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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ana Paula da Silva Baima

O supereu como estrutural do sujeito e o consumo como


o ideal do Outro na contemporaneidade

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Ana Paula da Silva Baima

O supereu como estrutural do sujeito e o consumo como


o ideal do Outro na contemporaneidade

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Psicologia Social, sob a orientação
do Professor Doutor Raul Albino Pacheco Filho.

SÃO PAULO
2011
ERRATA

Página Linha/Nota Onde se lê Leia-se

104 15 seguimentos segmentos

104 nota 50 seguimentos segmentos


Banca Examinadora

_________________________

_________________________

_________________________
A Rafael
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, por me acolher como integrante do Núcleo de
Pesquisa em Psicanálise e Sociedade e por orientar, com dedicação e interesse, a realização
deste trabalho.

Ao Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado e ao Prof. Dr. Luis Guilherme Coelho Mola, pelas
férteis e valiosas contribuições no Exame de Qualificação e por gentilmente aceitarem
participar de minha Banda de Defesa.

Ao Prof. Dr. Conrado Ramos, referência clínica e teórica no meu percurso na psicanálise.

À Profa. Dra. Ana Laura Prates Pacheco, por me orientar e me apoiar nos primeiros
momentos de investigação sobre o tema dessa dissertação.

Aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise de Sociedade do Instituto de Psicologia


da PUC-SP, que muito me ajudaram e motivaram.

Aos integrantes da equipe do Centro de Reeducação Reviver, por apoiarem e incentivarem


meu desenvolvimento teórico-clínico.

Às amigas Rosemary Jimenez e Vivian Anijar Fragoso Rei, por me auxiliarem e


incentivarem nos momentos de dúvidas e incertezas relacionadas ao presente trabalho.

Aos meus pais, por sempre me apoiarem, acreditarem em minhas escolhas e demonstrarem
orgulho de mim.

A Rafael, pelo amor e dedicação.

Aos meus amigos e familiares, por torcerem por mim e compreenderem meus momentos
de ausência e distanciamento.

Ao corpo docente do Programa de Psicologia Social da PUC-SP.

A Marlene Camargo, pela disponibilidade em esclarecer dúvidas e ajudar.

Ao CNPQ, pelo financiamento desta pesquisa.


RESUMO

BAIMA, Ana Paula da Silva. O supereu como estrutural do sujeito e o consumo como o
ideal do Outro na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2011.

O intuito do presente trabalho é contribuir para a compreensão de como o sujeito está


implicado na sociedade contemporânea. Para tal feito, buscamos pensar como a instância
psíquica supereu pode auxiliar no entendimento do capitalismo caracterizado pelo
consumo incessante de mercadorias. Partimos do posicionamento de que o supereu é
estrutural do sujeito e que, independentemente das configurações sociais, denuncia a falta e
ordena a busca pelo gozo pleno. Para defender nossa posição teórica e melhor entender as
teorizações existentes sobre o conceito, realizamos um levantamento das principais
formulações freudianas e lacanianas sobre o assunto. Apesar de nossa retomada da teoria
psicanalítica não ultrapassar o ano de 1964, foi possível considerar que o supereu está
relacionado com a entrada na cultura e mantém sua estrutura de imperativo de gozo em
qualquer configuração social. Refletimos sobre a atuação do supereu na sociedade
contemporânea articulando a instância psíquica em questão e o ideal do Outro. Enquanto o
supereu traz uma injunção sem atributo específico e relacionada ao registro real, o Outro,
apesar de invariável em sua estrutura simbólica, é influenciado pelas características do
contingente histórico. O ideal do Outro, influenciado pelo capitalismo que incentiva o
consumo, oferece ao sujeito do desejo, caracterizado pela falta, a fantasia de que o gozo
pleno é possível pelo consumo. A nosso ver, o capitalismo atual parece tirar proveito da
estrutura do supereu, que sempre denuncia a falta do sujeito e opera mandatos de gozo
pleno. O supereu é importante para a aderência ao consumo, visto que, sem a sua injunção
de busca pelo gozo, ideal do Outro não teria sua força imperativa. Faz-se necessária a
presença do supereu, como olhar que vigia e voz que critica, para que o consumo como
ideal do Outro atue como um imperativo. A presente pesquisa demarca que a teoria sobre o
supereu deve ser considerada quando se pretende entender como o sujeito está implicado
no capitalismo contemporâneo.

Palavras-chave: supereu; S. Freud, J. Lacan, ideal do Outro, consumo.


ABSTRACT

BAIMA, Ana Paula da Silva. The superego as structural in the subject and the
consumption as the Other ideal in the contemporary society. Master’s Dissertation.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC - 2011.

The general purpose of this research is to contribute to the comprehension of how the
subject is involved in the contemporary society. In order to achieve this objective, we limit
ourselves to discussing how the operation of the superego can be of great help in
understanding the capitalism characterized by the incessant consumption of merchandise.
First, we adopt the ideas that superego is structural in the subject and that, no matter what
social configurations, it points out the lack and orders the seek for total jouissance. In order
to show these both notions are accurate and understand the theories related to the concept
in details, we conduct a careful study based on the main formulations of Freud and Lacan.
Despite the fact that this study doesn’t take into account what Lacan says after 1964, it’s
possible to prove that superego is related to the entrance into the culture and that it
maintains its structure of jouissance imperative in every society. From this point on, we
discuss the superego course of action in contemporary society articulating it with the Other
ideal. While superego presents an injunction without a specific content and related to the
Real, the Other, although invariable in its symbolic structure, is influenced by historical
aspects. The Other ideal, influenced by capitalism that promotes consumption, offers the
subject of the desire, characterized by the lack, the fantasy that the total jouissance is
possible through buying what is sold by the market. From our point of view, present
capitalism takes advantage of the structure of the superego, which always points out the
lack of the subject and orders the search for jouissance. Superego is important to the
adherence to consumption because without its injunctions the Other ideal wouldn’t have
any imperative strength. The presence of the superego, as a look that observes and a voice
that criticizes, is essential to the consumption as the Other ideal. Without it, it would not
act as an imperative. This research shows that the theory of superego has to be considered
when we intend to understand how the subject is implicated in contemporary capitalism.

Key-words: superego, S. Freud, J. Lacan, Other ideal, consumption.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1: Considerações sobre o supereu em Freud.................................................. 24

1.1. Primeiros fragmentos do supereu em Freud.............................................................. 24

1.2. A formulação do supereu na teoria freudiana........................................................... 29

1.3. Supereu e cultura....................................................................................................... 35

1.4. A questão do pai........................................................................................................ 40

1.5 Manifestações do supereu: a culpa na clínica psicanalítica freudiana....................... 43

CAPÍTULO 2: Algumas formulações sobre o supereu em Lacan...................................... 47

2.1. Um Lacan durkheimiano........................................................................................... 47

2.2. O supereu no retorno a Freud.................................................................................... 57

2.3. O supereu e o registro real: objeto a.......................................................................... 73

CAPÍTULO 3: Supereu como estrutural do sujeito e consumo como ideal do Outro........ 91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 112


9

INTRODUÇÃO

Desenvolvido no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade do Programa de

Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, o presente trabalho está amparado na concepção de que a teoria psicanalítica é um

arcabouço teórico que instrumentaliza reflexões acerca da sociedade e da subjetividade

característica de uma determinada época. Tomando como base a Escola Francesa de

Psicanálise, entendemos que as contribuições oferecidas pelas teorias psicanalíticas

apresentadas por Sigmund Freud e por Jacques Lacan são relevantes não só para o

entendimento de fatores relacionados à clínica, mas também para o estudo de questões que

se estabelecem em sociedade.

Compreendemos a teorização psicanalítica, com tudo o que ela oferece para a

compreensão do sujeito, como fundamental para o entendimento de questões que se

apresentam em sociedade. A nosso ver, o estudo da interlocução entre uma organização

social e aspectos subjetivos não pode prescindir da utilização de conceitos psicanalíticos.

Na sociedade atual, por exemplo, para entender o ajustamento entre interesses do capital e

características subjetivas é necessário nos questionar se existem fatores estruturais do

sujeito que corroboram para a alienação no laço social capitalista e para a manutenção do

“status quo” ou, ainda, se a própria estruturação do sujeito não traz a possibilidade de

resistência diante de estados de dominação.

O pensamento filosófico e as teorias da sociedade mostram inequívoca


relevância na oferta de contribuições para a crítica do capitalismo. Resta,
contudo, acrescentar a isso a consideração do que é da ordem do sujeito.
(PACHECO FILHO, 2009, p. 155)

Com base nesse pressuposto, nossa proposta é pensar como um aspecto que

concebemos como estrutural do sujeito atua no contingente histórico atual. Na tentativa de

realizar tal tarefa, elegemos como objeto de estudo dessa pesquisa o conceito psicanalítico
10

supereu1. Entretanto, para delimitar nossa questão de pesquisa, convém contextualizar o

contingente histórico em que inserimos nossa discussão.

Esse trabalho se insere na sociedade capitalista contemporânea, caracterizada pelo

consumo incessante de mercadorias. Apesar de não termos o intuito de oferecer uma

definição sintética, singular e monolítica dessa configuração social, buscaremos apresentar

alguns aspectos que julgamos fundamentais para a articulação com o conceito psicanalítico

supereu.

Apoiados em Berman (2001), entendemos que as sociedades capitalistas

contemporâneas já não se assemelham às sociedades típicas do capitalismo que se

instaurou com o surgimento da indústria mecanizada e da racionalidade econômica.

Berman (2001) descreve com clareza a existência de duas fases do capitalismo: a primeira,

chamada de fase clássica, tem como características centrais a produção e a acumulação, e a

segunda, intitulada fase modernizada, apresenta como marca central o consumo.

O capitalismo alcançou sua fase modernizada com o aumento da capacidade técnica

de produção. Conforme Marcuse (1964/1967), no capitalismo avançado o sistema de

produção tornou-se capaz de produzir bens de consumo em alta escala e passou a utilizar

as conquistas científicas em relação à natureza para produzir e entregar, em quantidade

cada vez maior, mercadorias para o consumo. O problema é que, com essa elevada

capacidade de produção, o capitalismo passou a depender do consumo para sua sustentação

econômica, e isso não significou a condução de um sistema mais brando, flexível e

humanitário. O capitalista percebe que o consumo não precisa retardar a acumulação e que

1
No decorrer do presente texto as traduções dos termos alemães “das Es”, “das Ich”, “das Überich” não serão
realizadas com a adoção dos termos latinos id (das Es), ego (das Ich) e superego (das Überich), que foram
utilizados sobretudo na tradução da obra freudiana da língua alemã para a inglesa. Seguiremos fiéis às
traduções dos seminários de Lacan, os quais vêm apresentando a proposta de traduzir as três instâncias
psíquicas propostas por Freud com os termos isso (das Es), eu (das Ich) e supereu (das Überich). Desta
forma, somente utilizaremos as nomenclaturas supereu e supereuoico e não superego e superegoico.
11

ele pode até fazê-la avançar ainda mais furiosamente. Desta forma, o consumo se

transforma em um negócio.

No sistema capitalista contemporâneo, o aparato técnico passa a determinar não só

a produção de uma mercadoria, mas também a manutenção e a ampliação desta no

mercado. De acordo com Safatle (2008), o incentivo ao consumo é o problema econômico

central. Com o desenvolvimento tecnológico e com o aumento da produtividade, nem todas

as atividades de trabalho estão diretamente envolvidas nos processos de produção. Grande

parte dos empregos está envolvida com processos de ampliação do consumo, como a

publicidade e o marketing. Junto a isso, as mídias e a indústria cultural podem ser pensadas

como elementos fundamentais para a manutenção desse sistema. Segundo Adorno

(1967/1994), a indústria cultural tem grande importância na formação da consciência dos

consumidores e propaga o espírito do capitalismo avançado. Ela determina o consumo das

mercadorias e impõe padrões de comportamento que propagam a dependência e a servidão

do homem ao sistema capitalista.

Apesar de as pessoas serem livres para consumir, a “liberdade” de consumo não é

uma liberdade plena. Só é possível escolher dentro das opções oferecidas pelo mercado e

não é possível influenciar o conjunto de opções disponíveis para a escolha. Não

controlamos o que está disponível para escolha, todas as possibilidades, mesmo que

excessivas, são pré-selecionadas e a “livre escolha” é uma falácia.

Na sociedade capitalista contemporânea a dominação aparece disfarçada de

liberdade. Apesar da capacidade elevada de produção e de atender grande parcela das

necessidades dos indivíduos, a sociedade limita a liberdade por meio da implantação de

necessidades materiais e intelectuais. Conforme Marcuse (1964/1967), a sociedade

industrial avançada produz “necessidades falsas”, ou seja, necessidades concebidas como

próprias das pessoas, mas que são determinadas por forças externas sobre as quais não se
12

têm controle, e que proliferam a dominação, a miséria e a injustiça. A sociedade marcada

pelo consumo se caracteriza pelo totalitarismo das escolhas, onde, apesar de a propaganda

transmitir a ilusão de que escolhas são feitas pelos consumidores, todas as escolhas são

dadas e só são possíveis dentro do sistema vigente. (RAMOS, 2009)

Antunes (2009) mostra como a própria evolução do capitalismo, apesar de propagar

a ilusão de liberdade de escolha, segue determinando e orientando as necessidades e

escolhas a favor do capital. Antunes (2009) explica que mesmo com a emergência da crise

no padrão taylorista/fordista2 de produção, que vigorou na grande indústria durante todo o

século XX e que se baseava na produção em massa, a resposta capitalista para enfrentar tal

crise fez aumentar ainda mais o consumo das mercadorias que são determinadas pelo

sistema. Com a instauração do sistema toyotista, as mercadorias oferecidas para consumo

passaram a ser mais variadas e heterogêneas. Entretanto, mesmo que esse processo faça

com que na contemporaneidade exista a sensação de que as exigências mais

individualizadas são atendidas, essa sensação é ilusória, pois a produção se dá por

segmentos de mercado e os consumidores são enquadrados em categorias que achatam

suas singularidades.

Além de a livre escolha entre uma ampla variedade de mercadorias previamente

determinadas não significar liberdade, também não se oferece a possibilidade de não

consumir.

A “sociedade de consumidores”, em outras palavras, representa o tipo de


sociedade que promove, encoraja, reforça a escolha de um estilo de vida e uma
estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas.
Uma sociedade em que se adaptar aos preceitos da cultura de consumo e segui-
los estritamente é, para todos os fins e propósitos práticos, a única escolha
aprovada de maneira incondicional. (BAUMAN, 2008, p. 71)

Bauman (2008) explica que na sociedade caracterizada pelo consumo todos

precisam ser consumidores e que a participação ativa nos mercados de consumo é a

2
Os elementos constitutivos da crise taylorista/fordista de produção são de grande complexidade e envolvem
questões econômicas, políticas e ideológicas que transcendem o presente estudo.
13

principal virtude que se espera dos cidadãos. O consumo não configura apenas um direito,

mas um dever humano que não conhece exceção. Acredita-se que corresponder ao

imperativo social de consumo dependa apenas da disposição e do desempenho individual,

e não consumir é considerado uma falha da pessoa. Independentemente de idade, sexo ou

classe social, quem não responder como consumidor irá se sentir inadequado, deficiente e

excluído. As pessoas que reagem de forma inadequada aos apelos dos mercados de bens de

consumo são “consumidores falhos” e consideradas desnecessárias para a sociedade de

consumidores.

Bauman (2008) acrescenta que, apesar do constante surgimento de novas

necessidades, o capitalismo de consumo deve seu sucesso não à satisfação de necessidades,

mas ao surgimento contínuo de novos desejos. Novas mercadorias exigem novos desejos.

A insaciabilidade dos desejos e a instabilidade da satisfação dos consumidores

harmonizam-se com o imperativo social de procurar recorrentemente a satisfação no

consumo de mercadorias.

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor


supremo, em relação ao qual todos os outros são instados a justificar seu mérito,
é uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história
humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora”
sucessivo. (BAUMAN, 2008, p. 60)

Conforme Bauman (2008), a sociedade capitalista atual alega que a satisfação plena

de todos os desejos humanos é possível pela via do consumo. Porém, há uma contradição

nessa promessa de satisfação. É exatamente o fracasso na tentativa de satisfação que

permite a condução da sociedade caracterizada pelo incentivo ao consumo. Apesar de

prometer a satisfação plena, a sociedade atual prospera ao perpetuar a insatisfação. Sem a

repetida desilusão com os objetos adquiridos a demanda de consumo logo se esgotaria, e a

economia voltada para o consumo se extinguiria. Por essa razão, em concordância com

Safatle (2008), é possível chamar a sociedade contemporânea de sociedade da insatisfação

administrada.
14

Bauman (2008) defende que um método para manter os consumidores insatisfeitos

é a rápida depreciação e desvalorização dos produtos. O consumismo envolve velocidade,

excesso e desperdício. “O verdadeiro ‘ciclo econômico’, aquele que de fato mantém a

economia em expansão, é o ciclo do ‘compre, desfrute e jogue-fora’” (BAUMAN, 2008, p.

126). Antunes (2009) explica que a necessidade de ampliar cada vez mais a produção e o

consumo de mercadorias trouxe a necessidade de reduzir o tempo de vida dos produtos. O

capitalismo avançado converteu-se em inimigo da durabilidade dos produtos, e o

desperdício, a destrutividade e a obsolescência tornaram-se seus traços determinantes.

Para Bauman (2008), no entanto, o que permite que a constante frustração com os

objetos de consumo não seja um impedimento para o fluxo dessa economia de insatisfação

é o excesso de mercadorias apresentadas aos consumidores. Segundo Bauman (2009), o

excesso de mercadorias oferecidas renova constantemente a promessa de satisfação e

impede que as constantes desilusões com os objetos adquiridos suprimam a vontade de

buscar por uma nova mercadoria. Se a mercadoria que trará a satisfação plena ainda não é

essa, a próxima a ser consumida o será.

A partir desse ponto podemos começar a circunscrever a proposta de nosso estudo,

que apresenta como teoria principal a psicanálise. Mesmo sem desconsiderar o

posicionamento sociológico de Bauman (2008), que traz o surgimento de novas

mercadorias como responsável pela renovação da busca por satisfação presente nos

consumidores, a proposta do presente trabalho é tentar entender como o sujeito teorizado

pela teoria psicanalítica lacaniana está implicado nesse processo que se apresenta na

sociedade caracterizada pelo consumo incessante de mercadorias. O capitalismo de

consumo depende de as necessidades e desejos dos consumidores não terem fim, e exige

que os mesmos se impulsionem numa busca incessante por um gozo pleno. Essa demanda

da sociedade é atendida pelas pessoas, que se empenham na busca pelo gozo. Concebemos
15

que a teoria psicanalítica, sobretudo a teoria sobre o supereu, pode auxiliar a entender essa

questão. A nosso ver, a insaciabilidade do desejo e a busca incessante por um gozo pleno

não é uma condição específica das pessoas que vivem em uma sociedade caracterizada

pelo consumo. Entendemos essas características de insatisfação e busca pelo gozo, que se

evidenciam na contemporaneidade, como uma condição estrutural do sujeito. Cabe, então,

mostrar de que maneira algo que remete à estrutura do sujeito, como o supereu, pode

auxiliar no entendimento de uma particularidade do capitalismo caracterizado pelo

consumo. Como algo da estrutura do sujeito se articula com um aspecto histórico?

Para delimitar melhor essa nossa posição teórica e nossa questão, entretanto,

convém dar um passo para trás e falar sobre a noção de sujeito que sustenta nossa

argumentação. Mesmo sem realizar uma abordagem exaustiva sobre o assunto, visto que o

conceito de sujeito não configura o foco dessa pesquisa, apresentaremos nossa concepção

sobre o sujeito da psicanálise.

Primeiro, é preciso esclarecer que o conceito de sujeito não foi explicitamente

trabalhado no decorrer da obra freudiana. Apenas indiretamente, ao se preocupar com o

inconsciente e ao teorizar a pulsão, Freud aborda o sujeito do inconsciente. Com o auxílio

do estudo realizado por Cabas (2009), é possível afirmar que os atos falhos, chistes,

repetições, lapsos, sonhos – que foram trabalhados por Freud como manifestações do

inconsciente –, por demonstrarem a existência de uma dimensão psíquica não coincidente

com a consciência, mostram a existência do sujeito do inconsciente, que posteriormente foi

teorizado por Lacan.

Lacan foi o responsável por colocar a noção de sujeito no coração da doutrina

psicanalítica3. Resumidamente, é possível afirmar que o sujeito teorizado por Lacan é uma

3
O sujeito em Lacan não é um conceito de entendimento fácil e não temos o objetivo de esmiuçar toda a
elaboração que esse autor realiza sobre esse conceito. Nossa pretensão é apenas situar nosso posicionamento
teórico em relação ao supereu. No decorrer do capítulo 2, ao abordarmos o conceito de supereu em Lacan,
retomamos o conceito de sujeito e falamos sobre a sua constituição.
16

função. É uma função que se define por uma inconsistência radical e que não se resume ao

eu imaginário. Embora o imaginário e o simbólico enlacem essa inconsistência e lhe

ofereça sustentação, o simbólico não é capaz de significar todo o sujeito e há sempre algo

que escapa a esse enlace. Ao mesmo tempo que o significante representa o sujeito para

outro significante, ele não o significa, pois o sujeito é uma função que carece de

substância, seu substrato é vazio.

O sujeito é um efeito do significante, mas o que se impõe a partir da entrada na

ordem significante é que ele está igualmente determinado pelo real, por esse resto da

operação simbólica que denota o objeto perdido4. Esse objeto, resto da operação

significante, é o que permite a incidência da pulsão em sua insistência por satisfação e

gozo.

É possível entender, com o levantamento realizado por Cabas (2009), que o sujeito

da psicanálise tem uma dupla causação. Uma causação simbólica, onde o sujeito aparece

como efeito da demanda significante e se manifesta nos movimentos da cadeia, e uma

causação real, em que o sujeito aparece como resto da operação significante. O sujeito é o

ponto onde o real e o simbólico se cruzam.

Não estamos igualando o objeto perdido e a função do sujeito: o que afirmamos

com base em Cabas (2009) é que a causa do sujeito é congruente com o furo real. O sujeito

brota de um nada e é pelo fato de ter como base esse furo, esse nada de substância, que o

sujeito neurótico5 busca evitar se apropriar de sua inconsistência com o auxílio de ideais,

identificações e busca pelo gozo.

Com base nessas afirmações sobre o sujeito teorizado por Lacan, entendemos a

busca incessante por um gozo pleno e a impossibilidade de atingir tal gozo, que se

apresentam com evidência na contemporaneidade, como algo não-exclusivo da sociedade

4
O conceito de objeto perdido é abordado com mais ênfase no item 2.3.
5
Esclarecemos que apesar de Lacan ter teorizado também a estrutura perversa e a estrutura psicótica, esse
trabalho limita-se a abordar apenas a estrutura neurótica.
17

caracterizada pelo consumo, mas como uma característica inerente à estrutura do sujeito, e

por esse motivo trans-histórica. Concordamos com Cabas (2009) quando afirma que o

imperativo de gozo sempre existiu e que de forma nenhuma há um novo sujeito na

contemporaneidade.

Impõe-se, então, considerar a seguinte questão: as teorizações que dizem respeito

ao sujeito podem contribuir para a compreensão do capitalismo contemporâneo alicerçado

no consumo?

Nosso posicionamento é que o supereu é uma instância inerente à estrutura do

sujeito, que surge com a constituição do sujeito barrado e que, independentemente das

configurações sociais, aponta a falta do sujeito e ordena a busca pela impossível

restauração da falta, pelo gozo pleno6.

O problema é que esse posicionamento acarreta um impasse: se defendemos que o

supereu é estrutural do sujeito e, dessa forma, não depende das variáveis apresentadas na

objetividade histórica para existir, por que vislumbrar uma articulação entre ele e as

questões que se apresentam na sociedade?

Para lidar com essa questão e esclarecermos a relevância do conceito supereu na

reflexão sobre a sociedade contemporânea, achamos imprescindível lançar mão das

contribuições que Askofaré (2009) nos oferece a respeito da distinção entre sujeito e

subjetividade. Esse autor tem como pressuposto a importância de articular a noção

psicanalítica de sujeito e as considerações a respeito da história como processo. Ele propõe

que a noção de subjetividade, usualmente empregada em contextos teóricos não

psicanalíticos, deva ser utilizada para falar da relação que o sujeito estabelece com a

objetividade histórica. Para defender tal proposta, Askofaré (2009) cita o próprio Lacan

(1953b/1998), que no “Discurso de Roma” salienta a importância de o psicanalista

6
A definição de supereu como imperativo de gozo será trabalhada no decorrer do capítulo 2.
18

considerar a subjetividade de sua época. Em concordância com Lacan (1953b/1998),

Askofaré (2009) evoca pontos que possibilitam uma perspectiva de articulação entre a

estrutura do sujeito e a história. Um ponto que julgamos central é:

Esse Outro, do qual o inconsciente é o discurso, não se reduz aos pais; é o Outro
do discurso universal que determina o inconsciente como transindividual. Ora, o
Outro, entendido nesse sentido, ou seja, o simbólico, se ele é invariável em sua
estrutura – aquela da linguagem –, é também submetido às mudanças, às
mutações, às rupturas, às subversões. Quem pode contestar as mudanças
introduzidas no Outro pelo advento do monoteísmo, a invenção da escrita, a
emergência da ciência moderna e, mais recentemente, das biotecnologias e da
informática?! (ASKOFARÉ, 2009, p.169)

Entendemos, com as contribuições de Askofaré (2009), que, apesar de a estrutura

do sujeito, como efeito do significante, ser sempre a mesma e não sofrer modificações a

partir de mudanças históricas, o Outro7 se modifica conforme as características específicas

de cada época.

Segundo Askofaré (2009), a noção de subjetividade tem como base as modificações

sofridas pelo Outro. O conceito de Outro permite, mesmo sem ignorar a universalidade da

estrutura do sujeito, pensar na relação que este estabelece com a objetividade histórica.

Amparados no ensinamento de Askofaré (2009) de que o Outro é invariável em sua

estrutura simbólica, mas que sofre mutações conforme as características de cada época,

compreendemos que o ideal do Outro na contemporaneidade sofre influência do

capitalismo de consumo. É com base nesse pressuposto teórico que julgamos relevante

pensar o supereu, instância estrutural do sujeito, na sociedade que tem o consumo como

ideal a ser seguido.

Na presente pesquisa defendemos a ideia de que na contemporaneidade o consumo

tem atuado como ideal do Outro, e nos questionamos como podemos pensar a articulação

entre o supereu, instância estrutural do sujeito que atua vigiando e impelindo o sujeito a

buscar o gozo pleno, e o contingente histórico atual que elege o consumo como o ideal que

7
Falamos sobre o Outro no capítulo 3.
19

todos devem seguir. Como se dá a articulação entre supereu, como estrutural do sujeito, e o

consumo como ideal do Outro?

Nossa questão deixa claro que partimos do posicionamento de que o supereu é

estrutural do sujeito. Compreendemos que as teorias freudianas e lacanianas são trans-

históricas e que a definição de supereu como imperativo de gozo fala de uma característica

estrutural do sujeito. Entretanto, é preciso destacar que sustentar nossa posição não é uma

tarefa tão fácil. O conceito supereu é vastamente utilizado para o estudo das interlocuções

entre psicanálise e sociedade, e é possível encontrar estudiosos que argumentam que o

supereu sofre modificações conforme mudanças na sociedade. Por exemplo, no texto “A

obsolescência da psicanálise”, Marcuse (1965/1998) afirma que, em decorrência de

mudanças no papel social da imago paterna, a definição freudiana de supereu se tornou

obsoleta na sociedade atual.

Nosso posicionamento teórico não coincide com o do autor citado. Conforme já

salientamos, compreendemos que o supereu, por ser estrutural do sujeito, não sofre

alterações em sua estrutura de imperativo a partir de modificações nas formas de

socialização. Parafraseando Cabas (2009), nossa concepção é que o supereu sempre

existiu, continua existindo, e que de forma nenhuma há uma nova estrutura do supereu na

contemporaneidade. A nosso ver, as mudanças na sociedade influenciam o ideal do Outro.

Não desprezando a importância do uso do conceito supereu para o estudo da

sociedade, concordamos com Pacheco Filho (2009):

Entendo que a noção utilizada por inúmeros autores de “imperativo de gozo”


pode manter sua pertinência para caracterizar a mudança nos processos de
socialização observada na passagem do “capitalismo de produção” para o
“capitalismo de consumo”, desde que despida de pretensas alusões a uma (falsa)
falência da “função paterna” e de uma (igualmente falsa) alteração estrutural do
sujeito. (PACHECO FILHO, 2009, p. 154).

Conceber que a estrutura do supereu se modifica, ou que ele deixa de existir,

conforme mudanças em processos de socialização e alterações no poder social da figura


20

paterna talvez seja resultado das lacunas e reformulações encontradas na teoria sobre esse

conceito. Em decorrência do elevado interesse pelo assunto, o tema de minha monografia

de conclusão do curso de especialização em Psicologia Clínica8 foi o supereu. Ao longo

desse prévio trabalho, foi feita uma breve revisão desse termo psicanalítico tanto na obra

de Sigmund Freud quanto na obra de Jacques Lacan. Apesar de o caráter breve da pesquisa

não ter permitido contemplar todo o aprofundamento que a abordagem do supereu

demanda e de não termos explorado as aberturas que o mesmo possibilita para o estudo da

sociedade, foi possível constatar que a teoria sobre o supereu envolve enigmas, mistérios,

lacunas e reformulações. Tanto em Freud como em Lacan, a teoria sobre o supereu, assim

como outros conceitos psicanalíticos, não se apresenta de forma clara e linear, o que torna

a abordagem dessa instância psíquica complexa e passível de conclusões precipitadas e de

mal-entendidos.

Muitas afirmações a respeito do supereu podem decorrer de uma leitura pouco

rigorosa e por vezes equivocada das formulações de Freud e Lacan. As lacunas, as

reformulações, os entraves teóricos e os mistérios que enlaçam esse conceito podem

permitir interpretações não convergentes com os postulados desses teóricos. Por esse

motivo, não vemos como defender que o supereu é estrutural do sujeito e realizar uma

articulação com a sociedade contemporânea, com base nesse pressuposto, sem partir de um

acompanhamento cronológico das principais teorizações freudianas e lacanianas sobre esse

conceito.

A pretensão não é resolver os paradoxos e mistérios que envolvem o supereu e

excluímos qualquer tentativa de síntese definitiva. No entanto, reler o supereu em Freud e

levantar as contribuições de Lacan, além de possibilitar a compreensão das teorizações

8
Curso iniciado em 2006 e finalizado em 2008. Realizado na Coordenadoria Geral de Especialização,
Aperfeiçoamento e Extensão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE - PUC/SP).
Monografia realizada sob orientação da Profa. Dra. Ana Laura Prates Pacheco.
21

sobre esse conceito, permitirá que nossa discussão apresente um rigor teórico condizente

com os postulados desses teóricos.

Salientamos que nossa pesquisa não abrange todo o ensino lacaniano. Mesmo

conhecendo a relevância dos seminários mais tardios para o estudo da sociedade, em

decorrência da complexidade e do restrito período de realização do estudo, não utilizamos

os ensinamentos lacanianos posteriores a 1964, ano de apresentação do Seminário 11, “Os

quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.

Nos primeiros capítulos, apesar de não termos como objetivo o esgotamento de

todas as elaborações freudianas e lacanianas sobre o tema, nem termos a pretensão de

apresentar de maneira sistemática todos os momentos em que esses autores citam o

conceito que estamos tratando (como já afirmamos, nos restringimos às formulações

lacanianas até o ano de 1964), buscamos acompanhar o percurso que Freud e Lacan

traçaram em suas abordagens sobre o supereu.

No capítulo inicial apresentamos algumas considerações relevantes sobre o supereu

em Freud e deixamos claro como o conceito foi passando por constantes impasses e

reformulações no decorrer da teoria freudiana. Procuramos levantar textos que alicerçaram

a formulação do conceito freudiano e, em seguida, apresentamos o texto “O eu e o isso”

como o marco freudiano da apresentação dessa instância psíquica. Também falamos sobre

a relação do supereu com a cultura a partir de “O mal-estar na civilização”; e discutimos a

questão do pai, devido à sua importância para pensar o supereu. Finalizamos o capítulo

pontuando as manifestações dessa instância psíquica, descritas por Freud enfaticamente na

culpa. Trabalhamos nesse capítulo noções como ideal de eu, identificação, pai e culpa.

No segundo capítulo demonstramos as valiosas contribuições que Lacan oferece

sobre o supereu durante seus diferentes momentos teóricos. Apresentamos como esse autor

tratava da noção de supereu nos anos em que seu vínculo com Durkheim era mais intenso e
22

descrevemos como tais elaborações são superadas no seu período mais estruturalista. Além

disso, sem ultrapassar o ano de 1964, tentamos situar os avanços ocasionados à noção de

supereu no momento em que Lacan foca suas elaborações sobre o real, época em que

qualifica o supereu como objeto a.

No terceiro e último capítulo, amparados no levantamento teórico realizado,

situamos a relação entre supereu e sociedade e buscamos pensar o supereu como instância

estrutural do sujeito, que atua vigiando e impondo a busca pelo gozo pleno, no contingente

histórico atual, que elege o consumo como o ideal que todos devem seguir. Como

encontramos comentadores das teorias de Freud e de Lacan que buscam articular o

conceito supereu com a sociedade contemporânea, não ignoramos as produções já

existentes. Buscamos realizar nossa discussão considerando reflexões realizadas por

autores atuais. Fazemos uso das contribuições oferecidas por autores como Pacheco Filho,

Ramos e Quinet.

O intuito não é esmiuçar toda a complexidade da sociedade contemporânea e não

visamos o aprofundamento de uma teoria social. Nosso campo privilegiado de estudo é

psicanálise e tomamos a mesma como a teoria principal dessa pesquisa. Nesse ponto,

concordamos com Safatle:

Não se trata nesses casos de incorrer em alguma espécie de déficit sociológico,


mas insistir que nenhuma perspectiva sociológica pode abrir mão de
compreender a maneira como os sujeitos investem libidinalmente os vínculos
sociais, mobilizando com isso representações imaginárias e expectativas de
satisfação que muitas vezes acabam por inverter o sentido de determinações
normativas que visam racionalizar tais vínculos. (SAFATLE, 2008, p. 114)

Nosso objetivo principal é explorar a teorização do conceito supereu e tentar

compreender questões relacionadas à sociedade caracterizada pelo consumo à luz da teoria

sobre essa instância psíquica. Esse estudo é relevante, pois a teoria psicanalítica sobre o

supereu pode auxiliar a entender como o sujeito está implicado no processo de dominação

que se apresenta no laço social capitalista contemporâneo. Mostrar a articulação entre o


23

supereu como estrutural do sujeito e o ideal de consumo da sociedade oferece

contribuições para pensar a sociedade e a subjetividade na contemporaneidade.

(...) consideramos que os conceitos e as categorias lacanianos ganham valor


objetivo para a teoria social na medida em que se puder revelar sua importância
para a análise da adesão do particular à sociedade de consumo. (RAMOS, 2008b,
p. 209).
24

CAPÍTULO 1: Considerações sobre o supereu em Freud

1.1. Primeiros fragmentos do supereu em Freud

Pretendemos neste primeiro momento do trabalho trazer um breve panorama de

algumas formulações teóricas que precederam a elaboração do conceito supereu. Apesar de

esse conceito ter sido utilizado pela primeira vez na segunda tópica freudiana, resgatar

algumas bases clínicas e teóricas que alicerçaram o surgimento dessa instância psíquica e

pontuar alguns impasses encontrados nesse processo, permitirá não apenas refletir sobre a

evolução desse conceito na obra freudiana, mas também pensar as bases que nutriram

Lacan para a realização de seus próprios pareceres sobre o assunto.

Apesar de a nomenclatura supereu ter aparecido pela primeira vez em 1923, no

texto “O eu e o isso”, desde o começo da psicanálise é proposta uma clínica que mostra

claramente a incidência do que posteriormente Freud passou a chamar de supereu. Os

primeiros casos clínicos freudianos, que vão de 1886 a 1897, ressaltam a

autorrecriminação, a severidade da consciência moral e a culpabilidade das neuroses

obsessivas; a posição de vítima e o avassalamento do eu na histeria; o delírio de

perseguição e de ser notado na paranoia; e o impedimento compulsivo na fobia. Todas

essas manifestações clínicas podem ser consideradas fundamentais para o desenvolvimento

da teoria sobre a instância psíquica intitulada supereu.

Mesmo sabendo que os fenômenos observados na histeria, na fobia e na paranoia

também são precursores do desenvolvimento do conceito supereu, ressaltamos a

importância da clínica da obsessão. Em seu estudo sobre atos obsessivos, Freud

(1907/1980) realiza uma minuciosa investigação sobre as causas que movem a

autorreprovação e a culpa, termos futuramente ligados à manifestação do supereu. No texto

“Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907/1980), Freud observa que nas práticas
25

compulsivas o sistema simbólico perde sua eficácia, há algo que transcende o desejo,

obtura a lógica. Nesse texto, Freud inaugura o eixo conceitual que permitirá falar

posteriormente de consciência de culpabilidade inconsciente. Quem sofre de compulsões e

proibições se comporta como se estivesse sob uma consciência de culpa sobre a qual nada

sabe. Por trazer a ideia de uma consciência de culpa inconsciente, o texto acima citado

possibilita pensar uma das manifestações que futuramente foi atribuída ao supereu.

No texto “Totem e tabu” (1913/1980), esses questionamentos iniciais sobre a culpa

foram claramente relacionados à lei que proíbe o desejo incestuoso e o parricida. Nesse

texto, através do mito do assassinato do pai primitivo, Freud mostra que o fundamento da

lei é a lei da proibição do incesto. As mais antigas e importantes proibições ligadas aos

tabus são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações

sexuais com membros do mesmo clã totêmico.

Gerez-Ambertín (2003) ressalta nesse mito freudiano sobre a origem da cultura9 os

pontos que considera precursores da constelação supereuoica10: 1. Após seu assassinato, o

pai morto volta mais forte do que foi em vida. A incorporação canibalística do pai pelos

filhos proporciona uma identificação por incorporação, e o que o pai proibia com sua

existência os filhos passam a proibir em seus psiquismos; 2. O retorno do pai morto

instaura o arrependimento e a culpa nos irmãos. O sistema totêmico é um pacto com o pai

morto, no qual, obedecendo a seus preceitos, os filhos obtêm amparo e indulgência; 3. O

arrependimento e a culpa são comuns nos filhos e sustentam os dois tabus fundamentais do

totemismo: não matar o pai e não manter relações sexuais com os membros do sexo oposto

9
Na horda primitiva, o pai primordial todo-poderoso que exercia total poder sobre o clã, possuindo todas as
fêmeas e matando ou expulsando os outros machos, é assassinado e devorado pelos filhos. A partir de então
esses filhos fazem um pacto no qual nenhum membro do clã exerceria esse poder supremo novamente.
10
Usaremos a nomenclatura instância supereuoica para nos referirmos ao supereu. Como já salientado na
introdução, não usaremos termos como superego e superegoico.
26

pertencentes ao mesmo clã11. 4. O pai terrível não é aniquilado por completo no pacto entre

os irmãos, sobra um resto, um espectro do pai morto que ameaça retornar. Há um resíduo

real do pai primordial que não se torna símbolo, e esse resto do pai gera o temor por seu

retorno. Assim, há uma ambivalência em relação ao pai. O pai tanto protege e preserva a

vida como ataca e leva à morte. Esse resto real do pai morto age como um comando.

Podemos pensar que todos esses fundamentos apresentados por Freud em “Totem e Tabu”

serviram como base para posteriores desenvolvimentos sobre o supereu.

Em “Totem e tabu” (1913/1980), Freud estabelece a hipótese do Totem como

determinante dos laços sociais e do Tabu como responsável pela moralidade. Segundo tal

premissa, o tabu atuaria como um imperativo insensato12 que deve ser seguido rigidamente

para não implicar castigos. Para Freud (1913/1980), a consciência moral do tabu é a forma

mais antiga da consciência moral. Esta se manifestaria como uma voz interior

confrontando a parte desejante do eu.

A questão de uma voz interior que aponta uma divisão do eu contra si mesmo é

trabalhada por Freud no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980) 13. Nesse

texto Freud traz o conceito de ideal de eu e formula uma base que posteriormente lhe

permitirá a constituição da instância supereuoica. O ideal do eu é considerado a projeção

de uma imagem ideal que surge como substituto ao narcisismo perdido da infância, no qual

o sujeito era o próprio ideal. A formação desse ideal de eu é ocasionada pelo deslocamento

da libido para um ideal vindo de fora, que surge da influência crítica dos pais e educadores

(transmitida, sobretudo, pela voz) e de fatores sociais como os ideais da família e da

sociedade.

11
Essas imposições são consideradas raízes do complexo de Édipo, que se ancora nas proibições do incesto e
do parricídio.
12
Nesse texto Freud faz referência ao imperativo categórico kantiano.
13
Apesar de esse texto trazer formulações teóricas relevantes como as sobre o narcisismo primário,
secundário, repressão, etc; focaremos a formulação sobre ideal de eu, e para maiores esclarecimentos
sugerimos a leitura do texto.
27

O conceito de ideal de eu pode ser considerado fundamental para a elaboração da

noção de supereu. No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980), Freud

aponta que a formação do ideal de eu permite a atuação de um sensor crítico que compara

o eu e o ideal, sensor este, responsável pela autocrítica e pela censura. Mesmo que nesse

momento teórico o supereu ainda não estivesse definido, a relação entre o ideal de eu e a

estruturação do conceito supereu é salientada em uma nota de rodapé apresentada nesse

texto14. Tal nota afirma que foi a combinação do ideal de eu com um agente psíquico que

observa constantemente o eu que possibilitou a Freud sua futura elaboração sobre o

supereu.

A atuação desse censor crítico, que atua censurando o eu e aparece, muitas vezes,

nos delírios de insignificância e na consciência moral, permite pensar a divisão do sujeito

contra si mesmo apresentada no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914). Essa

cisão do sujeito contra si mesmo, que permitirá a formulação do conceito supereu, também

é retomada e aprofundada no texto “Luto e melancolia” (1915/1980). Ao se referir à

perturbação do melancólico15, Freud aponta que na melancolia uma parte do eu se

contrapõe à outra, julga-a criticamente, toma-a por objeto. Isso sugere a existência de uma

instância crítica que faz parte do eu, mas atua de forma separada do eu, contra o próprio eu.

A ideia da existência de um sensor que atua de forma crítica no interior do aparelho

psíquico mostra a atuação do supereu, mesmo que este ainda não tenha sido nomeado. O

problema é que nesse período de elaborações teóricas que antecedem a formulação do

supereu é possível visualizar certa confusão entre a instância que critica o eu e o ideal de

eu. Na obra freudiana, sobretudo em textos anteriores a 1923, como “Psicologia das massas

14
Transcrição literal da nota de rodapé apresentada no texto Sobre o narcisismo: uma introdução: “Foi da
combinação entre esse agente e o ideal do ego que Freud posteriormente deduziu o supereu. Cf. Capítulo XI
de Group Psychology (1921c) e o Capítulo II de The Ego and the Id (1923b)”
15
No texto Luto e melancolia Freud não restringe a atuação da instância crítica à melancolia, apontando a
presença desta nos diferentes tipos clínicos. Tanto na melancolia, como na histeria e na neurose obsessiva a
hostilidade da instância volta-se contra o eu.
28

e a análise do eu” (1921/1980), o ideal de eu é descrito como uma instância que compara o

eu e o critica a partir de seu modelo. Mesmo que o ideal de eu não atue com uma crítica

cruel e desmedida como o supereu, isso ilustra como em momentos da obra freudiana a

diferença entre ideal de eu e a instância responsável pela crítica não fica tão clara.

No texto freudiano “Psicologia das massas e a análise do eu” (1921/1980), a função

de criticar o eu, que futuramente é atribuída ao supereu, é considerada um atributo do ideal

de eu. Neste texto, Freud (1921/1980) retoma que as melancolias mostram o eu divido em

duas partes, uma vociferando contra a outra. Freud (1921/1980) afirma que a parte que se

comporta cruelmente contra a outra pode ser chamada de ideal de eu, e tem como funções

a auto-observação e a consciência moral.

É possível observar que no processo teórico que culminou na elaboração do

conceito supereu a diferença entre a instância responsável pela crítica e o ideal de eu foi

um tanto nebulosa. A dificuldade no período de germinação dessa categoria psicanalítica

não foi sem efeitos. No texto “O eu e o isso”, de 1923, onde ocorre a formulação da

instância supereuoica, Freud não faz nenhuma diferenciação entre supereu e ideal de eu,

ambos os conceitos são apresentados como sinônimos. Além disso, no decorrer de sua obra

são observadas tentativas de aproximação e diferenciação entre ambos.

Voltaremos a tratar dessa questão nos itens posteriores deste trabalho. Por hora,

essa tentativa de levantamento de alguns antecedentes teóricos do supereu e a pontuação de

indícios que sugerem uma confusão entre ele e o ideal de eu ilustra o quanto desde sua

construção a abordagem do supereu é tumultuosa e complexa.


29

1.2. A formulação do supereu na teoria freudiana

Em 1923, Freud publica “O eu e o isso”, texto que, como já mencionamos

anteriormente, representa um marco na construção teórica do supereu. É nesse texto que o

supereu alcança sua nomeação e uma posição clara no aparelho psíquico.

Até 1923, Freud situava a organização do aparelho psíquico conforme sua primeira

tópica, ou seja, o psiquismo estaria dividido em: consciente, pré-consciente e inconsciente.

Nessa primeira tópica, a concepção de que conteúdos mentais produziriam efeitos

poderosos, mesmo não estando conscientes, é o que permite pensar em inconsciente. Esse

conceito de inconsciente é obtido a partir da teoria do recalque, na qual existiriam ideias

impedidas de tornarem-se conscientes por uma força que se oporia a elas. De forma

simplificada, podemos afirmar que nessa primeira tópica o inconsciente seria o recalcado,

o pré-consciente seria o latente – passível de ser trazido à consciência pela memória – e o

consciente seria a superfície do aparelho mental, ligado à percepção.

Entretanto, com o seguimento de seus estudos, Freud passa a perceber que essa

divisão do aparelho psíquico em consciente, pré-consciente e inconsciente é insuficiente

para os fins práticos da clínica. Ele apresenta, então, sua segunda tópica, na qual expõe

uma nova organização dos processos mentais e estabelece a existência de três instâncias:

eu, isso e supereu.

O eu seria a instância psíquica mais ligada à consciência e realizaria recalques para

excluir certos conteúdos da mente. Porém, Freud depara-se com algo desse eu que é

inconsciente, que se comportaria exatamente como o recalcado, ou seja, produziria efeitos

mesmo não sendo consciente. Essa descoberta traz consequências importantes para a

concepção de inconsciente. O inconsciente passa a não ser sinônimo de recalcado, mesmo

que o recalcado seja inconsciente. Nem tudo que é inconsciente é recalcado, uma parte do

eu é inconsciente.
30

Freud delimita então que o eu tem início no sistema perceptivo, abrange o pré-

consciente que está relacionado aos resíduos mnêmicos e tem uma parte que é

inconsciente. Para explicar a existência de uma parte do eu que é inconsciente, Freud traz à

tona a questão do “isso”. Ele propõe a existência de um isso psíquico, desconhecido,

inconsciente e relacionado às pulsões, sobre cuja superfície repousaria o eu, desenvolvido a

partir do sistema perceptivo. O eu não se encontraria nitidamente separado do isso, ele

seria a parte do isso modificada pela influência do mundo externo, pelo intermédio do

sistema perceptivo.

No entanto, essa formulação teórica não é tão simples assim. Freud prossegue

formulando a existência de uma parte diferenciada do eu e a denomina supereu, que, nesse

primeiro momento, é concebida como sinônimo de ideal de eu16.

Para explicar como o supereu se forma, Freud retoma a ideia, já tratada neste

trabalho ao citarmos o texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980), de que o

ideal de eu17 é efeito das primeiras identificações da infância. Ele aponta que por trás do

ideal de eu está a identificação com o pai. Afirma que a fase sexual denominada complexo

de Édipo culmina na identificação do filho com o pai e, desse processo, surge o supereu.

Essa concepção freudiana aponta o supereu como herdeiro do complexo de Édipo,

ou seja, ao término desse complexo surge a instância supereuoica. Para compreendermos

essa relação, convém falarmos um pouco mais sobre esse complexo, que atravessa toda

obra freudiana e pode ser considerado a pedra angular da teoria psicanalítica.

Conforme Faria (2003), o complexo de Édipo freudiano consiste num momento

organizador do desenvolvimento sexual infantil. Sua descrição baseia-se em três premissas

16
É importante ressaltar o quanto, nesse texto de 1923, Freud fala do supereu e ideal de eu de forma
indiscriminada e não há ainda a precisa diferenciação que é apontada em textos freudianos posteriores. Para
acompanhar o pensamento freudiano, optamos, nesse momento, por seguir com a concepção de supereu e
ideal de eu como sendo a mesma coisa.
17
No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) o termo supereu ainda não havia sido formulado
por Freud.
31

universais, pontuadas por Freud em seus primeiros textos: a existência da sexualidade

infantil, a primazia fálica e o fato de a mãe ser o primeiro objeto de amor da criança,

independentemente do sexo. A existência da sexualidade infantil é exposta por Freud em

“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1980), texto em que a criança é descrita

como perversa-polimorfa, e a primazia fálica se caracteriza pela ideia infantil de que todos,

inclusive as mulheres, possuem pênis.

É com base nesses pressupostos que Freud desenvolve sua teoria sobre o Édipo,

presente em seu texto “A dissolução do complexo de Édipo” (1924/1980). Nesse texto ele

aponta que na fase fálica18 o menino desenvolve uma atividade masturbatória intensa e isso

acarreta em ameaças de castração por parte dos adultos. Essas ameaças, que primeiramente

não geram efeitos na criança e são desconsideradas, quando num momento posterior são

resignificadas pela visão do órgão sexual feminino, permitem o estabelecimento na criança

do que Freud designa por complexo de castração. Segundo Faria (2003), a primazia fálica,

por supor a presença de pênis em todos os seres, é uma forma de articulação da questão

sexual na qual a criança se esquiva da problemática da falta do órgão sexual. O que o

complexo de castração evidencia é a inverossimilhança da premissa fálica, uma vez que há

falta do pênis na mulher. “A criança passa a ter que lidar com a evidência, a partir do

complexo de castração, de que há falta, o que para ela passa a indicar que há presença, mas

também ausência.” (FARIA, 2003, p. 36)

A partir do complexo de castração a criança se confronta com a ideia de que o pênis

é algo que pode faltar, e essa possibilidade exige um posicionamento que consiste na saída

do complexo de Édipo. De acordo com Freud (1924/1980), a criança depara-se com um

impasse: sua satisfação no campo do complexo de Édipo pode custar-lhe o pênis. Diante

disso, ela deve decidir se prefere manter seu investimento narcísico no pênis ou a catexia

18
A fase fálica consiste no período em que ocorre uma concentração das catexias libidinais da criança em seu
órgão sexual e no qual ela acredita na primazia fálica.
32

libidinal em seus objetos parentais. Nesse conflito, normalmente triunfa o desejo de manter

o pênis, e o eu da criança volta as costas ao complexo de Édipo. Normalmente o menino,

com intenção de preservar seu pênis, abandona a atividade masturbatória e afasta-se de sua

mãe como objeto de amor.

Conforme Faria (2003), essa solução do complexo edípico permite ao menino

identificar-se ao pai. Desse processo, decorre a formação do supereu. De acordo com Freud

(1924/1980), as catexias de objeto são abandonadas e substituídas por identificações. Para

Freud (1924/1980), ao término do complexo de Édipo, a autoridade do pai é introjetada no

eu e permite a formação do núcleo do supereu. Nesse processo o supereu assume a

severidade do pai e perpetua a proibição do incesto. As tendências libidinais pertencentes

ao complexo de Édipo são, em parte, dessexualizadas e sublimadas e, em parte, são

inibidas em seu objetivo e transformadas em impulsos de afeição. Esse processo introduz o

período de latência, no qual o desenvolvimento sexual da criança tem uma interrupção.

A partir desse texto de 1924, Freud vincula organização fálica, complexo de Édipo,

ameaça de castração, formação do supereu e período de latência. Entretanto, salienta-se

que o processo até aqui descrito se refere, como foi expressamente dito, somente a crianças

do sexo masculino, ficando em aberto a questão do complexo de Édipo e da formação do

supereu nas meninas.

De acordo com Freud (1924/1980), também o sexo feminino desenvolve um

complexo de Édipo, um supereu e um período de latência. Além disso, no caso da menina,

a mãe também é o primeiro objeto de amor e há a primazia fálica inicial, na qual a menina

concebe o clitóris como um pênis que irá crescer. O clitóris na menina inicialmente

comporta-se exatamente como um pênis, porém quando ela efetua uma comparação com

uma criança do sexo masculino, a menina percebe que seu “pênis” é “pequeno” e sente isso

como uma injustiça. Por algum período ela mantém a ideia de que quando ficar mais velha
33

seu “pênis” crescerá. A criança do sexo feminino não entende sua falta de pênis como uma

característica de sua sexualidade, acredita que em alguma época anterior possuía um órgão

igualmente grande, mas que o perdeu por castração. Por essa razão a menina aceita a

castração como um fato consumado, diferentemente do menino, que teme a possibilidade

de sua ocorrência.

Entretanto, Freud (1924/1980) aponta que a renúncia ao pênis não é tolerada pela

menina sem alguma tentativa de compensação. Ela faz uma equação simbólica do pênis

para o bebê, ou seja, seu complexo de Édipo culmina em um desejo de receber do pai um

bebê como presente. A menina entra no complexo de Édipo ao perceber-se castrada e esse

processo é gradativamente abandonado, visto que esse desejo jamais se realiza. Porém,

Freud não deixa de admitir que a compreensão do Édipo da menina é insatisfatória,

incompleta e vaga.

Em seus textos posteriores “Sexualidade feminina” (1931/1980) e “Feminilidade”

(1932/1980), Freud acrescenta algumas formulações sobre o complexo de Édipo feminino

e o divide em duas etapas. Na primeira, compatível ao Édipo do menino, a mãe é o objeto

de amor e o clitóris a zona erógena. Já na segunda fase, o pai passa a ser o objeto de amor e

a vagina a zona erógena.

Conforme Faria (2003), a questão anatômica não pode ser ignorada ao pensar as

diferenças entre o complexo de Édipo feminino e masculino. Como a menina não tem

pênis, ela não pode temer sua perda, assim, o que caracteriza o complexo de castração na

mulher é a constatação de que ela foi feita sem o objeto que ela tanto valoriza e o

surgimento da inveja do pênis.

A decepção de não ter um pênis leva ao abandono da mãe como objeto de amor, e

essa passa a ser odiada por ter feito a filha desprovida de pênis. Esse afastamento em

relação à mãe é o que permite que a menina passe a tomar o pai como objeto de amor. É
34

nesse momento que a criança do sexo feminino passa a esperar receber um bebê de seu pai

como objeto simbólico substituto do pênis que não tem. (FARIA, 2003)

Citando Freud, Faria (2003) acrescenta que a saída normal do Édipo feminino deixa

quase sem solução o surgimento do supereu feminino: “A castração, não tendo sido uma

ameaça nem uma imposição que gera temor, teria uma eficácia frágil na formação do

superego feminino e, consequentemente, na inserção da menina na cultura.” (FARIA,

2003, p. 42)

É segundo essa concepção que no seu texto “Algumas consequências psíquicas da

distinção anatômica entre os sexos”, Freud (1925), em decorrência da dificuldade na

dissolução do Édipo feminino, propõe que o supereu feminino não é tão independente de

suas origens emocionais como ocorre nos homens. Por isso, as mulheres demonstrariam

menor senso de justiça do que os homens, tendo seus julgamentos influenciados por

sentimentos de afeição e hostilidade.

Apesar dessas diferenças entre o complexo de Édipo na mulher e no homem, não se

pode ignorar a importância que Freud atribui a esse processo na formação do supereu.

Além disso, salientamos que os impasses decorrentes desse complexo são simplesmente

uma vertente que permite indagações sobre a formação do supereu. No texto “O eu e o

isso” (1923/1980), mesmo considerando a relação entre a constituição do supereu e o

complexo edípico, Freud não restringe o supereu como possuindo uma única origem.

Nesse texto de 1923, encontramos uma formulação bastante intrigante a respeito do

supereu: além de ele ser herdeiro do complexo de Édipo, ele também é um representante

do isso.

É possível constatar que o supereu congrega as forças do isso ao observarmos o

caráter compulsivo dessa instância, a qual se manifesta como um imperativo categórico.

Freud (1923/1980) afirma claramente que o supereu expressa os mais poderosos impulsos
35

e as vicissitudes libidinais do isso. O supereu é, para Freud (1923/1980), o representante do

isso, e essa relação entre o supereu e os impulsos instintuais do inconsciente soluciona o

enigma de como os conteúdos do supereu podem permanecer inconscientes e inacessíveis

ao eu.

Partindo dessas formulações, é possível concluir que, em seu texto de 1923, Freud

procura um lugar para o supereu no aparelho psíquico e tenta traçar um parentesco dessa

instância psíquica com o isso e com o complexo de Édipo. O que fica em aberto nesse

texto, entretanto, é a relação do supereu com a cultura, o que Freud traz mais enfaticamente

ao formular “O mal-estar na civilização” (1930/1980). Texto que abordaremos no próximo

item desse trabalho.

1.3. Supereu e cultura

No texto “O mal-estar na civilização” (1930/1980), Freud retoma algumas

formulações sobre o supereu expostas no texto “O eu e o isso” (1923/1980) e as relaciona

com a formação da cultura. Defende a tese de que a renúncia pulsional exigida pela cultura

ocasiona a formação do supereu.

Entretanto, antes de falar sobre a renúncia pulsional convém contextualizar o

conceito de pulsão, visto que pulsão configura uma elaboração freudiana que se tornou um

dos conceitos básicos da psicanálise e que sofre reformulações na obra de Freud. No texto

“Pulsão e seus destinos” (1915/1980), Freud descreve pulsão como sendo um conceito

situado na fronteira entre o mental e o somático. Pontua como suas principais

características: sua origem em fontes de estimulação dentro do organismo e seu

aparecimento como força constante.

Freud (1915/1980) descreve a pulsão como possuindo uma pressão (Drang), uma

finalidade (Ziel), uma fonte (Quelle) e um objeto (Objekt). A pressão é seu fator motor, a
36

quantidade de força que ela apresenta; sua finalidade é a satisfação, que é obtida

eliminando o estado de estimulação na fonte; a fonte é o processo somático que ocorre

num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental; e o objeto da

pulsão é a coisa pela qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade, é o que é mais variável

em uma pulsão e, originalmente, não está ligado a ela, podendo ser inúmeras vezes

modificado.

Nesse texto de 1915, Freud propõe a distinção da pulsão em pulsões de

autopreservação e as pulsões sexuais. O autor coloca essas pulsões como funcionando sob

o domínio do princípio do prazer. Entretanto, no texto “Além do princípio do prazer”

(1920), Freud traz reformulações sobre sua teoria pulsional e ultrapassa a divisão entre

pulsões sexuais e de autopreservação. Estabelece a existência de duas pulsões no humano:

a pulsão de vida e a pulsão de morte. Afirma que, ao lado da pulsão que busca preservar a

vida e formar unidades cada vez maiores, há outra pulsão que busca dissolver essas

unidades e conduzir o organismo de volta a seu estado primevo e inorgânico. Esse texto de

1920 possibilitou que os fenômenos do humano pudessem ser explicados pela ação dessas

duas pulsões. Surge a ideia de que uma parte da pulsão de morte é direcionada ao mundo

externo, aparecendo como um instinto de agressividade e destrutividade, e de que qualquer

restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição.

É a partir desse texto de 1920 que Freud passa a falar sobre a renúncia pulsional,

que possibilitará relacionar o supereu e a cultura em “O mal-estar na civilização”

(1930/1980). A partir das formulações apresentadas em “Além do princípio do prazer”,

Freud (1930/1980) adota o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui no

homem uma disposição pulsional original e de que esta é o maior impedimento à

civilização. De acordo com Freud, a civilização constitui um processo a serviço da pulsão

de vida, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados numa única unidade, a
37

unidade da humanidade. Mas a pulsão de morte do homem se opõe a esse programa da

civilização.

Com esse retorno ao “Além do princípio de prazer” (1920/1980), Freud postula que

o significado da evolução da civilização representa a luta entre Eros e a Morte, ou seja,

entre pulsão de vida e pulsão de morte. De acordo com Freud (1930/1980), a civilização é

construída sobre uma renúncia à pulsão. Essa questão já aparecia no texto “Totem e tabu”

(1913/1980), que apresenta a cultura totêmica baseada em restrições impostas mutuamente

entre os filhos, os quais se privam da realização do desejo sexual incestuoso. Para Freud, a

proibição de uma escolha de objeto incestuosa constitui a mutilação mais drástica que a

vida erótica do homem já experimentou. Por essa razão, a tendência por parte da

civilização em restringir suas pulsões não pode ser vista como desvinculada da necessidade

de ampliar a unidade cultural.

Como a existência da civilização requer a vigência de normas que impeçam a total

realização da vida sexual e pulsional, o desenvolvimento da civilização impõe restrições à

liberdade e à agressão. Mas surgem as questões: quais os meios que a civilização utiliza

para inibir a agressividade? O que acontece no humano para tornar a agressividade

inofensiva ou inócua?

Freud aponta que a agressividade é introjetada, internalizada, enviada para o lugar

de onde proveio. Ou seja, dirigida para o eu. É a partir desse ponto que podemos retomar

nossa discussão sobre o supereu, pois, de acordo com Freud (1930/1980), a agressividade

que se dirige ao eu é o que permite a formação do supereu. A agressividade é assumida por

uma parte do eu, que se coloca contra o resto do eu, como supereu. Conforme Gerez-

Ambertín (2003), a repressão da agressividade realizada como pagamento pela entrada na

cultura resulta na instauração de um “co-mandante” que passa a coagir desde o interior. A

agressividade é internalizada e o controle interior se torna instância contraposta ao eu,


38

vigiando-lhe e avassalando-lhe. Assim, a cultura passa a dominar o sujeito em sua própria

intimidade. O supereu, comandante-interior, é o que garante a efetividade da coação

cultural sobre o eu.

Segundo Freud (1930/1980), com a formação do supereu, a civilização consegue

dominar o perigoso desejo de agressão presente no humano. Para isso, o supereu põe em

ação contra o eu a mesma agressividade que o eu gostaria de ter satisfeito sobre outros

indivíduos. A tensão entre o supereu e o eu, Freud (1930/1980) chama de culpa.

Em relação ao sentimento de culpa, nosso autor situa duas origens para tal

sentimento. Uma delas é o medo de uma autoridade e a outra o medo do supereu. A

primeira impõe a renúncia às satisfações pulsionais. Já o medo do supereu, ultrapassa essa

renúncia. Basta a existência do desejo para que surja a punição, pois o desejo não pode ser

escondido do supereu. Assim, independentemente de renúncia efetuada, ocorre o

sentimento de culpa. Desta forma, a renúncia exigida pela civilização conduz a uma

infelicidade, ocasionada pelo surgimento de uma autoridade interna.

Freud descreve uma sequência cronológica que explica a formação dessa

autoridade interna. Refere que primeiramente ocorre uma renúncia pulsional por medo de

agressão realizada por uma autoridade externa. Depois, há a organização de uma

autoridade interna, que é o supereu, e a renúncia pulsional passa a ocorrer por medo dessa

instância. Após a formação do supereu, as más intenções passam a equivaler a más ações,

ocasionando o sentimento de culpa pelo medo do supereu. A partir desse ponto, cada

renúncia de satisfação passa a aumentar a agressividade do supereu.

Entretanto, as colocações acima nos levam a um questionamento: como a ideia de

que a renúncia instintiva é a fonte do supereu estaria relacionada com a concepção exposta

no texto “O eu e o isso” de 1923, de acordo com a qual essa instância psíquica seria

decorrente da identificação realizada no complexo de Édipo?


39

Apesar de não termos como proposta responder questões deixadas em aberto por

Freud, nem termos a pretensão de excluir nenhuma colocação que pareça contraditória na

obra freudiana, para acompanharmos o percurso que nosso autor realiza ao falar a respeito

do supereu, é relevante apresentar o que Freud fala sobre a primeira instalação da

agressividade do supereu, momento em que a relação entre identificação e supereu é

retomada em “O mal-estar na civilização”.

Segundo Freud (1930/1980), é provável que tenha se desenvolvido na criança uma

considerável quantidade de agressividade contra a agressividade da autoridade que a

impede de ter suas primeiras satisfações. Porém, ela é obrigada a renunciar à satisfação

dessa agressividade e encontra saída para essa situação difícil na identificação. Freud

(1930/1980) descreve que a criança, por meio da identificação, incorpora a autoridade

inatacável e essa autoridade se transforma no seu supereu.

Para Freud (1930/1980), o relacionamento entre o eu e o supereu constitui um

retorno dos relacionamentos reais existentes entre o eu e o objeto externo. Talvez essa

colocação ilustre o quanto os textos de 1923 e de 1930 são mais complementares do que

excludentes.

De qualquer forma, as elaborações freudianas que relacionam o surgimento do

supereu tanto à identificação realizada ao término do complexo de Édipo – exposta por

Freud em 1923 – como à renúncia pulsional exigida pela entrada na cultura – postulada por

Freud em 1930 –, mesmo que sejam estruturalmente a mesma coisa, ilustram a

complexidade envolvida na apreensão do conceito supereu na obra freudiana. No entanto,

tal complexidade não para por aí. Outra colocação intrigante nos salta aos olhos no texto de

1930. Ao falar sobre a identificação e a incorporação da autoridade que funda o supereu, o

autor deixa claro que a severidade do supereu que a criança desenvolve de maneira

nenhuma corresponde à severidade do tratamento com que ela própria se defrontou. Freud
40

deixa claro que a severidade do supereu se manifesta independentemente da severidade do

pai da realidade.

Permanecemos sem a intenção de fechar as arestas encontradas na teoria freudiana,

contudo, diante dessa intrigante colocação freudiana, que pode pôr em xeque

interpretações que relacionam estritamente a severidade do supereu à severidade ou a

outros atributos da imago paterna, indagamo-nos: como Freud retrata a relação entre

supereu e pai?

1.4. A questão do pai

Para discutir a relação entre o supereu e a questão do pai partiremos, inicialmente,

do texto freudiano “Dostoievski e o parricídio” (1927/1980). Nesse texto, Freud

(1927/1980) fala da ambivalência em relação ao pai por meio do complexo de Édipo,

descreve que o ódio e a ternura para com o pai se combinam para produzir a identificação

ao pai. Ressalta que isso se dá pelo medo da castração, explicando que, devido a este

temor, os impulsos agressivos dirigidos ao pai são reprimidos e formam o supereu. Freud

(1927/1980) aponta que a identificação com o pai é o que forma o supereu, sendo este um

herdeiro da influência parental. De acordo com essa descrição, se o pai for duro, violento e

cruel, o supereu assume dele esses atributos.

Essa formulação também aparece em “Esboço de psicanálise” (1938-40/1980), uma

das obras freudianas mais tardias. Nesse texto, Freud também aponta o supereu como

resultado de uma identificação, e que, por isso, essa instância psíquica passa a ocupar o

lugar que os pais ocupavam no aparelho psíquico, observando o eu, dando ordens,

ameaçando e punindo.

Porém, nesse seu esboço de 1938-40, o próprio Freud prossegue pontuando que o

supereu frequentemente demonstra uma severidade para a qual nenhum modelo foi
41

fornecido pelos pais reais. Essa última colocação corrobora a 31ª Conferência de Freud: “A

dissecção da personalidade psíquica” (1932b/1980), na qual ele afirma que o supereu não

se edifica conforme o modelo dos pais, mas segundo o supereu desses.

A conferência 31 é uma obra madura de Freud, na qual ele retoma as questões

formuladas no texto “O eu e o isso” (1923/1980), mostrando a conceituação do supereu

como estrutural da subjetividade e sendo mais cauteloso em relação ao supereu ligado à

identificação. Freud (1932b/1980) reafirma o quanto uma parte do eu toma-lhe como

objeto e passa a observá-lo e a criticá-lo. Formula que a separação da instância

observadora do restante do eu pode ser um aspecto regular da estrutura do eu e reconhece

essa instância existente no eu como o supereu. Freud (1932b/1980) permanece com a ideia

de que o supereu seria herdeiro da instância parental. Haveria uma internalização da

coerção externa e o supereu passaria a observar e ameaçar o eu, exatamente da mesma

forma como anteriormente os pais faziam com a criança. Entretanto, nesse texto, Freud

(1932b/1980) traz um novo questionamento. Ele observa que essa concepção de supereu

como herança parental mostra o supereu como fruto apenas da rigidez e severidade dos

pais, ignorando a versão carinhosa e cuidadosa dos mesmos. Além disso, o autor

acrescenta que sua experiência clínica mostra como o supereu pode adquirir características

de severidade, ainda que a criança tenha sido educada de forma branda e afetuosa.

Para clarificar essas contradições, Freud parte da questão da identificação19. Aponta

que a base do processo identificatório é a ação de assemelhar um eu a outro eu, sendo que

o primeiro eu assimila o outro dentro de si e passa a se comportar como este. Freud afirma

que a instalação do supereu pode ser classificada como exemplo bem-sucedido de

identificação com a instância parental. Quando a criança abandona o complexo de Édipo

ela renuncia às intensas catexias objetais depositadas nos pais e, para recompensar essa

19
Para maiores esclarecimentos sobre a questão da identificação, sugerimos a leitura do texto freudiano
“Psicologia das massas e análise do eu” (1921), mais precisamente o item VII: Identificação.
42

perda, se identifica com os mesmos. De acordo com Freud, identificações desse tipo

repetem-se muitas vezes ao logo da vida; ou seja, no decorrer do desenvolvimento o

supereu também assimila as influências de educadores, professores e outras pessoas

escolhidas como modelos ideais.

Cabe salientar, entretanto, que, ao prosseguir esse texto, Freud (1932b/1980)

acrescenta não estar satisfeito com esses comentários sobre identificação. Aponta que, em

relação à formação do supereu, não é inadequado comparar a identificação à incorporação

oral e canibalística, anterior à escolha do objeto. Além disso, indica que são as

identificações com as imagos parentais mais primitivas que influenciam o supereu, sendo

que as identificações mais tardias atingem mais ao eu. Freud (1932b/1980) atesta a relação

entre essas identificações mais tardias ao ideal de eu.

Se retomarmos as manifestações do supereu, podemos verificar que se o supereu

tem como função buscar observar o eu e compará-lo ao ideal, há uma diferenciação clara

entre supereu e ideal de eu. Somado a isso, a afirmação de Freud (1932b/1980) de o

supereu ser construído segundo o supereu de seus pais e não à luz dos modelos dos

mesmos mostra claramente essa diferenciação, pois ilustra o supereu relacionado a

identificações mais primitivas do que às que ocorrem para a formação do ideal de eu.

A partir da formulação acima podemos entender que a instauração do supereu é

muito mais que uma identificação. Para pensar a formação do supereu não se pode ignorar

a dupla herança, do isso e do complexo de Édipo. Além disso, quando Freud coloca que a

excessiva severidade do supereu não segue um modelo real, mas corresponde à força da

defesa utilizada contra a tentação do complexo de Édipo, Freud ilustra a ligação entre

pulsão e supereu.

Não ignoramos o fato de que em alguns textos, como em “Dostoievski e o

parricídio” (1927/1980), Freud insiste em caracterizar o supereu como herdeiro da


43

influência paterna e reitera a questão da identificação ao pai. Entretanto, concordamos com

Gerez-Ambertín (2003) que descreve o supereu como mais que uma identificação. Para a

autora, se o supereu fosse uma mera identificação edípica ao pai, o seu poder não seria tão

devastador, pois poderia ser domesticado pelo campo significante. De acordo com Gerez-

Ambertín (2003), quando Freud afirma que “se o pai for duro, violento e cruel, o supereu

assume dele esses atributos”, ele não alude à realidade cotidiana do pai, mas ao “resíduo do

pai edípico que mobiliza o fantasma.” (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p.166).

O pai, como mensageiro da ameaça de castração, há de ser cruel sempre. Em


contrapartida, como enodante do desejo-lei na operação simbólica da castração,
ele pacifica com a sua palavra e com a promessa do dom... Porém seu eco
indelével fica em uma marca que é causa e aí... o supereu. (GEREZ-
AMBERTÍN, 2003, p.166)

1.5. Manifestações do supereu: a culpa na clínica psicanalítica freudiana

Para finalizar este capítulo sobre o supereu em Freud buscaremos pensar como as

manifestações dessa instância psíquica são descritas pelo autor em questão. Tal tarefa será

válida para complementar a elaboração teórica sobre o supereu em Freud, realizada neste

primeiro capítulo.

Debruçaremo-nos sobre as manifestações clínicas do supereu focando a questão da

culpa, visto que, como discutido no item 1.1 desse trabalho, esta foi um dos primeiros

antecedentes do supereu na obra freudiana. Apesar de supereu e culpa não serem

sinônimos, a culpa nutre-se do supereu e se manifesta na histeria, na obsessão, na

melancolia, ou seja, sua manifestação mostra a ação do supereu de forma bastante

abrangente na clínica. Freud (1923/1980), inclusive, aponta que o sentimento de culpa

deve ser levado em conta em muitíssimos casos, pois talvez ele seja a atitude do supereu

que determina a gravidade de uma doença neurótica.

De acordo com Freud (1923/1980), o sentimento de culpa pode se expressar como

culpa consciente (ou sentimento de culpa) e como culpa inconsciente. A culpa consciente
44

aparece como uma percepção no eu de uma crítica que provém do supereu e se expressa

condenando o eu. Os sentimentos de inferioridade são exemplos dessa manifestação da

culpa, e esse tipo de registro da culpa pode ser observado com bastante frequência na

neurose obsessiva e na melancolia. Na neurose obsessiva a culpa é exageradamente intensa

e incômoda, mas não encontra justificativa plausível perante o eu. Por esse motivo, ao

mesmo tempo que o eu do obsessivo se acusa, se rebela contra a imputação de culpa. Já na

melancolia o eu admite sua culpa e se submete ao castigo, o objeto da ira do supereu é

internalizado pelo eu por identificação e o supereu se dirige contra o eu impiedosamente.

No sentimento de culpa inconsciente, no entanto, o eu desvia a percepção aflitiva

das críticas do supereu através do recalque, e mantém à distância o material a que o

sentimento de culpa se refere. Segundo Freud (1923/1980), é essencialmente na histeria

que esse tipo de culpa é encontrado. O histérico não se sente culpado, mas vítima, a culpa

não recai sobre o eu e a histeria caracteriza-se mais pela reivindicação e pela posição de

sacrifício perante os outros. Esse tipo de culpa se manifesta por formações do inconsciente,

e o semblante de sacrifício ilustra uma submissão à gula supereuoica.

Freud (1923/1980) também refere que a culpa inconsciente pode ser observada em

criminosos. Esclarece ser possível detectar a existência de uma culpa inconsciente que a

partir do crime cometido é correlacionada a um evento real e imediato, produzindo alívio.

Outra manifestação dessa culpa inconsciente estaria no que Freud chama de reação

terapêutica negativa. No texto “O eu e o isso”, Freud (1923/1980) observa a existência de

pacientes que não podem suportar elogios de melhora de seus sintomas e que reagem

inversamente ao progresso do tratamento. Há algo nesses sujeitos que se coloca contra o

seu restabelecimento e qualquer melhora é temida como um perigo. Desde esse texto de

1923, Freud percebe que nesses casos há a atuação de um fator “moral”, o sentimento de
45

culpa está encontrando sua satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do

sofrimento.

Freud retoma essas formulações sobre a culpa no seu texto “O mal-estar na

civilização” (1930/1980), no qual aponta que a caracterização descrita em 1923, em que se

atribui a culpa consciente à neurose obsessiva e a inconsciente à histeria, não deve ser

superestimada. Afirma que é possível encontrar pacientes neuróticos obsessivos que não se

dão conta de seu sentimento de culpa e que apenas o sentem como um mal-estar que os

impele a praticar certas ações. Freud, partindo da hipótese de que os sintomas neuróticos

são, em sua essência, satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados,

acrescenta, inclusive, que talvez toda neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente

de culpa.

Entretanto, o fundamental para retrocedermos a esse texto de 1930, nesse ponto do

presente trabalho, é que nele Freud apresenta a culpa relacionada ao desenvolvimento da

civilização e relaciona a renúncia pulsional exigida pela cultura à constituição e

intensificação desta. Além disso, é possível compreender a culpa inconsciente por sua

relação com o parricídio apresentado por Freud em “Totem e tabu” (1913/1980). A culpa

inconsciente estaria ligada a uma “culpa universal” proveniente do assassinato do pai

primordial.

Retomando os primórdios da civilização expostos no texto “Totem e tabu”

(1913/1980), Freud descreve que a culpa foi adquirida quando da morte do pai pelos

irmãos reunidos em bando. Quando os irmãos mataram o pai da horda primitiva, um ato de

agressão não foi suprimido, mas executado. Mas ao realizarem tal ato os filhos sentiram

remorso, visto que seus sentimentos para com o pai eram ambivalentes, eles o odiavam,

mas também o amavam. Assim, depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o

amor tornou-se ainda mais proeminente. Ao incorporarem o pai “canibalisticamente” e se


46

proporem um pacto de não matarem uns aos outros, esses filhos criam o supereu. Por

decorrer da identificação por incorporação ao pai, o supereu passa a ser o representante do

poder paterno. Por estarem relacionados à constituição da civilização, o supereu e a culpa

são inevitáveis em qualquer sociedade humana. Para Freud, o supereu e o sentimento de

culpa passam a atuar quando os homens se defrontam com a tarefa de viver juntos.
47

CAPÍTULO 2: Algumas formulações sobre o supereu em Lacan

2.1 Um Lacan durkheimiano

A construção teórica presente nos primeiros seminários de Jaques Lacan (1901-

1981) é marcada pela proposta de realizar uma releitura da obra freudiana a partir do

paradigma estruturalista20. Entretanto, antes de abordarmos como o supereu é retratado em

seus seminários, é importante abordar o laço que Lacan estabeleceu com as investigações

sociológicas no período que antecede seu “retorno a Freud”. Esse levantamento é relevante

para o presente trabalho, pois as considerações apresentadas por Lacan nesse período

geram consequências na teoria lacaniana sobre o supereu.

Lacan nem sempre foi estruturalista. Apesar de desde seu primeiro seminário, “Os

escritos técnicos de Freud” (1953-54/2009), ficar evidente uma ligação entre a sua teoria e

a teoria de Lévi-Strauss, a leitura do texto “Os complexos familiares” (1938/2008), que

precede os seminários, permite observar que nesse período Lacan se baseava na teoria

sociológica de Émile Durkheim.

Mesmo sem o objetivo de nos aprofundar na teoria de Durkheim, tentaremos

esclarecer a quais embasamentos sociológicos desse autor Lacan torna-se adepto em 1938,

quais as consequências dessa base sociológica para a teoria lacaniana do supereu e como se

dá o rompimento com essa base teórica.

Um dos fundamentos teóricos de Durkheim que Lacan (1938/2008) utiliza é a

teoria da contração familiar. Essa teoria fala da passagem da família paternalista para a

família conjugal. Para compreendermos tal formulação é interessante apresentarmos a

noção de família conjugal, defendida por Durkheim em 1892:

20
A proposta de reler a obra freudiana a partir da teoria estruturalista marca os primeiros seminários de
Lacan. Posteriormente, quando Lacan passa a abordar com mais precisão o registro real, há um afastamento
em relação ao estruturalismo e uma aproximação à lógica e à topologia.
48

Dou esse nome para a família que se constituiu nas sociedades originadas nas
sociedades germânicas, ou seja, nos povos mais civilizados da Europa moderna
[...]. A família conjugal resulta de uma contração da família paternal. Esta incluía
o pai, a mãe, e todas as gerações originadas por eles, salvo as filhas e seus
descendentes. A família conjugal já não inclui mais que o marido, a mulher e os
filhos menores e solteiros [...] É evidente que [o filho casado] segue ligado a seus
pais, tem o dever de alimentá-los em caso de enfermidade e vice-versa, e tem
direito a uma parte determinada da herança familiar [...]. Essas são as únicas
obrigações jurídicas que sobrevivem [...]. Não existe nada que lembre o estado
de dependência perpétua que alicerçava a família paternal e a família patriarcal.
Estamos, portanto, na presença de um novo tipo familiar. Visto que seus únicos
pertencentes são o marido e a mulher, e todos os filhos abandonam cedo ou tarde
a casa, proponho chamá-la família conjugal. (DURKHEIM apud
ZAFIROPOULOS, 2002, p. 61 – tradução nossa) 21

Essa é a definição de família conjugal que Lacan expõe repetidas vezes em seu

texto de 1938. Lacan (1938/2008) se apoia em Durkheim para afirmar que na família

moderna a figura paterna já não é um chefe soberano, com autoridade moral e religiosa; a

soberania do pai é substituída pela do Estado. Além disso, em detrimento do laço

sanguíneo, é o matrimônio que passa a ser o operador simbólico produtor do laço familiar.

O crucial no uso que Lacan (1938/2008) faz dessa teoria de Durkheim é que ele a

utiliza para se reportar ao que intitula de novas condições sociais do edipismo,

caracterizada, sobretudo, pelo declínio do poder do pai de família. Em decorrência do laço

com a teoria de Durkheim, no texto “Complexos familiares” (1938/2008), o complexo de

Édipo é apresentado como um processo influenciado por determinações socioculturais.

Segundo essa visão, variações no funcionamento das famílias, determinadas por mudanças

21
Essa citação foi retirada por Zafiropoulos (2002) do texto “La famile conjugale”, escrito por Durkheim e
publicado em 1892 no “Textes”, paginas 35-49. Apesar de apresentarmos no corpo do texto a tradução por
nós realizada, oferecemos nesse espaço o original em espanhol. Realizaremos tal processo todas as vezes que
colocarmos uma tradução nossa no texto: “Doy ese nombre a la familia tal como se constituyó en las
sociedades originadas en las sociedades germánicas, es decir, en los pueblos más civilizados de la Europa
moderna [...]. La familia conyugal resulta de una contracción de la familia paternal. Ésta incluía al padre, la
madre y todas las generaciones originadas en ellos, salvo las hijas y sus descendientes. La familia conyugal
ya no incluye más que el marido, la mujer y los hijos menores y solteros.[…] Es indudable que [el hijo
casado] sigue ligado a sus padres, tiene el deber de alimentarlos en caso de enfermedad y a la inversa, tiene
derecho a una parte determinada de la fortuna familiar […]. Ésas son las únicas obligaciones jurídicas que
sobreviven […]. No hay en ello nada que recuerde el estado de dependencia perpetua que estaba en el
fundamento de la familia paternal y la familia patriarcal. Estamos, por lo tanto, en presencia de un nuevo tipo
familiar. Visto que sus únicos elementos permanentes son el marido y la mujer y todos los hijos abandonan
tarde o temprano la casa, propongo llamarla familia conyugal.”
49

históricas sofridas pelas sociedades, influenciam o desencadeamento do complexo edípico.

Nas palavras de Lacan:

Se na análise psicológica do Édipo ficou evidenciado que ele deve ser


compreendido em função de seus antecedentes narcísicos, isso não quer dizer
que ele se funde fora da relatividade sociológica. A força mais decisiva de seus
efeitos psíquicos se deve ao fato de que, com efeito, a imago do pai concentra a
função de repressão com a sublimação; mas este é o resultado de uma
determinação social, a da família paternalista. (LACAN, 1938/2008, p. 53)

No texto “Complexos familiares”, Lacan (1938/2008) não considera o complexo de

Édipo estável ou universal, mas dependente do valor atribuído à imago paterna tanto na

família como na sociedade, valor este, intensamente relacionado a condições sociais e

históricas, e que estaria em declínio de acordo com a teoria durkheimiana da contração

familiar.

De acordo com Lacan (1938/2008), o declínio do poder paterno presente na

modernidade não é sem efeitos. A crise da família paternalista constitui uma crise

psicológica. Lacan (1938/2008) relaciona a queda da soberania do pai de família com o

surgimento das diferentes formas de neuroses contemporâneas e, até mesmo, com o

surgimento da psicanálise. Além disso, essa relatividade histórica atribuída ao complexo de

Édipo proporciona uma idealização da família paternalista, que seria a única configuração

familiar capaz de propiciar condições edípicas adequadas à constituição das pessoas.

(...) um grande número de efeitos psicológicos nos parecem depender de um


declínio social da imago paterna. (LACAN, 1938/2008, p. 59)

Seja como for, são as formas de neuroses dominantes no final do século que
revelaram que elas estavam intimamente dependentes das condições da família
[...]. Nossa experiência nos leva a designar sua determinação principal na
personalidade do pai, sempre carente de alguma forma, ausente, humilhada,
dividida e postiça. (LACAN, 1938/2008, p. 60)

A partir dessas citações, é impossível ignorar que, em 1938, Lacan considera a

autoridade atribuída socialmente ao pai de família fundamental para o processo edípico e,

consequentemente, para a constituição do sujeito e para o mal-estar na civilização.

Entretanto, concordamos com Zafiropoulos (2002) quando este afirma que o texto
50

“Complexos familiares” (1938/2008) expõe uma versão “familiarista” da psicanálise e está

muito distante das investigações posteriores de Lacan, que para dar conta da clínica e da

cultura substitui as regras da família pelas regras da linguagem.

Por hora, não iremos nos ater à relação que Lacan estabelece com a linguagem, com

o simbólico e com a teoria estruturalista de Lévi-Strauss. O que julgamos importante

salientar nesse momento é que, em 1938, quando Lacan apoia suas teses no conceito de

família conjugal de Durkheim, nosso autor não pode ser intitulado freudiano. A

relatividade histórica atribuída ao complexo de Édipo apresenta certo distanciamento da

visão freudiana segundo a qual o complexo de Édipo é universal. Apesar de Freud ser

contemporâneo de Durkheim, conforme observa Zafiropoulos (2002), há uma diferença

entre os elementos que Freud extrai da teoria de tal sociólogo e os conceitos eleitos por

Lacan em 1938. Enquanto Freud elege as ideias de proibição do incesto e de totemismo, o

que pode ser observado em “Totem e tabu” (1913/1980), Lacan (1938/2008) destaca da

sociologia durkheimiana a lei da contração familiar.

Na teoria freudiana os desejos primitivos inconscientes são universais e trans-

históricos. Zafiropoulos (2002) esclarece que, no corpo teórico freudiano, os desejos

primitivos não são variáveis dependentes das condições sociais da família. Somente o

assassinato do pai primevo, descrito por Freud em “Totem e tabu” (1913/1980), pode ser

considerado um ato coletivo e social que modifica o destino dos desejos da humanidade,

pois se trata do momento fundador das instituições sociais e do inconsciente.

Podemos considerar, seguindo Zafiropoulos (2002), que a lei da contração familiar

nunca esteve no centro da teoria freudiana, como ocorre na tese lacaniana de 1938. Desta

forma, fica claro que há um distanciamento teórico entre Freud e Lacan em 1938.

Enquanto para Freud o complexo de Édipo é universal, para Lacan (1938/2008), leitor de

Durkheim, tal processo é relativo e influenciado por variáveis sociais.


51

A formulação lacaniana que propõe a relatividade social do complexo de Édipo

gerou efeitos consideráveis na teoria lacaniana sobre o supereu. Em 1950, período de

transição para o estruturalismo22, Lacan apresenta a comunicação “Introdução teórica às

funções da psicanálise em criminologia”23, onde elabora uma nova teoria a respeito do

supereu. Nesse texto, além de Lacan prosseguir com a ideia da variabilidade do complexo

de Édipo, cujo resultado dependeria da conjuntura social que influencia as circunstâncias

familiares, também defende que as manifestações do supereu variam em função da

estrutura da família. O supereu é considerado por Lacan (1950/1998) um operador cuja

manifestação depende das condições do complexo de Édipo. “O supereu, diremos, deve ser

tomado como uma manifestação individual, ligada às condições sociais do edipismo.”

(Lacan, 1950/1998, p. 137)

Essa posição teórica que descreve o supereu como um operador cuja expressão

varia em função das condições da família, mais precisamente em função do poder atribuído

à imago paterna na sociedade e no núcleo familiar, ilustra o quanto em 1950 Lacan

permanece fiel à teoria de Durkheim e distante do pensamento freudiano. Nesse momento

Lacan também não pode ser considerado freudiano, pois o supereu em Freud não é apenas

um herdeiro do complexo de Édipo nem uma mera identificação à imago paterna. Além

disso, esse distanciamento entre Freud e Lacan (1950/1998) não para por aí. Ainda em

relação ao supereu, é interessante destacar outra diferença teórica localizada na obra desses

autores. Enquanto para Freud o supereu é herdeiro do complexo de Édipo, para Lacan

(1950/1998) o supereu se adianta ao complexo edípico. Nesse sentido, este último afirma:

Mas, nossa experiência dos efeitos do supereu, assim como a observação direta
da criança à luz dessa experiência, revela-nos seu surgimento num estádio tão
precoce que ele parece ser contemporâneo ou mesmo anterior ao surgimento do
eu. (LACAN, 1950/1998, p. 138)

22
Nesse período (1950), Lacan cita Marcel Mauss, que segundo Zafiropoulos (2002) se interessava pela obra
“Sociologia e antropologia” de Lévi-Strauss.
23
Comunicação apresentada na XIII Conferência dos psicanalistas de língua francesa, em 1950, e exposta em
“Escritos” (1966/1998)
52

Para falar da formação do supereu nesse período tão primitivo, Lacan (1950/1998)

recorre tanto à sua teoria do estádio do espelho como à teoria de Melanie Klein.

Comentaremos inicialmente a teoria sobre o estádio do espelho descrita no texto “O

estádio do espelho como formador da função do eu” (1949/1998), para depois pontuarmos

a relação de Lacan com Klein.

Lacan (1949/1998) parte do princípio freudiano de que não há no início do

desenvolvimento uma unidade compatível ao eu. Para ele, há num primeiro momento uma

desordem pulsional caracterizada pelo auto-erotismo, e a unidade corporal que possibilita a

formação do eu é constituída por uma ação psíquica unificadora. Conforme Lacan,

inicialmente o bebê humano é um “corpo despedaçado” e a unidade própria do eu é

constituída na relação com o Outro, que pode ser considerado, nesse primeiro momento, a

pessoa que cuida e estimula o bebê, visto que este apresenta uma impotência motora e

depende da amamentação. Uma imagem corporal é oferecida à criança por esse Outro e,

tomando essa imagem como espelho, a criança realiza, por identificação, a assunção da

unidade de seu corpo, até então fragmentado. Assim, o bebê é capturado por uma imagem

ortopédica e seu eu constitui-se alienado nessa imagem.

Em seu texto “A agressividade em psicanálise” (1948/1998), Lacan já afirmava que

a constituição do eu na criança de tenra idade se desenvolve a partir de uma situação vivida

como indiferenciada na presença de seu semelhante. Com aproximadamente oito meses de

idade é possível observar na criança uma antecipação da completa coordenação dos

aparelhos motores. De acordo com Lacan (1948/1998), a criança antecipa no plano mental

a conquista da unidade funcional de seu próprio corpo, ainda que este não tenha alcançado

a total motricidade voluntária. Nesse momento, se esboça uma identificação imaginária,

pois a criança é capturada pela imagem da forma humana.


53

O que demonstra essa identificação com a forma humana e o reconhecimento de

“eu” é a capacidade da criança de reconhecer sua própria imagem no espelho. Nesse

processo que Lacan chama de estádio do espelho, o sujeito se identifica com a Gestalt

visual de seu próprio corpo. Essa Gestalt visual é uma unidade ideal e uma imago

edificante que surge mesmo que ainda haja uma grande descoordenação motora.

Conforme Lacan (1949/1998), essa captação pela imagem da forma humana

domina toda a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante. A

criança bate e infere que bateram nela, vê o outro cair e chora. Para Lacan, é nessa espécie

de encruzilhada estrutural, em que o humano se fixa numa imagem que o aliena, que se dá

a formação do eu.

É a questão da identificação que torna importante retomar a teoria do estádio do

espelho para falar do supereu como antecessor ou contemporâneo à formação do eu.

Segundo Zafiropoulos (2002), a identificação imaginária-primária que permite a criança

introjetar uma imagem de si e formar seu eu, além de ser um mecanismo que funcionará

como a raiz das identificações secundárias, as quais permitem a entrada no laço social,

também é o que permite a formação do supereu.

Acreditamos ser possível dizer que a leitura dos textos lacanianos de 1938, 1949
e 1950 nos permite reconhecer a ‘imagem raiz’ como uma formação originária
do supereu. (ZAFIROPOULOS, 2002, p.128)24

Em relação às contribuições trazidas por Melaine Klein para a compreensão do

supereu como anterior ao complexo de Édipo, a questão da identificação também entra em

jogo. No texto “A agressividade em psicanálise” (1948/1998), Lacan aponta que, ao

mostrar a primordialidade da “posição depressiva” e o extremo arcaísmo da subjetivação,

Melanie Klein alargou os limites da função subjetiva da identificação, possibilitando com

isso situar uma formação precoce do supereu.

24
Tradução do texto original: “Si creímos posible decir que nuestra lectura de los textos de Lacan de
1938,1949 y 1950 nos permitía reconocer la imagen raíz como una formación originaria del superyó.”
54

Em seu texto “Funções da psicanálise em criminologia” (1950/1998), Lacan

também cita Melanie Klein para falar do surgimento do supereu em um estágio precoce,

concebido como contemporâneo ou anterior ao surgimento do eu. De acordo com Lacan

(1950/1998), ao tomar as categorias do Bom e do Mau no estádio infans do

comportamento, Melanie Klein leva o problema da implicação retroativa das significações

para uma etapa anterior ao surgimento da linguagem.

Além de a teoria de Melanie Klein permitir atribuir certa precocidade ao supereu,

de acordo com Lacan (1950/1998), a teoria da autora sobre a persistência imaginária dos

bons e dos maus objetos primordiais também permite conceber o supereu como uma

instância psicológica com uma significação genérica. Essa nova significação atribuída ao

supereu é relevante, pois fundamenta atribuir ao supereu o estatuto de um operador

universal. Assim, mesmo que as manifestações supereuoicas variem em função da

estrutura da família, o supereu é considerado por Lacan (1950/1998) um operador que

existe universalmente na espécie humana.

De acordo com Zafiropoulos (2002), no texto “Introdução teórica às funções da

psicanálise em criminologia”, Lacan (1950/1998), apesar de permanecer fiel à teoria de

Durkheim e prosseguir considerando as influências que o estatuto da imago paterna

acarreta ao desfecho do complexo de Édipo, defende a existência de um fator universal que

une natureza e cultura. Enquanto Freud atribui ao complexo de Édipo a função de operador

que fundamenta todas as sociedades, Lacan (1950/1998) atribui ao supereu tal papel.

A tese de Lacan (1950/1998) parte da ideia de que não há sociedade sem lei. Nesse

texto, Lacan (1950/1998) retoma as elaborações freudianas presentes em “Totem e tabu”

(1913/1980) para ressaltar a Lei universal que surge do crime primordial. Quanto a isto, ele

afirma: “Não importa a que crítica de método esteja sujeito esse trabalho, o importante foi
55

que ele reconheceu que com a Lei e o Crime começava o homem” (LACAN, 1950/1998, p.

132).

De acordo com Lacan (1950/1998), o supereu é representante da lei e reconhecido

pela psicanálise como responsável por crimes e delitos. Conforme Zafiropoulos (2002), o

supereu seria o herdeiro do ato parricida originário descrito por Freud (1913/1980) em

“Totem e tabu”, seria a instância psíquica que introduziria a culpa e a Lei na espécie

humana.

Apesar de compreendermos, seguindo Zafiropoulos (2002), que em 1950 Lacan

permanece fiel à teoria de Durkheim, visto que utiliza a teoria da contração familiar para

falar das condições sociais do edipismo, quando Lacan toma o supereu como um operador

universal que regula os comportamentos sociais, é possível considerar o texto “Introdução

teórica às funções da psicanálise em criminologia” como uma transição para o

estruturalismo. Essa tese é corroborada com o fato de nesse texto de 1950 Lacan se referir

a Marcel Mauss, um leitor de Lévi-Strauss que, segundo Zafiropoulos (2002), aponta o

simbólico como uma característica genérica da espécie humana.

Outros germes da teoria estruturalista também podem ser observados no texto em

que Lacan fala sobre o “Estádio do espelho”. Nesse texto, a importância do simbólico

também fica evidente quando Lacan defende que a identificação primária que permite a

assunção de uma imagem é o que possibilita a passagem do imaginário para o simbólico.

Conforme Zafiropoulos (2002), a introjeção da imagem que ocorre nesse período é a

condição necessária para que a criança se reconheça como pertencente à espécie humana. E

essa identificação social e simbólica é um dos requisitos necessários para a entrada na

cultura.

A influência da teoria sociológica de Durkheim começa a declinar na medida em

que Lacan começa a se interessar pelo estruturalismo. Entretanto, antes de abordarmos a


56

ligação entre Lacan e Lévi-Strauss, é importante finalizar essa parte do trabalho pontuando

questionamentos que ancoram o rompimento de Lacan com a teoria sociológica de

Durkheim.

De acordo com Zafiropoulos (2002), a lei da contração familiar de Durkheim é

questionável, pois a família em sua configuração reduzida prevalece na Europa desde a

Idade Média. Conforme Zafiropoulos (2002), investigações históricas também indicam que

desde a Idade Média coexistem vários modelos familiares e formas diferentes de

organização familiar. Nas palavras do autor:

Suas investigações mostram que desde o século XVI até o século XIX a família
nuclear está presente no conjunto do mundo rural e as famílias complexas, entre
elas a troncal (patriarcal), somente aparecem em algumas ocasiões.
(ZAFIROPOULOS, 2002, p. 152 – tradução nossa)25

(...) a estrutura da família depende de sua posição geográfica, dos usos e


costumes da região, do regime jurídico prevalecente de regulação familiar e de
tudo que concerne à herança, mas também do desenvolvimento econômico da
região, da vitalidade demográfica, da posição do grupo na hierarquia social da
região, dos índices culturais de prestígio existentes, das estratégias matrimoniais
levadas à prática, etc. (ZAFIROPOULOS, 2002, p. 148 – tradução nossa)26

(...) em todo momento e lugar, a presença da forma conjugal de família é


amplamente majoritária na história dos homens. (ZAFIROPOULOS, 2002, p.
162 – tradução nossa)27

Partindo dessas citações, podemos considerar que os textos de Durkheim não

transmitem a realidade das formas familiares. Ou melhor, a lei da contração familiar

formulada por Durkheim tem seu valor científico questionado.

A consequência da queda dessa teoria de Durkheim é que a tese que defende a

declinação da imago paterna não pode ser historicamente comprovada. O valor do pai de

família, medido por questões sociais, parece variar independentemente do período

25
Tradução do texto original: “Sus investigaciones muestran que desde el siglo XVI hasta el siglo XIX la
familia nuclear está presente en el conjunto del mundo rural y que las familias complejas, entre ellas la
troncal, sólo se encuentran en contadas ocasiones.”
26
Tradução do texto original: “(…) la estructura de la familia depende de su posición geográfica, de los usos
y costumbres de la región, del régimen jurídico prevaleciente de regulación familiar y ante todo del
concerniente a la herencia, pero también del desarrollo económico regional, de la vitalidad demográfica, de la
posición del grupo familiar en la jerarquía social de la región, de los índices culturales de prestigio existentes,
de las estrategias matrimoniales llevadas a la práctica, etc.”
27
Tradução do texto original: “(…) en todo momento y lugar, la presencia de la forma conyugal de la familia
es ampliamente mayoritaria en la historia de los hombres.”
57

histórico. Diferentes posturas paternas e variáveis condições sociais do edipismo sempre

existiram. Assim, conforme a leitura de Zafiropoulos (2002), é impossível considerar que

haja uma degradação do complexo de Édipo em decorrência da queda do poder do pai de

família. Além disso, esses levantamentos colocam em xeque a definição do supereu como

influenciado pelas condições sociais do edipismo.

Esses questionamentos à teoria sociológica durkheimiana mostram o quanto a

ligação que Lacan estabelece com a teoria estruturalista de Lévi-Strauss é coerente para a

psicanálise. Desta forma, pretendemos partir para esse momento estruturalista, chamado

“retorno a Freud”, que se inicia em 1953 e que mostra outro posicionamento sociológico

de Lacan, com a percepção de que é incoerente a apropriação de definições deste autor sem

considerar mudanças em suas bases teóricas. Isso se aplica ao supereu, nosso tema de

estudo. Vejamos como ele pode ser concebido a partir de 1953.

(...) não aconselhamos ninguém que pretenda ler Lacan a ignorar suas referências
antropológicas, se trate de Durkheim para o período de 1938-1950 ou dos
trabalhos de Lévi-Strauss, cuja influência sobre suas investigações que envolvem
Freud é imensa a partir de 1951. (ZAFIROPOULOS, 2006, p. 26 – tradução
nossa)28

2.2 O supereu no retorno a Freud

O período lacaniano conhecido como “retorno a Freud” inicia-se em 1953 e é

marcado tanto pelo afastamento em relação à teoria sociológica de Durkheim como pelo

firmamento da vinculação teórica com o estruturalismo. Nesse momento, Lacan encontra

na teoria estruturalista de Lévi-Strauss uma forma de reler a teoria freudiana e avançar com

a teoria psicanalítica.

28
Tradução do texto original: “(…) no aconsejamos a nadie que pretenda leer a Lacan empantanarse en la
ignorancia de sus referencias antropológicas, se trate de Durkheim para el período 1938-1950 o de los
trabajos de Lévi-Strauss, cuya influencia sobre sus investigaciones cuando vuelve a Freud es inmensa a partir
de 1951.”
58

Coloca-se, assim, uma problemática a partir da qual Lacan poderá pouco a pouco
retomar a obra de Freud, deslocando-a. O “estádio do espelho” é o ponto fixo, o
ponto de Arquimedes, do qual Lacan precisava para se engajar num caminho que
consiste em descobrir tudo aquilo que a obra de Freud, à sua revelia, significa. A
partir daí torna-se possível sua “releitura”, o “retorno a Freud”. (OGILVIE,
1991, p. 104-105)

Desde o início de seu trajeto acadêmico, Lacan busca seguir com precisão o trajeto

de Freud. Entretanto, observa-se, segundo Zafiropoulos (2006), que as produções

lacanianas de 1938 a 1950, marcadas pela proximidade à sociologia Durkheimiana,

estavam distanciando Lacan dos fundamentos de Freud. Além disso, de acordo com Lacan

(1953b/1998), as produções psicanalíticas pós-freudistas29 estavam fazendo com que a

psicanálise pendesse para um uso acrítico e para a adaptação do indivíduo ao meio social.

Diante desse cenário, com o auxílio da teoria estruturalista, Lacan consegue reler a

produção de Freud e realizar um avanço na teoria psicanalítica.

Sem excluir a importância do registro imaginário, onde o supereu aparece como

uma figura feroz que vigia e critica, esse período conceitual em que Lacan se nutre dos

trabalhos publicados por Lévi-Strauss sobre o estruturalismo tem como marca a teorização

sobre o simbólico. Apesar de em julho de 1953, com a comunicação “O simbólico, o

imaginário e o real”, Lacan (1953a/2005) já ter anunciado a tríade que possibilitará as

formulações sobre o nó borromeano, o texto “Função e campo da fala e da linguagem em

psicanálise”30(1953b/1998) pode ser considerado o marco da teorização lacaniana sobre o

simbólico. Enquanto a teoria sobre o estádio do espelho31 demarca a relevância do registro

imaginário para a constituição do eu, o relatório do congresso de Roma é um texto que

demarca a importância do simbólico para a constituição do sujeito. Mesmo que no texto

sobre o estádio do espelho possam ser observados certos indícios do estruturalismo – visto

que em 1949 Lacan começa a ter contato com a teoria estruturalista –, é no discurso de
29
De acordo com Arcuri-Jank (2005), entendemos como pós-freudistas os teóricos que renovaram a teoria
freudiana e não seguiram fiéis às suas formulações.
30
O texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” configura o relatório do Congresso de
Roma, realizado em setembro de 1953.
31
Falamos sobre o estádio do espelho no item 2.1 desse trabalho.
59

Roma que Lacan (1953b/1998) liga-se mais precisamente aos trabalhos de Lévi-Strauss e

demarca com precisão o campo do simbólico.

Mesmo reconhecendo que o texto “A eficácia simbólica”, apresentado por Lévi-

Strauss no livro “Antropologia estrutural”, de 1952, foi fonte de inspiração para a

formulação da tríade lacaniana: simbólico, imaginário e real, não temos o objetivo de

esmiuçar a teoria de Lévi-Strauss. Além disso, apesar de compreendermos que qualquer

explicação lacaniana implica os três registros, nosso objetivo não é nos aprofundarmos na

tríade que sustenta a elaboração lacaniana durante três décadas. Nesse momento do

trabalho, nos limitaremos a contextualizar algumas elaborações teóricas que surgiram da

influência do estruturalismo sobre Lacan e levantar como o supereu pode ser pensado

nesse período.

No texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan

(1953b/1998) tenta demonstrar que os conceitos psicanalíticos só possuem sentido ao

serem ordenados no registro simbólico da linguagem. Para Lacan (1953b/1998) o homem

está submetido às leis do simbólico, ou seja, o que define a posição do sujeito como

humano é a ordem simbólica.

Ninguém deve desconhecer a lei: essa fórmula, transcrita do humor de Código de


Justiça, exprime no entanto a verdade em que nossa experiência se fundamenta e
que ela confirma. Nenhum homem a desconhece, com efeito, já que a lei do
homem é a lei da linguagem (...) (LACAN, 1953b/1998, p. 273) 32

Para Lacan (1953b/1998), é a linguagem que cria as coisas, e o homem só fala

porque o símbolo o fez homem. É o simbólico que permite as alianças entre os homens, as

leis de parentesco, e, nesse sentido, o complexo de Édipo está submetido ao registro

simbólico também.

Lacan (1953b/1998) defende que a descoberta freudiana está no campo das relações

da natureza do homem com a ordem simbólica e ignorar isso é levar as descobertas da

32
Lacan atesta ter baseado essa colocação nos trabalhos de Maurice Leenhardt (1878-1954), mais
precisamente nos capítulos IX e X de “Do Kamo” (1947).
60

psicanálise ao fracasso. Diante dessa colocação, é interessante situar a teoria sobre o pai a

partir do laço de Lacan com o estruturalismo, pois ignorar a função simbólica do pai –

como se observa de 1938 a 1950 – estava conduzindo a noção freudiana de universalidade

do complexo de Édipo às ruínas e levando o supereu à total dependência do status social da

imago paterna.

Em 1953, Lacan rompe com a teoria sobre o pai que tinha como base as

formulações teóricas de Émile Durkheim, e elabora uma teoria sobre a função paterna. A

teoria de Durkheim sobre o declínio da imago paterna, que nos textos lacanianos de 1938 a

1950 permitia a Lacan falar sobre um complexo de Édipo influenciado por variáveis

sociais e sobre as consequências que as condições sociais do edipismo acarretam à

formação do supereu, deixa de ser enfatizada por nosso autor quando este passa a falar

sobre o registro simbólico.

Ancorado na teoria sobre o simbólico, Lacan separa o poder social do pai de sua

função simbólica. De acordo com Zafiropoulos (2002), em 1953 o poder do pai e o valor

estrutural de sua função já não dependem tanto de seu poder social como chefe de família,

mas do valor que lhe é próprio no registro simbólico. Há uma separação entre o valor

social do pai e o valor simbólico de seu nome.

Faria (2003), ao falar sobre o complexo de Édipo, refere que a concepção do pai

como simbólico deve ser articulada à definição lacaniana de metáfora paterna. Na metáfora

paterna o “nome do pai” é o significante do desejo materno, é o representante da Lei e o

significante que insere a criança no simbólico. Para Lacan (1957-58/1999), esse processo

metafórico é o que permite o processo metafórico da cadeia significante, ou seja,

possibilita substituir um significante por outro significante. Por essa razão, no período

anterior às suas formulações sobre o real, Lacan (1957-58/1999) afirma que ao término do

complexo de Édipo há a entrada no simbólico, na linguagem e na cultura.


61

Sobre a metáfora paterna, Faria (2003) comenta que à medida que, no decorrer do

complexo de Édipo, a mãe é simbolizada em suas idas e vindas, o desejo da mãe se torna

um enigma. Com a simbolização inicial da mãe, na qual a criança percebe a hiância do

desejo materno, o significado do desejo materno é dirigido ao pai. Assim, o significado do

desejo materno, mesmo que seja um enigma para a criança, passa a ser um equivalente ao

pai.

O desejo da mãe tem um significado para o sujeito, x, mas é o pai quem se


apropria onipotente e exclusivamente desse significado. Quando isso acontece,
podemos dizer que o pai, como significante, como terceiro, passa a ter para a
criança o significado do desejo da mãe. (FARIA, 2003, p. 81)

Faria (2003) acrescenta que o desejo materno não é o significado do pai. Para

Lacan (1957-58/1999), a função do pai é uma experiência metafórica, e a metáfora opera

na cadeia significante usando sua dimensão de substituição que cria um novo sentido.

Segundo Faria (2003), para que haja metáfora paterna é necessária uma substituição

significante, na qual o pai toma lugar como um significante que vem substituir o

significante do desejo materno. Assim, em seu seminário 5, Lacan (1957-58/1999) define o

pai no complexo de Édipo como um significante que substitui outro significante.

Nessa substituição significante o falo é tomado como o produto da metáfora

paterna. Quando o pai se articula como função simbólica e ocupa o lugar de significante do

desejo materno, o falo deixa de ser o significado do desejo materno e ocupa uma

significação inacessível ao sujeito (FARIA, 2003). Para Lacan (1957-58/1999), o falo fica

como marca da entrada no sujeito na ordem significante.

Assim, de acordo com Faria (2003), podemos observar que Lacan situa o “nome do

pai” como um significante em nome do qual a Lei se estabelece.

Segundo Zafiropoulos (2006), Lacan utiliza a noção de “significante flotante” para

elaborar o conceito de “nome do pai”. De acordo Zafiropoulos (2006), o “significante

flotante” é o que permite o exercício do pensamento simbólico, pois é o que possibilita que
62

o significante e o significado permaneçam em relação de complementaridade, mesmo que

haja a supremacia do significante sobre o significado33. De acordo com Lévi-Strauss (1950,

apud Zafiropoulos, 2006, p. 198), sempre há uma inadequação entre o significante e o

significado, é preciso “um símbolo em estado puro” dotado de um “valor simbólico zero”

que garanta o laço entre ambos.

Lacan (1953-54/2009) apresenta o conceito de “nome do pai” como o que permite

identificação com a Lei. Lacan enfatiza o nome do pai como suporte da função simbólica e

o desvincula totalmente da pessoa do pai. O nome do pai é um significante de exceção, que

segundo a teoria de Lévi-Strauss, permite o exercício do pensamento simbólico.

O nome do pai é o pai simbólico que, para Lacan (1955-56/2002), assegura

inconscientemente o “almohadillado” entre os significantes e os significados. Na aula de 6

de junho de 1956 do Seminário 3, “As psicoses”, Lacan deixa claro que sem o valor

simbólico zero fornecido pelo “nome do pai” não há a ligação entre significante e

significado. O valor simbólico zero é indispensável à instauração do registro simbólico.

No seu terceiro seminário “As psicoses”, Lacan (1955-56/2002) comenta a noção

de significante afirmando que todo verdadeiro significante não significa ninguém. É

justamente o fato de não significar o sujeito, que torna o significante indestrutível e capaz

de a todo momento realizar significações diversas. O que caracteriza o mundo humano não

é a existência de significações, mas a ordem do significante, e o “nome do pai” é o que

permite entrar nessa ordem simbólica, sendo essencial para a articulação da linguagem no

humano.

A mudança fundamental da teoria de 1938 para a que surge a partir de 1953 é que a

formulação lacaniana sobre o “nome do pai” separa precisamente o valor simbólico do

“nome do pai” das relações imaginárias que o sujeito estabelece com a pessoa que exerce o

33
No seminário 3, “As psicoses”, Lacan (1955/1956), fala sobre a inversão do algoritmo de Ferdinand
Saussure que ligava o significante ao significado deixando a preponderância do significado. Lacan, seguindo
Lévi-Strauss (1950) propõe o significante como precedente e determinante do significado.
63

papel de pai na família. Entretanto, isso não significa que a novela familiar deva ser

ignorada. Conforme Zafiropoulos (2002), a teoria lacaniana não elimina totalmente a

importância da pessoa do pai da realidade, o que se destaca é a diferença entre os efeitos

inconscientes da função simbólica e as relações que se estabelecem entre o filho e o pai de

família. O que se evidencia nesse período estruturalista é que a prioridade deve ser dada ao

sistema simbólico, que organiza tanto as estruturas de parentesco como as estruturas da

linguagem.

Segundo Zafiropoulos (2002), a diferença entre o pai simbólico e o pai da realidade

é esquecida quando a teoria sobre o declínio da imago paterna é utilizada para explicar o

mal-estar social. Nesse sentido, a articulação com o estruturalismo, ao possibilitar a

distinção entre a pessoa do pai de família e a função simbólica do pai, permite Lacan fazer

com que a psicanálise recupere sua fidelidade à Freud.

Lacan desenterra de sua maneira a estátua do pai morto descoberta por Freud,
seu valor simbólico e sua eminente fecundidade subjetiva e social, e nesse ponto
destitui definitivamente o fantoche familiar imaginário do pai.
(ZAFIROPOULOS, 2002, p. 194 – tradução nossa)34

É impossível ignorar a proximidade entre a teoria lacaniana sobre o “nome do pai”

e as formulações sobre o Pai da horda primitiva descritas por Freud em 1913. De acordo

com Zafiropoulos (2002), o nome do pai é uma versão do pai morto, apresentado por Freud

em “Totem e tabu”, em nome do qual os homens constituem as leis que permitem a

formação da sociedade.

Conforme Lacan (1956-57/1995), “Totem e tabu” é um mito moderno que fala

sobre o pai e que eterniza a existência de um só pai na origem. Nas palavras do autor, “é

preciso que o verdadeiro pai, o pai singular, o pai único, esteja antes do surgimento da

história, e que seja o pai morto.” (LACAN, 1956-57/1995, p. 215).

34
Citação original: “Lacan exhuma a su manera la estatua del Padre muerto descubierta por Freud, su valor
simbólico y su eminente fecundidad subjetiva y social, y ese punto destituye definitivamente el fantoche
familiar imaginario del padre.”
64

(...) o mito de Totem e tabu deve se lido como o mito fundador da função paterna
e, portanto, do regime ordinário da relação do homem com o significante.
(ZAFIROPOULOS, 2006, p. 232 – tradução nossa)35

Zafiropoulos (2006) afirma que o mito do pai da horda mostra a fundação da função

paterna, é o processo que funda a relação do homem com o significante. Além de ligar o

desejo e a lei, permite a ligação entre o significante e o significado. O totemismo é uma

característica universal do humano marcado pelo simbólico.

Assim, conforme Lacan (1956-57/1995), o pai simbólico é impensável, não está em

parte alguma da realidade e a função paterna se resume à inscrição da lei. Nesse sentido, é

importante tentarmos levantar como o supereu pode ser pensado nesse período de

teorização sobre o simbólico. Enquanto, até 1950, Lacan definia o supereu como

dependente das condições sociais da família, a partir de 1953 ele concebe o supereu em

termos de estrutura. Nesse momento teórico, Lacan permanece fiel à concepção freudiana

do supereu como herdeiro do complexo de Édipo, mas considera tal questão em termos de

estrutura e relaciona o conceito supereu à lei da linguagem.

Na aula de 11 de abril de 1956 do Seminário 3, “As psicoses”, Lacan (1955-

56/2002) fala sobre a função da linguagem e sobre a noção de estrutura. Para ele, a noção

de estrutura é a própria manifestação do significante, ou seja, as noções de estrutura e de

significante são inseparáveis. Como a ordem significante é diferente da ordem da

significação e é a primeira que caracteriza o mundo humano, o complexo de Édipo

pensado como estrutura é o que permite o funcionamento da ordem significante. Nesse

sentido, é possível pensar em termos estruturais o supereu como herdeiro do complexo de

Édipo. Nas palavras de Lacan:

As coisas são simples. Mas é preciso ainda que a ordem do significante, o sujeito
a adquira, a conquiste, seja colocado em seu lugar numa relação de implicação
que afeta seu ser, o que resulta na formação do que chamamos em nossa
linguagem o superego. (LACAN, 1955-56/2002, p. 216)

35
Citação original: “(…) el mito de Tótem e tabú debe leerse como el mito fundador de la función paterna y,
por lo tanto, del régimen ordinario de la relación del hombre con el significante.”
65

O superego é o que nos coloca a questão de saber qual a ordem de entrada, de


introdução, de instância presente, do significante que é indispensável para que
funcione um organismo humano, o qual tem de arranjar-se não só com o meio
natural, mas com o universo significante. (LACAN, 1955-56/2002, p. 217)

Na aula de 6 de março de 1957 do seminário 4 “A relação de objeto”, Lacan (1956-

57/1995) prossegue com essa relação entre o complexo de Édipo como estrutura e o

supereu. Afirma que o fim do complexo de Édipo é correlativo à instauração da lei e é um

acontecimento que tem como resultado a formação do supereu.

Este supereu tirânico, fundamentalmente paradoxal e contingente, representa por


si só, mesmo entre os não-neuróticos, o significante que marca, imprime, impõe
o selo no homem de sua relação ao significante. Há no homem um significante
que marca sua relação ao significante, e a isso se chama o supereu. (Lacan, 1956-
57/1995, p. 216)

Pensar o supereu com esse olhar estrutural remete à própria entrada do sujeito na

cultura. Conforme Lacan (1956-57/1995), o supereu é herança do parricídio originário

exposto em “Totem e tabu” (1913/1998). O assassinato do pai da horda funda as regras

sociais e o supereu é o significante que funda a relação do homem com o significante.

Segundo Zafiropoulos (2006), o pai é o pai morto, e o que sucede dele, ou seja, o supereu é

o significante que liga o humano ao conjunto dos significantes.

O espírito da coisa paterna adota por meio do mito freudiano, a critério de Lacan,
a forma de um significante de exceção que se chama supereu e os sintomas
constituem sua equivalência. (Zafiropoulos, 2006, p.232)36

No texto “O simbólico, o imaginário e o real”, Lacan (1953a/2005) já propunha que

o supereu é o símbolo dos símbolos, como uma fala que nada diz. Isso é corroborado

posteriormente quando Lacan (1957-58/1999) diz que o supereu é o significante que marca

a relação do homem com o significante.

Assim, conforme Zafiropoulos (2006), é possível compreender que no período do

“retorno a Freud”, a partir de sua teorização sobre o simbólico, Lacan (1956-57/1995)

36
Citação original: “El espíritu de la cosa paterna adopta por lo tanto en el mito freudiano, a criterio de Lacan
la forma de un significante de excepción que se llama superyó y es novedoso, y cuyos síntomas constituyen
equivalencias.”
66

permanece com a compreensão freudiana de que o complexo de Édipo deixa como

herdeiro o supereu. Entretanto, ele situa o complexo de Édipo e o supereu no registro

simbólico. A função paterna é o que, através do supereu, permite a relação do homem com

a lei, o que Lacan chama de ligação entre significante e significado. Conforme Lacan

(1956-57/1995), o supereu traz a questão significante como indispensável para o humano.

O supereu é algo que entra em jogo e permite a articulação significante.

Após essa breve colocação de algumas concepções que se estabeleceram sobre a

noção freudiana do supereu como herdeiro do complexo de Édipo no período em que

Lacan centra-se nas elaborações sobre o simbólico, é importante salientar que não há um

fechamento de uma definição desse conceito. No período do “retorno a Freud”, Lacan

também trata de outras abordagens que Freud apresenta a respeito do supereu.

Como já pontuamos, munido da teoria estruturalista, Lacan passa a reler a obra

freudiana e isso abrange o conceito supereu. Já vimos no primeiro capítulo deste trabalho o

quanto a elaboração freudiana a respeito da instância psíquica supereu foi sofrendo

constantes reformulações durante o período de produções teóricas de Freud. Em 1924, o

supereu é apresentado como sinônimo de ideal do eu e é descrito como decorrente da

identificação ao pai no complexo de Édipo. Já nos textos freudianos mais tardios essas

definições são revistas. No esboço de 1938/1940, encontramos a afirmação de que o

supereu frequentemente demonstra uma severidade para a qual nenhum modelo foi

fornecido pelos pais reais, e na 31ª Conferência: “A dissecção da personalidade psíquica”,

Freud (1932b/1980) esclarece a diferença entre o ideal de eu e o supereu ao colocar que as

identificações mais primitivas que influenciam o supereu enquanto as identificações mais

tardias atingem mais o ideal de eu. A ausência do fechamento preciso na noção de supereu
67

em Freud oferece a possibilidade de diversas interpretações37 e permite a Lacan conduzir

sua releitura a partir da teoria estruturalista.

Já falamos sobre como concebemos a condução estruturalista que Lacan dá à noção

freudiana que articula o supereu à passagem pelo complexo de Édipo. Agora, julgamos

importante tentar situar também alguns outros momentos em que Lacan busca pensar o

supereu no período intitulado “retorno a Freud”.

Os primeiros seminários configuram o momento em que o conceito de supereu é

mais citado por Lacan. Além de o período de 1953 a 1958 ser um momento em que Lacan

trabalha o status simbólico do supereu, ele também fala de uma versão imaginária do

conceito, sobretudo ao abordar suas manifestações. Somado a isso, também é possível

observar que desde esses primeiros seminários aparecem antecipações de definições que

Lacan explorará mais intensamente ao abordar o registro real.

Não buscamos trazer uma definição precisa do conceito de supereu nesse período, a

intenção é tentar minimamente recuperar as abordagens lacanianas sobre tal questão e

tentar situar a complexidade de tal processo teórico. Essa proposta coincide com a ideia do

próprio Lacan que logo no seminário 1, “Os escritos técnicos de Freud”, denuncia a

complexidade do referido conceito. Na aula de 31 de março de 1954 desse seminário,

Lacan (1953-54/2009) afirma que apesar de a resposta para a questão “o que é que é o

supereu?” parecer evidente, não o é. Conforme Lacan (1953-54/2009), todas as analogias

que se referem ao supereu como imperativo categórico ou como consciência moral são

extremamente confusas. Além disso, Lacan (1953-54/2009) afirma que o supereu muitas

vezes é erroneamente tomado como sinônimo de ideal de eu.

Apesar de o supereu e o ideal de eu já terem sido apresentados como sinônimos na

obra freudiana, mais precisamente no texto “O eu e o isso”, Lacan (1953-54/2009) chama a

37
Interpretações de psicanalistas “pós-freudistas” também existem, mas não temos como objetivo tratar
dessa questão.
68

atenção para a diferença entre tais conceitos e delimita que enquanto o ideal de eu é

exaltante, o supereu é constrangedor, feroz e impositivo. Lacan (1953-54/2009) permanece

fiel à concepção freudiana que atribui ao supereu a missão de observar e vigiar o eu

comparando-o com o que propiciaria a satisfação narcísica decorrente do ideal de eu.

Nesse período, fica claro como Lacan mantém-se bastante próximo às elaborações

freudianas sobre o supereu. No seminário 1, o supereu é descrito imaginariamente como

uma instância que observa e critica todas as intenções do sujeito. Dando continuidade a

essa relação entre supereu e censura proposta por Freud, no seminário 2, “O eu na teoria de

Freud e na técnica da psicanálise”, o supereu é designado como um “sabotador interno” de

ação perturbadora. Além disso, no seminário 5, “As formações do inconsciente”, Lacan

(1957-58/1999) acrescenta que o supereu funciona no interior do sujeito tal como um

sujeito se comporta em relação a outro.

Com essas observações sobre a forma que atua essa instância psíquica, o supereu é

considerado por Lacan como algo que age no interior do sujeito avaliando não só as ações,

mas as intenções deste. Não se pode ignorar a proximidade que essa ideia tem das

formulações apresentadas por Freud no texto “O mal-estar na civilização”. Observa-se

também que a fidelidade de Lacan ao texto freudiano de 1930 reaparece no seminário 7,

“A ética da psicanálise”. Nele Lacan (1959-60/2008) concorda tanto com a ideia freudiana

de que a agressividade que o sujeito internaliza forma o supereu como com a noção de que

cada renúncia de satisfação aumenta a agressividade do supereu.

Para Lacan (1959-60/2008), tudo o que passa do gozo à interdição reforça a interdição e o

sujeito que procura submeter-se à lei moral depara-se com exigências ainda mais

minuciosas e exageradas do supereu.

Falo do que ele enuncia no Mal-estar na civilização, quando formula que a


forma sob a qual a instância moral se inscreve concretamente no homem, e que
absolutamente não deixa de ser racional em seu dizer, essa forma que ele
chamou de supereu, é de economia tal que se torna tanto mais exigente quanto
mais sacrifícios se lhe prestam. (LACAN, 1959-60/2008, p. 355)
69

Ao pontuarmos a relação entre lei moral e supereu, é importante salientar o quanto

Lacan (1959-60/2008) deixa claro que o supereu não pode ser considerado sinônimo de

consciência moral. A distinção entre supereu e consciência moral é bastante ressaltada por

Lacan no seminário 7, “A ética da psicanálise”. Sobre a experiência moral, Lacan (1959-

60/2008) afirma:

Ela não está unicamente ligada a esse lento reconhecimento da função que foi
definida, autonomizada por Freud sob o termo de supereu, e à exploração de seus
paradoxos, que chamei de essa figura obscena e feroz, sob a qual a instância
moral se apresenta quando vamos procurá-la em suas raízes. (LACAN, 1959-
60/2008, p. 18)

Conforme Lacan (1959-60/2008), é possível que o supereu sirva de apoio à

manifestação da consciência moral, mas nada tem a ver com o conteúdo de suas exigências

mais obrigatórias. O que o supereu exige não está relacionado com algum conteúdo que

poderíamos delimitar como uma regra universal. Como um sabotador interno, o supereu

atua como um imperativo categórico que impõe um “Tu deves” sem conteúdo específico.

Não é possível citar essa noção de supereu como imperativo categórico sem

apontarmos que ela já estava em Freud e que é fundamental para as elaborações lacanianas

futuras sobre o tema. Apesar de não termos a pretensão de trabalhar toda sua complexidade

nesse momento, vale dizer que essa já aparece no seminário 1, onde, na aula de 10 de

março de 1954, Lacan é absolutamente claro ao afirmar: “O supereu é um imperativo”.

Durante o período de “retorno a Freud”, Lacan relaciona essa ideia de supereu

como imperativo às manifestações fenomênicas do supereu. Na aula de 13 de junho de

1956 apresentada seminário 3, “As psicoses”, Lacan (1955-56/2002) assevera que o

supereu é realmente uma lei, mas uma lei sem dialética. Ele aparece na forma de um

observador que exprime um “tu deves” incansável e incessante ao eu, o qual se vê como

submetido às injunções do supereu.


70

Também nessa aula de 13 de junho de 1956, Lacan questiona-se sobre a origem da

função do tu no sujeito. Sustenta que o domínio do tu e do eu estão relacionados à

capacidade adquirida pela criança de conseguir dizer eu quando escuta tu. Ou seja, quando

escuta “você vai fazer isso” ela subentende um “eu vou fazer isso”. Nesse sentido, é do

Outro, que vai ser o lugar do tesouro dos significantes e o lugar onde a fala se constitui,

que se forma esse tu. É a partir da fala que vem do Outro, que num primeiro momento

pode ser relacionado à função materna – que oferece significantes e significações à criança

–, que se constitui a ordenação onde um fala com aquele que ouve. Na origem dessa

relação entre o eu e o tu, o estranho tu vai se dirigir ao eu inicialmente como um corpo

estranho e depois vai tornar-se “dono da casa” e gerar no próprio eu um sentimento de que

na verdade o tu é o que manda.

Para comentar esse processo onde o tu passa a fazer parte do eu, Lacan (1955-

56/2002) cita Isakower. Conforme Lacan (1955-56/2002), Isakower tenta explicar o

surgimento do tu a partir do que ocorre com um pequeno crustáceo:

Um analista, o Sr. Isakower, chegou mesmo a compará-lo [o surgimento do tu]


com o que se produz num crustáceo do gênero do camarão que possui a
propriedade particular de ter, no início de sua existência, a sua câmara vestibular,
órgão regulador do equilíbrio, aberto para o meio marinho. Mais tarde, essa
câmara vestibular é fechada e compreenderá certo número de pequenas partículas
espalhadas no meio, que lhe facilitarão a adoção da posição horizontal ou
vertical. São esses mesmos animaizinhos que, no início de sua existência, lançam
docemente na concha alguns grãozinhos de areia, depois, por certo processo
fisiológico, a câmara se fecha. Basta substituir esses grãos de areia por pequenas
partículas de limalha para que possamos conduzir essas encantadoras figurinhas
ao fim do mundo com um eletroímã, ou fazê-las nadar com as patas no ar. Eis a
função do tu no homem, segundo Sr. Isakower, e eu faria disso de bom grado um
pequeno apólogo para fazer compreender a experiência do tu, mas em um nível
mais baixo. (LACAN, 1955-56/2002, p. 312, negritos do autor)

Conforme Lacan (1955-56/2002), o supereu é a função do tu no sujeito e essa noção

passa a sugerir uma origem auditiva para o supereu. Na aula de 26 de junho de 1956 do

seminário 4, “A relação de objeto”, Lacan (1956-57/1995) questiona-se sobre o nascimento

do supereu e retoma o quanto Isakower já havia insistido na predominância da esfera

auditiva na formação do supereu:


71

Este, decerto, pressentiu o problema que não cessamos de formular a propósito


da função da palavra na gênese dessa crise normativa que se chama complexo de
Édipo. Devemos a ele observações pertinentes sobre a maneira como pode se
manifestar ocasionalmente essa espécie de aparato cuja montagem, essa rede de
formas constituídas pelo supereu, compreendemos. Ele vai apreendê-las nos
momentos em que o sujeito escuta modulações puramente sintáticas, palavras
vazias, falando propriamente, já que só se trata de seu movimento. Nesses
movimentos de certa intensidade, podemos, diz ele, captar ao vivo algo que se
refere a um elemento arcaico: a criança integra a palavra do adulto quando ainda
não percebe o sentido desta, mas apenas a sua estrutura. Em suma, isso seria uma
interiorização. Teríamos, aqui, a primeira forma a nos permitir conceber o que é
o supereu. (LACAN, 1956-57/1995, p. 402)

Assim, conforme Lacan (1956-57/1995), como instância interna do sujeito, o

supereu se funda pela integração da palavra em sua estrutura fundamental. Consideramos

que esse processo citado por Lacan se aproxima à colocação apresentada por Freud em sua

31ª Conferência de Freud: “A dissecção da personalidade psíquica”. Nela, ao falar sobre a

identificação, Freud (1932b/1980) coloca que em relação à formação do supereu não é

inadequado comparar a identificação à incorporação oral e canibalística. Essa ideia parece

estar posta na aula de 6 de fevereiro do seminário 4. Nela, Lacan (1956-57/1995) fala que a

incorporação de certas palavras está na origem do supereu.

Também sobre essa questão, no seminário 5, “As formações do inconsciente”,

Lacan (1957-58/1999) indica a existência de um supereu anterior à identificação ao

personagem interditor paterno, que ocorre ao final do complexo de Édipo. Para Lacan

(1957-58/1999), a origem supereu é mais antiga e está relacionada à introjeção de palavras;

ou seja, à entrada do sujeito na lei, na estrutura da linguagem, no simbólico.

Essa formulação conduz-nos ao supereu como relacionado à entrada na linguagem

e corrobora o que já discutimos sobre o nome do pai e a metáfora paterna. Ou seja, para

Lacan a castração e a internalização da lei está mais relacionada à entrada na linguagem,

que barra o sujeito, do que a alguma atuação do pai da realidade. Nas palavras do autor:

“(...) a interdição do incesto não é outra coisa senão a condição para que subsista a fala.”

(LACAN, 1959-60/2008, p.87).


72

Nesse momento convém retomar uma formulação intrigante sobre o supereu

apresentada logo no seminário 1, “Os escritos técnicos de Freud”:

O supereu é um imperativo. Como indicam o bom senso e o uso que se faz dele,
é coerente com o registro e com a noção da lei, quer dizer, com o conjunto do
sistema da linguagem, na medida em que define a condição do homem enquanto
tal, quer dizer, enquanto não é somente indivíduo biológico. Por outro lado, é
preciso acentuar também, e ao contrário, o seu caráter insensato, cego, de puro
imperativo, de simples tirania. Em que direção podemos nós fazer síntese dessas
noções? (LACAN, 1953-54/2009, p. 140)

Lacan (1953-54/2009) questiona sobre o que fazer com noções opostas a respeito

do mesmo conceito. Reconhece que o supereu tem relação com a lei, mas ressalta que a lei

do supereu é insensata e chega a ser o desconhecimento dessa lei. Em suas palavras: “O

supereu é, a um só tempo, a lei e a sua destruição” (LACAN, 1953-54/2009, p. 140). Essa

colocação de Lacan ilustra como o seu primeiro seminário já apresentava a gênese de tudo

que ele iria articular sobre o supereu no período de retorno a Freud, e ainda possibilita

elaborações que serão tratadas no período em que ele se dedica mais precisamente ao

registro real e à formulação da noção de objeto a.

Quando Lacan (1953-54/2009) observa que o supereu é coerente com o registro da

lei, com o conjunto do sistema da linguagem e é algo que permite que o homem transcenda

sua condição biológica, é possível ver a posição do supereu como herdeiro do complexo de

Édipo e relacionado ao nome do pai. Ou seja, nessa primeira noção, o supereu é

responsável pela instauração da lei, é responsável pela civilização e produtor de cultura.

Entretanto, quando Lacan, por outro lado, enfatiza o caráter insensato, cego, de puro

imperativo, de simples tirania do supereu, ele o relaciona à incorporação da voz, à

internalização de mensagens acústicas que provêm do Outro e permitem o surgimento do

“tu deves”, o qual se manifesta como um imperativo.

Quanto a isso, Lacan (1953-54/2009) afirma:

Ele é a palavra mesma, o comando da lei, na medida em que dela não resta mais
do que a raiz. A lei se reduz inteiramente a alguma coisa que não se pode nem
mesmo exprimir, como o Tu deves, que é uma palavra privada de todos os
sentidos. É nesse sentido que o supereu acaba por se identificar àquilo que há
73

somente de mais devastador, de mais fascinante, nas experiências primitivas do


sujeito. Acaba por se identificar ao que chamo figura feroz, às figuras que
podemos ligar aos traumatismos primitivos sejam eles quais forem que a criança
sofreu. (LACAN, 1953-54/2009, p.140)

Compreendemos que essa citação mostra a relação do supereu com a lei da

linguagem, e que o traumatismo mais primitivo que a ele se relaciona é a própria voz. Voz

que permite a entrada na ordem simbólica, mas que também possibilita pensar sobre o

supereu como real.

No período do “retorno a Freud”, Lacan recupera noções freudianas e as relê a

partir do estruturalismo. Apesar de não fechar uma definição para o supereu, Lacan traz

contribuições relevantes para a compreensão deste conceito. O processo de releitura da

obra freudiana com base no estruturalismo é extremamente importante, pois, apesar de não

permitir fechar as definições que ficaram abertas na obra freudiana, permitiu que Lacan

encontrasse o sentido para onde a obra de Freud poderia ser conduzida tendo a teoria

estruturalista como ferramenta. E essa direção encontrada por Lacan o leva a abordar com

mais precisão o registro real. Vejamos como o supereu pode ser pensado nesse momento,

mais precisamente com a formulação do objeto a.

2.3. O supereu e o registro real: objeto a

Após termos situado o supereu no período em que Lacan foca suas formulações

sobre o simbólico, vamos tentar localizar a noção de supereu no período em que Lacan

aborda com mais precisão o registro real.

Antes de iniciar a abordagem desse período conceitual, vale destacar que, como já

afirmamos na introdução, não pretendemos, nos limites deste trabalho, trazer de forma

sistemática todas as referências que Lacan faz do conceito supereu no vasto período de

teorização sobre o registro real. A proposta é – mesmo sem um detalhamento minucioso


74

que contemple todas as citações em Lacan do conceito foco do presente trabalho – situar o

supereu no período de formulação da noção de objeto a. Apesar dessa delimitação, esse

levantamento é valioso para pensar o supereu na sociedade capitalista contemporânea.

Compreendemos que a noção de um real como o que não é a realidade aparece em

todo o ensino lacaniano. Já trouxemos na seção 2.2 deste trabalho, que na comunicação “O

simbólico, o imaginário e o real”, de julho de 1953, Lacan anuncia a tríade que

possibilitará as formulações sobre o nó borromeano. Além disso, formulações do supereu

real como voz podem ser destacadas dos seminários “As psicoses” e “A relação de objeto”.

No primeiro, Lacan (1955-56/2002) esclarece como a função do tu no sujeito sugere a

origem auditiva para o supereu, e no segundo, Lacan (1956-57/1995), ao questionar-se

sobre o nascimento do supereu, traz Isakower para ilustrar como a origem do supereu está

relacionada à introjeção da voz.

Apesar de existirem formulações sobre o supereu como voz nos anos 50, é a partir

dos anos 60 que Lacan oferece maiores contribuições para a compreensão do supereu na

dimensão do real.

Segundo Soler (1997), os anos 60, sobretudo com a ruptura de Lacan com a

International Psychoanalytical Association (IPA) e com a apresentação do seminário 11

“Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, em 1964, marcam o término do

período intitulado “retorno a Freud” e é o momento em que Lacan começa a superar o

ensino freudiano. Nesse período, Lacan, até então conhecido por aplicar à psicanálise

categorias provenientes da linguística estruturalista, passa a utilizar operadores derivados

da lógica formal para tentar dar conta do que escapa de sua teorização sobre o simbólico.

(LAURENT, 1997)

A partir dos anos 60, Lacan, para falar do que o simbólico não dá conta, passa a

pensar a constituição do sujeito amparado nas operações de alienação e separação.


75

Entretanto, antes de adentrarmos nessas operações lógicas, precisamos salientar que,

apesar dos avanços ocasionados pela aliança de Lacan com a lógica formal abrirem

caminho para as teorizações sobre o gozo e para a formulação da teoria dos discursos,

conforme Quinet (2006) observa, a bipartição do ensino de Lacan em campo da linguagem

(simbólico) e campo lacaniano (campo do gozo) não significa que a elaboração do segundo

exclua todas as produções realizadas no primeiro. Vale lembrar que: “Da mesma forma que

a segunda tópica freudiana não exclui a primeira, o campo do gozo e a clínica que dele

deriva não exclui o campo da linguagem, mas o inclui.” (QUINET, 2006, p. 24)

Concordando com Quinet (2006), não entendemos que Lacan, a partir dos anos 60,

passe a desconsiderar todo o desenvolvimento teórico proveniente de seu vínculo com o

estruturalismo. O direcionamento de Lacan para a lógica formal decorre da impossibilidade

de o estruturalismo de Lévi-Strauss permitir a teorização do real. Lacan (1964/1998),

inclusive, deixa claro que para falar da constituição do sujeito pelas operações de alienação

e separação parte do axioma de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

Nos anos 60, Lacan mostra que o sujeito é efeito da linguagem, efeito do significante, onde

um significante representa o sujeito para outro significante. Como o simbólico, apesar de

permitir o funcionamento da cadeia simbólica, não dá conta de significar todo o sujeito,

acaba por apontar o furo, a dimensão real. O real é algo totalmente fora do simbólico, é um

obstáculo à simbolização e um entrave ao simbólico.

Os conceitos de alienação e separação permitem pensar a constituição do sujeito no

campo do Outro, no simbólico, e o real que escapa dessa operação.

O Outro, escrito com letra maiúscula, é definido por Lacan (1960b/1998) como o

tesouro dos significantes, e a entrada na linguagem se dá quando o Outro, grafado como A,

atribui significações ao que vem da criança e eleva o signo à função significante.

Conforme Lacan (1962-63/2005), por intermédio dos significantes provenientes do Outro


76

ocorre a fundação do sujeito. Em suas palavras: “O Outro é o lugar em que se situa a

cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito”

(LACAN, 1964/1998, p. 193-197). Essa definição, segundo Laurent (1997), liga o Outro e

o sujeito de um modo que constitui uma alienação. Ou seja, o sujeito só pode ser conhecido

no lugar do Outro.

Segundo Lacan (1960a /1998), o sujeito se constitui a partir dos significantes que o

abarcam no Outro. Segundo Lacan (1960b/1998), o Outro ocupa uma posição mestra para

o sujeito, pois é desse Outro que o sujeito recebe a significação da mensagem que ele

próprio emite. É do Outro que o sujeito recebe a marca da linguagem que passa a instituir

sua realidade psíquica como uma estrutura de ficção.

Conforme Lacan (1960b/1998), o dito do Outro legifera e marca o sujeito com o

significante. O significante que é insígnia da onipotência do Outro é chamado traço unário,

também chamado de significante mestre e grafado como S¹.

Lacan (1960b/1998) traz o traço unário como o que permite a identificação

simbólica, que é a própria relação do sujeito com o significante. O traço unário recebe esse

nome não por ser único, mas porque funciona como distintivo, como marca do

funcionamento da cadeia significante. De acordo com Laurent (1997), Lacan descreve o

significante mestre como significante separado do sentido capaz de representar qualquer

coisa que faça sentido. É o significante que permanece no nível do não-senso e está

relacionado à contingência e ao traumático. Como Gerez-Ambertín explica: “Este golpe

traumático do significante na subjetividade tem como resultado a identificação primária,

não ao pai ou à mãe, mas sim a incorporação do órgão da linguagem que molda a divisão

do sujeito.” (2003, p. 227)

Segundo Lacan (1962-63/2005), a identificação simbólica é o momento de

identificação inaugural do sujeito com esse significante radical (raiz), significante mestre
77

(S¹). Conforme Ferreira (2008), a identificação ao S¹ é a matriz simbólica. É a partir do S¹,

como significante que funda e suporta a cadeia simbólica, que o sujeito se constitui.

O problema é que, conforme Lacan (1960a /1998), o simbólico não dá conta de

significar o sujeito e este experimenta sua “falta-a-ser”. Por isso, a operação de separação,

também constituinte do sujeito neurótico, vai introduzir o objeto a.

Pensando as operações de alienação e separação com base nas leituras de Laurent

(1997), é possível entender que a união do sujeito com o Outro deixa uma perda, o objeto

a. Para esse comentador de Lacan há duas faltas no sujeito neurótico:

(...) na primeira, quando o sujeito é definido por um significante-mestre, uma


parte do sujeito é deixada de fora da definição total. Mesmo que ele seja um
“menino mau”, ele também é outras coisas. Temos, então, a segunda falta, na
qual o sujeito tenta inscrever uma representação do gozo no interior do Outro no
texto de sua fantasia. Ao tentar definir-se dessa maneira, ele cria outra falta: o
fato de que seu gozo é somente parcial. (LAURENT, 1997, p. 38)

A primeira falta relaciona-se ao fato de o sujeito não poder ser completamente

representado no Outro. Não todo o sujeito pode se representar no Outro, pois o Outro, o

simbólico, é “não-todo”. O Outro não pode ser caracterizado como privado de falta. Não

há Outro do Outro, nada lhe dá sustentação (LACAN, 1960b/1998). Já a segunda, se

processa nos intervalos do discurso do Outro, em que o desejo do Outro é apreendido pelo

sujeito nas faltas do discurso do Outro (LACAN, 1964/1998), e surge na criança o

questionamento sobre o desejo do Outro: “O que ele quer?” Por essa razão, é como desejo

do Outro que o desejo do homem ganha forma, é como Outro que ele deseja. Assim, tanto

o Outro como o sujeito, definido sexualmente, são faltantes, e o objeto a surge como resto

da operação de constituição do sujeito no Outro.

A teorização do conceito de objeto a configura uma das maiores contribuições de

Lacan para a teoria psicanalítica. Conforme Quinet (2006), o conceito de objeto a é uma

das formulações mais importantes da teoria lacaniana, sem a qual não seriam possíveis a

constituição do campo do gozo nem da teoria dos discursos como laços sociais.
78

Conforme Lacan (1962-63/2005), o objeto a surge da operação de constituição do

sujeito no Outro. Por intermédio dos significantes provenientes do Outro, que num

primeiro momento pode ser pensado como a pessoa que exerce a função materna, ocorre a

fundação do sujeito. Desse processo, há um resto real que não pode ser abarcado pelo

simbólico. O nome desse resto é objeto a e é em torno dele que gira todo o drama do

desejo. O objeto a encarna o impasse do acesso à Coisa e é em decorrência desse objeto

perdido que o sujeito pode desejar.

A noção de Coisa (das Ding) é um conceito-chave para a abordagem lacaniana do

registro real, sobretudo para o período de formalização teórica sobre o objeto a. O conceito

de Coisa, presente na teoria freudiana, é retomado no seminário “A ética da psicanálise”.

Nesse seminário 7, Lacan (1959-60/2008), ao falar sobre a noção de “Coisa”, mostra que

suas formulações sobre esse conceito também estão inspiradas em um ensaio de

Heidegger. Em um artigo intitulado “A Coisa”, Heidegger (1935/2002) questiona: “Que é

uma Coisa?” Para falar sobre a Coisa, Heidegger (1935/2002) toma como exemplo um

vaso. Explica que o que faz do vaso um vaso é a sua qualidade de continente, e é o vazio

que faz com que o vaso seja continente. O ceramista que fabrica um vaso apenas dá forma

ao vazio, ou seja, o que faz do vaso uma coisa não reside na matéria que o constitui, mas

no vazio que ele contém.

Na aula “Da criação Ex Nihilo”, apresentada no seminário 7, Lacan (1959-60/2008)

propõe que o vaso é um instrumento que permite afirmar a presença humana. Para ele, o

vaso é empregado por Heidegger para fazer-nos conceber analogicamente os mistérios da

criação. Mesmo sem o propósito de se enveredar na perspectiva heideggeriana38 sobre a

função da “Coisa”, Lacan (1959-60/2008) explica que o vazio do vaso aponta para a

perspectiva do preenchimento.

38
Para maiores esclarecimentos sobre a função de A Coisa na perspectiva heideggeriana, sugerimos o artigo
de Heidegger sobre “A Coisa”.
79

O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não
conhece semelhante. É a partir desse significante modelado que é o vaso, que o
vazio e o pleno entram como tais no mundo, nem mais nem menos, e com o
mesmo sentido. (LACAN, 1959-60/2008, p. 147)

Diferentemente das coisas estruturadas por processos simbólicos, a Coisa não é um

objeto empírico, não tem substância, é irrepresentável, impossível de apreender, está fora

do significante. A citação a seguir, proveniente do texto de Antonio Quinet, deixa clara a

aproximação entre a Coisa freudiana e o objeto a: “A Coisa em psicanálise é o objeto

perdido, que, na verdade, jamais existiu. E, contudo, o sujeito deve reencontrá-lo, sem, no

entanto, jamais conseguir, constituindo a falta estrutural do desejo.” (QUINET, 2004, p.

55)

De acordo com Quinet (2004), o objeto da primeira experiência mítica de satisfação

– logicamente constituída por Freud em 1895, no “Projeto para uma psicologia científica”

– corresponde à Coisa que teria ocasionado uma satisfação hipoteticamente experimentada

e que nunca mais poderá ser alcançada. Soler (2002) acrescenta que apesar dessa primeira

experiência de satisfação ser puramente mítica, há no humano a ideia de uma satisfação

primeira, que inscreve, no corpo ainda não marcado pelo significante, rastros de uma

satisfação plena.

Já está em Freud (1920/1980) a ideia de uma marca de satisfação primordial que

deixa, desde o surgimento do humano, o gozo marcado por uma perda. O mito de uma

primeira experiência de satisfação demonstra o quanto a insatisfação é um componente

intrínseco ao humano e esclarece como todas as experiências de satisfação que o humano

vivencia são sempre incompletas e faltosas em relação a uma suposta satisfação primeira, a

um gozo pleno.

Mesmo que não haja durante a constituição do sujeito um período de completude,

Lacan (1960b/1998) fala de um “efeito de retroversão”. Quando o sujeito se constitui como


80

faltante, passa a ter a ideia de ter alcançado alguma plenitude, alguma completude, sendo

que esta nunca existiu.

Como vimos na seção 2.2, a castração em Lacan é a própria entrada na linguagem,

a inscrição significante, e, conforme Soler (2002), o gozo é sempre incompleto39. De

acordo com Lacan (1959-60/2008), com a entrada na ordem significante, “A Coisa” fica

para sempre perdida. O efeito do significante é a anulação da Coisa, da qual o sujeito

supõe um gozo total.

Em outras palavras, a lei simbólica esvazia o gozo da Coisa e o objeto a é o resto

proveniente da operação simbólica promovida pela lei da linguagem. Apesar de jamais

poder ser encontrada, A Coisa movimenta todo encadeamento do desejo do sujeito. Ela

está relacionada à tendência a tentar encontrar o objeto primordial qualificado como objeto

perdido. “É a Coisa que confere a lei do desejo” (QUINET, 2004, p. 54).

Conforme Lacan (1962-63/2005), o desejo e a lei podem ser considerados a mesma

coisa, visto que ambos estão relacionados ao objeto a. A castração deixa como resto o

objeto perdido e é a esse objeto que o desejo se articula. Ou seja, a relação da lei com o

desejo é tão estreita que somente a função da lei traça o caminho do desejo.

Sobre a relação entre o objeto perdido e o desejo do sujeito, Lacan (1962-63/2005)

esclarece que o objeto a não deve ser concebido como objeto do desejo, mas como objeto

causa do desejo.

O objeto a é causa do desejo, pois é como se ele remetesse a um período de

completude, onde o sujeito não fosse barrado pela linguagem. Ainda que a lei da

linguagem outorgue a lei que distancia de A Coisa, nem por isso apaga a idéia de

39
Em estudos posteriores ao seminário 11, Lacan conceitua o objeto a como mais de gozar, conceito que
permite falar que com a entrada na ordem significante há um jogo de excesso. Entretanto, apesar de sabermos
sobre a importância do conceito de objeto a mais de gozar para pensar como o capitalismo avançado trabalha
com o excesso, para respeitar a delimitação do presente estudo e não ultrapassar as produções lacanianas do
ano de 1964, tal definição de objeto a não será abordada. Reservamos a definição de objeto a como mais de
gozar para estudos posteriores.
81

possibilidade do gozo proveniente do fatal encontro com esta. A estrutura da linguagem é

uma barreira ao gozo, mas essa barreira que limita o gozo deixa um resíduo que prolifera

uma opaca tentação de reencontrar o objeto (GEREZ-AMBERTÍN, 2003).

Nas palavras de Lacan (1962-63/2005, p. 115): “o objeto está atrás do desejo”.

Quando o sujeito se constitui no Outro, algo escapa ao simbólico, um lugar fica vazio. O

lugar vazio, que não pode ser abarcado pela imagem especular que constitui o eu,

materializa uma hiância, e esta abertura, este buraco, é o que comanda tudo o que ocorre

com o sujeito. Segundo Lacan (1962-63/2005), para existir a função de causa é

imprescindível uma hiância entre ela e seu efeito. Esta hiância é o que permite que a causa

não seja preenchida e que o desejo permaneça.

Para compreendemos essa hiância é preciso esclarecer que, apesar de a noção de

objeto causa do desejo ser uma inovação lacaniana, para falar do movimento do desejo

humano e do objeto a, Lacan nutre-se da teoria pulsional freudiana. Para Lacan

(1964/1998), toda pulsão é parcial e não tem um objeto específico que possa ser por ela

capturado. O objeto da pulsão é um vazio e seu percurso configura um vaivém no qual o

objeto é circulado. A satisfação pulsional é atingida pelo trajeto. Nesse sentido, toda pulsão

é parcial e seu objeto só é conhecido na forma de objeto perdido.

De acordo com Lacan (1960a/1998), as pulsões proliferam com a intromissão da

linguagem e toda a organização libidinal do sujeito está relacionada à busca do objeto

perdido. A linguagem castra o sujeito, gera o objeto a, que será o objeto causa do desejo, e

o movimento pulsional tenta resgatar o objeto perdido (LACAN, 1960b/1998).

Após essa breve introdução sobre a constituição do sujeito e sobre o objeto a,

julgamos possível situar o supereu nesse período de teorização lacaniana sobre o real.

Talvez tenhamos nos adentrado demais em formulações teóricas que não falam
82

diretamente do supereu. Entretanto, não vemos como falar do supereu no período em que

Lacan fala sobre o real sem essa contextualização.

Debruçamo-nos minimamente sobre a elaboração do conceito de objeto a, pois

compreendemos que as formulações a respeito do mesmo culminam em um avanço na

teorização sobre o supereu; ou seja, com a teorização do registro real, o supereu passa a ser

compreendido como objeto a. Nesse sentido, nosso estudo parte do direcionamento

apresentado pelo próprio Lacan: “Ao lembrar-lhes sua ligação com a voz, indiquei-lhes

que não pode haver concepção analítica válida do supereu que se esqueça de que, por sua

fase mais profunda, essa é uma das formas do objeto a” (LACAN, 1962-63/2005, p. 321).

O seminário 10, “A angústia”, e o seminário 11, “Os quatro conceitos fundamentais

da psicanálise”, são indispensáveis para a compreensão do supereu no período em que

Lacan dedica-se a formular o conceito de objeto a, o que engloba as noções de objeto olhar

e voz40. Para organizar nosso texto, primeiramente trataremos do objeto voz e depois

comentaremos o objeto olhar.

Para abordar a modalidade do objeto a como voz, Lacan (1962-63/2005) parte do

princípio de que tudo que o sujeito recebe do Outro pela linguagem, ele recebe sob forma

vocal. Apesar de existirem outras vias de receber a linguagem, esta, normalmente, está

ligada a alguma sonoridade, mesmo que precocemente ela esteja separada de qualquer

fonetização ou significação. Em concordância com essas colocações, Gerez-Ambertín

(2003) pontua que a formação do supereu no aparelho psíquico está ligada ao que há de

40
O objeto a causa do desejo subsiste sob modalidades diversas. Lacan (1962-63/2005) trabalha cinco
patamares do objeto a: objeto oral, objeto anal, objeto fálico, objeto escópico e objeto voz. Esses patamares
não estão relacionados a fases, mas às diversas formas em que o objeto a se manifesta. Nesse sentido, a
questão fundamental é saber como ele se liga à constituição do sujeito no Outro.
Apesar da importância de todas as modalidades do objeto a, não exploraremos como cada uma delas se
relaciona à constituição do sujeito e se manifesta como causa. Limitaremo-nos a abordar o objeto a como voz
e a comentar sobre o objeto olhar. A relevância de nos dedicarmos à abordagem do objeto voz decorre da
afirmação lacaniana de que a forma do objeto a como objeto voz equivale ao supereu, nosso tema de estudo.
Além disso, comentaremos sobre o objeto olhar, pois, apesar de Lacan não ser tão enfático em relacioná-lo
com o supereu como faz com o objeto voz, entendemos que essa modalidade de objeto também tenha relação
com o supereu como instância de vigilância.
83

mais absolutamente primário do auditivo. Sobre isso, Teixeira, M. (2008) também

acrescenta:

A respeito da voz, lembramos que Lacan a define de uma maneira um tanto


heterodoxa, diversa da abordagem linguística. Para ele, a voz não se articula ao
significante, à imagem acústica, mas é tomada em sua pura materialidade sonora:
ela não tem a ver com a linguagem, com a rede de significantes; não é um
elemento simbólico, portanto, mas real. (TEIXEIRA, M. 2008a, p.183-184)

Como já comentamos ao falar do registro simbólico no item 2.2, no processo de

constituição no Outro o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida. Num

primeiro momento, o sujeito ainda não constituiu seu eu, não tem nada a comunicar, e tem

que receber do Outro sua própria mensagem. Já indicamos que no seminário 4 “A relação

de objeto”, Lacan (1956-57/1995) explica que num primeiro momento o sujeito ouve um

“tu és” ou “tu deves” sem atributo, e essas injunções vão aos poucos constituir o “eu sou”

ou “eu devo”, configurando o eu e o supereu do sujeito. Entretanto, no seminário 10, “A

angústia”, essa formulação é retomada pelo autor quando esse foca suas formulações sobre

o real e descreve objeto a como voz. Com o avanço teórico de Lacan, é possível entender

que o “tu és” é uma mensagem transmitida no registro real e está relacionada aos

significantes primordiais provenientes do Outro. Apesar de a voz não ser o significante

mestre, ela é solidária a este e são os significantes primordiais que vão formar o S¹, traço

fundamental para o desenvolvimento de toda a cadeia significante.

Conforme Lacan (1962-63/2005), mesmo que o “tu” chegue como uma vocalização

sem atributos e não seja modulado pelo significante, é uma vocalização que existe no real e

circula. Pode, inclusive, ser observado em curso nos monólogos primordiais que crianças

bem pequenas executam quando estão sozinhas. Lacan (1962-63/2005) afirma que esse

processo primordial da vocalização, que escapa ao registro simbólico, indica a constituição

do objeto a como resto. Na constituição do sujeito no Outro, é nessa voz desligada de

suporte simbólico que é possível procurar o resto, o objeto a como voz.


84

Lacan (1962-63/2005) comenta que a ligação entre o supereu e a voz desligada de

um suporte simbólico ocorre a partir do processo chamado incorporação. Sobre tal

processo Gerez-Ambertín (2003) explica: “A raiz do supereu é o toco da palavra que se

desprende do Outro e implica a voz que só se incorpora, não se assimila. Supereu como

real, a voz. Uma das formas do objeto a” (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p. 227).

Para abordar tal questão, na aula de 5 de junho de 1963 do seminário “A angústia”,

Lacan retoma a noção de identificação por incorporação, que trabalhara na aula de 26 de

junho de 1956 do seminário 4, “A relação de objeto”. A incorporação é a forma de

identificação da voz e, para ilustrá-la, Lacan comenta novamente o artigo de Isakower41

que já havia apresentado em 1956:

Essa imagem, ele foi buscar numa coisa singularmente distante do fenômeno
identificatório de que se trata. Com efeito, interessou-se por um bichinho
chamado dáfina [pulga-d’água], que absolutamente não é um camarão, mas o
imaginem como se fosse sensivelmente recebido como este. Seja como for, esse
animal, que vive em águas salinas, tem o curioso hábito, num momento de suas
metamorfoses, de obturar sua carapaça com minúsculos grãos de areia, os quais
introduz no que tem como chamado aparelho estato-acústico reduzido, ou, em
outras palavras, em seu utrículo, que não tem o benefício de nossa prestigiosa
cólcea. Uma vez introduzidas de fora essas partículas de areia, pois o camarão
não as produz sozinho, de modo algum, o utrículo começa a fechar, e eis que o
animal passa a ter em seu interior os pequenos quizos necessários a seu
equilíbrio, e os quais ele precisou trazer de fora. (LACAN, 1962-63/2005, p.
301)

Ao retomar esse exemplo de Isakower, Lacan (1962-63/2005) aponta que esse

processo, que está relacionado à apropriação do “tu” no sujeito, apresenta uma relação com

a constituição do supereu, que, nesse momento de teorização – onde o foco é o registro real

– é considerado uma das formas do objeto a. A esse respeito Gerez-Ambertín (2003)

comenta:

Do mesmo modo que esse animalzinho indefeso precisa da areia para sobreviver,
o ser humano, em sua dependência do Outro, é obrigado a receber os grãos
significantes e os da voz como suportes da armação significante. Para Lacan, não
é possível instituir o Je sem o tu do supereu. (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p.
227, negritos do autor)

41
Lacan esclarece que sua citação provém de um artigo de Isakower que foi exposto no vigésimo ano do
International Journal.
85

Como os grãos de areia da dáfina, a voz não é assimilada, mas incorporada. Os

significantes primordiais que inicialmente invadem o sujeito em sua falta-a-ser ecoam no

real e o sujeito nesse momento não tem nada a comunicar. Concomitante a isso, como o

Outro não possui consistência, sua estrutura configura um vazio, a voz do humano a

constituir-se também acaba por ressoar num vazio que não abarca sua dimensão real. É

nesse impasse que a voz vai sendo articulada, incorporada, e aos poucos modulada pelo

simbólico, pelo Outro.

Para abordar o objeto a como voz, Lacan (1962-63/2005) cita um artigo em que

Theodor Reik42 dedica-se a falar sobre o chofar. O chofar é um chifre, de carneiro ou de

bode, que produz som ao ser soprado. Tal objeto é usado em rituais judaicos, e, segundo

Lacan (1962-63/2005), independentemente do ritual em que esse objeto ressoe, gera uma

emoção que comove inusitadamente todos os que escutam seu som. Também em textos

bíblicos esse instrumento é citado. Nesses casos, o chofar é mencionado para simbolizar a

renovação da aliança com Deus. É como se o chofar ressoasse a própria voz, o mugido, de

Deus.

De acordo com Lacan (1962-63/2005), o chofar é um instrumento interessante para

a psicanálise por apresentar a voz de uma forma bastante específica. É uma voz

potencialmente separável que permite pensar a relação com o Outro. Conforme Abdala

(2008), o chofar demonstra o lugar da voz e pode ser evidenciado na relação do sujeito

com Outro.

A função do chofar é a renovação do pacto de aliança através da lembrança

originada por seu som. No caso da relação do sujeito com o Outro, é possível pensar que o

42
Theodor Reik é autor de “Das Ritual: psychoanalytische Studien”, livro XI, Leipzig, Viena e Zurique:
Imago, 1928, tradução francesa Le rituel, psychanalyse des rites religieux, Paris: Denoël, 1974. Lacan cita
essa produção de Reik na aula de 22 de maio de 1963 e delimita que o estudo sobre o chofar, que permite
pensar o objeto a como voz, encontra-se no capítulo 4.
86

objeto a em sua forma de voz funciona como o chofar, emitindo os imperativos

supereuoicos que retomam a aliança entre o sujeito e o Outro.

Partindo dessas colocações é possível comentar o objeto olhar, pois entendemos

que o objeto olhar também surge como resto do processo de constituição do sujeito no

Outro. Lacan (1964/1998) dedica algumas aulas do seu seminário 11, “Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise”, para abordar a questão do olhar. Apesar de não termos como

objetivo esmiuçar toda a complexidade dessa teorização sobre o objeto escópico, é possível

levantar noções que permitem pensar tal objeto como supereu.

Lacan (1964/1998) assevera que o objeto olhar nada tem a ver com o olho. O objeto

escópico está relacionado à constituição do sujeito. Como o sujeito humano não é

completamente capturado pela imagem que permite a constituição do eu no estádio do

espelho, surge um resto, e o olhar é esse objeto escópico que fica de fora. Por ficar de fora,

o objeto olhar vem tanto simbolizar a falta no campo do visível como demarcar o desejo.

De acordo com Lacan (1964/1998), a imagem que o sujeito constitui de si, sua

realidade, é uma fantasia, uma montagem do imaginário pelo simbólico, e o olhar vem

mostrar o engano dessa imagem. O objeto olhar como supereu tudo vê e pontua a falta. O

supereu na modalidade olhar é uma lei que vigia, demarca a falta e cobra a forma de um

Outro consistente.

O olhar e a voz estão mais relacionados ao supereu do que os outros objetos por

estarem ligados ao desejo do Outro. O olhar e a voz atuam como símbolo da falta e

apontam para o desejo do Outro como aquilo que indica a possibilidade de restaurar a falta.

Assim, entendemos que o supereu em seu aspecto real, como objeto voz e objeto olhar,

aponta para uma possível consistência do Outro e com isso vem tanto denunciar o vazio do

sujeito como ordenar a restauração da falta.


87

Segundo Lacan (1960b/1998), mesmo que encontrar o objeto perdido lhe seja

vedado, o neurótico identifica a falta do Outro com sua demanda e atua como instrumento

do gozo do Outro. Ele acredita num Outro não castrado, tenta sustentar a totalidade do

Outro, e através da ideia de uma totalidade do Outro, busca resgatar-se da falta com base

numa identificação ao ideal que vem do Outro.

O traço unário, que o sujeito a ele se agarra, está no campo do desejo, o qual só
poderia de qualquer modo constituir-se no reino do significante, no nível em que
há relação do sujeito com o Outro. É o campo do Outro que determina a função
do traço unário, no que com ele se inaugura um tempo maior na identificação, o
ideal de eu. (LACAN, 1964/1998, p. 242)

Conforme Lacan (1960b/1998), o traço unário, por preencher a marca que o sujeito

recebe do significante, aliena o sujeito na identificação primeira e forma o ideal de eu. Ao

ser atravessado pelo significante, o sujeito fica marcado por uma falta e toma o significante

do Outro como um ideal capaz de restituir o que lhe falta.

Assim, Lacan (1960b/1998) propõe que o Outro, como um impostor, sustenta a

ideia de uma possível saturação da falta, e a fantasia acaba por transformar o desejo do

Outro no desejo do sujeito, sendo que na verdade o desejo vem do Outro.

A fantasia na teoria lacaniana é estruturante do sujeito, inscreve a condição do

sujeito. É a partir da fantasia que o sujeito estrutura a realidade. Como não existe um

significante que represente o sujeito e este se caracteriza pela falta, pelo furo, a fantasia

vem trazer a ideia de uma possível restauração da falta.

Desse modo, a função estruturante da fantasia é articular a fenda – a barra que o

sujeito sofre por sua subordinação ao significante – e o objeto qualificado como perdido –

este sendo o real que não entra na ordem do significante – (LACAN, 1960b/1998). É a

fantasia que dá consistência ao sujeito por tentar imaginariamente formar um eu que

articule o sujeito barrado pelo simbólico e o objeto real.

O sujeito barrado pelo significante deseja reencontrar o objeto a dito perdido e

encontrar uma completude. Como Braunstein (2007) observa, o abandono do gozo


88

primordial não é algo aceito tão tranquilamente, não é esquecido, e esse é um dos

fundamentos da compulsão à repetição. Nesse sentido, a busca pelo gozo está relacionada

com a pulsão, pois, na medida em que a pulsão deixa um saldo de insatisfação, ela estimula

a repetição. O movimento pulsional busca a recuperação do estado anterior à palavra, ou

seja, a Coisa como objeto absoluto do desejo, mas o sujeito só alcança o gozo fálico -

proveniente do saldo do movimento pulsional ao redor do objeto.

O gozo fálico é o tipo de gozo possível ao sujeito submetido às leis da linguagem. É

a entrada na ordem significante que insere a primazia do significante fálico e traz a

possibilidade de um gozo submetido à lei. O gozo fálico é o gozo possível quando o

simbólico mata a Coisa, já o gozo da Coisa é algo totalmente fora do simbólico e

inacessível.

Uma possibilidade para o sujeito é atravessar a fantasia, conceber que o objeto

perdido não pode ser alcançado, procurar formas alternativas de lidar com o gozo fálico e

contentar-se com satisfações provenientes do circuito pulsional, que contorna o objeto sem

alcançá-lo. Ao ver o Outro como barrado, o sujeito não toma o imperativo de gozo como

pressão e não precisa se ver como impotente por não alcançar o gozo pleno. Quando se

apropria da castração tanto própria como do Outro, o sujeito pode buscar formas de lidar

com o gozo limitado, sem o ideal de ter um gozo pleno. Sem a crença na consistência do

Outro, o sujeito pode recusar-se a tentar encontrar o gozo pleno e se responsabilizar pelo

seu desejo e por sua condição de sempre desejante. “Assim, o sujeito, no curso de uma

análise em intensão, deverá ser despertado para que possa fazer algo com o gozo que lhe é

sempre prometido em seus desencontros com o Real.” (SOUZA, 2008, p. 160)

Cabe ao sujeito suportar a falta do Outro, pois, somente preservando a falta, a

inconsistência, há a possibilidade do desejo, que promove o afastamento das tentativas de


89

gozo pleno, que são mórbidas e alienantes. É preciso não se alienar totalmente no ideal do

Outro não barrado. (FERREIRA, 2008)

Entretanto, o problema é que o abandono do gozo do resgate do objeto real não é

algo aceito tão tranquilamente. Há a possibilidade de o sujeito conceber o Outro como

faltante, ver que o objeto perdido não pode ser alcançado e procurar formas alternativas de

fazer algo com seu gozo, que seria a saída encontrada na análise. Entretanto, o sujeito

neurótico tende a negar a castração, permanecer no círculo infernal da demanda do Outro e

se empenhar na busca de resgatar-se da falta.

Nesse sentido, julgamos possível pensar que as formulações sobre o supereu em seu

aspecto real como objeto voz e olhar abrem caminho para a definição lacaniana de supereu

como imperativo de gozo, que será trabalhada a partir do seminário 18 “Um discurso que

não fosse um semblante”, onde Lacan afirma: “O que o supereu diz é: Goza!” 43 (LACAN,

1971/2009, p. 166)

O objetivo desse trabalho não é avançar para considerações posteriores às

apresentadas por Lacan até o seminário 11. Entretanto, entendemos, com as leituras

realizadas, que o supereu como voz e olhar seja um prenúncio para a definição de supereu

como imperativo de gozo, que aparece pela primeira vez no seminário 18 e será mais

aprofundada no seminário 20, “Mais ainda”.

Nosso entendimento decorre da compreensão de que o supereu em sua dimensão

real, como olhar e voz, configura imperativos que vêm tanto denunciar o vazio do sujeito

como ordenar a restauração da falta. A entrada no simbólico, na rede de significantes,

insere o sujeito numa fantasia na qual ele pode idealizar o Outro como não faltante e

desejar restaurar sua própria falta. A voz e o olhar do supereu delatam a falta, o vazio, e

passam a configurar imperativos que ordenam obediência e convicção ao ideal do Outro.

43
Ressaltamos que o presente trabalho não tem como proposta abordar como o supereu é tratado depois do
seminário 11.
90

O fato de a voz e o olhar do supereu carecerem de significação faz com que o

Outro, sustentado como uma totalidade pelo sujeito, apresente a possibilidade de gozo

pleno. O supereu opera mandatos que supõem a possibilidade do resgate do objeto perdido.

Segundo Lacan (1962-63/2005), após o sujeito passar a identificar seu desejo ao desejo do

Outro, o ideal de restaurar a falta passa a ser uma ordem, e a voz do supereu passa a delatar

tanto a alienação do sujeito no Outro como ordenar o gozo pleno.

Lacan (1960b/1998) descreve que há uma voz que atua como uma lei a ordenar

“Goza!”. Entretanto, esclarece que ao mandato “Goza!”, o sujeito só pode responder com

um “Ouço”, visto que corresponder a tal ordem é impossível. Sobre tal questão Teixeira,

A. (2008) afirma que o supereu, por ordenar um gozo que é impossível, é correlato à

castração. O que é também sustentado por Abdala:

O supereu, como correlato da castração, nada mais é que a intrusão do Outro


com seu imperativo de gozo, com sua vociferação. Mas ao mesmo tempo que diz
goza!. Pede um gozo impossível. Ele é o resto da constituição do sujeito, que
aparece sob a forma de mandatos a exigir o impossível. (ABDALA, 2008, p.
236)

O supereu não aceita a impossibilidade de gozar proveniente da castração e trabalha

para anulá-la. Quando o supereu diz “Goza!”, profere uma ordem impossível e é nessa

impossibilidade que sua natureza feroz se manifesta. Sua ordem não pode ser cumprida, já

que independente do que o sujeito faça, ainda que dê o seu máximo, seu esforço jamais

será o suficiente. E o supereu, em sua dimensão real, como voz e olhar, dirá sempre para

que se esforce mais ainda. O supereu como estrutural do sujeito é sempre uma lei insensata

que impõe a busca pelo gozo impossível.


91

CAPÍTULO 3: Supereu como estrutural do sujeito e consumo como ideal do Outro

Após acompanhar o percurso que Freud e Lacan traçaram em suas abordagens

sobre o supereu, o intuito do presente capítulo é, com base no levantamento realizado,

situar a relação entre supereu e sociedade e pensar essa instância psíquica no contingente

histórico atual. Como o conhecimento alcançado nos capítulos anteriores serve de alicerce

para nossa discussão, para melhor organizar nossa apresentação, partiremos da retomada

de alguns pontos que permitem reafirmar nossa posição teórica de que o supereu é

estrutural do sujeito, está relacionado com a entrada na cultura, e não perde sua

característica de imperativo de gozo em decorrência de mudanças na sociedade.

De forma contrária ao posicionamento de Marcuse (1965/1998), que acredita que

mudanças no papel social da imago paterna ocasionaram a obsolescência do conceito

supereu, o levantamento teórico realizado nos capítulos anteriores permite sustentar que,

tanto na teoria freudiana quanto na teoria lacaniana: o supereu é estrutural do sujeito, é

resultado da entrada na cultura, e não sofre modificações em sua estrutura de imperativo

conforme mudanças em processos de socialização.

Apesar de todos os entraves, confusões e reformulações encontradas na teoria

freudiana sobre o supereu, Freud não o apresenta como uma mera identificação aos ideais

paternos e sociais, mas como algo que está ligado à entrada do humano no laço social.

Mesmo sem Freud ter utilizado a nomenclatura sujeito, em sua obra o supereu mantém

relação com a identificação primária e constitutiva do humano, com a pulsão e com a

instauração da Lei, noções que posteriormente Lacan relaciona à constituição do sujeito. A

concepção freudiana de que o supereu surge com a entrada na cultura é claramente exposta

no mito apresentado em “Totem e tabu”. Ao apresentar tal mito, Freud (1913/1980) fala

sobre a existência de uma identificação primária, que não é uma identificação a ideais

sociais, mas uma incorporação intrusiva que ocorre quando os filhos incorporam
92

canibalisticamente o pai da horda. Em Freud, o assassinato do pai da horda funda as regras

sociais e o supereu.

Em relação ao conceito de supereu em Lacan, sabemos que no texto “Os complexos

familiares” Lacan (1938/2008) fala sobre o declínio da imago paterna e de suas

consequências para a configuração do complexo de Édipo. Além disso, temos

conhecimento de que na comunicação “Introdução teórica às funções da psicanálise em

criminologia” Lacan (1950/1998) descreve o supereu como um operador cuja expressão

varia em função do poder atribuído à imago paterna na sociedade e no núcleo familiar.

Entretanto, concordamos com Zafiropoulos (2002) quando este afirma que essas

colocações de Lacan decorrem do laço com a teoria sociológica de Durkheim e que Lacan

se distancia desses posicionamentos teóricos ao estabelecer um vínculo mais estreito com a

teoria estruturalista de Lévi-Strauss.

A teoria estruturalista permitiu que Lacan se distanciasse da teoria do declínio da

imago paterna, que trazia as bases para falar tanto sobre o complexo de Édipo influenciado

por variáveis sociais quanto sobre as consequências que as condições sociais do edipismo

acarretam ao supereu.

Compreendemos esse posicionamento que Lacan apresenta a partir de 1953 como

um amparo para prosseguir com a teoria freudiana. Ao demarcar a diferença entre o poder

social do pai e o valor simbólico de sua função, Lacan possibilita que a noção de supereu

como herdeiro do complexo de Édipo não se torne obsoleta em decorrência de mudanças

em configurações sociais. Tendo como suporte a releitura que Lacan faz da obra freudiana

com as ferramentas do estruturalismo, e amparados no conceito lacaniano de “Nome do

pai”, vemos a leitura de Marcuse (1965/1998), que defende a obsolescência do supereu,

como limitada à dimensão imaginária do pai, ou seja, reduzida à análise das mudanças na

imago paterna. Nesse sentido, concordamos com Pacheco Filho (2009):


93

Minha opinião é de que existe, em relação a esse assunto, em primeiro lugar,


uma confusão conceitual entre as noções de “imago do pai” e “função do pai”.
Não vejo o capitalismo como uma época histórica em que a estrutura do Édipo
deixou de fazer sentido para o entendimento do sujeito ou que o simbólico
perdeu sua relevância, ou, ainda, em que o “Outro” permanece eternamente
limitado a “lugar do significante”, sem atingir o estatuto de “lugar de Lei”.
Acredito que o conhecimento iniciado com Freud, e posteriormente retomado e
desenvolvido por Lacan, permaneça pleno de sentido para a compreensão do
sujeito da contemporaneidade, não constituindo apenas uma curiosidade histórica
que só dizia respeito às histéricas pudicas do século XIX. (PACHECO FILHO,
2009, p. 153)

Entendemos que, tanto na teoria freudiana como na lacaniana, o supereu é

qualificado como uma instância estrutural do sujeito. Para ambos os autores, o supereu é

resultado da entrada na cultura. Para Freud (1913/1980), o supereu é herança do parricídio

originário que funda as regras sociais, e, segundo Lacan (1955-56/2002), a origem do

supereu está relacionada com a entrada na ordem significante e com a instauração da lei

simbólica. O supereu é o preço pago pela entrada na linguagem.

Essas afirmações, que qualificam o supereu como um operador que existe

universalmente na espécie humana, permitem, inclusive, pensar a noção do supereu no

período em que Lacan se dedica a abordar o registro real e formaliza a noção de objeto a.

Nesse momento teórico, Lacan mostra o sujeito como resposta ao encontro com o

significante e barrado em sua estrutura. Ao ser atravessado pelo simbólico, o sujeito fica

marcado pela falta, visto que ele não pode ser totalmente abarcado pelos significantes

provenientes do Outro. Há sempre um resto que escapa ao simbólico. O supereu é uma

instância relacionada ao registro real, que surge com a constituição do sujeito barrado e

vem ordenar a impossível restauração da falta, que seria alcançada com a recuperação do

objeto perdido. Com a teorização do registro real, Lacan chega à definição do supereu

como instância que ordena o gozo impossível. Entendemos que nesse período teórico em

que Lacan relaciona o supereu com o objeto a (olhar e voz), o supereu também pode ser

concebido como estrutural do sujeito barrado e relacionado com a entrada na cultura.


94

Alicerçados na constatação de que o supereu mantém sua característica estrutural

de imperativo de gozo independentemente do momento histórico em que o sujeito vive,

acreditamos que a diferenciação entre o ideal de eu, mais relacionado à identificação, e o

supereu, como de ordem real e traumática, trabalhada no decorrer dos capítulos anteriores,

permita pensar a relação entre supereu e sociedade.

Embasados na teoria lacaniana, compreendemos que as identificações imaginárias e

simbólicas estão mais relacionadas ao ideal de eu e que o supereu traz uma injunção (tu

deves!) mais relacionada ao registro real. A seguinte passagem, em que Silveira (2005) cita

Zizek, corrobora a constatação de que enquanto o ideal de eu está relacionado com as

identificações de ordem imaginária e simbólica, o supereu não é uma mera identificação e

está mais relacionado ao traumático e ao registro real:

O ideal de eu, afirma Zizek, resulta da identificação com uma causa que
transcenda a vivência imaginária e faça parte da ordem simbólica. (...) O
supereu, ao contrário, não traz nenhum elemento da identificação: é uma ordem
traumática, aterradora, feroz, sentida como estranha e não integrável, em suma,
real. (SILVERA, 2005, p.18)

A citação acima evidencia o quanto o supereu é uma injunção sem atributos

específicos, sem nenhum traço identificatório determinado e fixo. Mas então, como

relacioná-lo com questões sociais? Concordamos com Silveira (2005) quando este afirma

que a injunção supereuoica acaba por dialogar com os conteúdos simbólicos introjetados

pelo ideal do eu. Conforme Silveira (2005), o ideal do eu possui uma dimensão social, ele

tem a função de fixar os sujeitos ao social. Para esse estudioso, nas teorias psicanalíticas de

Freud e Lacan, o ideal de eu “é a porta de entrada do social e da ideologia no aparelho

psíquico”. Apesar de não existirem ideologias do supereu, e este configurar uma lei insana

sem conteúdo específico, ele é uma instância que atua vigiando e impelindo o sujeito a

cumprir as ideologias do ideal de eu, que é uma instância recoberta pela ideologia.

(SILVEIRA, 2005).
95

Não temos a intenção de discutir a noção de ideologia, o que conduziria a presente

pesquisa para dimensões que transcendem nosso objetivo. No entanto, julgamos importante

citar essa teorização de Silveira (2005), visto que ela elucida ainda mais a inter-relação

entre o ideal de eu e o supereu que já encontramos nas teorias de Freud e Lacan.

De acordo com Freud (1932b/1980), o ideal de eu se origina a partir da imagem e

dos ideais dos pais e da sociedade, e o supereu fica apenas com a função proibitiva e

punitiva. Para Freud (1914 e 1932b/1980), a função do supereu consiste em avaliar o eu a

partir do ideal de eu. Na obra freudiana o supereu pode ser definido como um olhar que

vigia e uma voz que critica comparando o eu ao ideal de eu. Junto a isso, Lacan (1953-

54/2009) também atribui ao supereu a missão de observar e vigiar o eu comparando-o com

o que propiciaria a satisfação narcísica do ideal de eu.

Entendemos com Silveira (2005) que, apesar de o supereu ser uma lei insana da

ordem do registro real, o ideal de eu permite que o supereu dialogue com o registro

simbólico. De acordo com Silveira (2005), o “Tu deves!” supereuoico é preenchido por

conteúdos simbólicos do ideal de eu. Desta forma, o supereu é um mandamento traumático

que diz Goza!, mas não enuncia como, e o ideal de eu, composto por identificações

imaginárias e simbólicas aparece como uma espécie de resposta ao questionamento sobre o

desejo do Outro. (“Que queres?”).

Salientamos que não estamos igualando supereu e consciência moral.

Permanecemos coerentes com a distinção que Lacan (1959-60/2008) faz entre esses termos

no Seminário “A ética da psicanálise”. A nosso ver, na teoria lacaniana o “Tu deves!”

supereuoico é sempre uma mensagem transmitida no registro real e está relacionado ao

objeto a como olhar e voz. Entretanto, mesmo sendo uma injunção não integrada no

registro simbólico, isso não impede que o supereu interaja com o ideal de eu e com os

significantes primordiais provenientes do Outro. Nesse sentido, as formulações de Silveira


96

(2005) coincidem com a afirmação apresentada por Lacan no Seminário sobre a ética da

psicanálise. Conforme Lacan (1959-60/2008), mesmo que o supereu seja um imperativo

que impõe um “Tu deves!” sem conteúdo específico, ele pode servir de apoio à consciência

moral, que está mais relacionada aos conteúdos imaginários e simbólicos do ideal de eu.

Segundo Lacan (1962-63/2005), o supereu faz com que o desejo do Outro assuma a forma

de uma ordem. Após o sujeito identificar seu desejo ao desejo do Outro, o supereu passa

tanto a delatar a alienação do sujeito no Outro como a ordenar o gozo pleno. (LACAN,

1962-63/2005)

Com base nessa articulação entre supereu e ideal de eu podemos progredir com

nossa discussão. Considerando a constatação de Quinet (2004, p. 112) de “podemos

representar, a partir da leitura lacaniana, o ideal de eu como ideal do Outro [I(A)]”,

convém aprofundar a discussão sobre a relação entre supereu e ideal do Outro. A teoria

lacaniana levantada no capítulo anterior permite afirmar que o imperativo de gozo do

supereu se alicerça tanto na fantasia de que haja um Outro não barrado como na

possibilidade de atingir o ideal do Outro. O supereu atua como símbolo da falta e aponta o

ideal do Outro como aquilo que indica a possibilidade de restaurar a falta. Para

entendermos como essa estrutura do sujeito atua na sociedade, é interessante partir da

relação entre a alienação estrutural do sujeito no Outro e o que Pacheco Filho (2009)

qualifica como “disposição estrutural e trans-histórica do laço social” (p.143).

Como vimos no capítulo anterior, o sujeito constitui-se se alienando no Outro.

Porém, como o Outro é inconsistente e não dá conta de significar todo o sujeito, há sempre

um resto real dessa operação, um resto que não pode ser abarcado pelo simbólico e em

torno do qual gira todo o drama do desejo.

Apesar de jamais ter sido encontrado e jamais poder ser encontrado, o objeto a

movimenta todo encadeamento do desejo do sujeito. Mesmo que não haja um período de
97

completude, há sempre uma ideia de ter alcançado alguma plenitude. O lugar vazio que se

evidencia quando o sujeito se constitui no Outro materializa uma hiância que permite que o

desejo sempre permaneça.

Da hiância/fenda/fosso em que o sujeito se cria auto-mutilado pelo buraco


originado a partir do que dele se destacou (objeto causa do desejo), surge o
traçado centrífugo da pulsão, que o impele, ao longo da vida, na direção dos
objetos do mundo. (PACHECO FILHO, 2010, p.2)

A hiância, o vazio do sujeito, é o que permite a proliferação das pulsões. De acordo

com Lacan (1960a/1998), as pulsões proliferam com a intromissão da linguagem e, com a

inscrição pulsional, toda a organização libidinal do sujeito passa a circular o objeto

perdido. Em outras palavras, a linguagem castra o sujeito, gera o objeto a causa do desejo,

e o movimento pulsional, ao tentar resgatar o objeto perdido, gera satisfação ao contornar

recorrentemente o objeto. (LACAN, 1960b/1998)

Essa configuração caracterizada pela alienação no Outro e pela busca pelo objeto

perdido é destino de todos os sujeitos da linguagem, sujeitos barrados.

(...) alienação em duplo sentido: em primeiro, porque ‘o desejo do homem é o


desejo do Outro (...), ou seja, é como o Outro que ele deseja (o que dá a
verdadeira dimensão da paixão humana)’; em segundo, porque o desejo tem
como causa um objeto. (PACHECO FILHO, 2010, p.2)

Segundo Pacheco Filho (2010), a alienação descrita acima é uma base estrutural e

trans-histórica que independe da configuração da sociedade e que permite as formas de

alienação no laço social. É sobre a base da alienação estrutural que se assentam as

diferentes formas de alienação no laço social, as formas compartilhadas de almejar a

eliminação completa e absoluta da falta.

Apesar de a alienação estrutural independer da objetividade histórica, ela permite as

formas de alienação no laço social. A matriz da alienação estrutural do sujeito possibilita o

surgimento de todas as formas de alienação que se apresentam nas sociedades. Sempre há

maneiras da subjetividade de uma época tentar lidar com a falta constituinte do sujeito,
98

com o resto que surge com a entrada do sujeito no simbólico e na cultura. (PACHECO

FILHO, 2009)

Mesmo que o Outro seja barrado e não dê conta de significar todo o sujeito, há a

tentativa de sustentar a fantasia de que existe um Outro absoluto e sem falhas. O sujeito

acredita num Outro não castrado e, em decorrência da ideia de totalidade do Outro, tenta

resgatar-se da falta com base na identificação ao ideal que vem do Outro [I(A)]. Essa

disposição estrutural, que se apresenta em todos os períodos históricos e em qualquer

sociedade humana, acaba por ser preenchida por conteúdos específicos de uma

determinada forma de socialização. “Os sujeitos sempre manterão uma inclinação para

construir realidades compartilhadas que visem à eliminação completa e absoluta da

‘falta’.” (PACHECO FILHO, 2010, p. 3). Independentemente de como se configura a

sociedade, os sujeitos elaboram um saber coletivo que lhes remete a um único Outro

absoluto e lhes assegura a ilusão do compartilhamento de uma mesma fantasia44.

(PACHECO FILHO, 2009).

O compartilhamento de uma fantasia no laço social, da mesma forma que a fantasia

particular do sujeito, já discutida no capítulo anterior, é um modo de idealizar um Outro

não faltante e defender-se contra o real. É uma forma de desmentir o vazio radical do

sujeito.

Nesse momento podemos voltar a falar sobre o supereu. Entendemos que tanto a

fantasia quanto o supereu sustentam a possibilidade de um gozo sem falhas. Ambos trazem

a ideia de uma possível restauração da falta. Isso ocorre em toda configuração social. A

44
Zizek (1996/2003) fala sobre a noção de fantasia ideológica. Redefine o conceito de ideologia, que na
perspectiva de Marx é entendida como uma “consciência falsa” que oculta a essência das relações sociais.
Para Zizek, a ideologia é um constructo simbólico que mascara, não uma essência social oculta, mas o vazio
ao redor do qual se estrutura o campo social. A fantasia ideológica é o suporte que dá coerência à realidade,
é uma construção fantasiosa que dá sustentação às relações sociais e mascara o insuportável núcleo do real
impossível de ser simbolizado. Não temos a pretensão de nos estendermos nas teorizações de Zizek sobre
“fantasia ideológica”. Como já salientamos anteriormente, não temos o objetivo de abordar o conceito de
ideologia. Para maiores esclarecimentos sobre o assunto sugerimos as seguintes produções do autor: “Um
mapa da ideologia” (1996) e “Bem vindo ao deserto do real” (2003).
99

entrada no simbólico insere o sujeito numa fantasia na qual ele pode idealizar um Outro

não faltante e tentar restaurar a falta. Diante dessa disposição estrutural, o supereu sempre

delata a falta do sujeito, traz o imperativo de gozo pleno, e impele o sujeito a tentar

resgatar-se da falta com base na obediência e convicção ao ideal que vem do Outro [I(A)].

Pensando nos modos de socialização que caracterizavam a fase clássica do

capitalismo45, por exemplo, podemos entender que o ideal do Outro estava no poupar e no

adiamento do gozo. Em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Weber

(1904/2004) explica que a concepção puritana de vocação profissional e a exigência de

uma conduta de vida ascética influenciaram o estilo de vida e forma de socialização no

capitalismo de produção. Diferentemente do que encontramos na sociedade atual,

caracterizada pelo consumo, o capitalismo de produção estava alicerçado numa ética

protestante do trabalho, ética que se baseava no acúmulo do capital e no afastamento de

qualquer prazer.

(...) a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional,
passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu [com sua parte]
para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos
pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje
determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que
nasceram dentro dessa engrenagem. (WEBER, 1904/2004, p. 165)

Weber (1904/2004) aponta que o gozo da riqueza por meio do ócio e do prazer

carnal era reprovado e que a ideia era trabalhar e acumular capital para posteriormente

poder viver sem preocupações. O gozo instintivo da vida era inimigo da ascese racional e o

ideal era adiar qualquer prazer.

Perder tempo com sociabilidade, com ‘conversa mole, com luxo, mesmo com o
sono além do necessário à saúde - seis, no máximo, oito horas - é absolutamente
condenável em termos morais. (WEBER, 1904/2004:143)

45
As características da fase clássica do capitalismo são descritas por Marx em “O capital”. Destacamos que a
produção de mercadorias, o fetichismo da mercadoria, a acumulação de capital, o trabalhador reduzido à
força de trabalho, conflitos de classe, e o valor excedente são qualificados por Marx (1967/1975) como
marcas centrais do sistema capitalista de produção. Entretanto, não termos o objetivo de adentrar na teoria de
Marx, visto que o presente estudo não tem como proposta um estudo sociológico. Sugerimos para os
interessados a leitura de “O Capital” – Marx.
100

De acordo com Bauman (2008), a segurança a longo prazo era o principal propósito

e o maior valor da vida na sociedade de produção. Os bens materiais valorizados e

adquiridos eram os pesados, resistentes e duradouros. A satisfação residia na promessa de

segurança a longo prazo e não no desfrute e consumo imediato. A utilização dos bens de

consumo precisava ser adiada quase indefinidamente. A satisfação era adiada em nome de

benefícios futuros imprecisos.

Diante dessas características da sociedade de produção, entendemos que o ideal do

Outro dessa configuração social se caracterizava pelo resguardar-se de prazeres e

acumular. O ideal era economizar e adiar o gozo.

(...) o Outro absoluto e sem falhas do puritano protestante, assegurava-lhe a


certeza do querer e a convicção no agir: trabalhar duro para glorificar a Deus,
resguardando-se de prazeres fúteis e do uso irracional dos bens de consumo.
(PACHECO FILHO, 2009, p. 149)

Perante um Outro absoluto capaz de adiar prazeres fúteis, o imperativo supereuoico

Goza! configurava-se como: Goze daqui a pouco! Poupe para gozar depois! O supereu

delatava a falta do sujeito e os mandatos imperativos que impunham a obediência e a

convicção ao ideal do Outro se sustentavam na ideia de que o gozo pleno poderia ser

alcançado posteriormente, mesmo que somente para aqueles que reprimissem seus desejos

de satisfação imediata.

O adiamento do prazer colocava uma barra que impedia o acesso ao objeto perdido

antes de qualquer tentativa de resgatá-lo e a culpa aparecia em qualquer tentativa de

satisfação com os objetos disponíveis na realidade. Todavia, por mais que a pessoa se

esforçasse para evitar e adiar prazeres fúteis a culpa sempre prevalecia.

É preciso salientar que adiar a satisfação, economizar e se sentir culpado também

são formas de gozo. São maneiras de gozar ao se oferecer de forma sacrifical ao Outro e
101

sustentar sua (falsa) consistência46. De acordo com Braunstein (2007), ao redor da culpa

tece-se o gozo de oferecer-se de forma sacrificial ao gozo do Outro. Como já comentamos

no capítulo anterior, o sujeito tenta sustentar a qualquer custo o gozo do Outro. Ele quer

manter a crença na consistência do Outro, pois, se tomar o Outro como barrado, o sujeito

se apodera de sua própria divisão. Nas palavras de Pacheco Filho (2009): “O Outro não

existe, mas, mesmo assim, o sujeito deve sustentar sua pseudo-existência: mesmo que seja

às custas da sua insatisfação ou impotência.” (p. 146)

Pacheco Filho (2009) explica que a alienação no Outro, que é originária e

constitutiva do sujeito, leva o sujeito, que apresenta a esperança de servir a uma instância

absoluta e sem falhas, a se oferecer como instrumento do Outro. O sujeito se apoia na

fantasia de que existe um Outro consistente para sustentar o ideal de que o gozo absoluto e

ilimitado é possível.

Como já afirmamos, essa disposição estrutural independe do momento histórico em

que o sujeito47 vive. Deste modo, nossos apontamentos sobre a sociedade de produção,

apesar de não aprofundados48, mostram que, seja na fase clássica do capitalismo, seja em

qualquer configuração social, sempre há a impossibilidade de acesso ao gozo pleno e o

supereu evidenciando a falta do sujeito, trazendo o imperativo de gozo, e apontando o ideal

do Outro como aquilo que indica a possibilidade de restaurar a falta.

Com base nessa disposição estrutural do sujeito, como, então, pensar o supereu em

uma sociedade que, em vez da acumulação e de repressão de qualquer satisfação com os

objetos da realidade, elege o consumo como ideal? O que podemos falar sobre o supereu

no contingente histórico atual que elege o consumo como ideal que todos devem seguir?

46
Utilizamos a expressão “(falsa) consistência do Outro” para deixar claro que conforme a teoria lacaniana a
consistência do Outro é sempre falsa.
47
Salientamos, assim como já referimos na introdução, que o presente trabalho trata de teorizações sobre o
sujeito de estrutura neurótica.
48
Apesar de reconhecermos a importância da relação entre supereu e sociedade de produção, não nos
estendemos nessa articulação, visto que este não é objetivo do trabalho.
102

Como já descrevemos na introdução, com a intensificação da capacidade de

produzir e entregar mercadorias para o consumo, o sistema capitalista passou a depender

do consumo para sua sustentação. Assim, o consumo tornou-se não só autorizado, mas

incentivado em todas as dimensões da sociedade.

A acumulação pela acumulação proveniente das regras da moral protestante deixou

de ser o ideal social e a sociedade passou a estimular o prazer no consumo. O consumo

saiu da condição de proibido e se tornou, não só um direito, mas uma obrigação. Na

sociedade caracterizada pelo consumo, todos precisam ser consumidores e a participação

ativa nos mercados de consumo é a principal virtude que se espera dos cidadãos. Há um

imperativo social de consumo e as pessoas que não correspondem a tal imperativo social

sentem-se culpadas, inadequadas, deficientes e excluídas. (BAUMAN, 2008)

Essa sociedade trabalha a dinâmica satisfação-insatisfação por meio do excesso de

objetos oferecidos para o consumo. Apesar de o fracasso na tentativa de satisfação com os

objetos ser recorrente, propaga-se a ideia de que a satisfação plena de todos os desejos

humanos é possível no “aqui – agora” e de forma imediata pela via do consumo. Se a

mercadoria consumida em determinado momento não é o objeto que possibilita a

satisfação plena, a próxima a ser consumida o será. (BAUMAN, 2008)

Retomando a concepção de Askofaré (2009) de que o Outro é invariável em sua

estrutura simbólica, mas que sofre mutações conforme as características de cada época,

compreendemos que na contemporaneidade o Outro é influenciado pelo ideal de consumo

que passou a vigorar com a evolução do sistema capitalista. Entendemos que, na

atualidade, o simbólico é formatado pelos conteúdos imaginários da sociedade

caracterizada pelo incentivo ao consumo e que o significante consumo é um significante-

mestre característico da contemporaneidade. Como vimos no capítulo anterior, Lacan

(1964/1998) afirma que o campo do Outro determina a função do traço unário, do


103

significante mestre, que aliena o sujeito na identificação primária e inaugura o ideal de eu.

Se o Outro é influenciado pelo ideal de consumo, o significante mestre e,

consequentemente, os modos de alienação no Outro também sofrem influência do ideal de

consumo que vem da sociedade.

A esse respeito, Pacheco Filho (2009) explica que há um adicional de alienação

implicado no capitalismo avançado. Na sociedade atual, o consumo como ideal do Outro

conduz a um tipo de alienação que oferece ao sujeito do desejo, caracterizado por sua

divisão e falta-a-ser, a ideia de uma possível plenitude e completude. Defende-se que

“todo-gozo” é possível pela via do consumo e a sociedade tem como orientação o gozo.

O capitalismo atual traz, sobretudo com a propaganda, a ideia de que, pelo

consumo, é possível alcançar a totalização do gozo. Conforme Ramos (2009), a

propaganda instrumentaliza o gozo de modo a iludir os sujeitos de que é possível alcançar

o gozo pleno a partir de maneiras de gozar inscritas na cultura. Essa ilusão oculta a perda

de gozo que é destino de todos que entram no laço social e se constituem como sujeitos do

desejo. Os sujeitos, reduzidos a consumidores, acreditam que o gozo pleno seja possível e

que não há gozo que não se possa encontrar pela via do laço social.

A sociedade de consumo, se podemos chamá-la assim, sustenta-se na enunciação


de que todas as inscrições de gozo são possíveis e, se o gozo particular de um
sujeito ainda não está disponível, basta que ele aguarde, pois é certo que a
ciência está cuidando de inventá-lo ou de descobri-lo. (RAMOS, 2009, p.53)

De acordo com Ramos (2007), a propaganda atua como uma montagem perversa

que confere ao laço social um atributo da perversão49. Ao divulgar saberes sobre o gozo, a

propaganda propaga a crença no gozo pleno e na saturação da falta. O laço social

caracterizado pelo incentivo ao consumo nega a castração, o limite ao gozo que é

49
Isso não significa que no capitalismo avançado todos sejam estruturalmente perversos. Tomando como
base os ensinamentos de Askofaré (2006), é possível entender que no ensino de Lacan perversão não quer
dizer somente estrutura clínica. Falar sobre uma concepção mais histórica e cultural da perversão (montagem
perversa) não é o mesmo que afirmar que temos na contemporaneidade a preponderância de sujeitos com
estrutura perversa.
104

estabelecido com a entrada na linguagem. É um laço social que se funda na crença em um

“gozo-todo”.

Ramos (2007) explica que as formulações discursivas presentes em comerciais

expostos nas mídias propagam formulações discursivas que disseminam um suposto saber

do consumidor sobre o gozo: “ ‘Tang: mãe sempre sabe’ ‘Sundown: deixa o sol do seu

jeito’, ‘Recreio: a diversão joga do seu lado’. Por trás do imperativo ‘Compre!’perpassa a

mensagem ‘você sabe o que quer’. ”(p. 101).

Conforme Ramos (2007), por sustentar a ideia de que “todo-gozo” é possível, o

saber sobre o gozo que a propaganda divulga tem maior valor para a sustentação da

dinâmica da sociedade atual do que os produtos comercializados. Para o autor, a eficiência

da propaganda está em sustentar um suposto saber sobre o gozo e em indicar, mesmo que

falaciosamente, caminhos para o gozo pleno.

(...) em nossos dias, vemos proliferar a produção de saberes de gozo, dos livros
de auto-ajuda às dicas de conquista dadas pelas revistas femininas, dos
comerciais de cerveja à divulgação de substâncias para ter o corpo perfeito, da
música gospel ao estimulante e ao antidepressivo, tudo sustenta a promessa de
felicidade pelo prazer para quem “sabe o que quer”. (RAMOS, 2007, p. 103).

Antes de progredirmos com nossa discussão, entretanto, é importante ressaltar que

a propaganda não apresenta apenas um caminho para o gozo no consumo. Com o

surgimento da produção por seguimentos do mercado50 a partir dos anos 70, as mídias

passaram a divulgar diferentes direções e caminhos, inclusive contraditórios, para o gozo

no consumo. Essa estratégia é uma forma do sistema capitalista, que não dá conta da

especificidade e variação do desejo do sujeito, sustentar, mesmo que de forma enganosa,

visto que a única opção é consumir, a sensação de liberdade de escolha e a ilusão de que as

50
A produção por seguimentos de mercado, característica do padrão toyotista de produção é uma forma de
produção muito vinculada à demanda das pessoas e visa atender às exigências mais individualizadas do
mercado consumidor. É uma forma de produção diferente da produção em série e de massa do
taylorismo/fordismo que caracterizou o capitalismo até os anos 70. Ao contrário da homogeneidade fordista,
o padrão toyotista de produção é uma forma de produção heterogênea. Para maiores esclarecimentos sobre o
tema sugerimos o livro “Os sentidos do trabalho” de Ricardo Antunes, 2009.
105

demandas mais singulares estão sendo atendidas. Assim, sustenta-se a ilusão de que todas

as inscrições de gozo são possíveis e aumenta-se cada vez mais o consumo das

mercadorias produzidas.

Nesse momento é possível dar mais um passo em nossa discussão e pensar como a

instância psíquica supereu atua nessa dinâmica. A nosso ver, o capitalismo atual parece

tirar proveito da estrutura do sujeito, sobretudo do supereu que sempre denuncia a falta do

sujeito e opera mandatos de busca pelo gozo pleno. Na contemporaneidade o sujeito é

cobrado a gozar tanto em função de sua estrutura, pelo supereu, quanto em função dos

ideais da sociedade, que o reduz a consumidor e o impele a tentar gozar pela via do

consumo de mercadorias.

Entendemos que supereu tem grande importância na aderência ao consumo. Não

basta que a propaganda sustente a ilusão de que todo-gozo é possível e produza saberes

sobre o gozo sem a atuação da instância supereuoica denunciando a falta do sujeito e

produzindo mandatos de busca pelo gozo pleno. Sem a atuação da instância supereuoica a

propaganda não teria sua força imperativa. Ramos (2008a) enfatiza que a propaganda

precisa garantir um olhar supereuoico para atuar de forma imperativa sobre o consumidor.

Faz-se necessário a presença do olhar supereuoico para que o ideal de consumo atue como

um o imperativo e para que tal imperatividade apareça na relação entre o consumidor e a

mercadoria que é divulgada pela propaganda.

É equivocado pensar num “poder sedutor” inerente às imagens, ou numa vontade


patológica de consumo, ou vontade de consumo como um “componente interno”
do sujeito; o olhar imperativo que, como terceiro elemento, dialeticamente se
constitui entre particular e totalidade é que parece funcionar como “ponto de
reconciliação” entre eles e faz “ideal” o objeto e “incontroláveis” as vontades do
sujeito. (RAMOS, 2008a, p. 15)

Como vimos no capítulo anterior, Lacan relaciona o supereu com o objeto a em

suas modalidades de objeto olhar e voz. De acordo com a teoria lacaniana, os objetos olhar

e voz são excluídos da simbolização efetuada pela cultura e retornam do registro real
106

trazendo o imperativo do supereu. O supereu como objeto a (olhar e voz) retorna do

registro real, evidencia falta do sujeito, provoca o sentimento de culpa, e impõe ao sujeito a

busca pelo gozo pleno. Em outras palavras, o supereu real é um olhar que vigia,

demarcando a falta do sujeito, e uma voz que critica, cobrando a busca pelo alcance do

ideal do Outro consistente. A esse respeito, Quinet (2004) acrescenta:

O supereu é o lugar desse paradoxo da lei: é uma lei que não tem objeto, como
nos ensina Kant, mas não deixa de tê-lo, como nos mostrou Lacan. Esse objeto é
o objeto a, que se apresenta ao sujeito como o olhar de vigilância da lei, e como a
voz da instância crítica. A lei como máxima pura (S¹) e a lei como vigilância e
crítica (a) são as duas faces do que o sujeito sofre com a instância moral. Sua
conjunção (S¹/a) faz do Outro o Um que o vigia, julga, e pune. O objeto presente
na lei se exprime, na clínica, pelo delírio de observação e, na civilização, pela
estrutura “panóptica” da sociedade escópica em que o olhar do Outro faz a lei.
(QUINET, 2004, p. 285)

De acordo com Quinet (2004), que aborda com mais precisão o objeto escópico, o

objeto olhar é a modalidade do supereu que observa o sujeito, exigindo-lhe sua retidão ao

ideal do Outro. Para Quinet (2004), a sociedade atual se organiza em torno do mal-estar

provocado pelo olhar. O olhar supereuoico situa o consumidor como mancha e faz com

que o mesmo se veja como insuficiente perante o ideal do Outro. A mancha é responsável

pelo sentimento de culpa e “a culpa é o reflexo do olhar do supereu sempre comparando o

sujeito com o ideal.” (Quinet, 2004, p. 289)

Na sociedade que coloca o consumo no lugar do Outro não barrado, o olhar

supereuoico situa o consumidor no lugar de sujeito barrado, mostra a falta do sujeito e

impõe a busca pelo gozo pleno. O ideal social de consumo aparece como um Outro não

barrado e o supereu se apoia nesse ideal do Outro consistente para impor ao sujeito barrado

a busca pelo gozo pleno.

Perante essa configuração, fica para o sujeito o dever de ocupar o papel de

consumidor e se imbricar na busca pelo gozo. Para atingir o ideal do Outro, todos precisam

ser consumidores e os que não se empenham nesse objetivo se sentem culpados. Nesse

ponto, concordamos com a colocação de Sinatra (1998) de que o imperativo que


107

impulsiona o mercado capitalista atual é: todos consumidores! É como se não houvesse

possibilidade de satisfação e gozo fora do consumo. A promessa de que “todo gozo” é

possível, que se ampara na suposição de saber sobre o gozo, difundida pela propaganda,

faz brilhar no horizonte a possibilidade de corresponder ao imperativo do supereu.

Diante da imposição supereuoica Goza! que, associada ao ideal social de consumo,

diz: Goze sendo consumidor!, a culpa surge quando o sujeito se depara com a

impossibilidade estrutural de gozar plenamente. Diferentemente do proposto por Safatle

(2005) em seu texto “Depois da culpabilidade”, entendemos que o sentimento de culpa

esteja presente na contemporaneidade. Nesse ponto, concordamos com Teixeira, A. (2008):

(...) o fundamento da culpabilidade não está ligado ao fato de gozar, mas à falta
de gozo, ou seja, ao fato de que o gozo está sempre perdido, parcial, limitado e
insuficiente. Imaginar que o que torna o sujeito culpável é aceder aos gozos não
corresponde à tese de Lacan, que sustenta que ser culpável advém da
insuficiência dos gozos, ou seja, da impossibilidade própria da estrutura. Assim,
o gozo que falta advém da estrutura do significante, que em última instância, é
responsável pela divisão do sujeito, e é aí que está o verdadeiro fator causal da
culpabilidade. (TEIXEIRA, A. 2008, p.140-141)

Compreendemos que na sociedade caracterizada pelo incentivo ao consumo a culpa

aparece diante da impossibilidade de corresponder ao imperativo de gozo que vem do

supereu, imperativo que se ampara no ideal de gozo no consumo. Concordamos com

Ramos (2008a) quando este afirma que a culpa diante da imposição ditada pelo Outro da

sociedade caracterizada pelo consumo se manifesta na insatisfação, frustração e decepção

do consumidor.

Conforme Ramos (2008a), na sociedade que tem o consumo como ideal do Outro a

culpa aparece com o desencontro com o objeto perdido. Assim como na sociedade

capitalista de produção, há na contemporaneidade a impossibilidade de acesso ao objeto

perdido e a recusa em abrir mão de tentar resgatá-lo. A diferença é que, enquanto na

sociedade de produção o encontro com o objeto a era adiado, na sociedade atual, o

encontro com o objeto perdido é obrigatório e autorizado no aqui e agora. O problema é


108

que diferentes objetos da realidade vão sendo procurados, descartados e substituídos, e o

objeto perdido não é encontrado, sempre escapa e escorrega.

Apesar do desencontro com o objeto a, o imperativo “Goza!” permanece. A

impossibilidade de gozo pleno que é estrutural do sujeito é vista como incapacidade da

pessoa, que se sente culpada, e o imperativo do supereu se mantém como algo

inquestionável.

Assim como já salientamos ao falar sobre o supereu na sociedade caracterizada pela

produção, julgamos importante destacar que a presença da culpa não significa ausência de

gozo. Da mesma forma que na sociedade de produção, há na atualidade o gozo de se

oferecer de forma sacrificial ao gozo do Outro. Tomar o Outro como barrado e

inconsistente faz com que o sujeito se aproprie tanto de sua divisão quanto de sua

impossibilidade de gozo pleno, portanto, há sempre a tentativa de sustentar o Outro como

consistente.

Mesmo sem a intenção de abordar as formulações lacanianas sobre o gozo que

ultrapassam o ano de 196451, é importante destacar uma formulação de Zizek (2010) que

contribui para a compreensão do gozo em se oferecer de forma sacrificial ao gozo do

Outro, que na contemporaneidade aparece no movimento repetitivo de consumo. Zizek

(2010) esclarece que, para a psicanálise, gozo não é apenas o gozo pleno, idealizado no

encontro com o objeto perdido. Gozo não é sinônimo de prazer. Com o ensinamento de

Zizek (2010) é possível entender que, enquanto o prazer está no nível do equilíbrio e da

satisfação, o gozo da repetição do comportamento de consumo é traumático e excessivo. O

gozo que está no excesso e na repetição do comportamento de consumo traz mais

51
Como já pontuamos em nota apresentada no item 2.3, sabemos que em estudos posteriores ao seminário
11, Lacan conceitua o objeto a como mais de gozar e que esse conceito que permite falar que com a entrada
na ordem significante há um jogo de excesso. Entretanto, apesar de compreendemos a importância do
conceito de objeto a mais de gozar para pensar como o capitalismo avançado trabalha com o excesso, para
respeitar a delimitação do presente estudo e não ultrapassar as produções lacanianas do ano de 1964, tal
definição de objeto a não será abordada. Reservamos a definição de objeto a como mais de gozar para
estudos posteriores.
109

sofrimento que prazer e distancia o consumidor da condição de sujeito do desejo. Mesmo

que o objeto encontrado não seja o objeto a causa do desejo, o resto dessa operação de

busca pela plenitude faz reluzir a possibilidade de encontrá-lo. A falta que sobra da

operação de consumo conduz à busca por novos objetos.

A busca incessante pelas mercadorias divulgadas pela propaganda, característica da

sociedade que incentiva o consumo, em vez de trazer o gozo pleno, reduz o desejo à

compulsão à repetição. Essa repetição que ocorre no consumo compulsivo é diferente do

movimento pulsional que produz satisfação no movimento de contornar o objeto perdido.

Enquanto a pulsão trabalha com o desejo contando com a impossibilidade de restaurar a

falta, o movimento repetitivo do consumo trabalha com o gozo e busca encontrar o objeto

perdido.

Por ter uma dinâmica que trabalha com a ideia de que “todo-gozo” é possível, o

capitalismo atual não trabalha com a lógica do sujeito do desejo. Atuando pela lógica de

que “todo-gozo” é possível, a sociedade caracterizada pelo consumo usa a falta estrutural

do sujeito e o imperativo supereuoico Goza! para manipular os sujeitos, que são reduzidos

a consumidores.

Ao difundir a ideia de que todo gozo é possível pelo consumo, a sociedade

caracterizada pelo incentivo ao consumo nega o sujeito enquanto sujeito dividido, faltante,

barrado. O capitalismo atual esmaga o sujeito tal qual a psicanálise o define, ou seja, anula

o sujeito do desejo. Em oposição à falta estrutural do sujeito que o constitui como

desejante, há na sociedade capitalista contemporânea a fantasia de completude pelo

consumo. O consumo como ideal do Outro prega a crença na possibilidade do

encobrimento da falta, que é a condição necessária para a constituição do sujeito do desejo.

Essas considerações permitem afirmar que a lógica da sociedade atual é contrária à

ética da psicanálise, que é a ética do sujeito do desejo. A psicanálise propõe a ética da


110

falta-a-ser, do desejo, e não a ética do gozo. Enquanto a ética da psicanálise é caminhar

para a não consistência do Outro e para o significante do Outro barrado, a sociedade

caracterizada pelo incentivo ao consumo se alicerça no ideal do Outro não barrado.

Afirmações apresentadas por Silveira (2005) reforçam essa posição. Segundo o autor, a

ética da psicanálise não se fundamenta no eu, na unidade imaginária, mas no sujeito divido

e desejante. É uma ética que traz à tona o registro real e elimina as acomodações que

surgem quando se consideram apenas os registros simbólico e imaginário.

Para sair dessa lógica de busca pelo gozo pleno que se evidencia na sociedade

capitalista contemporânea Quinet (2004) nos explica que é preciso saber que o Outro não é

Um e torná-lo inconsistente. Sabemos que a apropriação da inconsistência do Outro não

suprime totalmente o supereu em suas faces de olhar e voz, visto que, como defendemos

do decorrer de toda nossa pesquisa, o supereu é estrutural do sujeito da linguagem.

Entretanto, com a apropriação por parte do sujeito de sua falta constituinte e com a

assunção de sua impossibilidade do gozo pleno, o imperativo supereuoico Goza! perde sua

potência suprema. Ao ver o Outro como barrado, o sujeito não toma o imperativo de gozo

como pressão e não precisa se ver como impotente por não alcançar o gozo pleno.

Nesse sentido, atravessar a fantasia de que é possível gozar pela via do consumo

pode ser uma forma de o sujeito considerar a falta que faz parte de sua constituição e

esvaziar a potência do imperativo de gozo no consumo. Assim, o sujeito pode trilhar o

caminho, não do gozo, mas do desejo. Sobre tal questão, concordamos com Fingermann

(2005):

É preciso apostar que pôr em obra o pior que está no princípio do humano
possibilita barrar as grandes manobras do discurso que nega esse princípio de
saída para melhor garantir o seu império. (FINGERMANN, 2005, p. 91)

Ao mesmo tempo que o fato do sujeito ser barrado e se constituir alienando-se no

Outro faz surgir a instância psíquica supereu, responsável pelo imperativo de gozo, é
111

justamente o fato de o sujeito ser faltante que lhe fornece certa liberdade perante a

imposição de gozo, que na atualidade vem tanto da estrutura do supereu como do ideal da

sociedade.

Há a possibilidade de o sujeito atravessar a fantasia, conceber que o objeto perdido

não pode ser alcançado e contentar-se com satisfações provenientes do circuito pulsional,

que contorna o objeto sem buscar capturá-lo. Para operar conforme o circuito pulsional,

que permite a renovação constante do desejo, cabe ao sujeito conceber o Outro como

inconsistente e se responsabilizar pela sua condição de faltante e desejante. Sabemos que

essa saída pode ser encontrada pela análise em intensão. Não temos a pretensão de

apresentar uma proposta de manejo da sociedade. Entretanto, mesmo sem oferecer uma

estratégia para a erradicação do mal-estar que se apresenta na sociedade que reduz o sujeito

à condição de consumidor, o presente trabalho permite afirmar que a teoria psicanalítica,

sobretudo a teoria sobre o supereu, pode trazer elucidações para o entendimento da

subjetividade contemporânea e dos modos de dominação que se apresentam na sociedade

atual.

Concebemos nossa pesquisa como uma tentativa de demarcar a importância do uso

do conceito psicanalítico supereu para a análise da interlocução entre a estrutura do sujeito

e o contingente histórico atual. É necessário que a relação entre supereu e sociedade

continue sendo pensada, discutida e analisada. Finalizamos esse trabalho acadêmico

compreendendo que não encerramos toda a complexidade do tema. Muitas questões

referentes à articulação entre supereu e sociedade permanecem em aberto, e estudos que

contemplem teorizações lacanianas que não fizeram parte de nosso escopo teórico, como a

teoria dos discursos e as elaborações sobre o objeto a mais-de-gozar, podem trazer

elucidações sobre o mote em questão. Esperamos que esse trabalho mobilize a realização

de muitos estudos, que, como esse, jamais abarcarão toda a verdade.


112

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