. Nem todos foram
marcos intelectuais, mas rotineiramente desenvolviam ideias surpreendentes e
originais, apoiadas por análises históricas atentas e pesquisa social rigorosa. O
mais importante desses receberá nossa atenção a seguir. Antes de nos voltarmos
a ele, contudo, devemos tratar de um tema preliminar que Weber considerava ser
de suprema importância: os métodos empregados na pesquisa sociológica.

Três ferramentas de investigação sociológica

Métodos são para estudiosos o que ferramentas são para artesãos. Todos
necessitam delas; poucos pensam muito nelas. Weber, contudo, é um desses pou­
cos. Em meio à recuperação de sua doença, ele escreveu vários artigos, incluindo
um primeiro ensaio editorial para o Archiv (1904), que focava o tema principal
do método sociológico: Como procedemos quando tentamos explicar as ações
sociais humanas? Weber desenvolveu suas respostas para essa questão em vários
ensaios técnicos que descrevem três princípios guia da investigação social118.

118. Traduções inglesas desses ensaios podem ser encontradas cm duas coleções: SHILS, E.A. &
FINCH, H.A. Max Weber on the Mcxhodology ofthe Social Sciences. Glcncoc: Frcc Press, 1949. •
WEBER, M. Roscberand Kjiies: The I.ogical Problems of Histórica] Economics. Nova York: Frcc
Press, 1975 (organização dc Guv Oakcs]. Um estudo claro e muito instrutivo recente das ideias dc
Webcr sobre método é encontrado cm: ELI/ESON, S. Max Weberys Metbodologics: Intcrprctation
and Critique. Cambridgc: Polity, 2002.

167
^ -s>

Mrstehm

O primeiro e fundamental princípio dc Weber é melhor expresso na palavra


Vcvstcbcny o termo alemão para “entendimento". Ele não foi o primeiro ou único
estudioso de sua época a enfatizar essa ideia, a marca do que mais tarde seria co­
nhecido como sociologia interpretativa, mas o tornou decididamente central aos
seus trabalhos. Na superfície, é uma noção muito fácil de compreender. O princí­
pio da Vcrstchcn presume que não podemos explicar as ações humanas como ex­
plicamos ocorrências na natureza. A ciência da natureza foca os objetos c proces­
sos não mentais; a ciência social explica as atividades mentalmente orientadas dos
entes humanos. E verdade que dentro da natureza, os humanos também podem
ser chamados objetos, mas são claramente objetos dc um tipo especial. Diferente
de pedras c árvores, são conscientes; atribuem significado às coisas que fazem.
Seu comportamento é guiado não apenas por forças externas como a gravidade,
mas por ideias tidas como a crença na liberdade e emoções cxpericnciadas inter-
namente como o sentimento do amor. Essa distinção pode parecer uma questão
de mero senso comum, mas aplicada aos complexos temas c instituições sociais,
pode se tornar controversa.
Na época de Weber, o debate acadêmico sobre esse tema dc explanação
ficou tão aquecido que adquiriu seu próprio nome: a grande Methodcnstrcit,
ou “disputa sobre métodos”. No centro do argumento se encontrava o inegá­
vel sucesso obtido nos campos como química e física pela formulação de leis
universais de causa e efeito. Por que, alguns perguntavam, leis como essas, com
suas formidáveis aplicações na medicina e na indústria, não poderiam também
ser formuladas para explicar os assuntos humanos?1 Os economistas foram os
primeiros a defender essa posição, alegando algum sucesso na aplicação cienrí-
fica de “leis do mercado” à ação humana. Visões similares cm breve surgiram
em toda parte, sugerindo que talvez uma ciência natural inteira de todo com­
portamento humano pudesse ser criada. Outros discordavam severamente. O
filósofo Wilhelm Windelband afirmava que embora a ciência lide com proces­
sos que se repetem, permitindo-nos explicar coisas “nomoteticamente” (grego
para “fazendo regras”), as ações humanas são eventos singulares, que requerem
explicações que sejam de caráter “idiográfico” (grego para “unicamente des­
critivo”). Nessa visão, existe uma divisão fundamental entre Natur- ou Gcsctz-
-mssenschaft (“ciências da natureza ou das leis”) e Geistes- ou Kultur-wisscnscbafi
(“ciências do espírito ou da cultura humana”). Wilhelm Dilthey foi ainda mais
longe, afirmando que não podemos realmente “explicar” dc modo algum coi­
sas como a ação humana, ao menos no sentido científico da palavra “explicar”.
Devemos usar a Verstehen para “tentearmos” intuitivamente, podemos dizer, as
mentes de outros. Por atos de imaginação e não de razão, recriamos seus pen­
samentos em nossas mentes.

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Wcbcr participou dessa querela animada ao tomar uma posição em um pon­
to intermediário. Suas visões se inclinavam para as de Dilthey, mas achava um
erro supor que o processo de Verstchen seja puramente intuitivo, um exercício na
arte da imaginação. Não podemos recriar pela imaginação a mistura complicada
de ideias e motivos que podem ter ocorrido na mente de, digamos, Sócrates
durante o processo na Atenas antiga ou de Lincoln quando decidiu libertar os
escravos do Sul. A única coisa que podemos fazer é proceder racionalmcntc.
Descrevemos uma circunstância histórica ou um conjunto de condições, e com
base nesse conhecimento vislumbramos uma sequência provável de eventos fu­
turos; tentamos isolar o que levou uma sequência a ocorrer quando outras não
ocorreram. Vcvstchen c, portanto, uma forma de ciência: um método sistemático,
racional de explicar as ações humanas pelo discernimento do papel dos motivos
ou significados onde figuram como causas.
Dizer que Vcrstehen c um procedimento racional não é dizer que os entes hu­
manos sempre agem dc forma racional. Weber tinha consciência de que existem
formas e graus muito diferentes de racionalidade. Em seu trabalho fundamental
posterior Economia c sociedade, ele observa que ações pode ser instrumentalmente
racionais (buscar os meios para atingir um objetivo) ou racional-valorativas (bus­
car um objetivo como um bem cm si mesmo); elas também podem ser afetivas
(guiadas puramente por emoções) ou tradicionais (feitas puramente por hábi­
to)119. Desse modo, a ciência social alcança explanações úteis; infere os motivos
internos que afetam nossas ações externas120.
Embora o principal interesse de Weber fosse explicar o comportamento so­
cial em vez do pessoal, sua ênfase nos motivos internos das ações humanas levou
outros a descreverem sua pcrspectiva como “individualismo metodológico” - um
termo que c instrutivo. Para ele, os valores ou crenças sociais adquirem realida­
de somente na medida em que obtêm aprovação nas mentes dos indivíduos.
Sempre que ele se refere em termos abstratos a um valor moral como, digamos,
a coragem física, Weber nos lembra de pensarmos os valores dc indivíduos ou
subgrupos específicos em uma sociedade cuja liderança ou influência os torna o
que ele chama “portadores” de um tal ideal. Ideias e valores, em outras palavras,
têm efeitos somente porque certas pessoas os adotam e induzem outros a segui­
rem seu exemplo. Esse acento diverge daquele de Durkheim, que tende a pensar
a sociedade como uma entidade abstrata, separada de seus membros individuais
c impondo deveres a eles a partir de cima. Weber está disposto em troca a pen-

1X9. WEBER, M. Eamomy and Society: An Outline of Incerprcrive Sociology. Vol. 1. Nova York:
Bcdminstcr, 1968, p. 24-25 (2 vols.].
2004 F mbCr' ** IntdlcCtUal BioSraPhY Chicago: Univcrsity of Chicago Press,

169
sar a comunidade como uma coleção mista de indivíduos na qual os muitos se
submetem aos poucos, àqueles que, por tradição, privilegio, ou personalidade,
alegam a autoridade para liderá-los. Esses são os guardiões dos valores culturais;
eles modelam a sociedade tanto quanto ela os modela, bem como os outros.

Tipos ideais

Indivíduos podem carregar os ideais da sociedade, mas a sociologia não


está centrada somente nos indivíduos; caso estivesse, não poderia ser social
nem científica. Fazer afirmações válidas sobre classes gerais de coisas é o pro­
pósito inteiro da iniciativa. Para clarificar o papel dessas categorias gerais na
investigação social, Weber emprega um outro termo alemão - Idcal-lypus. Uni
tipo ideal é um conceito geral, mas é diferente do que c conhecido como uma
generalização na ciência natural. Generalizações identificam um traço ou ca-
ractcrística únicos comuns a um grupo, como quando dizemos “Todos os reis
têm países”. Um país a governar c um tipo de qualificação essencial para um
rei. Quando criamos um tipo ideal de um rei, contudo, formamos praticamcnte
o oposto de uma generalização. Formulamos um tipo de exagero intencional,
ou descrição máxima, do que um governante deveria ser, acrescentando ao país
que ele governa um grande conjunto de outros atributos: nascimento nobre,
gênero masculino, governo por “direito divino”, uma rainha, um palácio com
cortesãos, nobres que prometem lealdade, e assim por diante. Nenhum monar­
ca no mundo real, passado ou presente, possuirá todas essas características. Al­
guns possuem a maior parte delas e outros somente algumas, mas isso não im­
porta. A chave é que o tipo ideal fornece uma estrutura na qual todos os casos
podem ser postos para análise. Com ele, podemos comparar reis ao longo do
tempo e de lugares. Podemos traçar mudanças de um tipo de monarquia para
outra, e podemos fazer inferências sobre causa c efeito, como na Revolução
Francesa, quando um ataque à religião demoliu a ideia de que reis governam
por “direito divino”.
Praticamentc tudo que encontramos na análise social pode ser adaptado a um
ripo ideal, e as fórmulas podem variar enormemente em ripo c escopo. Um con­
ceito como “revolução” é um exemplo óbvio de política; “democracia” pode ser
um outro. Do mesmo modo as formas da ação racional que comentamos acima.
Conceitos históricos amplos como “civilização grega” c “capitalismo moderno”,
e termos como “Renascença” e “Impressionismo” da história da arte podem ser­
vir ao propósito, assim como tipos específicos comparáveis a “rei”, como “arte­
são” ou “comerciante”. O mesmo vale no domínio da religião para tipos como
“sacerdote”, “misticismo”, “igreja” ou “seita” ou qualquer concepção similar que
respalde o processo cxplanatório.

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Uma das tipologias ideais mais celebradas de Wcbcr oferece lima ilustração
adequada. Em Economia c sociedade, ele seleciona três tipos principais de auto­
ridade: a tradicional, a legal e a carismática. Todas expressam o que ele chama
“dominação legítima”. No caso da autoridade tradicional, as pessoas reconhecem
um padrão de poder que parece ter “sempre existido”, como nas sociedades tribais
onde o governo dos mais velhos tem sido aceito desde tempos imemoriais. For­
mas similares incluem o “patriarcalismo” e o “patrimonialismo”, onde uma única
pessoa ou família herda o poder de governar. Inversamente, a autoridade mais
comum para as sociedades modernas pode ser definida como legal, ou racional.
Ela encontra a mais pura expressão na burocracia moderna, que presume o con­
sentimento entre todos para agir de acordo com um conjunto de regras consistcn-
temente aplicadas por oficiais treinados e especializados pagos, que trabalham cm
uma hierarquia escalonada e com um senso de dever profissional. Os escritos de
YVcbcr sobre autoridade burocrática geraram uma séria discussão entre analistas
da administração pública e corporativa. Ele considera a burocracia a forma mais
racionalmentc ordenada de autoridade, que oferece grande eficiência, embora
muitas vezes pela supressão da criatividade. Em contraste, o terceiro dos tipos - a
dominação carismática - é o mais dinâmico, c possui uma importância especial
na esfera da religião. Está claramentc exibido nos profetas c sábios da história
mundial, embora se aplique igualmente bem aos guerreiros ou estadistas. Em tais
casos, a liderança é adquirida por meio de uma característica única: o magnetismo
pessoal irresistível de um ou alguns indivíduos. Os profetas de Israel, Gautama e
sua comunidade de monges, Confucio e seus seguidores, Jesus c seus apóstolos -
todos esses casos demonstram o impacto social de uma personalidade cxcepcional,
o herói espiritual, a pessoa dotada singular que sozinha pode fazer milagres, en­
tregar um oráculo, ou energizar discípulos. Quando uma figura assim aparece cm
uma sociedade, ela pode, na força completa de uma afirmação de poder, sabedoria
ou divindade, conquistar um séquito e alterar o curso da civilização. O carisma é
o agente mais persuasivo de mudança na sociedade e na história.
Abstrações como “burocracia” não são a única categoria de tipo ideal; proces­
sos históricos também se qualificam. Um dos tipos amplamentc citados de Wc­
bcr define o processo de “dcscncantamento” cultural, pelo qual a fé no domínio
sobrenatural da magia e dos deuses, há muito ancorada em uma sociedade tradi­
cional, gradualmentc se dissolve sob a pressão de padrões sistemáticos c raciona­
lizados de pensamento. Uma outra é a “rotinização” do carisma, a transformação
gradual que ocorre quando, após a passagem de um profeta, a intensidade vívida
de sua mensagem começa a esfriar e se fixa em instituições caso sobreviva. Tipos
como esses, que descrevem desenvolvimentos históricos, podem naturalmente ser
misturados com tipos de outras categorias para se formular explicações de causa
c efeito quando ocorrem mudanças sociais ou culturais. Uma ilustração (embora

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não seja de Weber) pode ser o processo de cristianização do antigo Império Ro­
mano. Hm tomo do ano 100 d.C., as religiões dominantes de Roma eram politeís­
tas; por volta dc 500 d.C., elas haviam sido quase inteiramente substituídas pelo
monoteísmo cristão. Sc pensarmos o politeísmo c o monoteísmo como diferentes
tipos ideais dc crença religiosa, podemos formular uma explanação da mudança.
Entre os dois tipos ideais puros, podemos situar uma categoria de crença de liga­
ção que figurou na transição. Alguns convertidos, como o general romano Cons-
tantino, eram supersticiosos c oportunistas; ele adotou “Christos” como o único
deus dos muitos capazes de ajudar seu exército na batalha. Nem sua fé nem seu
monoteísmo eram muito puros, mas os tipos ideais de cada um nos permitem en­
tender a forma intermediária que acompanhou o imperador e outros no caminho
do politeísmo pagão ao monoteísmo cristão. Aqui, como em outra parte, o bene­
fício explanatório repousa não tanto na categoria de tipo ideal que usamos, mas
no serviço que fornece na formulação de comparações c na explicação dc ações.

Valores

O terceiro princípio dc investigação de Weber trata do tema dos valores. Quase


desde o começo, ele assumiu a posição de que a ciência social, como outras ciên­
cias, deve ser uma atividade isenta de juízos de valor. Como outros em sua época,
ele sustentava que fatos e valores são coisas muito separadas; confundi-los c um
erro dc primeira ordem. Todo verdadeiro cientista (natural ou social) busca uma
descrição fatual do mundo real como ele o experiência, e os juízos dc valor pessoais
deveriam ser mantidos fora do processo. O propósito da ciência é descrever as coi­
sas como são e não promover concepções pessoais sobre o que deveria scr. A mes­
ma distinção se aplica à sala dc aula universitária; o dever vocacional de um profes­
sor requer que os juízos de valor pessoal não sejam misturados às suas exposições.
Se isso fosse tudo a ser dito sobre valores, poderíamos terminar aqui e ir
adiante. Mas quase sempre para Weber as coisas não são tão simples quanto
parecem. Ele reconhece que existem certas considerações de relevância de valor
que ninguém pode evitar. A decisão básica mesmo para se tornar um cientisra
social expressa uma escolha de valor. Escolher a sociologia cm vez de, digamos,
a medicina ou a carpintaria é uma decisão de colocar o valor de uma carreira na
ciência social em vez dc em outra vocação. A escolha do que estudar dentro da
sociologia é o mesmo. Fazer um estudo sobre as diferenças de classe em vez de
sobre as taxas de suicídio é tomar uma decisão de relevância dc valor sobre o tema
que mais necessita de sua atenção. Se pensarmos sobre isso cuidadosamente, o
compromisso dc seguir o princípio de “isenção de juízos de valor” é de próprio
uma escolha condicionada de valor. Na promessa de explicarmos a realidade tão
acuradamente quanto possível, sem inserir opiniões pessoais nas descrições, afir-

172
iríamos o valor que a ciência coloca na verdade factual cm detrimento do valor de
nossos interesses pessoais ou políticos.
Escolhas de valor parecem também afetar a ciência social mais do que a ciência
natural. Físicos e matemáticos trabalham com conjuntos fechados de conceitos -
como os axiomas da álgebra ou os teoremas da geometria - que permanecem de­
terminados ao longo do tempo. Euclidcs na Grécia antiga usava os mesmos postu­
lados que aqueles aplicados por um estudante de geometria em uma escola secun­
dária moderna. Mas o mesmo não ocorre, diz Wcbcr, em disciplinas abertas como
a ciência social, onde novas ideias, temas c formulações aparecem continuamcnte à
medida que novos observadores introduzem as perspcctivas de épocas posteriores
e de culturas diferentes. Além disso, como o princípio da Verstehcn mostra, quando
tentamos explicar as atividades humanas, encontramo-nos lidando com ao menos
dois conjuntos de valores: aqueles das pessoas cujas ações estamos interpretando c
aqueles da cultura - nossa própria - dentro da qual estamos trabalhando.
Considere a esse respeito os primeiros anos da Revolução Industrial, quan­
do trabalhadores conhecidos como luddistas (seguidores do herói popular Rei
Ludd) invadiram fábricas para destruir as novas máquinas têxteis, que os haviam
deixado sem trabalho e pobres. Eles não viam futuro para os trabalhadores cm
um mundo controlado por máquinas. Um historiador marxista do começo da
década de 1900, escrevendo a história deles atento à exploração dos trabalhado­
res, poderia muito bem considerar os luddistas proféticos; eles sozinhos previram
a chegada da fase final do capitalismo corrupto e da escravização do trabalhador.
O historiador do livre-mercado neoliberal, por outro lado, está inclinado a vê-los
como almas tristemente iludidas, vandalizando a própria tecnologia que pou­
paria a seus netos longas horas de trabalho pesado e os tornaria prósperos, não
pobres. Ccrtamcnte, os interpretes marxistas e os de livre-mercado podem tentar
colocar de lado concepções pessoais, mas as questões que levantam e as explica­
ções que oferecem parecem quase inevitavelmente obscurecidas pelos fatores de
relevância de valor vinculados à cultura de seu próprio tempo e lugar.
Esse ponto é enfatizado pelo que sabemos das convicções mais profundas
do próprio Weber sobre sociedade e valores. Ele havia sido influenciado por
Marx c pelo filósofo Friedrich Nietzsche, ambos rejeitavam ferozmente qualquer
pensamento sobre valores morais universais obrigando toda humanidade. Ao
combater suas ideias radicais, ele desenvolveu uma posição mais complexa sobre
essas questões que geraram páginas de comentários de teóricos posteriores. Al­
guns dizem que suas concepções são contraditórias; outros dizem que falhou em
mostrar como os valores afetam a ciência social mais do que a natural121. Outros

121. Sobre esse tema, cf. csp. RUNCIMAN, W.G. A Critique ofMtix Weber>s Pfnlosopljy of Social
Science. Cambridge: Cambridgc Univcrsity Press, 1972, p. 33-78.

173
ainda sustentam que “isenção dc juízos de valor” de qualquer tipo é um mito,
cirando o próprio Weber como uma prova disso. Quando se filiou à União para
a Política Social, argumentou fortemente que a investigação dessa instituição de­
veria ser estritamente “isenta de juízos dc valor”. Mas o estudo sobre agricultura
no Leste da Prussia que fez para a União na verdade expressou um julgamento
severo sobre os proprietários de terras, cujas práticas autoccntradas encorajaram
a imigração polonesa e enfraqueceram a identidade étnica alemã122. Claramente,
esse veredito - oferecido por um nacionalista alemão intenso - dificilmente se
qualifica como “isento de juízo de valor”.

Escritos sobre religião

Críticas à parte, Weber colocou seus princípios de método diligentemente


em operação à medida que se voltou para seu principal programa de pesquisa.
Seu tema-guia, como vimos, foi o entrelaçamento de economia e sociedade.
Todavia, quanto mais atentamente ele olhava para esse tema, mais parecia que
o papel da religião nessa relação era crucial. Esse lato veio à luz decisivamente
no primeiro de seus principais trabalhos, A ética protestante e o cspmto do capi­
talismo (1904-1905). Podemos dizer que ela se tornou ainda mais central aos
seus interesses com o passar do tempo123. Como aqui, assim como cm outros
capítulos, nossa discussão deve centrar-se cm alguns textos do autor tratado,/!
ética protestante é uma primeira escolha óbvia. Seu título por si é reconhecido
amplamcnte na conversação popular. Muito além da agenda que estabelece para
grande parte do trabalho subsequente de Weber, permanece seu livro mais famo­
so c amplamente debatido. A segunda escolha - menos óbvia, mas não menos
importante - é o esquema que esboçou para o estudo científico da religião cm
uma longa seção dc Economia e sociedade. Posteriormente, traduzido e publicado
separadamente cm inglês como A sociologia da 7-elifjiãoy sua análise se tornou
uma referência-padrão para teóricos atuais da religião. Terceiro c finalmente,
podemos fazer algumas considerações - admitidamente breves - sobre uma sé­
rie multipartida de estudos que Weber projetou como “A ética económica das
religiões mundiais”. Menos dc metade desse trabalho havia sido finalizado antes
de sua morte, mas os três livros que apareceram oferecem uma janela para o
panorama mais amplo de seu pensamento.

122. Sobre essa investigação sociológica inicial para a União, cf. BENDIX, R. Max Weber, p. 13-4$

123. Esse ponto é parte dc uma importante análise revisionista dos feiros dc Weber feira por
Wolfgang Schluchtcr cm Rntionalism, Rcligion, and Dominaiwn: A Wcbcrian Perspcctivc (Bcrkclcv
Univcrsity of Califórnia Press, 1989). Ele argumenta que o centro dos interesses dc longa data dc
Weber não pode ser encontrado cm Economia c sociedade, como muitos pensavam, mas no trabalho
cm muitos volumes inacabado “A ética económica das religiões mundiais”.

174
A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-1905)

Poucos livros académicos tornaram seus autores mais do que uma celebridade
intelectual do que essa surpreendente aventura na análise cultural, que VVeber pu­
blicou pela primeira vez como um par de artigos no Archiv logo após se tornar um
de seus novos editores124. O debate sobre seu famoso argumento, conhecido quase
em toda parte como “a tese de Wcber”, continuou por mais de um século, com
pouca razão para pensar que não prosseguirá por mais outro. Em seu núcleo se
encontra uma tese surpreendentemente ousada, mas fundamentalmcnte simples.
Ela expressa que existe uma conexão estreita entre religião, o surgimento do capi­
talismo económico c o nascimento da civilização moderna na Europa Ocidental.
Wcber começa observando, como outros fizeram, um fato estranho sobre
a vida na Alemanha moderna: cm proporção aos seus números, os protestantes
eram mais bem representados do que os católicos dentro da classe de líderes de
negócios, investidores de capital e administradores corporativos habilidosos. Para
explicar esse fato, alguns haviam sugerido que talvez os católicos sejam apenas
pessoas cspiritualmcntc mais inclinadas, enquanto protestantes tendem a ser mais
materialistas. Essas explicações, diz Weber, não satisfarão qualquer um que co­
nheça intimamente as atitudes protestantes, tanto do passado como do presente.
Se olharmos atentamente para sua história, veremos que os mais bem-sucedidos
desses empresários protestantes eram com frequência muito intensamente reli­
giosos, mantendo diários nos quais registravam cuidadosamente seus esforços
diários para seguir a vontade de Deus em suas vidas. Na realidade, poderíamos
muito bem supor que algo na própria religiosidade desses protestantes os instava
a empreenderem scriamcntc. Assim, a investigação pode muito bem iniciar com
os fundadores do protestantismo: Martinho Lutcro, na Alemanha, e o teólogo
francês João Calvino, na Suíça.
Embora religiosamente revolucionário, Lutcro era social c politicamente
conservador. Ele não promoveu diretamente novas ideias sobre negócios, mas
afirmava a igualdade de todas as pessoas diante de Deus - um princípio que en­
volvia uma concepção muito pouco convencional de trabalho humano cotidiano.
Na cultura católica da Europa Medieval, o trabalho diário de pessoas comuns
não recebia qualquer reconhecimento especial; era meramente o que as pessoas
deveriam fazer para comer e se abrigar. Trabalho especificamcntc religioso do
tipo realizado por monges, freiras c sacerdotes era outra coisa. As pessoas que

124. A tradução inglesa desse estudo foi publicada pela primeira vez cm 1930 pelo sociólogo dc
Harvard Talcort Parsons, que trabalhou não com os artigos originais, mas com as versões alemãs
revisadas que incluíam uma introdução c outros materiais que Wcber acrescentou mais tarde. Essa
edição revisada foi publicada cm alemão com outros trabalhos por sua esposa, Marianne, após a
morte dc Wcber (cf. PARSONS, T. “Translator’s Preface”. In: WEBER, M. V>e Protcstant Etbic and
tbeSpiritofCapitalism. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1958, p. ix-xi).

175
escolhiam vidas como essas realizavam muito mais do que trabalho cotidiano.
Elas eram especialmente chamadas por Deus para seus deveres. Elas faziam votos
solenes de pobreza, castidade e obediência. Sua vocação (do latim vocarc, “cha­
mar’') divinamente determinada lhes assegura das cxccpcionais recompensas no
céu. Para Lutero, essa noção de que alguns fiéis são mais religiosos do que outros
era inaceitável; ele insistia firmemente na completa igualdade de todos os fieis
diante de Deus. O efeito de seu ensinamento foi dissolver o conceito católico de
unia vocação religiosa especial simplesmente expandindo-a para incluir todos.
Nas palavras de Weber, Lutero “sccularizou” a ideia de vocação, dando, assim,
tanta importância para o trabalho cotidiano de um camponês ou comerciante
quanto a Igreja havia dado aos exercícios devocionais do pároco ou freira enclau­
surada. Essa ideia - de que mesmo as tarefas mais humildes são deveres solenes
atribuídas por Deus - investiu o trabalho cotidiano no mundo, não menos que
a prece no convento ou na capela, de uma importância religiosa real, um valor
espiritual que nunca tivera antes. Todo trabalho, não apenas o religioso, cra um
chamado de Deus; não deveria ser feito, mas bem-feito, como um serviço de­
dicado executado (nas palavras do grande poeta puritano John Milton) sob “o
olhar do grande capataz”.
A ideia de Lutero de um “chamado secular” oferece um começo na com­
preensão da energia protestante e do sucesso nos negócios, mas somente isso;
não explica como um tipo particular de atividade económica parece ter predo­
minado. Os protestantes escolheram um estilo de vida distintivo, marcado não
apenas por hábitos dc disciplina, frugalidade, simplicidade e autonegação, mas
também por um padrão sistemático duradouro de esforço cm empresas destina­
das a lucrar. Além disso, é apenas esse tipo de atividade, cujo único motivo é o
aumento organizado e incremental da riqueza, que expressa o estado dc espíri­
to que associamos ao fenômeno económico moderno, e unicamente ocidental,
do capitalismo. Existe, portanto, unia conexão? Weber diz enfaticamente “Sim”.
Mas, para explicá-la, para explicar a ética distintiva por trás do espírito do capi­
talismo, cie se volta de Lutero para Calvino, o mais cerebral dos reformadores.
CaJvino foi um pensador brilhantemente sistemático, o principal arquiteto
do sistema doutrinal protestante. Mas foi ele que especialmente também enfa­
tizou o obscuro ensinamento da predestinação, que sustentava que Deus, e so­
mente Deus, determina o destino eterno de toda humanidade, escolhendo alguns
(“os eleitos”) para atingirem o céu e condenando eternamente os outros (“os
reprovados”) ao inferno. Calvino não foi o primeiro a sustentar essa concepção;
São Paulo, Santo Agostinho, Lutero e vários outros professaram a doutrina, mas
foi Calvino que a tornou uma peça central de seu sistema. Ele também a consi­
derava uma fonte pessoal da mais profunda confiança. Indcpcndentemente da
circunstância, ele sabia com certeza que nunca poderia ser separado do amor dc

176
seu Deus, cujo decreto divino nunca poderia ser desfeito. Para os seguidores de
Calvino, contudo, as coisas foram mais perturbadoras. Sem compartilhar dc sua
autoconfiança, muitos foram submetidos a intensa angústia sobre seu destino
eterno, que somente Deus determinava. O profundo efeito psicológico dessa an­
siedade, diz Weber, deve ser propriamente apreciado. Necessitamos nos dar conta
de que os primeiros protestantes ocuparam um tempo c espaço únicos na história
ocidental. Como os católicos medievais antes deles, viviam em um mundo in-
tensamente religioso, muito antes da Era Moderna, com seu agora enfraquecido
senso do sobrenatural. Para eles havia uma realidade assustadora na perspcctiva
de uma eternidade a ser passada no céu ou no inferno. Por outro lado, os protes­
tantes não eram mais completamente medievais. Eram discípulos ou reformado­
res - uma vez mais, Lutero c Calvino - cuja revolta havia destituído o catolicismo
de sua rede apoiadora dc crenças e costumes “mágicos” por meio da qual a Igreja
afirmava a presença de Deus c mediava seu amor e perdão ao seu povo.
Aqui, devemos recordar o tipo ideal de Weber descrevendo o desencanta-
mento do mundo. A Igreja medieval foi um criadouro do sobrenatural. Relí­
quias, peregrinações e indulgências, vitrais e esculturas, as maravilhas dos már­
tires e santos, absolvição sacerdotal dispensada no confessionário, o milagre do
pão c do vinho que se convertiam no corpo e sangue de Cristo na missa - tudo
isso formava um vasto sistema de suporte sobrenatural que mediava o perdão de
Deus ao fiel mais simples. Para Lutero e Calvino, inversamente, esse sistema in­
teiro era pouco mais do que uma massa de superstição satânica. Eles o reduziram
sistematicamente a ruínas. Conscquentcmcnte, o protestante comum foi deixado
sem os mecanismos usuais para assegurar a alma ou canalizar o amor divino ao
coração. Sentiam, em troca, apenas a profunda ansiedade interior da alma indivi­
dual, sozinha com medo diante de um Deus que no mistério soberano decide o
destino de todos. Essa ansiedade aguda era tão preocupante que os pastores calvi-
nistas em gerações posteriores buscaram incessantemente uma forma de oferecer
ao menos alguma consolação. Eles aconselhavam suas congregações a viverem no
mundo como a verdadeira fé exige - sobriamente, frugalmente e com disciplina,
oferecendo-se completamente a Deus através do trabalho duro como seus servos
em suas tarefas mundanas. Se vivessem assim, poderiam esperar prosperar razoa­
velmente, e a prosperidade cm meio à simplicidade poderia ser assumida como
o sinal da eleição.
Essa orientação pastoral, formada para confortar almas religiosas aflitas, foi
momentosamente importante. Nela, diz Weber, reside a chave psicológica para
o futuro económico da Europa. Pois ela indirctamentc (e completamente sem
intenção) introduziu uma profunda mudança de atitude em relação ao esforço
mundano e à aquisição de riqueza. Antes da Reforma, em quase todo lugar e
época do cristianismo católico, qualquer atividade que visasse ao aumento de

177
dinheiro ou de propriedade se colocava sob a sombra da desaprovação moral.
Aos olhos da Igreja, a ocupação dos ricos era no máximo considerada neutra,
mas mais comumente com vil avareza, um dos sete pecados capitais. Jesus amava
os pobres, os ricos cie condenava. Tanto a Bíblia como a Igreja proibiam estri-
tamente a usura porque um empréstimo dc dinheiro e sua devolução com lucro
equivalia à exploração dos pobres pelos ricos. O desconforto da Igreja com a
busca de grande riqueza por aqueles que não nasceram ricos poderia ser lido na
arquitetura dc suas catedrais. Por que as paredes das catedrais eram revestidas dc
capelas onde podiam ser feitas preces para as almas daqueles que as custearam?
Dc modo que aqueles que haviam se comprometido em buscar a riqueza nesta
rida pudessem assegurar preces incessantes dc perdão pelo pecado da avareza
que lhes havia trazido seu ouro. Na teologia católica os pobres sempre estão mais
perto do coração de Deus, enquanto os ricos vivem sob suspeita.
Entre os discípulos teológicos de Calvino, contudo, essa estrutura moral
foi submetida a uma reconstrução muito surpreendente. A busca por riqueza
adquiriu um statns moral inteiramente novo: O que antes era um vício agora
se tornava uma virtude. A evidência mais clara da mudança era aparente - cm
graus variados, é claro - entre os principais ramos do protestantismo na Europa
do começo da Era Moderna. Webcr cita especificamentc os puritanos, pres­
biterianos e metodistas na Grã-Bretanha c nos Estados Unidos, assim como
outros grupos calvinistas na Alemanha, Suíça e Países Baixos, bem como
em outros lugares. Nessas comunidades encontramos aforismos que instam
frugalidade c autodisciplina; diários e autobiografias que registram vidas intei­
ras vivendo lutas privadas contra a falta de fibra e autocomplacência; c sermões
que tratam dos temas recorrentes de restrição e autonegação sóbria, disciplina c
trabalho duro, frugalidade e investimento, o uso sábio do tempo c do dinheiro.
E um estado de espírito apropriadamente descrito nos adágios que Bcnjamin
Franklin tornou populares ao longo da América colonial: “Tempo é dinheiro;
preguiça é pecado”. “Um pêni salvo é um peni ganho”. Essas frases feitas em
casa destilam a essência do espírito do capitalismo, mesmo que espelhem o
reverso moral que ele produzia.
O termo escolhido de Wcber para essa nova ética foi “ascetismo intramun-
dano” - autonegação dentro da sociedade cotidiana em vez de fora dela. O
“ascetismo sobrenatural” da Igreja medieval idealizava o afastamento do mundo
para o isolamento do convento ou mosteiro. A nova ética do protestantismo era
exatamente tão ascética, autonegadora, intensa c duradoura quanto o voto sagra­
do de qualquer monge medieval, mas sua execução era diferente. Ela requeria o
domínio disciplinado do self dentro da arena do mundo cotidiano. O chamado
de Deus não era para uma prática espiritual executada enquanto escondido do
mundo, mas para um domínio disciplinado do mundo enquanto ativo nele. Esse

178
ascetismo intramundano c a ética protestante. Como aplicado à economia, c difí­
cil se equivocar; é o espírito que guia toda iniciativa capitalista modern^_______
Enquanto desenvolvia esse argumento, Weber foi cuidadoso ao tratar certas
f
objeções c clarificar pontos de confusão. Um problema óbvio está centrado no
significado do termo “capitalismo”. Se tudo o que queremos dizer por esse con­
ceito é “se esforçar para ficar rico”, então o que há de tão especial sobre a conexão
protestante? A velha ganância pode certamente ser encontrada cm qualquer parte
do mundo, muito antes que os protestantes aparecessem c se afastassem da Europa.
Weber responde a esse ponto fazendo uma distinção. Falando imprecisamen­
te, o capitalismo pode na verdade significar qualquer esforço para obter riqueza;
guiado pela ganância ou oportunismo, c pode inclusive assumir formas crimino­
sas como a pirataria ou o roubo, e essas, certamente, são coisas que encontramos
em todos os lugares e épocas. Muito antes da Reforma, mercadores e conquista­
dores antigos praticavam o capitalismo bucaneiro, “viajando através do inferno
c queimando as velas” para ficarem ricos. Mas o verdadeiro capitalismo, a ética
económica criada na Europa na aurora dos tempos modernos, é algo muito dife­
rente. O mercador ou bucaneiro busca riqueza por um propósito - para se com­
prazer, viver no luxo e comprar prazeres. Os princípios que guiam o empresário
calvinista em Londres ou Roterdã da década de 1600 são praticamente o exato
oposto. Ele ganha dinheiro com a intenção de guarda-lo, não de gastá-lo. Deus
o chama para uma vida séria, contida, de autonegação, de modo que não tem
interesse cm luxos ou prazeres pessoais caros. Seu foco é em obter lucro como
um dever de seu chamado e uma marca da eleição divina, não em gastar dinheiro
cm autogratificação. É verdade que esse hábito de poupar leva à criação de cada
vez mais riqueza - o que os economistas modernos chamam nova formação de
capital - porque não há outro lugar para o dinheiro ir. Mas isso ocorre não devi­
do a qualquer vício no coração do calvinista; é, ao contrário, uma consequência
natural (embora não intencional) de suas virtudes. Em vez de gastar, ele poupa,
reinveste, aumentando, assim, sua riqueza. O capitalismo moderno, portanto,
não é a ganância cotidiana de todas as pessoas e lugares; é um fenômeno distinto
c diferente que apareceu pela primeira vez em um lugar, a Europa Ocidental, e
por razões históricas muito específicas à fé e valores do protestantismo.
Weber foi claro também sobre um outro tema. Esse espírito do capitalismo
é o elemento-chave, mas não o único, que constitui essa forma moderna sin­
gular de atividade económica. Ao formular o tipo ideal que guia sua discussão,
ele lista outros elementos que o definem: a contabilidade racional, a separação J
do lugar de trabalho da casa e do corporativo da propriedade pessoal, decisões
baseadas em cálculo cuidadoso, uso de trabalho livre (em vez de escravo), de­
pendência da ciência matemática e experimental, e confiança em uma estrutura
social moldada pelo Estado de direito e pela administração ordenada. Todos

179
esses clcmenros pertencem a um padrão mais amplo de “racionalização” na
sociedade ocidental, sobre os quais Weber colocava grande importância. Em­
bora esteja intimamente vinculado a esse processo mais amplo, é claro que o
capitalismo não poderia ter aparecido sem o impulso específico que veio da
ética protestante. É essa ideia que levou alguns a se referirem a Weber como o
teórico que “virou Marx de cabeça para baixo”. O próprio Weber achava essa
avaliação muito simplista. Mas ela exibe um cerne de verdade - igualmente apli­
cável, podemos acrescentar, ao reducionismo de Frcud c Durkheim. No caso
de uma das mais importantes revoluções socioeconòmicas da história mundial,
Weber conclui não que a religião c uma mera reflexão da estrutura social ou das
forças económicas, mas precisamente o inverso. Para ele, são as novas ideias c
comportamentos religiosos do protestantismo que introduzem uma inversão
das atitudes em relação à aquisição de riqueza, e dessa reversão adveio a cultura
de comercio, mercados e o capitalismo que definem a civilização ocidental que
conhecemos hoje.
Finalmentc, Weber é cuidadoso em distinguir o capitalismo original do co­
meço dos séculos modernos (1550-1750) do capitalismo de sua própria cpoca
e da nossa. Hoje, católicos assim como protestantes são capitalistas, e, entre os
protestantes, a maioria não tem consciência ou mesmo memória dos antigos
motivos religiosos. A nova ética está agora incrustada e floresce puramente no
poder de sua própria eficiência económica; uma vez introduzida em uma cultura,
expulsa todas as rivais, como a história mostrou. Do século XVI ao XX, o capi­
talismo traçou uma ascensão constante à dominação tanto do Ocidente como do
mundo além dele. Hoje, ele governa toda a prática económica, muito depois dc
sua coloração protestante original ter esmaecido.
Quase desde o momento em que apareceu, A ética protestante incitou um
vigoroso debate intelectual que nunca terminou realmente. Está muito vivo
ainda hoje, um século inteiro após os ensaios terem sido publicados pela pri­
meira vez. O próprio Weber participou na primeira fase da discussão, oferecen­
do várias respostas c clarificações às críticas que apareceram, principalmente na
Alemanha, ao longo dos próximos cinco anos. Por volta de 1910, contudo, ele
perdeu a paciência com os críticos e passou da defesa de suas ideias para seu
desenvolvimento.

A sociologia da religião

A sociologia da religião é um texto mais difícil de sumarizar do que A ética


protestante. Trata menos de afirmar uma tese do que embarcar em uma explo­
ração. Vai além do protestantismo para oferecer um conjunto mais amplo de
categorias interpretativas - os tipos ideais weberianos - e as aplica ao espectro

180
inteiro das religiões mundiais. Webcr escreveu grande parte dessa discussão em
1914, mas ela não foi publicada sozinha; ele escolheu, cm troca, incluí-la como
um capítulo em Economia c sociedade, que foi publicado após sua morte125. A
exposição nessas páginas c por vezes densamente confusa e faz muitas voltas,
percorrendo caminhos secundários, c, consequentemente, perdendo-se. Aqui,
seguiremos somente seu caminho principal, que se dirige a quatro áreas de tó­
picos gerais. O texto começa com o papel dos líderes religiosos c depois trata
da influência das classes e grupos sociais; se dirige em seguida para as formas
de crença c comportamento religiosos; e, por fim, explora a interação da reli­
gião com outros aspectos da vida social. Cada um desses tópicos merece algum
comentário aqui.

Líderes religiosos: o mago, o sacerdote e o profeta

O mago
A religião, para Weber, está arraigada em experiências especiais, que ele cha­
ma “estados extáticos”, que colocam as pessoas além do domínio da atividade
cotidiana e lhes revela um outro nível de realidade. Qualquer um pode ter uma
experiência dessas por vezes, mas aqueles que conseguem atingi-la regularmente
são naturalmentc considerados possuidores de talentos espirituais. Eles têm “ca­
risma” (um termo-chave para Weber, como vimos); eles possuem um talento que
lhes dá um direito ao papel de líder religioso. Nas primeiras sociedades, o mago
era a pessoa que a tribo considerava “permanentemente dotada de carisma”.
Quando a necessidade surgia, as pessoas chamavam o mago para curar doenças,
fazer com que a caça fosse bem-sucedida, ou para ajudar as plantações em seu
crescimento. Frazer, podemos recordar, falava de um modo similar, mas Weber
não vê a magia como uma forma de ciência primitiva, diferente da religião. Os
magos, ele diz, não se baseiam em princípios pessoais de contato e imitação; e
eles mobilizam os deuses ou espíritos, algo que Frazer reservava somente para a
religião. Tampouco existe uma sequência da qual a religião emerge após a magia
ter falhado. O interesse mágico por milagres e curas pode ser mais comum nas
culturas iniciais, mais simples, mas pode aparecer em qualquer cpoca, mesmo
em sistemas religiosos modernos complexos, porque oferece coisas das quais as
pessoas comuns necessitam ou desejam na vida cotidiana.

125. Sobre a composição e publicação dc Sociologia da religião, assim como sua inclusão cm Econo­
mia c sociedade, cf. WHIMSTER, S. TransIatoEs Note on Wcbcr’s Economic Ethics of the World
Rdigions. Max Weber Studies, 3/1, 2002, p. 80, nota 1. • WEBER, M. Economy and Society, p. lix-lx,
xciv-xcv.

181
O sacerdote
A magia tende a ser algo ocasional, focada em preocupações imediatas; nor-
malmcnte as pessoas chamam os magos quando a necessidade prática surge. Isso
não ocorre com líderes religiosos que funcionam como sacerdotes. Em geral, en­
contramos um sacerdócio religioso onde existe algum tipo de sistema permanen­
te de culto em tempos c lugares determinados c associados a uma comunidade
religiosa definida. Se encontramos o mesmo ritual executado em determinado
templo diariamente ao alvorecer ou semanalmente ao anoitecer, normalmentc
encontramos um sacerdócio especializado no comando. O sacerdote, mesmo nas
sociedades mais primitivas, é um funcionário permanente, pago. Podemos pensá-
-lo como tendo carisma, como o mago, mas é algo derivado de sua função c não
de seu magnetismo pessoal. O status “profissional” do sacerdote é definido pelos
ritos que ele controla e pela comunidade religiosa de pessoas comuns, o laicato,
que ele dirige. Em sociedades mais complexas, como poderíamos esperar, os sa­
cerdotes se enquadram na categoria de Weber da dominação burocrática. Eles são
“profissionais” da religião; têm deveres atribuídos e são ordenados em posições
com diferentes níveis de responsabilidade; são conscientes de seu status pessoal,
dispensando orientação e benefícios religiosos aos clientes; e, sobretudo, esti­
mam a ordem social e religiosa. Na índia antiga, por exemplo, era a comunidade
de sacerdotes que promovia Varuna c Mitra, os deuses da lei e ordem cósmicas,
contra Rudra, o deus caórico das tempestades.
Essa preocupação dos líderes sacerdotais religiosos com estrutura e estabili­
dade c uma fonte de um desenvolvimento-chave nas civilizações mais antigas: a
emergência do conceito de uma vasta ordem cósmica que impõe aos entes huma­
nos uma ética universal, ou sistema de valores, deixando para trás a limitada érica
da aldeia primitiva, na qual o bem c o mal são definidos inteiramente cm função
dos interesses de uma única família ou clã. O conceito preciso de ordem cósmica
pode variar de uma cultura ou civilização para outra, mas qualquer que seja a
forma, os sacerdotes desempenharam com frequência uma parte em formulá-la
ou transmiti-la a uma comunidade ampla de seguidores.

O profeta

As noções de ordem cósmica e de uma ética universal nos levam ao terceiro


tipo ideal: o profeta. Dentre aqueles que se tomam líderes sociais, diz Weber, di­
ficilmente há um tipo único - estadista, artista, intelectual ou conquistador - mais
importante para o curso das civilizações do que a figura dominante do profeta. Ele é
uma pessoa reconhecida como “um portador puramente individual de carisma”126.

126. WEBER, M. Vjc Sociolojjy ofRchgion. Boston: Bcacon, 1963, p. 46.

182
O profeta pode aparecer em qualquer época cm uma cultura, agindo segundo um
senso poderoso de missão, para anunciar a todos uma “doutrina religiosa ou man­
damento divino” abrangente. Um profeta não é um mago, centrado cm assegurar
benefícios práticos cotidianos - prever o futuro, curar doenças, mudar o clima. Ele
pode ter algum apelo mágico, mas o centro de sua vida c sua missão; ele foi especial-
mente chamado seja pela voz de Deus ou por uma visão da verdade para professar
uma mensagem de mudança de vida. Ele acharia absurdo ser pago por seu trabalho.
Seu chamado sustenta-o, e está contente caso tenha de viver na pobreza, aceitando
somente o que as pessoas voluntariamente lhe dão para subsistir. Um profeta é
também diferente de um sacerdote. Sua autoridade não é derivada de sua função
religiosa. Vincula-se ao poder revolucionário de sua personalidade c de sua mensa­
gem. Está claro que a maior parte das grandes religiões do mundo remontam sua
origem a uma figura profética transformadora cuja vida carismática c a mensagem
persuasiva revolucionaram o mundo em sua época.
Historicamente, os profetas foram de dois tipos. O “profeta exemplar” - o
sábio que ensina por seu próprio exemplo poderoso - predominou no Extremo
Oriente. Na índia, Gautama, o Buda, pertence a esse tipo, assim como os mestres
Lao-tzu e Conftício na China. Cada um oferece um caminho de sabedoria c verda­
de destinado a todos, mesmo que somente alguns tenham a capacidade completa
para segui-lo. Em contraste, o “profeta ético” predominou no Oriente Médio e
na civilização ocidental. Zoroastro na Pérsia antiga, os profetas de Israel, Jesus de
Nazaré, c Muhammad na Arábia, caem nesse tipo distintivo. Aqui, também, os
profetas oferecem uma ética universal, indo além do autointeresse dos vínculos de
família ou tribo. Mas diferem cm um ponto essencial dos grandes sábios orientais,
que partilhavam as visões de mundo de civilizações asiáticas que consideravam a
Realidade ultima do universo impessoal, como o Tao, ou “Caminho da Nature­
za”, chinês. Os profetas ocidentais adotaram o monoteísmo. Apresentavam-se não
como sábios modelando a vida da sabedoria, mas como instrumentos escolhidos
pelo Deus todo-poderoso e impessoal para proclamar sua vontade. Sua missão é
comunicar oráculos e exigir obediência à ctica universal que impõe. Eles rejeitam
a magia como um exercício inútil, dirigida apenas a interesses insignificantes; eles
também desconfiam de sacerdotes, cuja preocupação com cerimónias ritualizadas
c a administração organizada tende a extinguir a chama vital da religião. Esse fogo
sagrado é algo encontrado somente em um profundo compromisso interior execu­
tado em obediência a um código moral; não é egoísta nem tribal, mas está ancora­
do na vontade soberana universal do Criador e Senhor do mundo.
Profetas, é claro, são pessoas excepcionais - capazes de viver toda sua existên-
cia no nível mais elevado dc comprometimento pessoal. E menos provável que
os seguidores do profeta, sendo entes humanos normais, venham a possuir uma
dedicação total assim. Desse modo, em qualquer comunidade religiosa, para se

183
sustentar ao longo do tempo, o carisma do fundador deve de algum modo ser
mantido vivo pelos seus sucessores. Como mencionado anteriormente, o tipo
ideal que Wcber formula para esse processo importante é a “rotinização” do ca­
risma - a transformação do dom inspirador do profeta cm algo permanente, algo
determinado na burocracia de uma instituição12'. Após a morte de Jesus, por
exemplo, coube aos doze apóstolos, e depois aos Pais da Igreja, c mais tarde aos
sacerdotes c bispos da Igreja Católica, tornarem esse carisma rotina, moldando-o
em sistemas institucionais, dando a cie formas determinadas que o tornassem
duradouro. Desse modo, a burocracia sacerdotal, por natureza oposta às inspi­
rações imprevisíveis da profecia, pode se tornar a melhor aliada do profeta após
sua morte. Somente um sistema burocrático conservador - destinado a manter a
verdade do profeta (agora que conquistou um séquito) - pode formular sua men­
sagem cm um sistema dc ensinamento e administração que será capaz de guiar
uma comunidade, ou “congregação” (o termo preferido dc Wcber para esse tipo
ideal), sempre cm expansão dc seguidores através das épocas. Esse suporte estru­
tural tem um custo, pois as burocracias tendem a extinguir as chamas do espírito.
Reformadores com carisma dc um outro tipo necessitarão por vezes questionar
a autoridade sacerdotal e restaurar o vigor original da mensagem do profeta.
Episódios de tensão devem ser esperados, pois a vitalidade da mensagem original
está sempre sendo posta em risco pela “mão morta” da burocracia.

Classes sociais e grupos


Ao falar da congregação religiosa, Weber chama atenção para o papel-chave
do laicato - as pessoas comuns que não detinham funções, mas formavam a
vasta maioria dos participantes de qualquer comunidade religiosa. O carisma, na
forma profética ou em qualquer outra, não existe a menos que uma comunidade
dc leigos passe a reconhecê-lo c a rcforçá-Io, assim, uma apreciação de seu papel
c essencial. E importante compreender não somente o lugar das classes e gru­
pos sociais nas comunidades religiosas, mas cspecialmente o papel que desempe­
nham na resposta às demandas das grandes religiões proféticas. A discordância
de Weber em relação a Marx nessa conexão é importante. Para Marx, um tema,
a divisão de classes entre ricos e pobres, determina todos os outros; para Weber,
as coisas uma vez mais são consideravelmente mais complexas. Grupamentos so­
ciais são formados não apenas pela separação económica conforme a classe, mas
também por coisas como localização (rural ou urbana), vocação (artesão, agri­
cultor ou guerreiro), e, notadamente, respeito ou honra social (grupo dc status).
Como vimos antes, um elemento da burocracia como um tipo ideal é a exigência
de respeito por parte daqueles que pertencem a ela; eles são “profissionais”. Nas

127. Ibid., p. 60.

184
análises de Weber, os intelectuais, ou “literatos”, que conquistam honra por seu
conhecimento ou cultivo impressionante muitas vezes adquirem status distintivo
como uma burocracia do mesmo modo que os anciãos cm uma sociedade tribal.
Dependendo do lugar c tempo, cada um desses grupos sociais variados tem
uma parte distintiva a desempenhar na atividade religiosa, c a ciência social pode
discernir certos padrões típicos dc ação. Os camponeses rurais, por exemplo, vivem
perto da natureza e dependem do clima. Quase sempre, portanto, são atraídos a
práticas mágicas, buscando por ajuda para a vida e trabalho diários. Mesmo onde
um grande profeta estabeleceu um tipo ético de religião congrcgacional, os campo­
neses se encontram sutilmente atraídos de novo para magia e milagres. A despeito
da divulgação por Confiício dc uma religião ética profética, a magia por séculos im­
portou mais para os agricultores simples da China. A despeito dos preceitos morais
do Sermão da Montanha, as relíquias, ícones c milagres dos santos da Igreja cristã
foram por muito tempo o principal interesse das classes rurais da Europa: campo­
neses, servos e trabalhadores diários. Raramente concediam lealdade completa a
uma fé profética; mais frequentemente, misturavam-na com a magia128.
Como ocorre, as classes privilegiadas, protetoras de suas vantagens, também
mostraram resistência ã religião profética, embora por outros motivos. Seu senso
de honra e prestígio é facilmente afrontado pela exigência dc que mudem o
curso de suas vidas ou peçam perdão a um sacerdote ou a outro inferior social.
Similarmente, elites burocráticas nem sempre recebem bem o profeta ou sua
mensagem; estão dispostas a acha-la irracional a menos que, como entre os man­
darins confucianos chineses, possa servir ao útil propósito de controlar as massas.
Mesmo assim, a religião profética por vezes mostra o poder dc romper essa resis­
tência. Especialmentc entre nobres c cavaleiros guerreiros, que devem reunir co­
ragem para enfrentar a morte, a religião profética foi recrutada para dar um sig­
nificado e propósito últimos à guerra. Isso foi especialmente o que ocorreu com
o islã, onde a classe guerreira se tornou a principal portadora da mentalidade cru­
zada que deixou sua marca na maior parte das civilizações muçulmanas. A classe
média, por outro lado, mostra uma diversidade considerável em suas respostas
religiosas. O “patriciado comercial”, composto das ricas famílias comerciantes da
classe média alta, normalmente mostra pouco interesse serio. Mas uma resposta
diferente aparece mais abaixo da escala social entre os artesãos das cidades, o coração
das populosas classes médias. Entre esses grupos industriosos - separados o bastante
da natureza para serem liberados de interesses pela magia e motivados fortemente
por um senso ético dc recompensa justa pelo trabalho justo - a religião profética
teve seu apelo mais poderoso. Desde seus primeiros séculos, o cristianismo foi
conhecido como a religião das cidades, não do interior.

128. Ibid., p. 80,82.

185
Com a exceção do confxicionismo, as religiões proféticas também desenvol­
veram o que ptxlc ser chamado as “religiões de salvação”. Elas oferecem às pes­
soas um programa abrangente para adquirirem resolução espiritual interior ou
fiiga final das limitações c tristezas da vida. Esse elemento é tão central para
Weber que necessitamos revisitá-lo brevemente. Para o momento, deveríamos
observar que embora não seja necessário que uma religião de salvação apresente
algum salvador específico em seu centro, alguém desse tipo quase sempre apare­
ce entre as massas. Quanto mais inferior a classe social, mais intensa se torna a
necessidade de formular uma história de redenção na qual um deus assume uma
forma humana para levar libertação ao fiel. Assim, no budismo tardio, o conceito
de um bodisanw, uma divindade que assiste as pessoas na busca por iluminação,
substitui a prática original austera de meditação, que deixa toda humanidade
por sua própria conta. Similarmente, na índia, os cultos redentores de Rama
e Krishna substituem os antigos c obscuros rituais védicos. Como as pessoas
comuns achavam tradicionalmente difícil se alinhar a alguma ordem cósmica
abstrata e impessoal, ou temessem intimidade com um Deus transcendente todo-
-poderoso, muitas religiões, tanto no Oriente como no Ocidente, também desen­
volveram vários cultos dos santos, heróis ou deuses c deusas menores para darem
assistência às pessoas em suas buscas e conflitos espirituais. (As duas principais
exceções parecem ser o judaísmo c o protestantismo, que enfatizam a iniciativa
individual independente.)
Os pobres são atraídos a cultos redentores cm parte pela esperança de uma
recompensa futura, corrigindo as injustiças da vida no presente imediato ou em
uma vida futura. Um outro motivo, não diferente da esperança de recompensa,
aparece onde quer que exista um grupo de status de intelectuais de elite:
O intelectual procura de vários modos [...] dotar sua vida de significado
abrangente. Com o intelectualismo suprime a crença na magia, os pro­
cessos do mundo sc tornaram desencantados, perderam sua significação
mágica, c daí para a frente simplesmente “são” e “acontecem”, mas não
significam mais qualquer coisa. Como uma consequência, existe uma
demanda crescente para que o mundo c o padrão total de vida estejam
sujeitos a uma ordem que seja importante e significativa129.

Aproximadamente em toda parte entre elites cultivadas existe um profundo


desejo de encontrar algum propósito cósmico para a existência humana no mundo
como o encontramos. Na Ásia mais notadamente, “todas as grandes doutrinas
religiosas [...] são criações de intelectuais”, e elas tendem a se tornar possessão es­
pecial somente de intelectuais130. O Ocidente resistiu fortemente ao elitismo desse

129. Ibid., p. 125.


130. Ibid., p. 120.

186
tipo. O cristianismo, embora tenha tido certamente um componente intelectual,
rejeitava o ensinamento gnóstico de que o verdadeiro conhecimento de Deus é
domínio exclusivo de uma elite intelectual. O artesão e o comerciante urbanos,
que eram os principais portadores das ideias e valores cristãos na Roma antiga,
declararam seu Evangelho aberto a todas as classes, grupos, raças c nações.

Crença e comportamento
Qualquer que sejam os interesses dos intelectuais como um grupo, todas as
religiões proféticas do mundo devem lidar com um problema intelectual priori­
tário - o mistério do mal ou teodiceia (grego para “justificação de Deus”). Eles
necessitam explicar como qualquer ideia de bondade última pode ser compatível
com um mundo cotidiano que é tão profundamente falho e repleto de sofrimen­
to. Com esse tópico desafiador como a transição, Wcber passa a examinar a cren­
ça e o comportamento religioso. Sua discussão é, novamente, difícil c inacessível .
em determinadas partes, de modo que seguiremos apenas os temas principais.
As respostas que a religião dá ao problema do mal se dividem cm três tipos
ideais. Uma fórmula propõe que o problema será resolvido ou nesse mundo em
algum tempo futuro quando a justiça finalmente triunfará (como sustentado
pelo judaísmo primitivo) ou fora dessa vida em um outro domínio ou em uma
existência futura quando tudo for retificado (como sustentado no judaísmo
tardio, no cristianismo, no islamismo e em outras religiões). Alternativamente,
podemos dizer conforme o Livro de Jó e parte da teologia islâmica que Deus,
ou o universo, c simplesmente inexplicável; ou que nosso raciocínio moral nun­
ca pode penetrar questões últimas. Ou podemos afirmar que existem duas rea­
lidades últimas no universo: dois deuses - um mau, um bom, como os antigos
zoroastrianos sustentavam, ou um domínio de espírito que c puro e eterno e
um domínio de coisas materiais que está sujeito à morte e à decadência, como
os brâmanes hindus sustentaram por muito tempo. Poucas religiões oferecem
essas escolhas nas formas puras desses tipos ideais. A maioria tende a misturar
diferentes elementos de cada tipo de modos distintivos, e muitas (como obser­
vamos) fazem isso oferecendo como parte da solução um programa abrangente
de salvação humana, uma fórmula que descreve como cada um pode encontrar
a paz final ou libertação seja neste mundo ou além dele. Webcr pensa que é
possível também dividir esses programas de salvação em tipos - dois em par­
ticular: o primeiro assume a necessidade de algum tipo de esforço humano; o
outro declara que o esforço humano é inútil e que a salvação deve vir de fora,
como uma dádiva de um herói extraordinário ou de um ente divino que assume
a forma humana para ajudar.

187
A salvação pelo esforço humano
Uma das mais antigas formas de salvação c a ação ritualizada. Executar uma
cerimónia ou atingir um estado mental, como na meditação budista antiga, leva
a pessoa naquele instante à iluminação, ou próxima a um deus. Como esses es­
tados anímicos são momentâneos, a ênfase muitas vezes repousa em várias boas
ações ao longo do tempo. Créditos são ou computados no final da vida e pe­
sados, como o Profeta Zoroastro ensinava, ou vistos como expressões de uma
“personalidade total ética”131. Em quase todas as culturas, esse padrão assume
a expressão mais clara em certos povos excepcionais que praticam o que VVeber
chama “santificação virtuosa”; eles buscam ser artistas supremos da vida moral.
Em seus modos diferentes, os monges budistas e cristãos, os judeus farisaicos, os
santos como São Francisco, os místicos sufistas no islã, e os puritanos guiados
pela ética protestante exibem todos esse traço. Eles alegam um status elevado
como atletas espirituais; desdenhando a “moralidade mediana”, buscam, cm tro­
ca, viver a perfeição.
Entre esses perfeccionistas, diz Weber, necessitamos fazer algumas distinções,
pois nem todos os heróis são iguais. O termo “ascetismo” descreve melhor um
tipo de prática perfeccionista, enquanto “misticismo” descreve melhor o outro.
O ripo de atividade ética árdua praticada pela maioria dos monges católicos no
mundo ocidental ilustra o perfeccionismo asceta. Eles se veem como “instrumen­
tos de Deus”, ativamente engajados em uma lura espiritual que exige todas as
suas forças para superar a fraqueza e resistir à tentação. Outros, como os monges
do budismo inicial, são tão perfeccionistas quanto, mas adotam, cm troca, uma
postura espiritual contemplativa, e são mais bem descritos como praticantes do
misticismo. Eles se veem como reccptáculos que acolhem a espi ri mal idade em
vez de instrumentos que ativamente a adquirem. Sua missão não e seguir um
caminho de empenho espiritual, mas contemplar, atingir um estado tranquilo de
profunda paz, repleto, seja de verdade, seja de divindade.
Existem, além disso, dois conjuntos nos quais cada uma dessas duas formas
de heroísmo espiritual pode ser buscada: ou dentro do mundo da vida diária ou
no isolamento dela. A preferencia natural do místico é rejeitar o mundo e buscar
fugir para um lugar de isolamento, como o refugio da floresta ou a caverna do
ermitão. Aí se pode estar só e declarar o prazer do nada ou nadar na paz oceânica
do ente divino. O ascetismo enfrenta o mesmo par de opções: pode ou rejeitar
ou adotar o mundo cotidiano como a cena de suas atividades. A maior parte dos
mosteiros medievais abrigava monges que trabalhavam juntos em isolamento
do mundo exterior e se viam como heróis espirituais ativamente engajados no
serviço dc Deus. Eles não eram místicos passivos como os monges budistas. Eles

131. Ibid., p. 155.

188
777

desmatavam florestas, faziam plantações e faziam o voto dc São Bento que lhes
exigia que rezassem e trabalhassem - ora et labora - enquanto construíam suas
comunidades espirituais separadas do resto da sociedade. Os calvinistas autoper-
feccionistas que conduziam seus negócios nas cidades como Londres c Amsterdã
eram igualmentc ascetas e espirituais - mas com uma diferença crucial: sua arena
não era o mosteiro, mas o lugar dc trabalho cotidiano. Como o monge medieval,
o comerciante puritano se alistava cm uma vida dc empenho espiritual c de au-
torrestrição, que tomou expressão através de um “ascetismo intramundano”. Um
programa de vida espiritual disciplinada que ele aplicava dentro do domínio da
vida e dos negócios cotidianos. No efeito prático, o protestante calvinista buscava
nada menos do que “transformar o mundo dc acordo com seus ideais ascetas”132.
Podemos recordar aqui o propósito da comparação da figura de Durkheim do
asceta que por sua autonegação serve como um modelo de como outros também
deveriam renunciar a desejos egoístas em prol da sociedade. O herói espiritual
protestante é diferente. O asceta mundano se nega no serviço de Deus, mas o
efeito não pretendido desse ato não é preservar a ordem social existente, mas
subverte-la através de uma mudança revolucionária de atitudes na direção tanto
da riqueza como do trabalho.
Para Weber, essa distinção entre ascetismo e misticismo é de grande impor­
tância cultural. Ela destaca uma diferença central entre as religiões do Oriente e
as do Ocidente. Tipicamente, o ideal religioso oriental é a contemplação mística,
enquanto o Ocidente ao longo da história tendeu na direção do ascetismo ati­
vista. Mesmo onde aparecem místicos no Ocidente, eles se inclinam para uma
ênfase na conduta - o que as pessoas na realidade fazem com suas vidas. Weber
oferece um conjunto complexo de razões filosóficas c históricas para essa cir­
cunstância, enfatizando especialmente um fato que observamos anteriormente:
as religiões da salvação ocidentais (judaísmo, cristianismo, islamismo) afirmam
um deus criador todo-poderoso transcendente que é completamente separado
do mundo que ele criou. Deus e suas criaturas não podem ser fundidos. O mis­
ticismo do Oriente é diferente; promete um caminho de ascensão espiritual pelo
qual a humanidade pode, no fim, fundir-se com o divino ou conhecer a alegria
da fuga perfeita do mundo.

A salvação como uma dádiva


Weber dá menos atenção à crença de que a salvação é uma dádiva (a outra das
duas fórmulas que os religiosos aplicam para descrever como a salvação é asse­
gurada), e podemos passar menos de nosso tempo nela também. Algumas vozes
nas religiões da salvação insistiram na afirmação de que os humanos não podem

132. Ibid., p. 164-165.

189
ST

fazer coisa alguma para conquistar sua própria salvação. A paz última chega so­
mente, e completamente, de fora. Ela pode chegar como uma dádiva, obtida
para nós por um salvador como o bodisatva budista ou o Cristo ressuscitado do
cristianismo. Ela pode chegar também como um ato de “graça institucional”,
como a absolvição dada ao pecado por um sacerdote católico. Ou, como nas reli­
giões que afirmam um Deus, ela pode chegar como uma graça divina concedida
em resposta a uma fé simples, sincera e completamente pessoal do tipo visto no
islamismo primitivo e em algumas seitas protestantes, como o pictismo alemão.
Ou, novamente, pode vir para certas pessoas e não a outras por meio de um
ato misterioso de predestinação divina, como no islamismo tardio e na doutrina
predestinaria calvinista austera dos “decretos divinos” promulgados “antes das
fundações da terra”.

A religião e outras esferas da vida


O quarto e último conjunto de tópicos que Webcr trata cm A sociologia da
religião é a interação da religião com certos outros aspectos da vida social - isto
é, a economia, a política, a sexualidade e as artes. Na esfera da economia, ele
pensa que a regra comum de bondade aos vizinhos parece quase universalmente
como a doutrina da caridade ou doação - doar livremente para ajudar outros cm
necessidade. Esse princípio explica, entre outras coisas, a arraigada desconfiança
da usura em algumas tradições religiosas, que sustentam que emprestar dinhei­
ro enquanto coleta juros é um modo de exploração, não de ajuda, dos pobres.
Em conformidade à sua nova ética, o calvinismo questionou corajosamente esse
princípio. Ele proibia a doação caridosa a mendigos porque nem todos estavam
verdadeiramente em necessidade, como estavam os merecidamentc pobres: os
incapacitados, viúvas c órfãos. A caridade não era destinada para aqueles que
pudessem responder ao chamado de Deus para trabalhar. Aqueles que mendigam
quando podem adquirir violam claramente a lei do amor a aceitarem o que nao
é justamente deles. Inversamcnte, a usura pode ser vista simplesmente como
um pagamento por ganhos gerados pelo trabalho que poderia não ter ocorrido
sem os fundos emprestados. A usura, portanto, não explora a pobreza; ela cria
oportunidades.
Quanto à política, à sexualidade e às artes, Weber observa que a religião
se encontrou muito comumente em uma medida de tensão, e depois conces­
são, com cada uma dessas atividades. Sempre que religiões proféticas declararam
uma doutrina universal da salvação ou amor, não puderam evitar o conflito com
o Estado, que sempre coloca em primeiro lugar os interesses de uma entidade
política, seja uma cidade, um território, uma nação ou um império. A religião
pode buscar subjugar o Estado aos seus interesses, como no começo das guerras
do islã ou das façanhas do exército protestante de Cromwell na Inglaterra, mas

190
muito frequentemente deve buscar concessões, aceitando ou ignorando a inde­
pendência da ordem política. Isso vale para a sexualidade e as artes. Nas grandes
religiões com uma ética da salvação, tanto o misticismo (que busca perder osclf)
como o ascetismo (que busca discipliná-lo) estão em competição com o único
impulso humano capaz de desviar do objetivo do primeiro c quebrar as restrições
do segundo. Em geral, portanto, as religiões desconfiam da sexualidade; as mu­
lheres recebem um status secundário, e o casamento em todos os sistemas éticos
é basicamente uma instituição legal em vez de erótica ou romântica. A expressão
artística deveria, em contraste, ter uma afinidade natural com a religião por meio
do valor que coloca em imagens c no simbolismo. Mas quando a arte cessa de
ser uma habilidade a serviço de um propósito religioso c afirma valores estéticos
independentemente, propondo que as pessoas possam encontrar um significado
último através da beleza criada, um conflito com a religião é inevitável.

“A ética económica das religiões mundiais”

Em suas páginas finais, A sociologia da religião não chega realmentc a um fim;


simplesmente interrompe no meio do caminho em direção a um novo capíailo
(cujo resto sobrevive em notas) que examina as grandes religiões do mundo.
Aquelas páginas podem talvez ser melhor compreendidas menos como uma con­
clusão àc A sociologia da religião do que como a introdução à última c mais ambi­
ciosa iniciativa de Webcr, também deixada inacabada na época de sua morte. Ele
projetou uma série de estudos que incluiriam A ética protestante e continuariam
ao longo de não menos que oito volumes tratando comparativamente c em se­
quência as maiores religiões mundiais. Não há espaço em nossa discussão para
dar a esse projeto a completa atenção que merece, mas podemos oferecer um
breve esboço das partes que Weber finalizou, junto a algumas observações sobre
o tema geral que estava destinado a explorar. Passaremos inteiramente ao largo
de dois importantes c complexos ensaios que incluiu no começo e no meio da
sequência. Desde a época de sua tradução, eles têm sido lidos amplamente por
sociólogos da religião falantes do inglês; aqui eles podem ser deixados para in­
vestigações mais avançadas133.
“A ética económica” propõe explorar todas as “cinco religiões, ou sistemas
religiosamente determinados de regulação de vida que sabiam como reunir mul-

133. Eles são encontrados na obra organizada por H.H. Gcrth c C.W. Mills, From Mnx Wcbcr: Essays
m Sociology (Nova York: Oxford Universitv Press, 1946) sob os títulos “The Social Psvchology of thc
World Religions” (p. 267-301), c “Rcíigious Rejcctions of thc World and Thcir Directions”
(p. 323-359). Existe uma boa análise recente sobre a primeira dessas discussões cm Whimstcr,
Translator’s Note” (p. 75-98). O segundo é, em parte, uma discussão mais elaborada sobre a tipo-
logia misticismo-ascetismo tratada nas p. 165-166.

191
ridões de confessores ao seu redor”134. Webcr acrescenta o judaísmo a esse grupo
devido à sua importância histórica para as duas outras religiões: o cristianismo
e o islamismo. Dos volumes que planejou, três - sobre as religiões chinesas135,
as religiões indianas136 c o judaísmo 157 foram finalizados. Os dois sobre os sis-
temas asiáticos foram preparados durante os anos da Primeira Guerra Mundial,
e os ensaios que constituíram o volume sobre o judaísmo foram completados
entre 1917 e 1919. O primeiro objetivo dc Weber nesses trabalhos era retomar
em uma profundidade maior a questão económica que havia formulado pela
primeira vez, e respondido provisoriamente, em A ética protestante: por que o
capitalismo, o sistema económico que transformou o mundo, surgiu na Europa e
não na América do Norte c somente aí nos dois séculos após a Reforma: A estraté­
gia própria para responder a essa questão requer uma ampla análise comparativa,
começando com as civilizações do Extremo Oriente.

A religião da China (1916)


Desde tempos imemoriais, a China havia sido predominantemente uma so­
ciedade agrícola governada no topo pelo imperador, que controlava os sistemas
dc rios cruciais para a agricultura e o transporte, e administrada na base por
anciãos das aldeias locais. O imperador afirmava sua autoridade por meio de
uma classe dc elite dc administradores públicos - os mandarins alfabetizados
instruídos nos grandes escritos de Confúcio - que residiam principaJmcnte nas
cidades. Privilegiados c cultivados, buscavam uma ética de refinamento c um
confortável “ajuste ao mundo” que moldaram a cultura da elite chinesa por dois
milénios, mas sem impacto notável nas atitudes das massas. Tanto na cidade
como no campo, a vida comum era governada por vínculos dc família e clã e pela
ligação religiosa a rituais mágicos antigos c espíritos ancestrais, que a elite fazia
pouco esforço para questionar ou mudar. As cidades chinesas nunca desenvolve­
ram características dc muitas cidades no Ocidente: autogoverno, concessões de
independência, direitos legais, guildas e sociedades fraternas. Elas permaneceram
instituições patrimoniais que se submetiam ao imperador e aceitavam volunta­
riamente o governo pela elite confúciana. O único protesto contra esse tradicio-
nalismo veio dos taoistas, seguidores do Mestre Lao-tzu, que exortavam uma
vida de autonegação e fuga do mundo. Lao-tzu convocava para isolamento nas
florestas intactas, onde o espírito poderia sintonizar-sc com o Taoy o grande e

134. GERTH, H.H. c MILLS, C.W (orgs.). FromMax Weber, p. 267.


135. WEBER, M. V.icRtligion ofChina. Glencoe: The Frec Press, 1958.
136. WEBER, M. The Religion ofíndia. Glcncoc: The Free Press, 1958.
137. WEBER, M. AncimtJudaism. Glcncoc: The Frec Press, 1952.

192
misterioso fluxo cm todas as coisas existentes. Os taoistas buscavam uma vida de
simplicidade, mas por apreciarem muito a vida c assumirem um interesse forte
pelas técnicas que acreditavam poder estendê-la, suas doutrinas muitas vezes se
misturavam naturalmente com a magia popular, inclusive reforçando seu con­
trole sobre as massas. Assim, embora tenha se envolvido em um protesto contra
o estilo de vida culto e privilegiado dos mandarins, o taoismo não estava mais
disposto que o confucionismo a promover uma ética universal entre as massas;
ao contrário, a ênfase na flutuação tranquila e desinteressada no fluxo da natureza
deixava os mestres taoistas tão à vontade quanto os confiicianos com uma civili­
zação formada principalmente pelo tradicionalismo camponês.
Essa postura dominante de tradicionalismo c passividade significava que nem
as tradições populares nem os grandes sistemas filosóficos da China forneciam
um incentivo religioso para as pessoas buscarem lucro em transações comerciais.
A despeito de certos avanços iniciais na matemática e na tecnologia, a combina­
ção cultural da China de tradicionalismo e patrimonialismo desencorajava o tipo
de imparcialidade racional (a recusa cm “fazer favoritismos” para ajudar amigos
ou a família) nos negócios que é crucial para a atividade racional orientada para
o lucro. Mais decisivamente, o elemento indispensável, o espirito do capitalismo,
falhou em aparecer. O mandarim culto, orgulhoso de seu treinamento confucia-
no, pensava principalmente sobre sua dignidade pessoal, não sobre a realização
de qualquer chamado divino, como Lutero havia ensinado. Como discípulos de
Confucio, a dite alfabetizada e cultivada não mostrava qualquer inclinação para
o ascetismo que levou os calvinistas a se verem como instrumentos de Deus em
ação no mundo. Se a vida de alguém é vista como um feito já perfeito e acabado,
não tem sentido lutar para obter maior autocontrole ou para prosperar no mer­
cado. O confucionismo não buscava o domínio do mundo através de uma vida
de autonegação disciplinada; estava contente com sua ética de ajuste ao mundo
como ele era e sempre fora: tradicional, estável c imutável.

A religião da índia (1916-1917)


Na índia, invasões e conquistas sucessivas haviam criado divisões na ordem
social que apareceram no sistema de castas, que era dominado por dois grupos da
elite. Os brâmanes eram uma casta de sacerdotes privilegiados apenas com ler os
textos sagrados dos Vedas; os xátrias, uma classe guerreira, detinha poder militar
e político. Abaixo desses dois grupos, que declaravam seu status como um caris-
ma herdado (ou dádiva familiar), ordenavam-sc castas inferiores, em uma escala
determinada por nascimento e vocação. Na base estavam as castas mais baixas
dos escravos, literalmente “fora das castas” [out-castes]. Regras contra casamento
ou mesmo associação em refeições mantinham as linhas de separação distintas,
mas o apoio mais poderoso do sistema era religioso. Os intelectuais brâmanes,

193
que eram os principais portadores das ideias que moldaram a civilização indiana,
inseriram as divisões dc casta no próprio roteiro do universo. Eles sustentavam
que toda vida está sujeita à lei cósmica àosamsma, ou renascimento, que governa
a natureza e a sociedade sob o princípio do kanua, o peso cumulativo dos feitos
espirituais (ou não espirituais) de alguém. Aqueles na casta brâmane, situados no
topo, mereciam sua fortuna como uma recompensa pelas realizações espirituais
cm uma existência anterior; aqueles situados abaixo igualmente mereciam as suas
como uma consequência natural de vidas anteriores muito envolvidas cm víncu­
los materiais e prazeres sensuais. Esse sistema era intelectualmente persuasivo,
explicando com um tipo de lógica fria exatamente por que diferenças sociais que
parecem injustas não são porque estão integradas na própria estrutura do mundo.
Mas era também profiindamente desalentador. Para a pessoa comum, prometia
uma vida após outra na grande “roda do renascimento”. A existência humana era
definida principalmentc por uma luta contínua para se desprender dos rolos da
reencarnação c por esforços (cm geral fracassados) para superar as tentações da
sexualidade, do luxo e mesmo da família.
Esse grande sistema mundial, na melhor das hipóteses cinza, na pior, cruel,
coloriu todo o desenvolvimento da religião e da sociedade na índia. Os líderes
brâmanes, originalmente mestres do canto sagrado, introduziram práticas asce­
tas de ioga e de retiro para imporem disciplina às urgências do corpo c para
cultivarem uma forma de espiritualidade pura o bastante para darem à alma sua
liberação final. O mesmo motivo de busca determinada por liberação deu origem
a duas grandes religiões dc protesto da índia: o budismo c o jainismo. Ambas
aceitavam completamente o sistema do samsara, mas romperam o jugo da casta
oferecendo esperança dc escape a todos que pudessem atingir uma vida budista
dc total disciplina e meditação ascetas ou percorrer o caminho jainista de respeito
total pela vida cm todas as suas formas. Ainda assim, para as massas ordinárias,
nada disso era realístico. Elas nao eram atletas espirituais; não poderiam espe­
rar alcançar as alturas de um prodígio no desempenho espiritual. Como essa
autonegação era inatingível para a grande maioria das pessoas, elas aceitavam
a coisa imediatamente melhor, obter mérito por apoiarem as comunidades de
monges. Enquanto as elites brâmane, budista e jainista praticavam heroísmos
espirituais, as grandes massas viviam como crianças adotivas religiosas. Na super­
fície da vida, poderiam se interessar pelo “jardim de magia” que estava repleto de
salvadores e superstições populares, mas no fundo, no nível das questões ultimas,
estavam resignadas a um destino que prometia pouco mais do que novos nasci­
mentos desencorajadores aparentemente sem fim na roda sempre em movimento
da reencarnação.
Toda essa resignação deixou uma impressão visível na vida económica. Como
na China, o empreendimento capitalista na índia falhou em se arraigar, mesmo

194
quando as pcrspectivas foram muito favoráveis. Havia um sistema dc aritmé­
tica que utilizava o zero e a numeração posicionai; havia centros prósperos de
trabalhos manuais e comércio, assim como trabalhadores especializados com
guildas que os apoiavam; havia comerciantes independentes; c a tributação não
era opressiva. Mas em contraste com a Europa, a sociedade indiana permane­
cia basicamente rural c tradicional, dc modo que o verdadeiro empreendimento
capitalista não se desenvolveu. Isso não contribuiu para que aquelas cidades li­
vres, autogovernadas, os criadouros do capitalismo no início da Modernidade
ocidental, tenham falhado a emergir. A principal causa foi a casta, que impediu
a unificação dc diferentes guildas e classes em uma única comunidade de cida­
dãos, com direitos iguais sob um sistema legal c moral imparcial que rejeitasse
qualquer favoritismo baseado em vínculos familiares ou de classe. Alem disso,
o problema da casta era no fim o problema do sistema religioso indiano que
servia para ancorá-la. Os ensinamentos clássicos do hinduísmo sustentavam, e
ainda sustentam, que não existe no fim qualquer valor duradouro positivo a ser
colocado na atividade humana no mundo físico c na vida presente. As mensagens
da elite brâmane e de profetas como Buda e Mahavira (o fundador do jainismo)
eram essencialmente as mesmas: a paz espiritual vem somente por meio do afas­
tamento do mundo e da liberação de suas ocupações, cuidados c mesmo alegrias.
Esses ensinamentos diferem fortemente daqueles dos profetas judaicos, que
ofereciam uma mensagem recebida dirctamentc de Deus, uma revelação divina
que desencantava o mundo dc seus encantos c espíritos mágicos. Seus oráculos
exigiam obediência à lei moral de um Senhor soberano em vez de cerimonias
e sacrifícios para agradarem os espíritos do campo ou da aldeia. A índia estava
repleta dc ascetas c místicos da elite com habilidade para se afastarem do mundo,
mas uma vez mais, como na China, não havia programa que apelasse à obediên­
cia autonegadora à vontade de Deus por meio do engajamento sistemático com
o mundo, como vemos nos comerciantes puritanos dc Londres ou nos coloniza-
dores da Baía de Massachusetts. A despeito de todas as suas outras realizações,
as civilizações da China e da índia não produziram um equivalente à érica pro­
testante da Europa. Sem ela, nem o verdadeiro espírito nem a genuína prática do
capitalismo moderno jamais teriam podido emergir.

O judaísmo antigo (1917-1919)


*
A medida que se dirigia da Ásia para o Ocidente, Weber planejou seus pró­
ximos volumes, que deveriam centrar-sc nas grandes religiões ocidentais: judaís­
mo, cristianismo e islamismo. Infelizmcnte, o primeiro, sobre o judaísmo antigo,
foi o único que viveu (quase) o bastante para completar. É um trabalho denso
c cuidadoso, ao qual, uma vez mais, não podemos fazer justiça aqui. Podemos,
porém, comentar suas ideias centrais.

195
Como com a China e a índia, Wcbcr começa oferecendo uma revisão atenta
das circunstâncias materiais nas quais o judaísmo surge: a geografia, a política
c a cultura do Extremo Oriente antigo. Mesmo antes da era dos reis, a confede­
ração hebraica de tribos havia se unido cm torno de uma fé compartilhada cm
Yahxveh, o Deus pessoal da aliança c criador do mundo. De toda humanidade
Ele escolheu os judeus como seus filhos por contrato. Sua preferencia estava
disponível a eles; somente sua lealdade era esperada em troca. Toda história
judaica subsequente deveria ser interpretada por sacerdotes assim como por
profetas em termos dessa aliança, que moldaria as teologias tanto do cristianis­
mo como do islamismo.
O contrato foi rompido na época da monarquia. Os reis levaram riqueza a
Jerusalém, mas com seu sucesso vieram casamentos dinásticos com princesas
não israelitas e o culto a deuses de fertilidade estrangeiros. O ressentimento se
alastrou entre os pobres rurais e tradicionais, levando à guerra civil e pôr fim
à destruição das tribos no Norte. Na época, o reino foi reconstituído no Sul,
e sob o governo do Rei Josias, profetas e sacerdotes educadores tornaram os
livros da Lei - a Torá em vez de templos de sacrifícios - o ponto central da vida
judaica. Eles estabeleceram uma nova fé religiosa individualizada: obediência
aos preceitos da Torá a partir de um senso de devoção pessoal a Yahvveh, o Deus
da Aliança, não mais concebido somente como o Deus de Israel, mas como o
Deus de todas as nações. Essa obediência consistia em mais do que apenas boas
ações isoladas; deveria ser uma completa “ética de compromisso”. Os profetas
que a proclamaram - Amós, Oseias, Isaías, Jeremias - exigiam tanto pureza dc
fé em Yahweh como justiça social para os pobres. Diferente dos profetas exem­
plares do Oriente, não alegavam possuir pessoalmente qualquer sabedoria ou
divindade. Mas cm um outro sentido afirmavam algo muito maior: a mensa­
gem do monoteísmo ético. Eles proclamavam a majestade soberana de Deus e
exigiam total obediência à sua vontade. Mais do que qualquer outra coisa, essa
mensagem é o que separa o judaísmo e suas religiões sucessoras do Ocidente
das tradições do Oriente. Diferente dos grandes sistemas asiáticos, o judaísmo
e suas fés discipulares insistem em que a salvação não é conquistada por meio
da contemplação que guia a alma para fora do mundo físico cotidiano; vem, em
troca, através da fé c da obediência constante que busca atingir um propósito
divino neste mundo.
Igualmentc importante nessa conexão era a oposição profética às formas
dc magia, que era amplamentc tolerada entre as massas no Extremo Orien­
te. Conforme o concebiam, Yahweh, o Deus da criação, está completamente
além da manipulação por rituais e encantos do tipo oferecido pelas deidades
cananeias dc fortuna e fertilidade. A devoção pessoal e obediência ética, não
a magia e a adivinhação, são as coisas que o agradam. Em lugar de forças

196
misteriosas e manipulações ocultas, os profetas exortavam as pessoas comuns
a viverem livres da magia, um caminho de ação governado unicamente pela
obediência pessoal à lei mosaica. Essa nova ética de compromisso não era
reservada apenas a um círculo de especialistas da elite, como no hinduísmo c
no budismo. Ela colocava diante de todos os judeus o ideal de uma “perso­
nalidade ética total”, de uma vida individual inteira moldada em hábitos de
obediência aos mandamentos da Tora. Por meio da pregação a partir de textos
do Antigo Testamento, esse ideal de uma vida inteira vivida a serviço de Deus
se infiltrou na ética dos protestantes modernos enquanto buscavam suas voca­
ções sagradas no mundo.
O tema surge de sua descrição dos judeus posteriores como um “povo pária”
do antigo Oriente Médio. Após o exílio na Babilónia, ele afirma, os judeus sc tor­
naram gradualmente uma “comunidade de párias”, parcialmentc por sua própria
culpa. Eles adotaram uma forma de autoisolamento na Europa cristã (similar à
dos párias 11a índia) ao recusarem a miscigenação ou a sc associarem a membros
da comunidade gentil ma is ampla. Inevitavelmente, portanto, encontraram-se
desprivilegiados -, vítimas de suspeita, ódio c exploração. Sobrecarregados além
disso por uma “ética de ressentimento” contra seus opressores, adotaram um tipo
dc moralidade dual, aplicando um elevado padrão moral em todas as transações
com pares judeus e um inferior para o comércio com outros. A iniciativa judaica
se tornou, portanto, o “capitalismo pária”, como ilustrado em práticas associadas
à usura. Como a Torá proibia a prática, empréstimos com juros não poderiam
ser feitos para outros judeus, no entanto, poderiam ser oferecidos aos gentis. Em
parte essa ética dividida também ajuda a explicar por que o protestantismo, c não
o judaísmo, é o real progenitor do capitalismo ocidental. Os protestantes exigiam
padrões completamente neutros e racionais de conduta no comércio - um prin­
cípio que era estranho à ética pária judaica.
Alguns críticos atacaram vigorosamente essa teoria “pária” da identidade ju­
daica, questionando as evidências de Weber e mencionando o quão facilmente
essas palavras puderam ser recrutadas pelo racismo nazista - pouco mais de uma
década após terem sido escritas. Caso tivesse vivido mais tempo, poderíamos
muito bem ter tido uma chance de ler as respostas de Weber a esses críticos e
medir suas palavras pelos juízos que ele próprio teria sido compelido a fazer à
medida que testemunhasse o patriotismo de sua geração degenerar no fascismo
da próxima. Infelizmcnte, sua morte prematura em 1920 não deixou chance dc
descobrirmos qual poderia ter sido sua resposta. Tampouco podemos saber o
que sua ampla erudição poderia ter oferecido no restante de “A ética económica”,
caso tivesse sido finalizado; certamente teria representado a culminância dc uma
carreira dc extraordinário feito acadêmico.

197
Análise

1 Wcbcr c Durkhcim

Os escritos de Weber são notoriamente difíceis de sumarizar porque ele entre­


meia com perfeição uma grande quantidade de detalhes históricos e sociológicos.
Com ele a floresta parece difícil de ver devido às árvores. Mesmo assim, podemos
encontrar um caminho se trabalharmos comparativamente, contrastando os mé­
todos de Weber e suas realizações com os de teóricos adjacentes, espccialmcntc
seus rivais intelectuais mais próximos, Durkhcim e Marx. Com respeito a Dur-
kheim, deveríamos observar que entre ele e Weber existe uma clara similaridade
de interesses combinada a uma acentuada diferença de método. Como observado,
Durkheim c Weber não foram apenas pioneiros no campo da teoria social; foram
também responsáveis por dirigir o foco da sociologia profissional nos seus primei­
ros anos especificamente para a sociologia da religião. Asformas elementares da vida
religiosa de Durkheim foi crucialmente importante na colocação da religião no
centro da investigação c teoria sociais. Do mesmo modo, Weber, embora basica­
mente interessado nos aspectos económicos da vida social, encontrou-se constan­
temente atraído para a importância central da religião para a sociedade. Na época
de sua morte, o estudo comparado das civilizações, ancorado na pesquisa sobre as
religiões do mundo, era o principal foco de suas atividades.
Esse interesse compartilhado pela religião não se estendeu para o acordo
sobre os métodos mais adequados à investigação. A agenda de Durkheim, como
vimos, deveria começar de um único caso de religião em seu estado quase origi­
nal - entre os aborígenes da Austrália. De suas práticas tribais ele isolou as formas
“elementares” da atividade ritual - e prosseguiu para mostrar como toda religião
as exibe. Weber, em contraste, começa menos com uma comunidade religiosa do
que com um problema cultural: Como uma nova forma revolucionária de com­
portamento económico surgiu para transformar a civilização ocidental nos pri­
meiros séculos da Era Moderna? A busca por uma resposta a essa questão o leva
a uma mudança religiosa - a emergência da “ética protestante”, que se tornou
o espírito animador do capitalismo moderno. Diferente de Durkhcim, Weber
prossegue então (em trabalhos como A sociologia da religião e “A ética económica
das religiões mundiais”) para explorar o possível âmbito mais amplo de culturas,
práticas c crenças. Também em contraste com Durkheim (e, do mesmo modo,
Tylor c Frazer), ele também não privilegia a religião primitiva como contendo a
semente da qual todas as instituições posteriores se desenvolveram. Ele pensa que
ao menos se pode aprender tanto (e na verdade muito mais) com as histórias reais
das grandes religiões mundiais quanto com os estudos de campo de antropólogos
centrados nas tribos primitivas.

198
Existe uma outra diferença sobre o tema da evolução cultural. Como vimos
antes, Durkheim, devido ao seu foco central na religião em suas formas primiti­
vas, levou cm conta algumas formas de desenvolvimento posterior. Ele conside­
rava a noção de instituições religiosas mudando ao longo do tempo das simples
âs mais complexas. Claramcntc, essa não era a visão de Weber. Quando começa
a explicar os tipos ideais, c cuidadoso em observar como as expressões daqueles
tipos podem parecer em uma época, desaparecer na próxima, e retornar nova-
mente, dependendo de cada nova circunstância cultural ou histórica. Ele consi­
dera a magia, por exemplo, mas comum nas sociedades primitivas, mas admite
seu apelo duradouro entre as massas - os camponeses c os pobres - cm qualquer
sociedade. Ele observa também como ela pode reviver em lugares onde outrora
havia falhado. A magia foi provavelmente mais difundida na Europa medieval
cristã do que mil anos antes no judaísmo antigo após a mensagem dos profetas
fazer efeito. Consequentemente, não há também para Weber algo como uma
evolução intelectual natural do tipo que Frazer imagina quando coloca magia, re­
ligião e ciência em estágios historicamente sucessivos. Por fim e significativamen-
te, Weber parte do reducionismo fiincionalista de Durkheim. Como já vimos em
várias conexões, ele não acredita que as crenças religiosas sejam meras reflexões
de uma realidade social controladora c mais fundamental. Como Weber diverge
de Marx sobre esse tema ainda mais fortemente do que de Durkheim, podemos
voltar para essa comparação a seguir.

2 Weber c Marx

Quando comparamos Weber a Marx, encontramos, em princípio, uma si­


milaridade óbvia. Ambos são teóricos sociais historicamente orientados que for­
mulam argumentos a partir de análises atentas de complexas relações sociais e
históricas. Baseiam-se em compreensões enciclopédicas da cultura c civilização,
e buscam energicamente por causas c efeitos. Marx, contudo, confina grande
parte de seu trabalho histórico à civilização ocidental, onde, dentre outras coisas,
encontra evidências decisivas de que as fantasias da religião surgem da exploração
económica. Weber, por outro lado, foca as atividades religiosas ao redor do mun­
do, uma estratégia que o tornou mais cauteloso do que Marx quanto a defender,
para praticamente todos os eventos, somente uma forma de explicação: a luta de
classes nasce da opressão económica. A complexidade e diferenças nos sistemas
religiosos mundiais lhe sugerem que os intérpretes necessitam se apoiar em teo­
remas explanatórios que não são singulares, mas múltiplos e interativos.
Além disso, é exatamente essa percepção acerca da grande complexidade das
atividades humanas que o retirou do funcionalismo reducionista. Como vimos,
Freud, Durkheim c Marx assumem prontamente que as ações e crenças religiosas

199
sempre remontam a causas não religiosas, sejam psicológicas, sociais ou socioc-
conòmicas. O que afasta claramente Webcr da abordagem deles é a convicção que
ele articula no princípio da Vcrstehcn. As ideias, crenças e motivos humanos me­
recem ser considerados causas reais e independentes da ação humana. Uma ideia
na mente de um agente humano (ou partilhada por um grupo de agentes) c uma
causa tão real da ação humana quanto a aplicação de calor ã água c a causa real do
vapor. Pensamentos conscientes afetam a ação humana ao menos tanto quanto
as urgências c necessidades inconscientes. Quando ele desenvolve o argumento
de A ética protestante, Weber não olha primeiro, como fez Marx, para o sofrimen­
to económico, remontando a doutrina teológica da predestinação ao conflito
de classe na Genebra de CaJvino. Sua investigação o leva à direção exatamente
oposta, descobrindo como a causa-chave da revolução capitalista não alguma
circunstância material, mas uma nova forma de comportamento económico que
de fato seguia de uma nova ideia religiosa. A ctica autorrestritiva do protestan­
tismo era o espírito animador do capitalismo. E historicamente significativo que
em duas décadas após 1900, enquanto Freud, Durkheim e os discípulos de Marx
estavam estendendo sua influência intelectual, Weber perseverava firmemente em
sua abordagem. Para ele, os significados importavam; as redes de significação
que os entes humanos tecem efetivamente modulam e mudam as estruturas ma­
teriais c sociais que as subjazem. Ao assumir essa concepção, Weber certamentc
não estava exagerando. Ele apreciava completamente o denso emaranhado de
causas, eventos, condições, ideias e motivos que integram toda ação humana,
tanto individual como social. Ele faz uma observação especial sobre esse ponto
cm uma introdução posterior deyi ética protestante, onde garante que o ascetismo
mundano calvinista de modo algum era a única causa que explica o surgimento
do capitalismo moderno. Claramente, uma série de fatores convergiram para sua
criação. Ele afirma que tratava
do lado do problema que é gcralmcntc mais difícil de compreender:
a influencia de certas ideias religiosas sobre o desenvolvimento de um
espírito económico, ou o ctos de um sistema económico. Nesse caso,
estamos lidando com a conexão entre o espírito da vida económica mo­
derna e a ética racional do protestantismo asceta. Portanto, tratamos
aqui somente de um lado da corrente causal138.

Esse “um lado da corrente causal” era a poderosa influencia das ideias religio­
sas protestantes sobre o comportamento humano. Certamente, esse fator não era
a única causa, mas tão certamente quanto em uma causa, e possivelmente a mais
importante. Essa posição antirreducionista firme, mas cuidadosamente modula­
da, que Weber manteve como uma característica de sua abordagem durante toda

138. WEBER, M. The Protcstant Ethic, p. 27.

200
sua pesquisa posterior, é uma razão importante pela qual suas análises atraíram
novas apreciações (e, claro, novas críticas) ate hoje. Como a atividade social c
para ele sempre complexa, e a explicação quase nunca singular ou simples, Weber
recusou, por princípio, filiar-se ao clube da teoria reducionista. Ele não poderia se
juntar a Marx, a Freud ou a Durkheim na diminuição do papel das ideias, inten­
ções c crenças c ainda permanecer fiel às evidências que a história e a sociedade
lhe apresentavam.

Crítica

Normalmente, não é elogioso descrever um teórico como alguém cujo tra­


balho é ampla e completamente criticado. O caso de Max Weber, contudo, é
uma notável exceção. Como com Marx, a escala de crítica que as ideias de Weber
receberam é um sinal de sua importância e influência. Se o mérito real de um
teórico é mensurado pelo comentário que ele provoca, então a estatura de Weber
é segura. Como observado antes, mais de um século depois de sua publicação,^.
ética protestante ainda origina discussões. Similarmente, discussões críticas anima­
das se concentram nos conceitos, distinções e conexões defendidas em Economia e
sociedade, A sociologia e religião, e nos estudos separados de “A ctica económica das
religiões mundiais”. A controvérsia sobre o judaísmo como uma religião pária
é apenas um exemplo. O tipo ideal de Weber da “burocracia” é outro. Ambos
produziram uma vigorosa discussão entre psicólogos sociais, assim como entre
especialistas cm organização industrial e administração publica. Economistas e
historiadores de empresas ainda debatem a definição de capitalismo; outros dis­
cutiram as ideias de Weber sobre poder, direito e instituições políticas, assim
como seus comentários sobre as artes, o erotismo, a ciência e a música. Mais
recentemente, historiadores intelectuais focaram as discussões de Weber sobre a
“racionalização” nas sociedades humanas ao longo da história. Alguns pensam
que isso é na verdade o grande tema interpretativo que subjaz ao programa de
Weber, ligando religião, economia e sociedade139.
Com relação à religião, os debates mais tempestuosos giraram, como se po­
deria esperar, em torno da famosa tese defendida em A ética protestante. Muitos
críticos aceitam que os conceitos tanto da ética protestante como do espírito dis­
tintivo do capitalismo sejam esclarecedores. Alguns, contudo, afirmam que We­
ber falha em estabelecer a conexão que ele afirma. Outros apontam para fatores
mais importantes do que a religião que explicam a revolução capitalista. Outros
ainda declaram que o comportamento económico que Weber considera tão novo

139. Sobre isso, cf. SCHLUCHTER, W Rationalism, Relijjum, and Domination: A Wcbcrian Perspec-
rivc Bcrk*ley: Univcrsicy of Califórnia Press, 1989.

201
c tão disrinrivamentc ocidental pode scr encontrado muito antes da chegada do
protestantismo e muito distante da Europa. Esses debates, que dependem de
detalhes sociológicos c históricos, podem ser deixados para que especialistas
os determinem. Mas existem dois outros temas a tratar que exibem mais dire­
tamente o programa geral de Weber tanto como teórico da ação humana como
interprete da religião.

Consistência

O primeiro é uma crítica dirigida basicamente por discípulos de Marx, em­


bora pudesse igualmcnte ter vindo do círculo de Durkheim ou de Freud. Ela se
aplica, muito além dcA ética protestante, ao espectro inteiro do trabalho de Weber
sobre a religião, e contrapõe Weber ao seu mais formidável oponente - ele pró­
prio. O tema é a consistência. Weber, como observamos, insiste cm que as ideias
religiosas devem receber um lugar independente, causa ti vo, no processo de com­
preensão da história e da sociedade. Ao discutir o protestantismo, por exemplo,
ele considera os conceitos calvinistas de “vocação” e “ascetismo mundano” ideias
religiosas convincentes que levam pessoas a adotarem uma forma distintamente
nova de comportamento. Mas cm outras discussões (e em outra parte nesse pró­
prio estudo), a prática de Weber parece se distanciar de seu preceito. A sociologia
da religião oferece um exemplo interessante. Quando ele discute nesse trabalho a
origem do monoteísmo, escreve:
[O] deus pessoal, transcendental c ctico c um conceito do Oriente Mé­
dio. Ele corresponde tão estreitamente ao de um rei mundano todo-po-
deroso com seu regime burocrático racional que uma conexão causai
dificilmente pode scr negada140.

Ele acrescenta que o modelo do monarca que tinha a posse dos sistemas de
irrigação vitais “foi provavelmente uma fonte da concepção de um deus que havia
criado a terra e os humanos a partir do nada, e não os reproduzido, como em
outros lugares se acreditava”141.
Essa explanação de uma ideia religiosa crucialmente importante - o Deus
criador soberano - parece quase como vinda de Marx. A discussão aduz uma
circunstância económica puramente material - uma necessidade básica de água
fornecida por um monarca poderoso e distante - como a realidade fundamen­
tal c transforma a concepção religiosa em uma reflexão sobre poder político e
geografia. Sem dúvida, Weber pode responder que considera o rei do deserto

140. WEBER, M. The Sociology ofRcligion, p. 56, 57.


141. Ibid.

202
somente uma fonte, não a on a única fonte, da ideia de Deus. Mesmo assim,
o curso de sua exposição aqui sugere certamente o que Marx poderia ter dito:
As ideias religiosas surgiram naturalmente como reflexões sobre realidades so-
cioeconômicas. As correlações de Weber sobre certos interesses de classe ou
preocupações de grupos de status com ideias religiosas específicas procede de
um modo similar. Ele considera a noção muçulmana de Deus um conceito
caractcrístico da “nobreza guerreira” da Arábia primitiva, e ele pensa que a
doutrina hindu do samsara reflete a necessidade de uma elite intelectual para
oferecer uma lógica cósmica para o nascimento de alguns para a riqueza c privi­
légio enquanto outros são destinados à pobreza e dificuldades. Com isso, Marx
poderia prontamente concordar.
Esse padrão de explicação ocorre também nos estudos que constituíram “A
ética económica das religiões do mundo”. Antes de dirigir sua atenção às crenças
e ensinamentos religiosos da China, índia ou judaísmo antigo, Weber oferece
um exame exaustivo dos contextos material, político e socioeconômico nos quais
as religiões surgiram. Em princípio, ele articula uma posição antirreducionista,
dizendo sobre a índia, por exemplo, que o curso do desenvolvimento no pensa­
mento religioso procede independentemente das circunstâncias materiais e das
influencias sociais. Mas no processo efetivo de explanação, ele está disposto a tra­
tar aquelas ideias de um modo diferente: como vinculadas à sua estrutura histó­
rica c como naturalmentc espelhando os ambientes social, cultural e económico
específicos nos quais aparecem.

Cicncia social e religião

Críticas de um outro tipo se vinculam à ideia de Weber de uma ciência so­


cial como aplicada ao tema da religião. Como observamos em nossa discussão
sobre seus métodos, Weber (não menos do que outros teóricos) está fortemente
comprometido com o desenvolvimento de descrições da atividade religiosa que
possam se declarar científicas. O propósito inteiro de conceber conceitos que ele de­
signa como tipos ideais c oferecer, como em toda ciência, algum tipo de estrutura
conceituai generalizada que possa ser aplicada uniformemente a todas as culturas.
A abordagem é um pouco similar à de Durkhcim, que extrai as formas elemen­
tares de um exemplo religioso e as aplica a todas as outras. Para um sociólogo
genuinamente histórico como Weber, contudo, essa estratégia é mais problemá­
tica. A precisão histórica, afinal, não é a amiga fácil da generalização científica.
Qualquer que seja o fenómeno religioso - evento, pessoa, processo - de que
trate, o hábito de Weber é levar o tema à série completa de seu amplo conheci­
mento, muitas vezes delineando uma rede intrincada de circunstâncias materiais,
influências políticas, condições económicas, forças sociais e interesses de classe ou

203
grupas dc status, assim como ideias e atividades religiosas, no curso de suas aná­
lises. Todo esse trabalho é instrutivo, por vezes inclusive impressionante, em seu
efeito. Mas há uma complicação: o objetivo da sociologia como ciência, presumi­
velmente, é encontrar padrões e categorias que podem ser aplicados geralmentc
à maioria, ou a muitos, dos casos similares. Todavia, essa é a própria coisa que as
descrições históricas delicadamente complexas de VVebcr tornam excessivamente
difícil para ele, ou a qualquer um interessado na teoria científica social, fazer.
Um exemplo específico pode ilustrar. Em uma seção de seu A religião da
índia, Wcber explica o começo do budismo. Ele o descreve como o produto dc
um ambiente aristocrático urbano, não o mundo pastoril dos brâmanes hindus.
O budismo ensina a reencamação, assim como o hinduísmo, mas deixa de fora
qualquer doutrina da alma ou atma-brâman (a alma do mundo). E um sistema
de salvação, mas somente para os intelectuais cultivados. Não exibe o ascetismo
dos jainistas. Em quase todos os aspectos, “é o extremo oposto do confticionis-
mo e do islamismo”142. E uma ética que rejeita tanto a conduta ativa no mundo
como os exercícios ascetas. A despeito desse fato, seus monges gradualmcntc
adquiriram residências permanentes e propriedades, tornando-se proprietários
de terras e administradores rurais como os monges cristãos do Ocidente. Dife­
rente dos monges ocidentais, contudo, os líderes budistas não tinham autoridade
real, e os monges comuns não eram formalmente vinculados a mosteiros. Esses
e outros detalhes explanatórios são cuidadosamente apresentados à medida que
a discussão prossegue143. Mas o resultado desse processo é um tipo dc paradoxo.
Por um lado, recebemos o sonho do historiador - uma descrição notavelmente
rica, detalhada c específica da vida c culaira budistas nos primeiros séculos após
Gautama; por outro, temos (alguém quase poderia dizer) o pesadelo do sociólo­
go - um retrato económico, social, cultural c religioso do budismo primitivo tão
cuidadosamente matizado, preciso e detalhado que qualquer tentativa de situá-lo
em uma categoria, qualquer esforço para submetê-lo a algum padrão sociológico
geral ou para extrair dele uma analogia aplicável a uma comunidade religiosa de
uma outra época ou lugar, parece praticamente futil. O gabinete de tipos ideais
de Weber oferece um conjunto de ferramentas para classificar e comparar, mas
seu valor para os objetivos da ciência social é limitado. A tarefa do historiador,
certamcnte, é explicar particulares, remontar eventos ou ações a uma conver­
gência de causas e condições específicas a um tempo, lugar e circunstância. A
ciência social, pela própria descrição de Weber, não é história. Como a ciência
natural, busca construtos teóricos que tenham algum tipo de aplicabilidade geral

142. WEBER, M. The Rdigion ofíndia, p. 206.


143. Ibid., p. 204-230.

204
à maioria (senão a todos) dos casos razoavelmente comparáveis. Em sua prática
efetiva, contudo, Weber parece incapaz de entregar essa aplicabilidade geral. A
despeito de seus melhores esforços na direção do objetivo da sociologia empírica,
suas investigações têm a aparência de história notável cm vez dc ciência social
generalizada bem-sucedida. Suas análises são úteis, instrutivas, esclarecedoras c
originais, mas não são gerais, ou geralmcnte aplicáveis, do modo que a sociologia
científica presumivelmente gostaria que fossem.
Teóricos atuais na linha de Weber oferecem respostas a essas reclamações,
mas aqui devemos deixá-los de lado, com um convite ao debate posterior cm
outro tempo c cm outro espaço. Indcpendcntemente das reservas que os críticos
possam abrigar, a contribuição dc Weber à teoria da religião c muito impres­
sionante. As marcas de seu feito podem ser encontradas na grande variedade
de seu conhecimento e interesses, na precisão de seus conceitos c na sutileza de
suas análises, na firmeza de sua resistência ao funcionalismo reducionista como
representado por Freud, Durkheim e Marx, c mais enfaticamente, em sua forte
apreciação da grande complexidade envolvida na tarefa de explicar o comporta­
mento humano, não apenas o religioso.

Sugestões de leitura complementar

ANDRESKI, S. Max Webcr’s Insigbts and Errors. Londres: Routledge and Kegan
Paul, 1984.
Uma análise breve c altamente substantiva repleta dc observações penetrantes sobre
todos os aspectos do pensamento dc Weber.

BARBALET, J.M. Weber, Passim and Profits: “The Protcstant Ethic and the Spirit
of Capitalism” in Contcxt. Nova York: Cambridge University Press, 2008.
Uma reavaliação recente sobre um dos teoremas mais amplamentc discutidos na
história económica c social. O autor vincula Weber a Adam Smith c outros do
século anterior.

BENDIX, R. Max Weber. 2. ed. Bcrkeley: University of Califórnia Press, 1978.


Uma biografia intelectual perceptiva cm inglês, amplamente lida e citada por estu­
diosos nos Estados Unidos.

COLLINS, R. Max Weber: A Skeleton Key. Beverly Hills: Sage, 1986.


Uma breve introdução ao todo da vida e carreira acadêmica de Weber; valioso para
aqueles que estão tendo um primeiro encontro com Weber.

ELLESON, S. Max Weber}sMethodologies. Cambridge: Polity Press, 2002.


Uma análise muito recente, completa e clara sobre os difíceis escritos de Weber sobre
o método sociológico.

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g—■

FREUND, J. TJjc Sociolojiy ofMax Wcbcr. Nova York: Pantheon, 1968.


Um estudo anterior, mas lucidamente escrito; uma das mais legíveis de todas as in­
troduções a Weber.
HONIGSHEIM, P. On Max Wcbcr. Nova York: The Free Press, 1968.
Uma memória pessoal fascinante escrita por um aluno de Weber que o conhecia
pessoalmente, cheia de anedotas perspicazes que iluminam as associações de vida c
intelectuais de Weber.

KASLER, D. Max Wcbcr: An Introduction to His Life and Work. Chicago: Uni-
versity of Chicago Press, 1988.
Uma tradução inglesa de um estudo alemão completamente fundamentado; difícil
cm alguns pontos, mas importante.

KJVISTO, P. & SWATOS, W.H. Max Wcbcr: A Bio-Bibliography. Nova York:


Greenwood, 1988.
Um abrangente guia comentando à literatura inteira sobre Max Weber em inglês;
contém aproximadamente 1.000 entradas. Agora ligeiramente datado, mas ainda in­
dispensável para leitores não alemães.

LEHMANN, H. & ROTH, G. (orgs.). Wcbcr*s Protcstant Ethic: Origins, Evi-


dcnce, Contexts. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
Ensaios de um grupo de especialistas internacionais que tratam de múltiplos aspectos
da controversa “tese de Weber”.

Max Wcbcr Stndies. Shcffield: Academic Press, 2002.


Uma revista relativamente nova que oferece estudos cuidadosos, notas c análises de
livros sobre todos os aspectos da vida e carreira de Weber.

MITZMAN, A. TIjc Iron Cajjc: An Historical Interpretation of Max Weber.


Nova York: Alfred Knopf, 1970.
Uma “psico-história” provocativa que busca compreender a vida de Weber cm ter-
mos das tensões que surgem de suas relações familiares, seu arranjo marital e os
efeitos dc transtorno dc ansiedade.

MOMMSEN, W Max Weber and Gennan Politics: 1890-1920. Chicago: Univer­


sity of Chicago Press, 1984.
Um importante estudo revisionista feito por um importante historiador alemão que
foca a política e o nacionalismo alemão de Weber.

RADKAU, ].Max Weber: A Biographv. Maldcn: Polity, 2009 [2005].


A publicação dessa biografia muito esperada em 2005 foi um grande evento na história
cultural alemã; agora, cm inglês, oferece uma profunda descrição de Weber em múlti­
plas dimensões; novas fontes permitem um retrato rico do homem e suas realizações.

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RINGER, E Max Weber: An Intellectual Portrait. Chicago: Univcrsity of Chi­
cago Press, 2004.
Embora ultrapassado agora por Radkau, uma descrição ainda útil, mais breve, da
vida e ideias de VVcbcr cm inglês, escrito por um historiador competente sobre as
universidades c a vida intelectual na Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial.

SCHLUCHTER, W Rationalism, Rxligion, and Domination: A Wcbcrian Perspcc-


tive. Berkcley: Univcrsity of Califórnia Press, 1989.
Uma importante rcinterpretação do projeto intelectual completo dc Wcbcr, mudando
a ênfase de seu trabalho sobre economia e sociedade para seus estudos comparativos
sobre civilizações e religiões do mundo.

TU RN ER, S. (org.). The Cambiidge Companion to Weber. Cambridge: Cam-


bridge Univcrsity Press, 2000.
Vários ensaios atuais sobre dimensões específicas do trabalho de Weber escritos por
importantes autoridades sobre sua vida e pensamento.

WEBER, M. Max Weber: A Biography. Nova York: John Wiley 8c Sons [1926],
1975.
Uma longa, rica c informativa, mas também protetora, descrição da vida e pensamen­
to de Weber, escrita por sua esposa Marianne e publicada seis anos após sua morte.

WRONG, D. (org.). Max Weber. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1970.


Ensaios breves e altamente informativos sobre conceitos weberianos específicos ela­
borados por autoridades internacionais importantes e complementados pela introdu­
ção informativa e abrangente do editor.

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