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A experiência de cartel, curta em um tempo cronológico, principalmente no

contato com o texto lacaniano, suscitou em mim uma angustia. Lacan com sua
escrita, digamos barroca, no sentido de “coisa muito rebuscada ou
excessivamente enfeitada” causa o que consegui nomear como angustia do
“não-saber”, que, articulada à minha análise, pude compreender o quanto isto
me tocava e, de certa maneira, me impedia de avançar. Não posso deixar de
mencionar aqui o fato de que as colegas de trabalho souberam desempenhar
bem o papel de acolher esta angustia – talvez mesmo sem saber que o faziam,
ou talvez por estarmos, afinal, todos no mesmo barco. Colegas que me
acolheram também diante da minha solidão com meu “tempo”, com minhas
questões... Me convocando para saber, experienciar, ouvir e pensar de um outro
lugar.
Experiência totalmente nova e distinta das que já tinha passado em meu
percurso com a psicanálise. Diferente dos “cursos”, “seminários”, “colóquios”,
enfim. Diferente na medida em que permite que, ao se debruçar sobre a letra,
sobre o texto, cada um possa colocar um pouco de si naquilo que apreende da
teoria, a partir da sua própria análise, de seu próprio percurso. Ousaria dizer que
o cartel faz com que a psicanálise seja mais “humana”, no sentido de que lhe
atribui cheiros, cores, vozes e a retira do campo opaco das leituras solitárias.
“A escuta do analista” ou “A escuta do inconsciente”, tal era o tema proposto pelo
cartel que me recebeu. Durante a leitura do texto “A instancia na letra ou a razão
desde Freud (1957)”, de Lacan, lembro de uma passagem da minha análise,
mais especificamente um sonho. Eis o relato do sonho: estou conversando com
meu pai em um carro conversível. Cito Lacan: “as imagens do sonho só devem
ser retidas por seu valor de significante, isto é, pelo que permitem soletrar do
“provérbio” proposto pelo rebus do sonho (p. 514)”. Esse é o trabalho proposto
por Lacan, relendo Freud, para os sonhos.
Com, com, com, foi a pontuação da analista, diante do relato do sonho. Retomar
esse sonho, e esta intervenção, me permite compreender que o analista
suspende todos os sentidos para poder escutar a fala que lhe é dirigida. Como
afirma Lacan nesse mesmo texto: “pois o significante, por sua natureza, sempre
se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão (p.
505)”. Também articulo desta experiência o conceito de letra, que devemos
toma-la em psicanálise “muito simplesmente, ao pé da letra (p. 498)” e que
“designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma
emprestado da linguagem (p.498)”. Suporte material que produz todos os efeitos
de verdade no sujeito. Assim, penso que ao analista em sua escuta cabe a
leitura. Leitura dos significantes que se inscreveram no sujeito e que aparecem
na associação livre. E é somente pela suspensão dos sentidos, de sua
pessoalidade, que o analista pode ler o inconsciente – escutar para além do que
se ouve.
Tomo esta passagem ainda como exemplar do aforismo de Lacan “o significante
representa o sujeito para outro significante” ou, dito de outra forma, “eu sou
aquilo que um significante representa para outro significante”: com, em um
processo metonímico, me envia a um significante da língua francesa, con, que
me envia a outro significante em português, idiota, e assim por diante... Isto
mostra que Lacan, em sua teoria do significante, articulado à análise, põe o
acento na dimensão negativa (ou opositiva) do significante, isto é, o significante
esvaziado do significado e posto em relação com outro significante. Dito de outra
forma, o significante não porta sentido em si, ele só pode ser pensado numa
relação, necessária, com outro significante.
Assim, suscintamente, o cartel me permitiu avançar na compreensão de alguns
conceitos, re-pensar minha experiência de análise e, de certa forma, me
reposicionar em relação à formação em Psicanálise. Na medida em que me
colocou novamente diante da questão que sempre retorna: o impossível do
saber, a insuficiência do saber. Me deparei com o impossível, novamente, mas,
pude dar conta disso e, no momento de concluir, me precipitar e afirmar que, na
psicanálise trata-se, afinal, de dar passos – um de cada vez, nem maior, nem
menor que nossas próprias pernas.
Por fim, gostaria de agradecer as colegas de cartel Bruna, Cau, Karina e Renata
pela alegria nas terças-feiras. E também por deixarem faltar. Falta diante da qual
foi possível inventar algo dessa experiência (nova). Algo singular, certamente,
mas que tentei, minimamente, transmitir a vocês hoje.
Obrigado!

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