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PUC-SP
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2011
ERRATA
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_________________________
_________________________
A Rafael
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, por me acolher como integrante do Núcleo de
Pesquisa em Psicanálise e Sociedade e por orientar, com dedicação e interesse, a realização
deste trabalho.
Ao Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado e ao Prof. Dr. Luis Guilherme Coelho Mola, pelas
férteis e valiosas contribuições no Exame de Qualificação e por gentilmente aceitarem
participar de minha Banda de Defesa.
Ao Prof. Dr. Conrado Ramos, referência clínica e teórica no meu percurso na psicanálise.
À Profa. Dra. Ana Laura Prates Pacheco, por me orientar e me apoiar nos primeiros
momentos de investigação sobre o tema dessa dissertação.
Aos meus pais, por sempre me apoiarem, acreditarem em minhas escolhas e demonstrarem
orgulho de mim.
Aos meus amigos e familiares, por torcerem por mim e compreenderem meus momentos
de ausência e distanciamento.
BAIMA, Ana Paula da Silva. O supereu como estrutural do sujeito e o consumo como o
ideal do Outro na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2011.
BAIMA, Ana Paula da Silva. The superego as structural in the subject and the
consumption as the Other ideal in the contemporary society. Master’s Dissertation.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC - 2011.
The general purpose of this research is to contribute to the comprehension of how the
subject is involved in the contemporary society. In order to achieve this objective, we limit
ourselves to discussing how the operation of the superego can be of great help in
understanding the capitalism characterized by the incessant consumption of merchandise.
First, we adopt the ideas that superego is structural in the subject and that, no matter what
social configurations, it points out the lack and orders the seek for total jouissance. In order
to show these both notions are accurate and understand the theories related to the concept
in details, we conduct a careful study based on the main formulations of Freud and Lacan.
Despite the fact that this study doesn’t take into account what Lacan says after 1964, it’s
possible to prove that superego is related to the entrance into the culture and that it
maintains its structure of jouissance imperative in every society. From this point on, we
discuss the superego course of action in contemporary society articulating it with the Other
ideal. While superego presents an injunction without a specific content and related to the
Real, the Other, although invariable in its symbolic structure, is influenced by historical
aspects. The Other ideal, influenced by capitalism that promotes consumption, offers the
subject of the desire, characterized by the lack, the fantasy that the total jouissance is
possible through buying what is sold by the market. From our point of view, present
capitalism takes advantage of the structure of the superego, which always points out the
lack of the subject and orders the search for jouissance. Superego is important to the
adherence to consumption because without its injunctions the Other ideal wouldn’t have
any imperative strength. The presence of the superego, as a look that observes and a voice
that criticizes, is essential to the consumption as the Other ideal. Without it, it would not
act as an imperative. This research shows that the theory of superego has to be considered
when we intend to understand how the subject is implicated in contemporary capitalism.
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO
apresentadas por Sigmund Freud e por Jacques Lacan são relevantes não só para o
entendimento de fatores relacionados à clínica, mas também para o estudo de questões que
se estabelecem em sociedade.
Na sociedade atual, por exemplo, para entender o ajustamento entre interesses do capital e
sujeito que corroboram para a alienação no laço social capitalista e para a manutenção do
“status quo” ou, ainda, se a própria estruturação do sujeito não traz a possibilidade de
Com base nesse pressuposto, nossa proposta é pensar como um aspecto que
realizar tal tarefa, elegemos como objeto de estudo dessa pesquisa o conceito psicanalítico
10
alguns aspectos que julgamos fundamentais para a articulação com o conceito psicanalítico
supereu.
Berman (2001) descreve com clareza a existência de duas fases do capitalismo: a primeira,
produção tornou-se capaz de produzir bens de consumo em alta escala e passou a utilizar
cada vez maior, mercadorias para o consumo. O problema é que, com essa elevada
humanitário. O capitalista percebe que o consumo não precisa retardar a acumulação e que
1
No decorrer do presente texto as traduções dos termos alemães “das Es”, “das Ich”, “das Überich” não serão
realizadas com a adoção dos termos latinos id (das Es), ego (das Ich) e superego (das Überich), que foram
utilizados sobretudo na tradução da obra freudiana da língua alemã para a inglesa. Seguiremos fiéis às
traduções dos seminários de Lacan, os quais vêm apresentando a proposta de traduzir as três instâncias
psíquicas propostas por Freud com os termos isso (das Es), eu (das Ich) e supereu (das Überich). Desta
forma, somente utilizaremos as nomenclaturas supereu e supereuoico e não superego e superegoico.
11
ele pode até fazê-la avançar ainda mais furiosamente. Desta forma, o consumo se
transforma em um negócio.
parte dos empregos está envolvida com processos de ampliação do consumo, como a
publicidade e o marketing. Junto a isso, as mídias e a indústria cultural podem ser pensadas
uma liberdade plena. Só é possível escolher dentro das opções oferecidas pelo mercado e
controlamos o que está disponível para escolha, todas as possibilidades, mesmo que
próprias das pessoas, mas que são determinadas por forças externas sobre as quais não se
12
pelo consumo se caracteriza pelo totalitarismo das escolhas, onde, apesar de a propaganda
transmitir a ilusão de que escolhas são feitas pelos consumidores, todas as escolhas são
escolhas a favor do capital. Antunes (2009) explica que mesmo com a emergência da crise
século XX e que se baseava na produção em massa, a resposta capitalista para enfrentar tal
crise fez aumentar ainda mais o consumo das mercadorias que são determinadas pelo
passaram a ser mais variadas e heterogêneas. Entretanto, mesmo que esse processo faça
suas singularidades.
consumir.
2
Os elementos constitutivos da crise taylorista/fordista de produção são de grande complexidade e envolvem
questões econômicas, políticas e ideológicas que transcendem o presente estudo.
13
principal virtude que se espera dos cidadãos. O consumo não configura apenas um direito,
mas um dever humano que não conhece exceção. Acredita-se que corresponder ao
classe social, quem não responder como consumidor irá se sentir inadequado, deficiente e
excluído. As pessoas que reagem de forma inadequada aos apelos dos mercados de bens de
consumidores.
mas ao surgimento contínuo de novos desejos. Novas mercadorias exigem novos desejos.
consumo de mercadorias.
Conforme Bauman (2008), a sociedade capitalista atual alega que a satisfação plena
de todos os desejos humanos é possível pela via do consumo. Porém, há uma contradição
economia voltada para o consumo se extinguiria. Por essa razão, em concordância com
administrada.
14
126). Antunes (2009) explica que a necessidade de ampliar cada vez mais a produção e o
Para Bauman (2008), no entanto, o que permite que a constante frustração com os
objetos de consumo não seja um impedimento para o fluxo dessa economia de insatisfação
buscar por uma nova mercadoria. Se a mercadoria que trará a satisfação plena ainda não é
mercadorias como responsável pela renovação da busca por satisfação presente nos
pela teoria psicanalítica lacaniana está implicado nesse processo que se apresenta na
consumo depende de as necessidades e desejos dos consumidores não terem fim, e exige
que os mesmos se impulsionem numa busca incessante por um gozo pleno. Essa demanda
da sociedade é atendida pelas pessoas, que se empenham na busca pelo gozo. Concebemos
15
que a teoria psicanalítica, sobretudo a teoria sobre o supereu, pode auxiliar a entender essa
questão. A nosso ver, a insaciabilidade do desejo e a busca incessante por um gozo pleno
não é uma condição específica das pessoas que vivem em uma sociedade caracterizada
pelo consumo. Entendemos essas características de insatisfação e busca pelo gozo, que se
mostrar de que maneira algo que remete à estrutura do sujeito, como o supereu, pode
Para delimitar melhor essa nossa posição teórica e nossa questão, entretanto,
convém dar um passo para trás e falar sobre a noção de sujeito que sustenta nossa
argumentação. Mesmo sem realizar uma abordagem exaustiva sobre o assunto, visto que o
conceito de sujeito não configura o foco dessa pesquisa, apresentaremos nossa concepção
do estudo realizado por Cabas (2009), é possível afirmar que os atos falhos, chistes,
repetições, lapsos, sonhos – que foram trabalhados por Freud como manifestações do
psicanalítica3. Resumidamente, é possível afirmar que o sujeito teorizado por Lacan é uma
3
O sujeito em Lacan não é um conceito de entendimento fácil e não temos o objetivo de esmiuçar toda a
elaboração que esse autor realiza sobre esse conceito. Nossa pretensão é apenas situar nosso posicionamento
teórico em relação ao supereu. No decorrer do capítulo 2, ao abordarmos o conceito de supereu em Lacan,
retomamos o conceito de sujeito e falamos sobre a sua constituição.
16
função. É uma função que se define por uma inconsistência radical e que não se resume ao
ofereça sustentação, o simbólico não é capaz de significar todo o sujeito e há sempre algo
que escapa a esse enlace. Ao mesmo tempo que o significante representa o sujeito para
outro significante, ele não o significa, pois o sujeito é uma função que carece de
ordem significante é que ele está igualmente determinado pelo real, por esse resto da
operação simbólica que denota o objeto perdido4. Esse objeto, resto da operação
gozo.
É possível entender, com o levantamento realizado por Cabas (2009), que o sujeito
da psicanálise tem uma dupla causação. Uma causação simbólica, onde o sujeito aparece
causação real, em que o sujeito aparece como resto da operação significante. O sujeito é o
com base em Cabas (2009) é que a causa do sujeito é congruente com o furo real. O sujeito
brota de um nada e é pelo fato de ter como base esse furo, esse nada de substância, que o
sujeito neurótico5 busca evitar se apropriar de sua inconsistência com o auxílio de ideais,
Com base nessas afirmações sobre o sujeito teorizado por Lacan, entendemos a
busca incessante por um gozo pleno e a impossibilidade de atingir tal gozo, que se
4
O conceito de objeto perdido é abordado com mais ênfase no item 2.3.
5
Esclarecemos que apesar de Lacan ter teorizado também a estrutura perversa e a estrutura psicótica, esse
trabalho limita-se a abordar apenas a estrutura neurótica.
17
caracterizada pelo consumo, mas como uma característica inerente à estrutura do sujeito, e
por esse motivo trans-histórica. Concordamos com Cabas (2009) quando afirma que o
contemporaneidade.
no consumo?
sujeito, que surge com a constituição do sujeito barrado e que, independentemente das
supereu é estrutural do sujeito e, dessa forma, não depende das variáveis apresentadas na
objetividade histórica para existir, por que vislumbrar uma articulação entre ele e as
contribuições que Askofaré (2009) nos oferece a respeito da distinção entre sujeito e
psicanalíticos, deva ser utilizada para falar da relação que o sujeito estabelece com a
objetividade histórica. Para defender tal proposta, Askofaré (2009) cita o próprio Lacan
6
A definição de supereu como imperativo de gozo será trabalhada no decorrer do capítulo 2.
18
Askofaré (2009) evoca pontos que possibilitam uma perspectiva de articulação entre a
Esse Outro, do qual o inconsciente é o discurso, não se reduz aos pais; é o Outro
do discurso universal que determina o inconsciente como transindividual. Ora, o
Outro, entendido nesse sentido, ou seja, o simbólico, se ele é invariável em sua
estrutura – aquela da linguagem –, é também submetido às mudanças, às
mutações, às rupturas, às subversões. Quem pode contestar as mudanças
introduzidas no Outro pelo advento do monoteísmo, a invenção da escrita, a
emergência da ciência moderna e, mais recentemente, das biotecnologias e da
informática?! (ASKOFARÉ, 2009, p.169)
do sujeito, como efeito do significante, ser sempre a mesma e não sofrer modificações a
de cada época.
sofridas pelo Outro. O conceito de Outro permite, mesmo sem ignorar a universalidade da
estrutura do sujeito, pensar na relação que este estabelece com a objetividade histórica.
estrutura simbólica, mas que sofre mutações conforme as características de cada época,
capitalismo de consumo. É com base nesse pressuposto teórico que julgamos relevante
pensar o supereu, instância estrutural do sujeito, na sociedade que tem o consumo como
tem atuado como ideal do Outro, e nos questionamos como podemos pensar a articulação
entre o supereu, instância estrutural do sujeito que atua vigiando e impelindo o sujeito a
buscar o gozo pleno, e o contingente histórico atual que elege o consumo como o ideal que
7
Falamos sobre o Outro no capítulo 3.
19
todos devem seguir. Como se dá a articulação entre supereu, como estrutural do sujeito, e o
históricas e que a definição de supereu como imperativo de gozo fala de uma característica
estrutural do sujeito. Entretanto, é preciso destacar que sustentar nossa posição não é uma
tarefa tão fácil. O conceito supereu é vastamente utilizado para o estudo das interlocuções
salientamos, compreendemos que o supereu, por ser estrutural do sujeito, não sofre
existiu, continua existindo, e que de forma nenhuma há uma nova estrutura do supereu na
paterna talvez seja resultado das lacunas e reformulações encontradas na teoria sobre esse
desse prévio trabalho, foi feita uma breve revisão desse termo psicanalítico tanto na obra
de Sigmund Freud quanto na obra de Jacques Lacan. Apesar de o caráter breve da pesquisa
demanda e de não termos explorado as aberturas que o mesmo possibilita para o estudo da
sociedade, foi possível constatar que a teoria sobre o supereu envolve enigmas, mistérios,
lacunas e reformulações. Tanto em Freud como em Lacan, a teoria sobre o supereu, assim
como outros conceitos psicanalíticos, não se apresenta de forma clara e linear, o que torna
mal-entendidos.
permitir interpretações não convergentes com os postulados desses teóricos. Por esse
motivo, não vemos como defender que o supereu é estrutural do sujeito e realizar uma
articulação com a sociedade contemporânea, com base nesse pressuposto, sem partir de um
conceito.
8
Curso iniciado em 2006 e finalizado em 2008. Realizado na Coordenadoria Geral de Especialização,
Aperfeiçoamento e Extensão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE - PUC/SP).
Monografia realizada sob orientação da Profa. Dra. Ana Laura Prates Pacheco.
21
sobre esse conceito, permitirá que nossa discussão apresente um rigor teórico condizente
Salientamos que nossa pesquisa não abrange todo o ensino lacaniano. Mesmo
lacanianas até o ano de 1964), buscamos acompanhar o percurso que Freud e Lacan
em Freud e deixamos claro como o conceito foi passando por constantes impasses e
como o marco freudiano da apresentação dessa instância psíquica. Também falamos sobre
questão do pai, devido à sua importância para pensar o supereu. Finalizamos o capítulo
culpa. Trabalhamos nesse capítulo noções como ideal de eu, identificação, pai e culpa.
sobre o supereu durante seus diferentes momentos teóricos. Apresentamos como esse autor
tratava da noção de supereu nos anos em que seu vínculo com Durkheim era mais intenso e
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descrevemos como tais elaborações são superadas no seu período mais estruturalista. Além
disso, sem ultrapassar o ano de 1964, tentamos situar os avanços ocasionados à noção de
supereu no momento em que Lacan foca suas elaborações sobre o real, época em que
situamos a relação entre supereu e sociedade e buscamos pensar o supereu como instância
estrutural do sujeito, que atua vigiando e impondo a busca pelo gozo pleno, no contingente
histórico atual, que elege o consumo como o ideal que todos devem seguir. Como
autores atuais. Fazemos uso das contribuições oferecidas por autores como Pacheco Filho,
Ramos e Quinet.
psicanálise e tomamos a mesma como a teoria principal dessa pesquisa. Nesse ponto,
sobre essa instância psíquica. Esse estudo é relevante, pois a teoria psicanalítica sobre o
supereu pode auxiliar a entender como o sujeito está implicado no processo de dominação
esse conceito ter sido utilizado pela primeira vez na segunda tópica freudiana, resgatar
algumas bases clínicas e teóricas que alicerçaram o surgimento dessa instância psíquica e
pontuar alguns impasses encontrados nesse processo, permitirá não apenas refletir sobre a
evolução desse conceito na obra freudiana, mas também pensar as bases que nutriram
texto “O eu e o isso”, desde o começo da psicanálise é proposta uma clínica que mostra
“Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907/1980), Freud observa que nas práticas
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compulsivas o sistema simbólico perde sua eficácia, há algo que transcende o desejo,
obtura a lógica. Nesse texto, Freud inaugura o eixo conceitual que permitirá falar
proibições se comporta como se estivesse sob uma consciência de culpa sobre a qual nada
sabe. Por trazer a ideia de uma consciência de culpa inconsciente, o texto acima citado
possibilita pensar uma das manifestações que futuramente foi atribuída ao supereu.
foram claramente relacionados à lei que proíbe o desejo incestuoso e o parricida. Nesse
texto, através do mito do assassinato do pai primitivo, Freud mostra que o fundamento da
lei é a lei da proibição do incesto. As mais antigas e importantes proibições ligadas aos
tabus são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações
pai morto volta mais forte do que foi em vida. A incorporação canibalística do pai pelos
filhos proporciona uma identificação por incorporação, e o que o pai proibia com sua
instaura o arrependimento e a culpa nos irmãos. O sistema totêmico é um pacto com o pai
arrependimento e a culpa são comuns nos filhos e sustentam os dois tabus fundamentais do
totemismo: não matar o pai e não manter relações sexuais com os membros do sexo oposto
9
Na horda primitiva, o pai primordial todo-poderoso que exercia total poder sobre o clã, possuindo todas as
fêmeas e matando ou expulsando os outros machos, é assassinado e devorado pelos filhos. A partir de então
esses filhos fazem um pacto no qual nenhum membro do clã exerceria esse poder supremo novamente.
10
Usaremos a nomenclatura instância supereuoica para nos referirmos ao supereu. Como já salientado na
introdução, não usaremos termos como superego e superegoico.
26
pertencentes ao mesmo clã11. 4. O pai terrível não é aniquilado por completo no pacto entre
os irmãos, sobra um resto, um espectro do pai morto que ameaça retornar. Há um resíduo
real do pai primordial que não se torna símbolo, e esse resto do pai gera o temor por seu
retorno. Assim, há uma ambivalência em relação ao pai. O pai tanto protege e preserva a
vida como ataca e leva à morte. Esse resto real do pai morto age como um comando.
Podemos pensar que todos esses fundamentos apresentados por Freud em “Totem e Tabu”
determinante dos laços sociais e do Tabu como responsável pela moralidade. Segundo tal
premissa, o tabu atuaria como um imperativo insensato12 que deve ser seguido rigidamente
para não implicar castigos. Para Freud (1913/1980), a consciência moral do tabu é a forma
mais antiga da consciência moral. Esta se manifestaria como uma voz interior
A questão de uma voz interior que aponta uma divisão do eu contra si mesmo é
trabalhada por Freud no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980) 13. Nesse
texto Freud traz o conceito de ideal de eu e formula uma base que posteriormente lhe
de uma imagem ideal que surge como substituto ao narcisismo perdido da infância, no qual
o sujeito era o próprio ideal. A formação desse ideal de eu é ocasionada pelo deslocamento
da libido para um ideal vindo de fora, que surge da influência crítica dos pais e educadores
sociedade.
11
Essas imposições são consideradas raízes do complexo de Édipo, que se ancora nas proibições do incesto e
do parricídio.
12
Nesse texto Freud faz referência ao imperativo categórico kantiano.
13
Apesar de esse texto trazer formulações teóricas relevantes como as sobre o narcisismo primário,
secundário, repressão, etc; focaremos a formulação sobre ideal de eu, e para maiores esclarecimentos
sugerimos a leitura do texto.
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aponta que a formação do ideal de eu permite a atuação de um sensor crítico que compara
o eu e o ideal, sensor este, responsável pela autocrítica e pela censura. Mesmo que nesse
momento teórico o supereu ainda não estivesse definido, a relação entre o ideal de eu e a
texto14. Tal nota afirma que foi a combinação do ideal de eu com um agente psíquico que
supereu.
A atuação desse censor crítico, que atua censurando o eu e aparece, muitas vezes,
contra si mesmo apresentada no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914). Essa
cisão do sujeito contra si mesmo, que permitirá a formulação do conceito supereu, também
contrapõe à outra, julga-a criticamente, toma-a por objeto. Isso sugere a existência de uma
instância crítica que faz parte do eu, mas atua de forma separada do eu, contra o próprio eu.
psíquico mostra a atuação do supereu, mesmo que este ainda não tenha sido nomeado. O
supereu é possível visualizar certa confusão entre a instância que critica o eu e o ideal de
eu. Na obra freudiana, sobretudo em textos anteriores a 1923, como “Psicologia das massas
14
Transcrição literal da nota de rodapé apresentada no texto Sobre o narcisismo: uma introdução: “Foi da
combinação entre esse agente e o ideal do ego que Freud posteriormente deduziu o supereu. Cf. Capítulo XI
de Group Psychology (1921c) e o Capítulo II de The Ego and the Id (1923b)”
15
No texto Luto e melancolia Freud não restringe a atuação da instância crítica à melancolia, apontando a
presença desta nos diferentes tipos clínicos. Tanto na melancolia, como na histeria e na neurose obsessiva a
hostilidade da instância volta-se contra o eu.
28
e a análise do eu” (1921/1980), o ideal de eu é descrito como uma instância que compara o
eu e o critica a partir de seu modelo. Mesmo que o ideal de eu não atue com uma crítica
cruel e desmedida como o supereu, isso ilustra como em momentos da obra freudiana a
diferença entre ideal de eu e a instância responsável pela crítica não fica tão clara.
de eu. Neste texto, Freud (1921/1980) retoma que as melancolias mostram o eu divido em
duas partes, uma vociferando contra a outra. Freud (1921/1980) afirma que a parte que se
comporta cruelmente contra a outra pode ser chamada de ideal de eu, e tem como funções
conceito supereu a diferença entre a instância responsável pela crítica e o ideal de eu foi
não foi sem efeitos. No texto “O eu e o isso”, de 1923, onde ocorre a formulação da
instância supereuoica, Freud não faz nenhuma diferenciação entre supereu e ideal de eu,
ambos os conceitos são apresentados como sinônimos. Além disso, no decorrer de sua obra
Voltaremos a tratar dessa questão nos itens posteriores deste trabalho. Por hora,
indícios que sugerem uma confusão entre ele e o ideal de eu ilustra o quanto desde sua
Até 1923, Freud situava a organização do aparelho psíquico conforme sua primeira
poderosos, mesmo não estando conscientes, é o que permite pensar em inconsciente. Esse
impedidas de tornarem-se conscientes por uma força que se oporia a elas. De forma
simplificada, podemos afirmar que nessa primeira tópica o inconsciente seria o recalcado,
Entretanto, com o seguimento de seus estudos, Freud passa a perceber que essa
para os fins práticos da clínica. Ele apresenta, então, sua segunda tópica, na qual expõe
uma nova organização dos processos mentais e estabelece a existência de três instâncias:
excluir certos conteúdos da mente. Porém, Freud depara-se com algo desse eu que é
mesmo não sendo consciente. Essa descoberta traz consequências importantes para a
que o recalcado seja inconsciente. Nem tudo que é inconsciente é recalcado, uma parte do
eu é inconsciente.
30
Freud delimita então que o eu tem início no sistema perceptivo, abrange o pré-
consciente que está relacionado aos resíduos mnêmicos e tem uma parte que é
inconsciente. Para explicar a existência de uma parte do eu que é inconsciente, Freud traz à
seria a parte do isso modificada pela influência do mundo externo, pelo intermédio do
sistema perceptivo.
No entanto, essa formulação teórica não é tão simples assim. Freud prossegue
Para explicar como o supereu se forma, Freud retoma a ideia, já tratada neste
ideal de eu17 é efeito das primeiras identificações da infância. Ele aponta que por trás do
ideal de eu está a identificação com o pai. Afirma que a fase sexual denominada complexo
de Édipo culmina na identificação do filho com o pai e, desse processo, surge o supereu.
essa relação, convém falarmos um pouco mais sobre esse complexo, que atravessa toda
16
É importante ressaltar o quanto, nesse texto de 1923, Freud fala do supereu e ideal de eu de forma
indiscriminada e não há ainda a precisa diferenciação que é apontada em textos freudianos posteriores. Para
acompanhar o pensamento freudiano, optamos, nesse momento, por seguir com a concepção de supereu e
ideal de eu como sendo a mesma coisa.
17
No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) o termo supereu ainda não havia sido formulado
por Freud.
31
infantil, a primazia fálica e o fato de a mãe ser o primeiro objeto de amor da criança,
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1980), texto em que a criança é descrita
como perversa-polimorfa, e a primazia fálica se caracteriza pela ideia infantil de que todos,
É com base nesses pressupostos que Freud desenvolve sua teoria sobre o Édipo,
presente em seu texto “A dissolução do complexo de Édipo” (1924/1980). Nesse texto ele
aponta que na fase fálica18 o menino desenvolve uma atividade masturbatória intensa e isso
acarreta em ameaças de castração por parte dos adultos. Essas ameaças, que primeiramente
não geram efeitos na criança e são desconsideradas, quando num momento posterior são
do que Freud designa por complexo de castração. Segundo Faria (2003), a primazia fálica,
por supor a presença de pênis em todos os seres, é uma forma de articulação da questão
falta do pênis na mulher. “A criança passa a ter que lidar com a evidência, a partir do
complexo de castração, de que há falta, o que para ela passa a indicar que há presença, mas
é algo que pode faltar, e essa possibilidade exige um posicionamento que consiste na saída
impasse: sua satisfação no campo do complexo de Édipo pode custar-lhe o pênis. Diante
disso, ela deve decidir se prefere manter seu investimento narcísico no pênis ou a catexia
18
A fase fálica consiste no período em que ocorre uma concentração das catexias libidinais da criança em seu
órgão sexual e no qual ela acredita na primazia fálica.
32
libidinal em seus objetos parentais. Nesse conflito, normalmente triunfa o desejo de manter
com intenção de preservar seu pênis, abandona a atividade masturbatória e afasta-se de sua
identificar-se ao pai. Desse processo, decorre a formação do supereu. De acordo com Freud
A partir desse texto de 1924, Freud vincula organização fálica, complexo de Édipo,
que o processo até aqui descrito se refere, como foi expressamente dito, somente a crianças
a mãe também é o primeiro objeto de amor e há a primazia fálica inicial, na qual a menina
concebe o clitóris como um pênis que irá crescer. O clitóris na menina inicialmente
comporta-se exatamente como um pênis, porém quando ela efetua uma comparação com
uma criança do sexo masculino, a menina percebe que seu “pênis” é “pequeno” e sente isso
como uma injustiça. Por algum período ela mantém a ideia de que quando ficar mais velha
33
seu “pênis” crescerá. A criança do sexo feminino não entende sua falta de pênis como uma
característica de sua sexualidade, acredita que em alguma época anterior possuía um órgão
igualmente grande, mas que o perdeu por castração. Por essa razão a menina aceita a
de sua ocorrência.
Entretanto, Freud (1924/1980) aponta que a renúncia ao pênis não é tolerada pela
menina sem alguma tentativa de compensação. Ela faz uma equação simbólica do pênis
para o bebê, ou seja, seu complexo de Édipo culmina em um desejo de receber do pai um
bebê como presente. A menina entra no complexo de Édipo ao perceber-se castrada e esse
processo é gradativamente abandonado, visto que esse desejo jamais se realiza. Porém,
incompleta e vaga.
de amor e o clitóris a zona erógena. Já na segunda fase, o pai passa a ser o objeto de amor e
Conforme Faria (2003), a questão anatômica não pode ser ignorada ao pensar as
diferenças entre o complexo de Édipo feminino e masculino. Como a menina não tem
pênis, ela não pode temer sua perda, assim, o que caracteriza o complexo de castração na
mulher é a constatação de que ela foi feita sem o objeto que ela tanto valoriza e o
A decepção de não ter um pênis leva ao abandono da mãe como objeto de amor, e
essa passa a ser odiada por ter feito a filha desprovida de pênis. Esse afastamento em
relação à mãe é o que permite que a menina passe a tomar o pai como objeto de amor. É
34
nesse momento que a criança do sexo feminino passa a esperar receber um bebê de seu pai
como objeto simbólico substituto do pênis que não tem. (FARIA, 2003)
Citando Freud, Faria (2003) acrescenta que a saída normal do Édipo feminino deixa
quase sem solução o surgimento do supereu feminino: “A castração, não tendo sido uma
ameaça nem uma imposição que gera temor, teria uma eficácia frágil na formação do
2003, p. 42)
dissolução do Édipo feminino, propõe que o supereu feminino não é tão independente de
suas origens emocionais como ocorre nos homens. Por isso, as mulheres demonstrariam
menor senso de justiça do que os homens, tendo seus julgamentos influenciados por
pode ignorar a importância que Freud atribui a esse processo na formação do supereu.
Além disso, salientamos que os impasses decorrentes desse complexo são simplesmente
complexo edípico, Freud não restringe o supereu como possuindo uma única origem.
supereu: além de ele ser herdeiro do complexo de Édipo, ele também é um representante
do isso.
Freud (1923/1980) afirma claramente que o supereu expressa os mais poderosos impulsos
35
ao eu.
Partindo dessas formulações, é possível concluir que, em seu texto de 1923, Freud
procura um lugar para o supereu no aparelho psíquico e tenta traçar um parentesco dessa
instância psíquica com o isso e com o complexo de Édipo. O que fica em aberto nesse
texto, entretanto, é a relação do supereu com a cultura, o que Freud traz mais enfaticamente
com a formação da cultura. Defende a tese de que a renúncia pulsional exigida pela cultura
conceito de pulsão, visto que pulsão configura uma elaboração freudiana que se tornou um
dos conceitos básicos da psicanálise e que sofre reformulações na obra de Freud. No texto
“Pulsão e seus destinos” (1915/1980), Freud descreve pulsão como sendo um conceito
Freud (1915/1980) descreve a pulsão como possuindo uma pressão (Drang), uma
finalidade (Ziel), uma fonte (Quelle) e um objeto (Objekt). A pressão é seu fator motor, a
36
quantidade de força que ela apresenta; sua finalidade é a satisfação, que é obtida
num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental; e o objeto da
pulsão é a coisa pela qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade, é o que é mais variável
em uma pulsão e, originalmente, não está ligado a ela, podendo ser inúmeras vezes
modificado.
autopreservação e as pulsões sexuais. O autor coloca essas pulsões como funcionando sob
(1920), Freud traz reformulações sobre sua teoria pulsional e ultrapassa a divisão entre
a pulsão de vida e a pulsão de morte. Afirma que, ao lado da pulsão que busca preservar a
vida e formar unidades cada vez maiores, há outra pulsão que busca dissolver essas
unidades e conduzir o organismo de volta a seu estado primevo e inorgânico. Esse texto de
1920 possibilitou que os fenômenos do humano pudessem ser explicados pela ação dessas
duas pulsões. Surge a ideia de que uma parte da pulsão de morte é direcionada ao mundo
restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição.
É a partir desse texto de 1920 que Freud passa a falar sobre a renúncia pulsional,
Freud (1930/1980) adota o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui no
de vida, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados numa única unidade, a
37
civilização.
Com esse retorno ao “Além do princípio de prazer” (1920/1980), Freud postula que
entre pulsão de vida e pulsão de morte. De acordo com Freud (1930/1980), a civilização é
construída sobre uma renúncia à pulsão. Essa questão já aparecia no texto “Totem e tabu”
entre os filhos, os quais se privam da realização do desejo sexual incestuoso. Para Freud, a
proibição de uma escolha de objeto incestuosa constitui a mutilação mais drástica que a
vida erótica do homem já experimentou. Por essa razão, a tendência por parte da
civilização em restringir suas pulsões não pode ser vista como desvinculada da necessidade
liberdade e à agressão. Mas surgem as questões: quais os meios que a civilização utiliza
inofensiva ou inócua?
de onde proveio. Ou seja, dirigida para o eu. É a partir desse ponto que podemos retomar
nossa discussão sobre o supereu, pois, de acordo com Freud (1930/1980), a agressividade
uma parte do eu, que se coloca contra o resto do eu, como supereu. Conforme Gerez-
dominar o perigoso desejo de agressão presente no humano. Para isso, o supereu põe em
ação contra o eu a mesma agressividade que o eu gostaria de ter satisfeito sobre outros
Em relação ao sentimento de culpa, nosso autor situa duas origens para tal
renúncia. Basta a existência do desejo para que surja a punição, pois o desejo não pode ser
sentimento de culpa. Desta forma, a renúncia exigida pela civilização conduz a uma
autoridade interna. Refere que primeiramente ocorre uma renúncia pulsional por medo de
autoridade interna, que é o supereu, e a renúncia pulsional passa a ocorrer por medo dessa
instância. Após a formação do supereu, as más intenções passam a equivaler a más ações,
ocasionando o sentimento de culpa pelo medo do supereu. A partir desse ponto, cada
que a renúncia instintiva é a fonte do supereu estaria relacionada com a concepção exposta
no texto “O eu e o isso” de 1923, de acordo com a qual essa instância psíquica seria
Apesar de não termos como proposta responder questões deixadas em aberto por
Freud, nem termos a pretensão de excluir nenhuma colocação que pareça contraditória na
obra freudiana, para acompanharmos o percurso que nosso autor realiza ao falar a respeito
impede de ter suas primeiras satisfações. Porém, ela é obrigada a renunciar à satisfação
dessa agressividade e encontra saída para essa situação difícil na identificação. Freud
retorno dos relacionamentos reais existentes entre o eu e o objeto externo. Talvez essa
colocação ilustre o quanto os textos de 1923 e de 1930 são mais complementares do que
excludentes.
Freud em 1923 – como à renúncia pulsional exigida pela entrada na cultura – postulada por
tal complexidade não para por aí. Outra colocação intrigante nos salta aos olhos no texto de
autor deixa claro que a severidade do supereu que a criança desenvolve de maneira
nenhuma corresponde à severidade do tratamento com que ela própria se defrontou. Freud
40
pai da realidade.
contudo, diante dessa intrigante colocação freudiana, que pode pôr em xeque
outros atributos da imago paterna, indagamo-nos: como Freud retrata a relação entre
supereu e pai?
descreve que o ódio e a ternura para com o pai se combinam para produzir a identificação
ao pai. Ressalta que isso se dá pelo medo da castração, explicando que, devido a este
temor, os impulsos agressivos dirigidos ao pai são reprimidos e formam o supereu. Freud
(1927/1980) aponta que a identificação com o pai é o que forma o supereu, sendo este um
herdeiro da influência parental. De acordo com essa descrição, se o pai for duro, violento e
das obras freudianas mais tardias. Nesse texto, Freud também aponta o supereu como
resultado de uma identificação, e que, por isso, essa instância psíquica passa a ocupar o
lugar que os pais ocupavam no aparelho psíquico, observando o eu, dando ordens,
ameaçando e punindo.
Porém, nesse seu esboço de 1938-40, o próprio Freud prossegue pontuando que o
supereu frequentemente demonstra uma severidade para a qual nenhum modelo foi
41
fornecido pelos pais reais. Essa última colocação corrobora a 31ª Conferência de Freud: “A
dissecção da personalidade psíquica” (1932b/1980), na qual ele afirma que o supereu não
essa instância existente no eu como o supereu. Freud (1932b/1980) permanece com a ideia
forma como anteriormente os pais faziam com a criança. Entretanto, nesse texto, Freud
(1932b/1980) traz um novo questionamento. Ele observa que essa concepção de supereu
como herança parental mostra o supereu como fruto apenas da rigidez e severidade dos
pais, ignorando a versão carinhosa e cuidadosa dos mesmos. Além disso, o autor
acrescenta que sua experiência clínica mostra como o supereu pode adquirir características
de severidade, ainda que a criança tenha sido educada de forma branda e afetuosa.
que a base do processo identificatório é a ação de assemelhar um eu a outro eu, sendo que
o primeiro eu assimila o outro dentro de si e passa a se comportar como este. Freud afirma
ela renuncia às intensas catexias objetais depositadas nos pais e, para recompensar essa
19
Para maiores esclarecimentos sobre a questão da identificação, sugerimos a leitura do texto freudiano
“Psicologia das massas e análise do eu” (1921), mais precisamente o item VII: Identificação.
42
perda, se identifica com os mesmos. De acordo com Freud, identificações desse tipo
acrescenta não estar satisfeito com esses comentários sobre identificação. Aponta que, em
oral e canibalística, anterior à escolha do objeto. Além disso, indica que são as
identificações com as imagos parentais mais primitivas que influenciam o supereu, sendo
que as identificações mais tardias atingem mais ao eu. Freud (1932b/1980) atesta a relação
tem como função buscar observar o eu e compará-lo ao ideal, há uma diferenciação clara
supereu ser construído segundo o supereu de seus pais e não à luz dos modelos dos
identificações mais primitivas do que às que ocorrem para a formação do ideal de eu.
muito mais que uma identificação. Para pensar a formação do supereu não se pode ignorar
a dupla herança, do isso e do complexo de Édipo. Além disso, quando Freud coloca que a
excessiva severidade do supereu não segue um modelo real, mas corresponde à força da
defesa utilizada contra a tentação do complexo de Édipo, Freud ilustra a ligação entre
pulsão e supereu.
Gerez-Ambertín (2003) que descreve o supereu como mais que uma identificação. Para a
autora, se o supereu fosse uma mera identificação edípica ao pai, o seu poder não seria tão
devastador, pois poderia ser domesticado pelo campo significante. De acordo com Gerez-
Ambertín (2003), quando Freud afirma que “se o pai for duro, violento e cruel, o supereu
assume dele esses atributos”, ele não alude à realidade cotidiana do pai, mas ao “resíduo do
Para finalizar este capítulo sobre o supereu em Freud buscaremos pensar como as
manifestações dessa instância psíquica são descritas pelo autor em questão. Tal tarefa será
válida para complementar a elaboração teórica sobre o supereu em Freud, realizada neste
primeiro capítulo.
culpa, visto que, como discutido no item 1.1 desse trabalho, esta foi um dos primeiros
deve ser levado em conta em muitíssimos casos, pois talvez ele seja a atitude do supereu
culpa consciente (ou sentimento de culpa) e como culpa inconsciente. A culpa consciente
44
aparece como uma percepção no eu de uma crítica que provém do supereu e se expressa
culpa, e esse tipo de registro da culpa pode ser observado com bastante frequência na
e incômoda, mas não encontra justificativa plausível perante o eu. Por esse motivo, ao
que esse tipo de culpa é encontrado. O histérico não se sente culpado, mas vítima, a culpa
não recai sobre o eu e a histeria caracteriza-se mais pela reivindicação e pela posição de
sacrifício perante os outros. Esse tipo de culpa se manifesta por formações do inconsciente,
Freud (1923/1980) também refere que a culpa inconsciente pode ser observada em
criminosos. Esclarece ser possível detectar a existência de uma culpa inconsciente que a
Outra manifestação dessa culpa inconsciente estaria no que Freud chama de reação
pacientes que não podem suportar elogios de melhora de seus sintomas e que reagem
seu restabelecimento e qualquer melhora é temida como um perigo. Desde esse texto de
1923, Freud percebe que nesses casos há a atuação de um fator “moral”, o sentimento de
45
sofrimento.
atribui a culpa consciente à neurose obsessiva e a inconsciente à histeria, não deve ser
superestimada. Afirma que é possível encontrar pacientes neuróticos obsessivos que não se
dão conta de seu sentimento de culpa e que apenas o sentem como um mal-estar que os
impele a praticar certas ações. Freud, partindo da hipótese de que os sintomas neuróticos
são, em sua essência, satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados,
acrescenta, inclusive, que talvez toda neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente
de culpa.
intensificação desta. Além disso, é possível compreender a culpa inconsciente por sua
relação com o parricídio apresentado por Freud em “Totem e tabu” (1913/1980). A culpa
primordial.
(1913/1980), Freud descreve que a culpa foi adquirida quando da morte do pai pelos
irmãos reunidos em bando. Quando os irmãos mataram o pai da horda primitiva, um ato de
agressão não foi suprimido, mas executado. Mas ao realizarem tal ato os filhos sentiram
remorso, visto que seus sentimentos para com o pai eram ambivalentes, eles o odiavam,
mas também o amavam. Assim, depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o
proporem um pacto de não matarem uns aos outros, esses filhos criam o supereu. Por
culpa passam a atuar quando os homens se defrontam com a tarefa de viver juntos.
47
1981) é marcada pela proposta de realizar uma releitura da obra freudiana a partir do
seus seminários, é importante abordar o laço que Lacan estabeleceu com as investigações
sociológicas no período que antecede seu “retorno a Freud”. Esse levantamento é relevante
para o presente trabalho, pois as considerações apresentadas por Lacan nesse período
Lacan nem sempre foi estruturalista. Apesar de desde seu primeiro seminário, “Os
escritos técnicos de Freud” (1953-54/2009), ficar evidente uma ligação entre a sua teoria e
precede os seminários, permite observar que nesse período Lacan se baseava na teoria
esclarecer a quais embasamentos sociológicos desse autor Lacan torna-se adepto em 1938,
quais as consequências dessa base sociológica para a teoria lacaniana do supereu e como se
teoria da contração familiar. Essa teoria fala da passagem da família paternalista para a
20
A proposta de reler a obra freudiana a partir da teoria estruturalista marca os primeiros seminários de
Lacan. Posteriormente, quando Lacan passa a abordar com mais precisão o registro real, há um afastamento
em relação ao estruturalismo e uma aproximação à lógica e à topologia.
48
Dou esse nome para a família que se constituiu nas sociedades originadas nas
sociedades germânicas, ou seja, nos povos mais civilizados da Europa moderna
[...]. A família conjugal resulta de uma contração da família paternal. Esta incluía
o pai, a mãe, e todas as gerações originadas por eles, salvo as filhas e seus
descendentes. A família conjugal já não inclui mais que o marido, a mulher e os
filhos menores e solteiros [...] É evidente que [o filho casado] segue ligado a seus
pais, tem o dever de alimentá-los em caso de enfermidade e vice-versa, e tem
direito a uma parte determinada da herança familiar [...]. Essas são as únicas
obrigações jurídicas que sobrevivem [...]. Não existe nada que lembre o estado
de dependência perpétua que alicerçava a família paternal e a família patriarcal.
Estamos, portanto, na presença de um novo tipo familiar. Visto que seus únicos
pertencentes são o marido e a mulher, e todos os filhos abandonam cedo ou tarde
a casa, proponho chamá-la família conjugal. (DURKHEIM apud
ZAFIROPOULOS, 2002, p. 61 – tradução nossa) 21
Essa é a definição de família conjugal que Lacan expõe repetidas vezes em seu
texto de 1938. Lacan (1938/2008) se apoia em Durkheim para afirmar que na família
moderna a figura paterna já não é um chefe soberano, com autoridade moral e religiosa; a
sanguíneo, é o matrimônio que passa a ser o operador simbólico produtor do laço familiar.
O crucial no uso que Lacan (1938/2008) faz dessa teoria de Durkheim é que ele a
Segundo essa visão, variações no funcionamento das famílias, determinadas por mudanças
21
Essa citação foi retirada por Zafiropoulos (2002) do texto “La famile conjugale”, escrito por Durkheim e
publicado em 1892 no “Textes”, paginas 35-49. Apesar de apresentarmos no corpo do texto a tradução por
nós realizada, oferecemos nesse espaço o original em espanhol. Realizaremos tal processo todas as vezes que
colocarmos uma tradução nossa no texto: “Doy ese nombre a la familia tal como se constituyó en las
sociedades originadas en las sociedades germánicas, es decir, en los pueblos más civilizados de la Europa
moderna [...]. La familia conyugal resulta de una contracción de la familia paternal. Ésta incluía al padre, la
madre y todas las generaciones originadas en ellos, salvo las hijas y sus descendientes. La familia conyugal
ya no incluye más que el marido, la mujer y los hijos menores y solteros.[…] Es indudable que [el hijo
casado] sigue ligado a sus padres, tiene el deber de alimentarlos en caso de enfermedad y a la inversa, tiene
derecho a una parte determinada de la fortuna familiar […]. Ésas son las únicas obligaciones jurídicas que
sobreviven […]. No hay en ello nada que recuerde el estado de dependencia perpetua que estaba en el
fundamento de la familia paternal y la familia patriarcal. Estamos, por lo tanto, en presencia de un nuevo tipo
familiar. Visto que sus únicos elementos permanentes son el marido y la mujer y todos los hijos abandonan
tarde o temprano la casa, propongo llamarla familia conyugal.”
49
Édipo estável ou universal, mas dependente do valor atribuído à imago paterna tanto na
familiar.
modernidade não é sem efeitos. A crise da família paternalista constitui uma crise
Édipo proporciona uma idealização da família paternalista, que seria a única configuração
Seja como for, são as formas de neuroses dominantes no final do século que
revelaram que elas estavam intimamente dependentes das condições da família
[...]. Nossa experiência nos leva a designar sua determinação principal na
personalidade do pai, sempre carente de alguma forma, ausente, humilhada,
dividida e postiça. (LACAN, 1938/2008, p. 60)
Entretanto, concordamos com Zafiropoulos (2002) quando este afirma que o texto
50
muito distante das investigações posteriores de Lacan, que para dar conta da clínica e da
Por hora, não iremos nos ater à relação que Lacan estabelece com a linguagem, com
salientar nesse momento é que, em 1938, quando Lacan apoia suas teses no conceito de
família conjugal de Durkheim, nosso autor não pode ser intitulado freudiano. A
visão freudiana segundo a qual o complexo de Édipo é universal. Apesar de Freud ser
entre os elementos que Freud extrai da teoria de tal sociólogo e os conceitos eleitos por
que pode ser observado em “Totem e tabu” (1913/1980), Lacan (1938/2008) destaca da
primitivos não são variáveis dependentes das condições sociais da família. Somente o
assassinato do pai primevo, descrito por Freud em “Totem e tabu” (1913/1980), pode ser
considerado um ato coletivo e social que modifica o destino dos desejos da humanidade,
nunca esteve no centro da teoria freudiana, como ocorre na tese lacaniana de 1938. Desta
forma, fica claro que há um distanciamento teórico entre Freud e Lacan em 1938.
Enquanto para Freud o complexo de Édipo é universal, para Lacan (1938/2008), leitor de
supereu. Nesse texto, além de Lacan prosseguir com a ideia da variabilidade do complexo
manifestação depende das condições do complexo de Édipo. “O supereu, diremos, deve ser
Essa posição teórica que descreve o supereu como um operador cuja expressão
varia em função das condições da família, mais precisamente em função do poder atribuído
Lacan também não pode ser considerado freudiano, pois o supereu em Freud não é apenas
um herdeiro do complexo de Édipo nem uma mera identificação à imago paterna. Além
disso, esse distanciamento entre Freud e Lacan (1950/1998) não para por aí. Ainda em
relação ao supereu, é interessante destacar outra diferença teórica localizada na obra desses
autores. Enquanto para Freud o supereu é herdeiro do complexo de Édipo, para Lacan
(1950/1998) o supereu se adianta ao complexo edípico. Nesse sentido, este último afirma:
Mas, nossa experiência dos efeitos do supereu, assim como a observação direta
da criança à luz dessa experiência, revela-nos seu surgimento num estádio tão
precoce que ele parece ser contemporâneo ou mesmo anterior ao surgimento do
eu. (LACAN, 1950/1998, p. 138)
22
Nesse período (1950), Lacan cita Marcel Mauss, que segundo Zafiropoulos (2002) se interessava pela obra
“Sociologia e antropologia” de Lévi-Strauss.
23
Comunicação apresentada na XIII Conferência dos psicanalistas de língua francesa, em 1950, e exposta em
“Escritos” (1966/1998)
52
Para falar da formação do supereu nesse período tão primitivo, Lacan (1950/1998)
recorre tanto à sua teoria do estádio do espelho como à teoria de Melanie Klein.
estádio do espelho como formador da função do eu” (1949/1998), para depois pontuarmos
desenvolvimento uma unidade compatível ao eu. Para ele, há num primeiro momento uma
constituída na relação com o Outro, que pode ser considerado, nesse primeiro momento, a
pessoa que cuida e estimula o bebê, visto que este apresenta uma impotência motora e
depende da amamentação. Uma imagem corporal é oferecida à criança por esse Outro e,
tomando essa imagem como espelho, a criança realiza, por identificação, a assunção da
unidade de seu corpo, até então fragmentado. Assim, o bebê é capturado por uma imagem
aparelhos motores. De acordo com Lacan (1948/1998), a criança antecipa no plano mental
a conquista da unidade funcional de seu próprio corpo, ainda que este não tenha alcançado
processo que Lacan chama de estádio do espelho, o sujeito se identifica com a Gestalt
visual de seu próprio corpo. Essa Gestalt visual é uma unidade ideal e uma imago
edificante que surge mesmo que ainda haja uma grande descoordenação motora.
criança bate e infere que bateram nela, vê o outro cair e chora. Para Lacan, é nessa espécie
de encruzilhada estrutural, em que o humano se fixa numa imagem que o aliena, que se dá
a formação do eu.
introjetar uma imagem de si e formar seu eu, além de ser um mecanismo que funcionará
como a raiz das identificações secundárias, as quais permitem a entrada no laço social,
Acreditamos ser possível dizer que a leitura dos textos lacanianos de 1938, 1949
e 1950 nos permite reconhecer a ‘imagem raiz’ como uma formação originária
do supereu. (ZAFIROPOULOS, 2002, p.128)24
24
Tradução do texto original: “Si creímos posible decir que nuestra lectura de los textos de Lacan de
1938,1949 y 1950 nos permitía reconocer la imagen raíz como una formación originaria del superyó.”
54
também cita Melanie Klein para falar do surgimento do supereu em um estágio precoce,
de acordo com Lacan (1950/1998), a teoria da autora sobre a persistência imaginária dos
bons e dos maus objetos primordiais também permite conceber o supereu como uma
instância psicológica com uma significação genérica. Essa nova significação atribuída ao
une natureza e cultura. Enquanto Freud atribui ao complexo de Édipo a função de operador
que fundamenta todas as sociedades, Lacan (1950/1998) atribui ao supereu tal papel.
A tese de Lacan (1950/1998) parte da ideia de que não há sociedade sem lei. Nesse
(1913/1980) para ressaltar a Lei universal que surge do crime primordial. Quanto a isto, ele
afirma: “Não importa a que crítica de método esteja sujeito esse trabalho, o importante foi
55
que ele reconheceu que com a Lei e o Crime começava o homem” (LACAN, 1950/1998, p.
132).
pela psicanálise como responsável por crimes e delitos. Conforme Zafiropoulos (2002), o
supereu seria o herdeiro do ato parricida originário descrito por Freud (1913/1980) em
“Totem e tabu”, seria a instância psíquica que introduziria a culpa e a Lei na espécie
humana.
permanece fiel à teoria de Durkheim, visto que utiliza a teoria da contração familiar para
falar das condições sociais do edipismo, quando Lacan toma o supereu como um operador
estruturalismo. Essa tese é corroborada com o fato de nesse texto de 1950 Lacan se referir
que Lacan fala sobre o “Estádio do espelho”. Nesse texto, a importância do simbólico
também fica evidente quando Lacan defende que a identificação primária que permite a
condição necessária para que a criança se reconheça como pertencente à espécie humana. E
cultura.
ligação entre Lacan e Lévi-Strauss, é importante finalizar essa parte do trabalho pontuando
Durkheim.
Idade Média. Conforme Zafiropoulos (2002), investigações históricas também indicam que
Suas investigações mostram que desde o século XVI até o século XIX a família
nuclear está presente no conjunto do mundo rural e as famílias complexas, entre
elas a troncal (patriarcal), somente aparecem em algumas ocasiões.
(ZAFIROPOULOS, 2002, p. 152 – tradução nossa)25
declinação da imago paterna não pode ser historicamente comprovada. O valor do pai de
25
Tradução do texto original: “Sus investigaciones muestran que desde el siglo XVI hasta el siglo XIX la
familia nuclear está presente en el conjunto del mundo rural y que las familias complejas, entre ellas la
troncal, sólo se encuentran en contadas ocasiones.”
26
Tradução do texto original: “(…) la estructura de la familia depende de su posición geográfica, de los usos
y costumbres de la región, del régimen jurídico prevaleciente de regulación familiar y ante todo del
concerniente a la herencia, pero también del desarrollo económico regional, de la vitalidad demográfica, de la
posición del grupo familiar en la jerarquía social de la región, de los índices culturales de prestigio existentes,
de las estrategias matrimoniales llevadas a la práctica, etc.”
27
Tradução do texto original: “(…) en todo momento y lugar, la presencia de la forma conyugal de la familia
es ampliamente mayoritaria en la historia de los hombres.”
57
família. Além disso, esses levantamentos colocam em xeque a definição do supereu como
ligação que Lacan estabelece com a teoria estruturalista de Lévi-Strauss é coerente para a
psicanálise. Desta forma, pretendemos partir para esse momento estruturalista, chamado
“retorno a Freud”, que se inicia em 1953 e que mostra outro posicionamento sociológico
de Lacan, com a percepção de que é incoerente a apropriação de definições deste autor sem
considerar mudanças em suas bases teóricas. Isso se aplica ao supereu, nosso tema de
(...) não aconselhamos ninguém que pretenda ler Lacan a ignorar suas referências
antropológicas, se trate de Durkheim para o período de 1938-1950 ou dos
trabalhos de Lévi-Strauss, cuja influência sobre suas investigações que envolvem
Freud é imensa a partir de 1951. (ZAFIROPOULOS, 2006, p. 26 – tradução
nossa)28
marcado tanto pelo afastamento em relação à teoria sociológica de Durkheim como pelo
na teoria estruturalista de Lévi-Strauss uma forma de reler a teoria freudiana e avançar com
a teoria psicanalítica.
28
Tradução do texto original: “(…) no aconsejamos a nadie que pretenda leer a Lacan empantanarse en la
ignorancia de sus referencias antropológicas, se trate de Durkheim para el período 1938-1950 o de los
trabajos de Lévi-Strauss, cuya influencia sobre sus investigaciones cuando vuelve a Freud es inmensa a partir
de 1951.”
58
Coloca-se, assim, uma problemática a partir da qual Lacan poderá pouco a pouco
retomar a obra de Freud, deslocando-a. O “estádio do espelho” é o ponto fixo, o
ponto de Arquimedes, do qual Lacan precisava para se engajar num caminho que
consiste em descobrir tudo aquilo que a obra de Freud, à sua revelia, significa. A
partir daí torna-se possível sua “releitura”, o “retorno a Freud”. (OGILVIE,
1991, p. 104-105)
Desde o início de seu trajeto acadêmico, Lacan busca seguir com precisão o trajeto
estavam distanciando Lacan dos fundamentos de Freud. Além disso, de acordo com Lacan
psicanálise pendesse para um uso acrítico e para a adaptação do indivíduo ao meio social.
Diante desse cenário, com o auxílio da teoria estruturalista, Lacan consegue reler a
uma figura feroz que vigia e critica, esse período conceitual em que Lacan se nutre dos
trabalhos publicados por Lévi-Strauss sobre o estruturalismo tem como marca a teorização
sobre o estádio do espelho possam ser observados certos indícios do estruturalismo – visto
que em 1949 Lacan começa a ter contato com a teoria estruturalista –, é no discurso de
29
De acordo com Arcuri-Jank (2005), entendemos como pós-freudistas os teóricos que renovaram a teoria
freudiana e não seguiram fiéis às suas formulações.
30
O texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” configura o relatório do Congresso de
Roma, realizado em setembro de 1953.
31
Falamos sobre o estádio do espelho no item 2.1 desse trabalho.
59
Roma que Lacan (1953b/1998) liga-se mais precisamente aos trabalhos de Lévi-Strauss e
explicação lacaniana implica os três registros, nosso objetivo não é nos aprofundarmos na
tríade que sustenta a elaboração lacaniana durante três décadas. Nesse momento do
influência do estruturalismo sobre Lacan e levantar como o supereu pode ser pensado
nesse período.
está submetido às leis do simbólico, ou seja, o que define a posição do sujeito como
porque o símbolo o fez homem. É o simbólico que permite as alianças entre os homens, as
simbólico também.
Lacan (1953b/1998) defende que a descoberta freudiana está no campo das relações
32
Lacan atesta ter baseado essa colocação nos trabalhos de Maurice Leenhardt (1878-1954), mais
precisamente nos capítulos IX e X de “Do Kamo” (1947).
60
psicanálise ao fracasso. Diante dessa colocação, é interessante situar a teoria sobre o pai a
partir do laço de Lacan com o estruturalismo, pois ignorar a função simbólica do pai –
imago paterna.
Em 1953, Lacan rompe com a teoria sobre o pai que tinha como base as
formulações teóricas de Émile Durkheim, e elabora uma teoria sobre a função paterna. A
teoria de Durkheim sobre o declínio da imago paterna, que nos textos lacanianos de 1938 a
1950 permitia a Lacan falar sobre um complexo de Édipo influenciado por variáveis
formação do supereu, deixa de ser enfatizada por nosso autor quando este passa a falar
Ancorado na teoria sobre o simbólico, Lacan separa o poder social do pai de sua
função simbólica. De acordo com Zafiropoulos (2002), em 1953 o poder do pai e o valor
estrutural de sua função já não dependem tanto de seu poder social como chefe de família,
mas do valor que lhe é próprio no registro simbólico. Há uma separação entre o valor
Faria (2003), ao falar sobre o complexo de Édipo, refere que a concepção do pai
como simbólico deve ser articulada à definição lacaniana de metáfora paterna. Na metáfora
significante que insere a criança no simbólico. Para Lacan (1957-58/1999), esse processo
possibilita substituir um significante por outro significante. Por essa razão, no período
anterior às suas formulações sobre o real, Lacan (1957-58/1999) afirma que ao término do
Sobre a metáfora paterna, Faria (2003) comenta que à medida que, no decorrer do
complexo de Édipo, a mãe é simbolizada em suas idas e vindas, o desejo da mãe se torna
desejo materno, mesmo que seja um enigma para a criança, passa a ser um equivalente ao
pai.
Faria (2003) acrescenta que o desejo materno não é o significado do pai. Para
na cadeia significante usando sua dimensão de substituição que cria um novo sentido.
Segundo Faria (2003), para que haja metáfora paterna é necessária uma substituição
significante, na qual o pai toma lugar como um significante que vem substituir o
paterna. Quando o pai se articula como função simbólica e ocupa o lugar de significante do
desejo materno, o falo deixa de ser o significado do desejo materno e ocupa uma
significação inacessível ao sujeito (FARIA, 2003). Para Lacan (1957-58/1999), o falo fica
Assim, de acordo com Faria (2003), podemos observar que Lacan situa o “nome do
flotante” é o que permite o exercício do pensamento simbólico, pois é o que possibilita que
62
significado, é preciso “um símbolo em estado puro” dotado de um “valor simbólico zero”
identificação com a Lei. Lacan enfatiza o nome do pai como suporte da função simbólica e
de junho de 1956 do Seminário 3, “As psicoses”, Lacan deixa claro que sem o valor
simbólico zero fornecido pelo “nome do pai” não há a ligação entre significante e
justamente o fato de não significar o sujeito, que torna o significante indestrutível e capaz
de a todo momento realizar significações diversas. O que caracteriza o mundo humano não
permite entrar nessa ordem simbólica, sendo essencial para a articulação da linguagem no
humano.
A mudança fundamental da teoria de 1938 para a que surge a partir de 1953 é que a
“nome do pai” das relações imaginárias que o sujeito estabelece com a pessoa que exerce o
33
No seminário 3, “As psicoses”, Lacan (1955/1956), fala sobre a inversão do algoritmo de Ferdinand
Saussure que ligava o significante ao significado deixando a preponderância do significado. Lacan, seguindo
Lévi-Strauss (1950) propõe o significante como precedente e determinante do significado.
63
papel de pai na família. Entretanto, isso não significa que a novela familiar deva ser
família. O que se evidencia nesse período estruturalista é que a prioridade deve ser dada ao
linguagem.
é esquecida quando a teoria sobre o declínio da imago paterna é utilizada para explicar o
distinção entre a pessoa do pai de família e a função simbólica do pai, permite Lacan fazer
Lacan desenterra de sua maneira a estátua do pai morto descoberta por Freud,
seu valor simbólico e sua eminente fecundidade subjetiva e social, e nesse ponto
destitui definitivamente o fantoche familiar imaginário do pai.
(ZAFIROPOULOS, 2002, p. 194 – tradução nossa)34
e as formulações sobre o Pai da horda primitiva descritas por Freud em 1913. De acordo
com Zafiropoulos (2002), o nome do pai é uma versão do pai morto, apresentado por Freud
formação da sociedade.
sobre o pai e que eterniza a existência de um só pai na origem. Nas palavras do autor, “é
preciso que o verdadeiro pai, o pai singular, o pai único, esteja antes do surgimento da
34
Citação original: “Lacan exhuma a su manera la estatua del Padre muerto descubierta por Freud, su valor
simbólico y su eminente fecundidad subjetiva y social, y ese punto destituye definitivamente el fantoche
familiar imaginario del padre.”
64
(...) o mito de Totem e tabu deve se lido como o mito fundador da função paterna
e, portanto, do regime ordinário da relação do homem com o significante.
(ZAFIROPOULOS, 2006, p. 232 – tradução nossa)35
Zafiropoulos (2006) afirma que o mito do pai da horda mostra a fundação da função
paterna, é o processo que funda a relação do homem com o significante. Além de ligar o
parte alguma da realidade e a função paterna se resume à inscrição da lei. Nesse sentido, é
importante tentarmos levantar como o supereu pode ser pensado nesse período de
teorização sobre o simbólico. Enquanto, até 1950, Lacan definia o supereu como
dependente das condições sociais da família, a partir de 1953 ele concebe o supereu em
termos de estrutura. Nesse momento teórico, Lacan permanece fiel à concepção freudiana
do supereu como herdeiro do complexo de Édipo, mas considera tal questão em termos de
56/2002) fala sobre a função da linguagem e sobre a noção de estrutura. Para ele, a noção
As coisas são simples. Mas é preciso ainda que a ordem do significante, o sujeito
a adquira, a conquiste, seja colocado em seu lugar numa relação de implicação
que afeta seu ser, o que resulta na formação do que chamamos em nossa
linguagem o superego. (LACAN, 1955-56/2002, p. 216)
35
Citação original: “(…) el mito de Tótem e tabú debe leerse como el mito fundador de la función paterna y,
por lo tanto, del régimen ordinario de la relación del hombre con el significante.”
65
57/1995) prossegue com essa relação entre o complexo de Édipo como estrutura e o
Pensar o supereu com esse olhar estrutural remete à própria entrada do sujeito na
Segundo Zafiropoulos (2006), o pai é o pai morto, e o que sucede dele, ou seja, o supereu é
O espírito da coisa paterna adota por meio do mito freudiano, a critério de Lacan,
a forma de um significante de exceção que se chama supereu e os sintomas
constituem sua equivalência. (Zafiropoulos, 2006, p.232)36
o supereu é o símbolo dos símbolos, como uma fala que nada diz. Isso é corroborado
posteriormente quando Lacan (1957-58/1999) diz que o supereu é o significante que marca
36
Citação original: “El espíritu de la cosa paterna adopta por lo tanto en el mito freudiano, a criterio de Lacan
la forma de un significante de excepción que se llama superyó y es novedoso, y cuyos síntomas constituyen
equivalencias.”
66
simbólico. A função paterna é o que, através do supereu, permite a relação do homem com
a lei, o que Lacan chama de ligação entre significante e significado. Conforme Lacan
Lacan centra-se nas elaborações sobre o simbólico, é importante salientar que não há um
freudiana e isso abrange o conceito supereu. Já vimos no primeiro capítulo deste trabalho o
identificação ao pai no complexo de Édipo. Já nos textos freudianos mais tardios essas
supereu frequentemente demonstra uma severidade para a qual nenhum modelo foi
tardias atingem mais o ideal de eu. A ausência do fechamento preciso na noção de supereu
67
freudiana que articula o supereu à passagem pelo complexo de Édipo. Agora, julgamos
importante tentar situar também alguns outros momentos em que Lacan busca pensar o
mais citado por Lacan. Além de o período de 1953 a 1958 ser um momento em que Lacan
trabalha o status simbólico do supereu, ele também fala de uma versão imaginária do
observar que desde esses primeiros seminários aparecem antecipações de definições que
Não buscamos trazer uma definição precisa do conceito de supereu nesse período, a
tentar situar a complexidade de tal processo teórico. Essa proposta coincide com a ideia do
próprio Lacan que logo no seminário 1, “Os escritos técnicos de Freud”, denuncia a
Lacan (1953-54/2009) afirma que apesar de a resposta para a questão “o que é que é o
que se referem ao supereu como imperativo categórico ou como consciência moral são
extremamente confusas. Além disso, Lacan (1953-54/2009) afirma que o supereu muitas
37
Interpretações de psicanalistas “pós-freudistas” também existem, mas não temos como objetivo tratar
dessa questão.
68
atenção para a diferença entre tais conceitos e delimita que enquanto o ideal de eu é
Nesse período, fica claro como Lacan mantém-se bastante próximo às elaborações
uma instância que observa e critica todas as intenções do sujeito. Dando continuidade a
essa relação entre supereu e censura proposta por Freud, no seminário 2, “O eu na teoria de
Com essas observações sobre a forma que atua essa instância psíquica, o supereu é
considerado por Lacan como algo que age no interior do sujeito avaliando não só as ações,
mas as intenções deste. Não se pode ignorar a proximidade que essa ideia tem das
“A ética da psicanálise”. Nele Lacan (1959-60/2008) concorda tanto com a ideia freudiana
de que a agressividade que o sujeito internaliza forma o supereu como com a noção de que
Para Lacan (1959-60/2008), tudo o que passa do gozo à interdição reforça a interdição e o
sujeito que procura submeter-se à lei moral depara-se com exigências ainda mais
Lacan (1959-60/2008) deixa claro que o supereu não pode ser considerado sinônimo de
consciência moral. A distinção entre supereu e consciência moral é bastante ressaltada por
60/2008) afirma:
Ela não está unicamente ligada a esse lento reconhecimento da função que foi
definida, autonomizada por Freud sob o termo de supereu, e à exploração de seus
paradoxos, que chamei de essa figura obscena e feroz, sob a qual a instância
moral se apresenta quando vamos procurá-la em suas raízes. (LACAN, 1959-
60/2008, p. 18)
manifestação da consciência moral, mas nada tem a ver com o conteúdo de suas exigências
mais obrigatórias. O que o supereu exige não está relacionado com algum conteúdo que
poderíamos delimitar como uma regra universal. Como um sabotador interno, o supereu
atua como um imperativo categórico que impõe um “Tu deves” sem conteúdo específico.
Não é possível citar essa noção de supereu como imperativo categórico sem
apontarmos que ela já estava em Freud e que é fundamental para as elaborações lacanianas
futuras sobre o tema. Apesar de não termos a pretensão de trabalhar toda sua complexidade
nesse momento, vale dizer que essa já aparece no seminário 1, onde, na aula de 10 de
supereu é realmente uma lei, mas uma lei sem dialética. Ele aparece na forma de um
observador que exprime um “tu deves” incansável e incessante ao eu, o qual se vê como
capacidade adquirida pela criança de conseguir dizer eu quando escuta tu. Ou seja, quando
escuta “você vai fazer isso” ela subentende um “eu vou fazer isso”. Nesse sentido, é do
Outro, que vai ser o lugar do tesouro dos significantes e o lugar onde a fala se constitui,
que se forma esse tu. É a partir da fala que vem do Outro, que num primeiro momento
pode ser relacionado à função materna – que oferece significantes e significações à criança
–, que se constitui a ordenação onde um fala com aquele que ouve. Na origem dessa
estranho e depois vai tornar-se “dono da casa” e gerar no próprio eu um sentimento de que
Para comentar esse processo onde o tu passa a fazer parte do eu, Lacan (1955-
passa a sugerir uma origem auditiva para o supereu. Na aula de 26 de junho de 1956 do
que esse processo citado por Lacan se aproxima à colocação apresentada por Freud em sua
estar posta na aula de 6 de fevereiro do seminário 4. Nela, Lacan (1956-57/1995) fala que a
personagem interditor paterno, que ocorre ao final do complexo de Édipo. Para Lacan
e corrobora o que já discutimos sobre o nome do pai e a metáfora paterna. Ou seja, para
que barra o sujeito, do que a alguma atuação do pai da realidade. Nas palavras do autor:
“(...) a interdição do incesto não é outra coisa senão a condição para que subsista a fala.”
O supereu é um imperativo. Como indicam o bom senso e o uso que se faz dele,
é coerente com o registro e com a noção da lei, quer dizer, com o conjunto do
sistema da linguagem, na medida em que define a condição do homem enquanto
tal, quer dizer, enquanto não é somente indivíduo biológico. Por outro lado, é
preciso acentuar também, e ao contrário, o seu caráter insensato, cego, de puro
imperativo, de simples tirania. Em que direção podemos nós fazer síntese dessas
noções? (LACAN, 1953-54/2009, p. 140)
Lacan (1953-54/2009) questiona sobre o que fazer com noções opostas a respeito
do mesmo conceito. Reconhece que o supereu tem relação com a lei, mas ressalta que a lei
colocação de Lacan ilustra como o seu primeiro seminário já apresentava a gênese de tudo
que ele iria articular sobre o supereu no período de retorno a Freud, e ainda possibilita
elaborações que serão tratadas no período em que ele se dedica mais precisamente ao
lei, com o conjunto do sistema da linguagem e é algo que permite que o homem transcenda
sua condição biológica, é possível ver a posição do supereu como herdeiro do complexo de
Entretanto, quando Lacan, por outro lado, enfatiza o caráter insensato, cego, de puro
Ele é a palavra mesma, o comando da lei, na medida em que dela não resta mais
do que a raiz. A lei se reduz inteiramente a alguma coisa que não se pode nem
mesmo exprimir, como o Tu deves, que é uma palavra privada de todos os
sentidos. É nesse sentido que o supereu acaba por se identificar àquilo que há
73
linguagem, e que o traumatismo mais primitivo que a ele se relaciona é a própria voz. Voz
que permite a entrada na ordem simbólica, mas que também possibilita pensar sobre o
partir do estruturalismo. Apesar de não fechar uma definição para o supereu, Lacan traz
obra freudiana com base no estruturalismo é extremamente importante, pois, apesar de não
permitir fechar as definições que ficaram abertas na obra freudiana, permitiu que Lacan
encontrasse o sentido para onde a obra de Freud poderia ser conduzida tendo a teoria
estruturalista como ferramenta. E essa direção encontrada por Lacan o leva a abordar com
mais precisão o registro real. Vejamos como o supereu pode ser pensado nesse momento,
Após termos situado o supereu no período em que Lacan foca suas formulações
sobre o simbólico, vamos tentar localizar a noção de supereu no período em que Lacan
Antes de iniciar a abordagem desse período conceitual, vale destacar que, como já
afirmamos na introdução, não pretendemos, nos limites deste trabalho, trazer de forma
sistemática todas as referências que Lacan faz do conceito supereu no vasto período de
que contemple todas as citações em Lacan do conceito foco do presente trabalho – situar o
todo o ensino lacaniano. Já trouxemos na seção 2.2 deste trabalho, que na comunicação “O
real como voz podem ser destacadas dos seminários “As psicoses” e “A relação de objeto”.
sobre o nascimento do supereu, traz Isakower para ilustrar como a origem do supereu está
Apesar de existirem formulações sobre o supereu como voz nos anos 50, é a partir
dos anos 60 que Lacan oferece maiores contribuições para a compreensão do supereu na
dimensão do real.
Segundo Soler (1997), os anos 60, sobretudo com a ruptura de Lacan com a
ensino freudiano. Nesse período, Lacan, até então conhecido por aplicar à psicanálise
da lógica formal para tentar dar conta do que escapa de sua teorização sobre o simbólico.
(LAURENT, 1997)
A partir dos anos 60, Lacan, para falar do que o simbólico não dá conta, passa a
apesar dos avanços ocasionados pela aliança de Lacan com a lógica formal abrirem
caminho para as teorizações sobre o gozo e para a formulação da teoria dos discursos,
(simbólico) e campo lacaniano (campo do gozo) não significa que a elaboração do segundo
exclua todas as produções realizadas no primeiro. Vale lembrar que: “Da mesma forma que
a segunda tópica freudiana não exclui a primeira, o campo do gozo e a clínica que dele
deriva não exclui o campo da linguagem, mas o inclui.” (QUINET, 2006, p. 24)
Concordando com Quinet (2006), não entendemos que Lacan, a partir dos anos 60,
inclusive, deixa claro que para falar da constituição do sujeito pelas operações de alienação
Nos anos 60, Lacan mostra que o sujeito é efeito da linguagem, efeito do significante, onde
acaba por apontar o furo, a dimensão real. O real é algo totalmente fora do simbólico, é um
O Outro, escrito com letra maiúscula, é definido por Lacan (1960b/1998) como o
cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito”
(LACAN, 1964/1998, p. 193-197). Essa definição, segundo Laurent (1997), liga o Outro e
o sujeito de um modo que constitui uma alienação. Ou seja, o sujeito só pode ser conhecido
no lugar do Outro.
Segundo Lacan (1960a /1998), o sujeito se constitui a partir dos significantes que o
abarcam no Outro. Segundo Lacan (1960b/1998), o Outro ocupa uma posição mestra para
o sujeito, pois é desse Outro que o sujeito recebe a significação da mensagem que ele
próprio emite. É do Outro que o sujeito recebe a marca da linguagem que passa a instituir
simbólica, que é a própria relação do sujeito com o significante. O traço unário recebe esse
nome não por ser único, mas porque funciona como distintivo, como marca do
coisa que faça sentido. É o significante que permanece no nível do não-senso e está
não ao pai ou à mãe, mas sim a incorporação do órgão da linguagem que molda a divisão
identificação inaugural do sujeito com esse significante radical (raiz), significante mestre
77
como significante que funda e suporta a cadeia simbólica, que o sujeito se constitui.
significar o sujeito e este experimenta sua “falta-a-ser”. Por isso, a operação de separação,
(1997), é possível entender que a união do sujeito com o Outro deixa uma perda, o objeto
representado no Outro. Não todo o sujeito pode se representar no Outro, pois o Outro, o
simbólico, é “não-todo”. O Outro não pode ser caracterizado como privado de falta. Não
processa nos intervalos do discurso do Outro, em que o desejo do Outro é apreendido pelo
questionamento sobre o desejo do Outro: “O que ele quer?” Por essa razão, é como desejo
do Outro que o desejo do homem ganha forma, é como Outro que ele deseja. Assim, tanto
o Outro como o sujeito, definido sexualmente, são faltantes, e o objeto a surge como resto
Lacan para a teoria psicanalítica. Conforme Quinet (2006), o conceito de objeto a é uma
das formulações mais importantes da teoria lacaniana, sem a qual não seriam possíveis a
constituição do campo do gozo nem da teoria dos discursos como laços sociais.
78
sujeito no Outro. Por intermédio dos significantes provenientes do Outro, que num
primeiro momento pode ser pensado como a pessoa que exerce a função materna, ocorre a
fundação do sujeito. Desse processo, há um resto real que não pode ser abarcado pelo
simbólico. O nome desse resto é objeto a e é em torno dele que gira todo o drama do
registro real, sobretudo para o período de formalização teórica sobre o objeto a. O conceito
Nesse seminário 7, Lacan (1959-60/2008), ao falar sobre a noção de “Coisa”, mostra que
uma Coisa?” Para falar sobre a Coisa, Heidegger (1935/2002) toma como exemplo um
vaso. Explica que o que faz do vaso um vaso é a sua qualidade de continente, e é o vazio
que faz com que o vaso seja continente. O ceramista que fabrica um vaso apenas dá forma
ao vazio, ou seja, o que faz do vaso uma coisa não reside na matéria que o constitui, mas
propõe que o vaso é um instrumento que permite afirmar a presença humana. Para ele, o
função da “Coisa”, Lacan (1959-60/2008) explica que o vazio do vaso aponta para a
perspectiva do preenchimento.
38
Para maiores esclarecimentos sobre a função de A Coisa na perspectiva heideggeriana, sugerimos o artigo
de Heidegger sobre “A Coisa”.
79
O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não
conhece semelhante. É a partir desse significante modelado que é o vaso, que o
vazio e o pleno entram como tais no mundo, nem mais nem menos, e com o
mesmo sentido. (LACAN, 1959-60/2008, p. 147)
objeto empírico, não tem substância, é irrepresentável, impossível de apreender, está fora
perdido, que, na verdade, jamais existiu. E, contudo, o sujeito deve reencontrá-lo, sem, no
55)
– logicamente constituída por Freud em 1895, no “Projeto para uma psicologia científica”
e que nunca mais poderá ser alcançada. Soler (2002) acrescenta que apesar dessa primeira
primeira, que inscreve, no corpo ainda não marcado pelo significante, rastros de uma
satisfação plena.
deixa, desde o surgimento do humano, o gozo marcado por uma perda. O mito de uma
vivencia são sempre incompletas e faltosas em relação a uma suposta satisfação primeira, a
um gozo pleno.
faltante, passa a ter a ideia de ter alcançado alguma plenitude, alguma completude, sendo
acordo com Lacan (1959-60/2008), com a entrada na ordem significante, “A Coisa” fica
poder ser encontrada, A Coisa movimenta todo encadeamento do desejo do sujeito. Ela
está relacionada à tendência a tentar encontrar o objeto primordial qualificado como objeto
coisa, visto que ambos estão relacionados ao objeto a. A castração deixa como resto o
objeto perdido e é a esse objeto que o desejo se articula. Ou seja, a relação da lei com o
desejo é tão estreita que somente a função da lei traça o caminho do desejo.
esclarece que o objeto a não deve ser concebido como objeto do desejo, mas como objeto
causa do desejo.
completude, onde o sujeito não fosse barrado pela linguagem. Ainda que a lei da
linguagem outorgue a lei que distancia de A Coisa, nem por isso apaga a idéia de
39
Em estudos posteriores ao seminário 11, Lacan conceitua o objeto a como mais de gozar, conceito que
permite falar que com a entrada na ordem significante há um jogo de excesso. Entretanto, apesar de sabermos
sobre a importância do conceito de objeto a mais de gozar para pensar como o capitalismo avançado trabalha
com o excesso, para respeitar a delimitação do presente estudo e não ultrapassar as produções lacanianas do
ano de 1964, tal definição de objeto a não será abordada. Reservamos a definição de objeto a como mais de
gozar para estudos posteriores.
81
uma barreira ao gozo, mas essa barreira que limita o gozo deixa um resíduo que prolifera
Quando o sujeito se constitui no Outro, algo escapa ao simbólico, um lugar fica vazio. O
lugar vazio, que não pode ser abarcado pela imagem especular que constitui o eu,
materializa uma hiância, e esta abertura, este buraco, é o que comanda tudo o que ocorre
imprescindível uma hiância entre ela e seu efeito. Esta hiância é o que permite que a causa
objeto causa do desejo ser uma inovação lacaniana, para falar do movimento do desejo
(1964/1998), toda pulsão é parcial e não tem um objeto específico que possa ser por ela
objeto é circulado. A satisfação pulsional é atingida pelo trajeto. Nesse sentido, toda pulsão
perdido. A linguagem castra o sujeito, gera o objeto a, que será o objeto causa do desejo, e
julgamos possível situar o supereu nesse período de teorização lacaniana sobre o real.
Talvez tenhamos nos adentrado demais em formulações teóricas que não falam
82
diretamente do supereu. Entretanto, não vemos como falar do supereu no período em que
teorização sobre o supereu; ou seja, com a teorização do registro real, o supereu passa a ser
apresentado pelo próprio Lacan: “Ao lembrar-lhes sua ligação com a voz, indiquei-lhes
que não pode haver concepção analítica válida do supereu que se esqueça de que, por sua
fase mais profunda, essa é uma das formas do objeto a” (LACAN, 1962-63/2005, p. 321).
Lacan dedica-se a formular o conceito de objeto a, o que engloba as noções de objeto olhar
e voz40. Para organizar nosso texto, primeiramente trataremos do objeto voz e depois
princípio de que tudo que o sujeito recebe do Outro pela linguagem, ele recebe sob forma
vocal. Apesar de existirem outras vias de receber a linguagem, esta, normalmente, está
ligada a alguma sonoridade, mesmo que precocemente ela esteja separada de qualquer
(2003) pontua que a formação do supereu no aparelho psíquico está ligada ao que há de
40
O objeto a causa do desejo subsiste sob modalidades diversas. Lacan (1962-63/2005) trabalha cinco
patamares do objeto a: objeto oral, objeto anal, objeto fálico, objeto escópico e objeto voz. Esses patamares
não estão relacionados a fases, mas às diversas formas em que o objeto a se manifesta. Nesse sentido, a
questão fundamental é saber como ele se liga à constituição do sujeito no Outro.
Apesar da importância de todas as modalidades do objeto a, não exploraremos como cada uma delas se
relaciona à constituição do sujeito e se manifesta como causa. Limitaremo-nos a abordar o objeto a como voz
e a comentar sobre o objeto olhar. A relevância de nos dedicarmos à abordagem do objeto voz decorre da
afirmação lacaniana de que a forma do objeto a como objeto voz equivale ao supereu, nosso tema de estudo.
Além disso, comentaremos sobre o objeto olhar, pois, apesar de Lacan não ser tão enfático em relacioná-lo
com o supereu como faz com o objeto voz, entendemos que essa modalidade de objeto também tenha relação
com o supereu como instância de vigilância.
83
acrescenta:
constituição no Outro o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida. Num
primeiro momento, o sujeito ainda não constituiu seu eu, não tem nada a comunicar, e tem
que receber do Outro sua própria mensagem. Já indicamos que no seminário 4 “A relação
de objeto”, Lacan (1956-57/1995) explica que num primeiro momento o sujeito ouve um
“tu és” ou “tu deves” sem atributo, e essas injunções vão aos poucos constituir o “eu sou”
angústia”, essa formulação é retomada pelo autor quando esse foca suas formulações sobre
o real e descreve objeto a como voz. Com o avanço teórico de Lacan, é possível entender
que o “tu és” é uma mensagem transmitida no registro real e está relacionada aos
mestre, ela é solidária a este e são os significantes primordiais que vão formar o S¹, traço
Conforme Lacan (1962-63/2005), mesmo que o “tu” chegue como uma vocalização
sem atributos e não seja modulado pelo significante, é uma vocalização que existe no real e
circula. Pode, inclusive, ser observado em curso nos monólogos primordiais que crianças
bem pequenas executam quando estão sozinhas. Lacan (1962-63/2005) afirma que esse
desprende do Outro e implica a voz que só se incorpora, não se assimila. Supereu como
Essa imagem, ele foi buscar numa coisa singularmente distante do fenômeno
identificatório de que se trata. Com efeito, interessou-se por um bichinho
chamado dáfina [pulga-d’água], que absolutamente não é um camarão, mas o
imaginem como se fosse sensivelmente recebido como este. Seja como for, esse
animal, que vive em águas salinas, tem o curioso hábito, num momento de suas
metamorfoses, de obturar sua carapaça com minúsculos grãos de areia, os quais
introduz no que tem como chamado aparelho estato-acústico reduzido, ou, em
outras palavras, em seu utrículo, que não tem o benefício de nossa prestigiosa
cólcea. Uma vez introduzidas de fora essas partículas de areia, pois o camarão
não as produz sozinho, de modo algum, o utrículo começa a fechar, e eis que o
animal passa a ter em seu interior os pequenos quizos necessários a seu
equilíbrio, e os quais ele precisou trazer de fora. (LACAN, 1962-63/2005, p.
301)
processo, que está relacionado à apropriação do “tu” no sujeito, apresenta uma relação com
a constituição do supereu, que, nesse momento de teorização – onde o foco é o registro real
comenta:
Do mesmo modo que esse animalzinho indefeso precisa da areia para sobreviver,
o ser humano, em sua dependência do Outro, é obrigado a receber os grãos
significantes e os da voz como suportes da armação significante. Para Lacan, não
é possível instituir o Je sem o tu do supereu. (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p.
227, negritos do autor)
41
Lacan esclarece que sua citação provém de um artigo de Isakower que foi exposto no vigésimo ano do
International Journal.
85
real e o sujeito nesse momento não tem nada a comunicar. Concomitante a isso, como o
Outro não possui consistência, sua estrutura configura um vazio, a voz do humano a
constituir-se também acaba por ressoar num vazio que não abarca sua dimensão real. É
nesse impasse que a voz vai sendo articulada, incorporada, e aos poucos modulada pelo
Para abordar o objeto a como voz, Lacan (1962-63/2005) cita um artigo em que
bode, que produz som ao ser soprado. Tal objeto é usado em rituais judaicos, e, segundo
Lacan (1962-63/2005), independentemente do ritual em que esse objeto ressoe, gera uma
emoção que comove inusitadamente todos os que escutam seu som. Também em textos
bíblicos esse instrumento é citado. Nesses casos, o chofar é mencionado para simbolizar a
renovação da aliança com Deus. É como se o chofar ressoasse a própria voz, o mugido, de
Deus.
a psicanálise por apresentar a voz de uma forma bastante específica. É uma voz
potencialmente separável que permite pensar a relação com o Outro. Conforme Abdala
(2008), o chofar demonstra o lugar da voz e pode ser evidenciado na relação do sujeito
com Outro.
originada por seu som. No caso da relação do sujeito com o Outro, é possível pensar que o
42
Theodor Reik é autor de “Das Ritual: psychoanalytische Studien”, livro XI, Leipzig, Viena e Zurique:
Imago, 1928, tradução francesa Le rituel, psychanalyse des rites religieux, Paris: Denoël, 1974. Lacan cita
essa produção de Reik na aula de 22 de maio de 1963 e delimita que o estudo sobre o chofar, que permite
pensar o objeto a como voz, encontra-se no capítulo 4.
86
que o objeto olhar também surge como resto do processo de constituição do sujeito no
Outro. Lacan (1964/1998) dedica algumas aulas do seu seminário 11, “Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise”, para abordar a questão do olhar. Apesar de não termos como
objetivo esmiuçar toda a complexidade dessa teorização sobre o objeto escópico, é possível
Lacan (1964/1998) assevera que o objeto olhar nada tem a ver com o olho. O objeto
espelho, surge um resto, e o olhar é esse objeto escópico que fica de fora. Por ficar de fora,
o objeto olhar vem tanto simbolizar a falta no campo do visível como demarcar o desejo.
De acordo com Lacan (1964/1998), a imagem que o sujeito constitui de si, sua
realidade, é uma fantasia, uma montagem do imaginário pelo simbólico, e o olhar vem
mostrar o engano dessa imagem. O objeto olhar como supereu tudo vê e pontua a falta. O
supereu na modalidade olhar é uma lei que vigia, demarca a falta e cobra a forma de um
Outro consistente.
O olhar e a voz estão mais relacionados ao supereu do que os outros objetos por
estarem ligados ao desejo do Outro. O olhar e a voz atuam como símbolo da falta e
apontam para o desejo do Outro como aquilo que indica a possibilidade de restaurar a falta.
Assim, entendemos que o supereu em seu aspecto real, como objeto voz e objeto olhar,
aponta para uma possível consistência do Outro e com isso vem tanto denunciar o vazio do
Segundo Lacan (1960b/1998), mesmo que encontrar o objeto perdido lhe seja
vedado, o neurótico identifica a falta do Outro com sua demanda e atua como instrumento
do gozo do Outro. Ele acredita num Outro não castrado, tenta sustentar a totalidade do
Outro, e através da ideia de uma totalidade do Outro, busca resgatar-se da falta com base
O traço unário, que o sujeito a ele se agarra, está no campo do desejo, o qual só
poderia de qualquer modo constituir-se no reino do significante, no nível em que
há relação do sujeito com o Outro. É o campo do Outro que determina a função
do traço unário, no que com ele se inaugura um tempo maior na identificação, o
ideal de eu. (LACAN, 1964/1998, p. 242)
Conforme Lacan (1960b/1998), o traço unário, por preencher a marca que o sujeito
ser atravessado pelo significante, o sujeito fica marcado por uma falta e toma o significante
ideia de uma possível saturação da falta, e a fantasia acaba por transformar o desejo do
sujeito. É a partir da fantasia que o sujeito estrutura a realidade. Como não existe um
significante que represente o sujeito e este se caracteriza pela falta, pelo furo, a fantasia
sujeito sofre por sua subordinação ao significante – e o objeto qualificado como perdido –
este sendo o real que não entra na ordem do significante – (LACAN, 1960b/1998). É a
primordial não é algo aceito tão tranquilamente, não é esquecido, e esse é um dos
fundamentos da compulsão à repetição. Nesse sentido, a busca pelo gozo está relacionada
com a pulsão, pois, na medida em que a pulsão deixa um saldo de insatisfação, ela estimula
seja, a Coisa como objeto absoluto do desejo, mas o sujeito só alcança o gozo fálico -
inacessível.
perdido não pode ser alcançado, procurar formas alternativas de lidar com o gozo fálico e
contentar-se com satisfações provenientes do circuito pulsional, que contorna o objeto sem
alcançá-lo. Ao ver o Outro como barrado, o sujeito não toma o imperativo de gozo como
pressão e não precisa se ver como impotente por não alcançar o gozo pleno. Quando se
apropria da castração tanto própria como do Outro, o sujeito pode buscar formas de lidar
com o gozo limitado, sem o ideal de ter um gozo pleno. Sem a crença na consistência do
Outro, o sujeito pode recusar-se a tentar encontrar o gozo pleno e se responsabilizar pelo
seu desejo e por sua condição de sempre desejante. “Assim, o sujeito, no curso de uma
análise em intensão, deverá ser despertado para que possa fazer algo com o gozo que lhe é
gozo pleno, que são mórbidas e alienantes. É preciso não se alienar totalmente no ideal do
faltante, ver que o objeto perdido não pode ser alcançado e procurar formas alternativas de
fazer algo com seu gozo, que seria a saída encontrada na análise. Entretanto, o sujeito
Nesse sentido, julgamos possível pensar que as formulações sobre o supereu em seu
aspecto real como objeto voz e olhar abrem caminho para a definição lacaniana de supereu
como imperativo de gozo, que será trabalhada a partir do seminário 18 “Um discurso que
não fosse um semblante”, onde Lacan afirma: “O que o supereu diz é: Goza!” 43 (LACAN,
1971/2009, p. 166)
apresentadas por Lacan até o seminário 11. Entretanto, entendemos, com as leituras
realizadas, que o supereu como voz e olhar seja um prenúncio para a definição de supereu
como imperativo de gozo, que aparece pela primeira vez no seminário 18 e será mais
real, como olhar e voz, configura imperativos que vêm tanto denunciar o vazio do sujeito
insere o sujeito numa fantasia na qual ele pode idealizar o Outro como não faltante e
desejar restaurar sua própria falta. A voz e o olhar do supereu delatam a falta, o vazio, e
43
Ressaltamos que o presente trabalho não tem como proposta abordar como o supereu é tratado depois do
seminário 11.
90
Outro, sustentado como uma totalidade pelo sujeito, apresente a possibilidade de gozo
pleno. O supereu opera mandatos que supõem a possibilidade do resgate do objeto perdido.
Segundo Lacan (1962-63/2005), após o sujeito passar a identificar seu desejo ao desejo do
Outro, o ideal de restaurar a falta passa a ser uma ordem, e a voz do supereu passa a delatar
Lacan (1960b/1998) descreve que há uma voz que atua como uma lei a ordenar
“Goza!”. Entretanto, esclarece que ao mandato “Goza!”, o sujeito só pode responder com
um “Ouço”, visto que corresponder a tal ordem é impossível. Sobre tal questão Teixeira,
A. (2008) afirma que o supereu, por ordenar um gozo que é impossível, é correlato à
para anulá-la. Quando o supereu diz “Goza!”, profere uma ordem impossível e é nessa
impossibilidade que sua natureza feroz se manifesta. Sua ordem não pode ser cumprida, já
que independente do que o sujeito faça, ainda que dê o seu máximo, seu esforço jamais
será o suficiente. E o supereu, em sua dimensão real, como voz e olhar, dirá sempre para
que se esforce mais ainda. O supereu como estrutural do sujeito é sempre uma lei insensata
situar a relação entre supereu e sociedade e pensar essa instância psíquica no contingente
histórico atual. Como o conhecimento alcançado nos capítulos anteriores serve de alicerce
para nossa discussão, para melhor organizar nossa apresentação, partiremos da retomada
de alguns pontos que permitem reafirmar nossa posição teórica de que o supereu é
estrutural do sujeito, está relacionado com a entrada na cultura, e não perde sua
supereu, o levantamento teórico realizado nos capítulos anteriores permite sustentar que,
freudiana sobre o supereu, Freud não o apresenta como uma mera identificação aos ideais
paternos e sociais, mas como algo que está ligado à entrada do humano no laço social.
Mesmo sem Freud ter utilizado a nomenclatura sujeito, em sua obra o supereu mantém
concepção freudiana de que o supereu surge com a entrada na cultura é claramente exposta
no mito apresentado em “Totem e tabu”. Ao apresentar tal mito, Freud (1913/1980) fala
sobre a existência de uma identificação primária, que não é uma identificação a ideais
sociais, mas uma incorporação intrusiva que ocorre quando os filhos incorporam
92
sociais e o supereu.
Entretanto, concordamos com Zafiropoulos (2002) quando este afirma que essas
colocações de Lacan decorrem do laço com a teoria sociológica de Durkheim e que Lacan
imago paterna, que trazia as bases para falar tanto sobre o complexo de Édipo influenciado
por variáveis sociais quanto sobre as consequências que as condições sociais do edipismo
acarretam ao supereu.
um amparo para prosseguir com a teoria freudiana. Ao demarcar a diferença entre o poder
social do pai e o valor simbólico de sua função, Lacan possibilita que a noção de supereu
em configurações sociais. Tendo como suporte a releitura que Lacan faz da obra freudiana
como limitada à dimensão imaginária do pai, ou seja, reduzida à análise das mudanças na
qualificado como uma instância estrutural do sujeito. Para ambos os autores, o supereu é
supereu está relacionada com a entrada na ordem significante e com a instauração da lei
período em que Lacan se dedica a abordar o registro real e formaliza a noção de objeto a.
Nesse momento teórico, Lacan mostra o sujeito como resposta ao encontro com o
significante e barrado em sua estrutura. Ao ser atravessado pelo simbólico, o sujeito fica
marcado pela falta, visto que ele não pode ser totalmente abarcado pelos significantes
instância relacionada ao registro real, que surge com a constituição do sujeito barrado e
vem ordenar a impossível restauração da falta, que seria alcançada com a recuperação do
objeto perdido. Com a teorização do registro real, Lacan chega à definição do supereu
como instância que ordena o gozo impossível. Entendemos que nesse período teórico em
que Lacan relaciona o supereu com o objeto a (olhar e voz), o supereu também pode ser
supereu, como de ordem real e traumática, trabalhada no decorrer dos capítulos anteriores,
simbólicas estão mais relacionadas ao ideal de eu e que o supereu traz uma injunção (tu
deves!) mais relacionada ao registro real. A seguinte passagem, em que Silveira (2005) cita
O ideal de eu, afirma Zizek, resulta da identificação com uma causa que
transcenda a vivência imaginária e faça parte da ordem simbólica. (...) O
supereu, ao contrário, não traz nenhum elemento da identificação: é uma ordem
traumática, aterradora, feroz, sentida como estranha e não integrável, em suma,
real. (SILVERA, 2005, p.18)
específicos, sem nenhum traço identificatório determinado e fixo. Mas então, como
relacioná-lo com questões sociais? Concordamos com Silveira (2005) quando este afirma
que a injunção supereuoica acaba por dialogar com os conteúdos simbólicos introjetados
pelo ideal do eu. Conforme Silveira (2005), o ideal do eu possui uma dimensão social, ele
tem a função de fixar os sujeitos ao social. Para esse estudioso, nas teorias psicanalíticas de
psíquico”. Apesar de não existirem ideologias do supereu, e este configurar uma lei insana
sem conteúdo específico, ele é uma instância que atua vigiando e impelindo o sujeito a
cumprir as ideologias do ideal de eu, que é uma instância recoberta pela ideologia.
(SILVEIRA, 2005).
95
pesquisa para dimensões que transcendem nosso objetivo. No entanto, julgamos importante
citar essa teorização de Silveira (2005), visto que ela elucida ainda mais a inter-relação
dos ideais dos pais e da sociedade, e o supereu fica apenas com a função proibitiva e
partir do ideal de eu. Na obra freudiana o supereu pode ser definido como um olhar que
vigia e uma voz que critica comparando o eu ao ideal de eu. Junto a isso, Lacan (1953-
Entendemos com Silveira (2005) que, apesar de o supereu ser uma lei insana da
ordem do registro real, o ideal de eu permite que o supereu dialogue com o registro
simbólico. De acordo com Silveira (2005), o “Tu deves!” supereuoico é preenchido por
que diz Goza!, mas não enuncia como, e o ideal de eu, composto por identificações
Permanecemos coerentes com a distinção que Lacan (1959-60/2008) faz entre esses termos
objeto a como olhar e voz. Entretanto, mesmo sendo uma injunção não integrada no
registro simbólico, isso não impede que o supereu interaja com o ideal de eu e com os
(2005) coincidem com a afirmação apresentada por Lacan no Seminário sobre a ética da
que impõe um “Tu deves!” sem conteúdo específico, ele pode servir de apoio à consciência
moral, que está mais relacionada aos conteúdos imaginários e simbólicos do ideal de eu.
Segundo Lacan (1962-63/2005), o supereu faz com que o desejo do Outro assuma a forma
de uma ordem. Após o sujeito identificar seu desejo ao desejo do Outro, o supereu passa
tanto a delatar a alienação do sujeito no Outro como a ordenar o gozo pleno. (LACAN,
1962-63/2005)
Com base nessa articulação entre supereu e ideal de eu podemos progredir com
convém aprofundar a discussão sobre a relação entre supereu e ideal do Outro. A teoria
supereu se alicerça tanto na fantasia de que haja um Outro não barrado como na
possibilidade de atingir o ideal do Outro. O supereu atua como símbolo da falta e aponta o
ideal do Outro como aquilo que indica a possibilidade de restaurar a falta. Para
relação entre a alienação estrutural do sujeito no Outro e o que Pacheco Filho (2009)
Porém, como o Outro é inconsistente e não dá conta de significar todo o sujeito, há sempre
um resto real dessa operação, um resto que não pode ser abarcado pelo simbólico e em
Apesar de jamais ter sido encontrado e jamais poder ser encontrado, o objeto a
movimenta todo encadeamento do desejo do sujeito. Mesmo que não haja um período de
97
completude, há sempre uma ideia de ter alcançado alguma plenitude. O lugar vazio que se
evidencia quando o sujeito se constitui no Outro materializa uma hiância que permite que o
perdido. Em outras palavras, a linguagem castra o sujeito, gera o objeto a causa do desejo,
Essa configuração caracterizada pela alienação no Outro e pela busca pelo objeto
Segundo Pacheco Filho (2010), a alienação descrita acima é uma base estrutural e
maneiras da subjetividade de uma época tentar lidar com a falta constituinte do sujeito,
98
com o resto que surge com a entrada do sujeito no simbólico e na cultura. (PACHECO
FILHO, 2009)
Mesmo que o Outro seja barrado e não dê conta de significar todo o sujeito, há a
tentativa de sustentar a fantasia de que existe um Outro absoluto e sem falhas. O sujeito
acredita num Outro não castrado e, em decorrência da ideia de totalidade do Outro, tenta
resgatar-se da falta com base na identificação ao ideal que vem do Outro [I(A)]. Essa
sociedade humana, acaba por ser preenchida por conteúdos específicos de uma
determinada forma de socialização. “Os sujeitos sempre manterão uma inclinação para
sociedade, os sujeitos elaboram um saber coletivo que lhes remete a um único Outro
não faltante e defender-se contra o real. É uma forma de desmentir o vazio radical do
sujeito.
Nesse momento podemos voltar a falar sobre o supereu. Entendemos que tanto a
fantasia quanto o supereu sustentam a possibilidade de um gozo sem falhas. Ambos trazem
a ideia de uma possível restauração da falta. Isso ocorre em toda configuração social. A
44
Zizek (1996/2003) fala sobre a noção de fantasia ideológica. Redefine o conceito de ideologia, que na
perspectiva de Marx é entendida como uma “consciência falsa” que oculta a essência das relações sociais.
Para Zizek, a ideologia é um constructo simbólico que mascara, não uma essência social oculta, mas o vazio
ao redor do qual se estrutura o campo social. A fantasia ideológica é o suporte que dá coerência à realidade,
é uma construção fantasiosa que dá sustentação às relações sociais e mascara o insuportável núcleo do real
impossível de ser simbolizado. Não temos a pretensão de nos estendermos nas teorizações de Zizek sobre
“fantasia ideológica”. Como já salientamos anteriormente, não temos o objetivo de abordar o conceito de
ideologia. Para maiores esclarecimentos sobre o assunto sugerimos as seguintes produções do autor: “Um
mapa da ideologia” (1996) e “Bem vindo ao deserto do real” (2003).
99
entrada no simbólico insere o sujeito numa fantasia na qual ele pode idealizar um Outro
não faltante e tentar restaurar a falta. Diante dessa disposição estrutural, o supereu sempre
delata a falta do sujeito, traz o imperativo de gozo pleno, e impele o sujeito a tentar
resgatar-se da falta com base na obediência e convicção ao ideal que vem do Outro [I(A)].
capitalismo45, por exemplo, podemos entender que o ideal do Outro estava no poupar e no
qualquer prazer.
(...) a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional,
passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu [com sua parte]
para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos
pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje
determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que
nasceram dentro dessa engrenagem. (WEBER, 1904/2004, p. 165)
Weber (1904/2004) aponta que o gozo da riqueza por meio do ócio e do prazer
carnal era reprovado e que a ideia era trabalhar e acumular capital para posteriormente
poder viver sem preocupações. O gozo instintivo da vida era inimigo da ascese racional e o
Perder tempo com sociabilidade, com ‘conversa mole, com luxo, mesmo com o
sono além do necessário à saúde - seis, no máximo, oito horas - é absolutamente
condenável em termos morais. (WEBER, 1904/2004:143)
45
As características da fase clássica do capitalismo são descritas por Marx em “O capital”. Destacamos que a
produção de mercadorias, o fetichismo da mercadoria, a acumulação de capital, o trabalhador reduzido à
força de trabalho, conflitos de classe, e o valor excedente são qualificados por Marx (1967/1975) como
marcas centrais do sistema capitalista de produção. Entretanto, não termos o objetivo de adentrar na teoria de
Marx, visto que o presente estudo não tem como proposta um estudo sociológico. Sugerimos para os
interessados a leitura de “O Capital” – Marx.
100
De acordo com Bauman (2008), a segurança a longo prazo era o principal propósito
segurança a longo prazo e não no desfrute e consumo imediato. A utilização dos bens de
consumo precisava ser adiada quase indefinidamente. A satisfação era adiada em nome de
Goza! configurava-se como: Goze daqui a pouco! Poupe para gozar depois! O supereu
convicção ao ideal do Outro se sustentavam na ideia de que o gozo pleno poderia ser
alcançado posteriormente, mesmo que somente para aqueles que reprimissem seus desejos
de satisfação imediata.
O adiamento do prazer colocava uma barra que impedia o acesso ao objeto perdido
satisfação com os objetos disponíveis na realidade. Todavia, por mais que a pessoa se
são formas de gozo. São maneiras de gozar ao se oferecer de forma sacrifical ao Outro e
101
sustentar sua (falsa) consistência46. De acordo com Braunstein (2007), ao redor da culpa
no capítulo anterior, o sujeito tenta sustentar a qualquer custo o gozo do Outro. Ele quer
manter a crença na consistência do Outro, pois, se tomar o Outro como barrado, o sujeito
se apodera de sua própria divisão. Nas palavras de Pacheco Filho (2009): “O Outro não
existe, mas, mesmo assim, o sujeito deve sustentar sua pseudo-existência: mesmo que seja
constitutiva do sujeito, leva o sujeito, que apresenta a esperança de servir a uma instância
fantasia de que existe um Outro consistente para sustentar o ideal de que o gozo absoluto e
ilimitado é possível.
que o sujeito47 vive. Deste modo, nossos apontamentos sobre a sociedade de produção,
apesar de não aprofundados48, mostram que, seja na fase clássica do capitalismo, seja em
Com base nessa disposição estrutural do sujeito, como, então, pensar o supereu em
objetos da realidade, elege o consumo como ideal? O que podemos falar sobre o supereu
no contingente histórico atual que elege o consumo como ideal que todos devem seguir?
46
Utilizamos a expressão “(falsa) consistência do Outro” para deixar claro que conforme a teoria lacaniana a
consistência do Outro é sempre falsa.
47
Salientamos, assim como já referimos na introdução, que o presente trabalho trata de teorizações sobre o
sujeito de estrutura neurótica.
48
Apesar de reconhecermos a importância da relação entre supereu e sociedade de produção, não nos
estendemos nessa articulação, visto que este não é objetivo do trabalho.
102
do consumo para sua sustentação. Assim, o consumo tornou-se não só autorizado, mas
ativa nos mercados de consumo é a principal virtude que se espera dos cidadãos. Há um
imperativo social de consumo e as pessoas que não correspondem a tal imperativo social
objetos ser recorrente, propaga-se a ideia de que a satisfação plena de todos os desejos
estrutura simbólica, mas que sofre mutações conforme as características de cada época,
significante mestre, que aliena o sujeito na identificação primária e inaugura o ideal de eu.
conduz a um tipo de alienação que oferece ao sujeito do desejo, caracterizado por sua
“todo-gozo” é possível pela via do consumo e a sociedade tem como orientação o gozo.
o gozo pleno a partir de maneiras de gozar inscritas na cultura. Essa ilusão oculta a perda
de gozo que é destino de todos que entram no laço social e se constituem como sujeitos do
desejo. Os sujeitos, reduzidos a consumidores, acreditam que o gozo pleno seja possível e
que não há gozo que não se possa encontrar pela via do laço social.
De acordo com Ramos (2007), a propaganda atua como uma montagem perversa
que confere ao laço social um atributo da perversão49. Ao divulgar saberes sobre o gozo, a
49
Isso não significa que no capitalismo avançado todos sejam estruturalmente perversos. Tomando como
base os ensinamentos de Askofaré (2006), é possível entender que no ensino de Lacan perversão não quer
dizer somente estrutura clínica. Falar sobre uma concepção mais histórica e cultural da perversão (montagem
perversa) não é o mesmo que afirmar que temos na contemporaneidade a preponderância de sujeitos com
estrutura perversa.
104
“gozo-todo”.
expostos nas mídias propagam formulações discursivas que disseminam um suposto saber
do consumidor sobre o gozo: “ ‘Tang: mãe sempre sabe’ ‘Sundown: deixa o sol do seu
jeito’, ‘Recreio: a diversão joga do seu lado’. Por trás do imperativo ‘Compre!’perpassa a
saber sobre o gozo que a propaganda divulga tem maior valor para a sustentação da
da propaganda está em sustentar um suposto saber sobre o gozo e em indicar, mesmo que
(...) em nossos dias, vemos proliferar a produção de saberes de gozo, dos livros
de auto-ajuda às dicas de conquista dadas pelas revistas femininas, dos
comerciais de cerveja à divulgação de substâncias para ter o corpo perfeito, da
música gospel ao estimulante e ao antidepressivo, tudo sustenta a promessa de
felicidade pelo prazer para quem “sabe o que quer”. (RAMOS, 2007, p. 103).
surgimento da produção por seguimentos do mercado50 a partir dos anos 70, as mídias
no consumo. Essa estratégia é uma forma do sistema capitalista, que não dá conta da
visto que a única opção é consumir, a sensação de liberdade de escolha e a ilusão de que as
50
A produção por seguimentos de mercado, característica do padrão toyotista de produção é uma forma de
produção muito vinculada à demanda das pessoas e visa atender às exigências mais individualizadas do
mercado consumidor. É uma forma de produção diferente da produção em série e de massa do
taylorismo/fordismo que caracterizou o capitalismo até os anos 70. Ao contrário da homogeneidade fordista,
o padrão toyotista de produção é uma forma de produção heterogênea. Para maiores esclarecimentos sobre o
tema sugerimos o livro “Os sentidos do trabalho” de Ricardo Antunes, 2009.
105
demandas mais singulares estão sendo atendidas. Assim, sustenta-se a ilusão de que todas
as inscrições de gozo são possíveis e aumenta-se cada vez mais o consumo das
mercadorias produzidas.
Nesse momento é possível dar mais um passo em nossa discussão e pensar como a
instância psíquica supereu atua nessa dinâmica. A nosso ver, o capitalismo atual parece
tirar proveito da estrutura do sujeito, sobretudo do supereu que sempre denuncia a falta do
cobrado a gozar tanto em função de sua estrutura, pelo supereu, quanto em função dos
ideais da sociedade, que o reduz a consumidor e o impele a tentar gozar pela via do
consumo de mercadorias.
basta que a propaganda sustente a ilusão de que todo-gozo é possível e produza saberes
produzindo mandatos de busca pelo gozo pleno. Sem a atuação da instância supereuoica a
propaganda não teria sua força imperativa. Ramos (2008a) enfatiza que a propaganda
precisa garantir um olhar supereuoico para atuar de forma imperativa sobre o consumidor.
Faz-se necessário a presença do olhar supereuoico para que o ideal de consumo atue como
suas modalidades de objeto olhar e voz. De acordo com a teoria lacaniana, os objetos olhar
e voz são excluídos da simbolização efetuada pela cultura e retornam do registro real
106
registro real, evidencia falta do sujeito, provoca o sentimento de culpa, e impõe ao sujeito a
busca pelo gozo pleno. Em outras palavras, o supereu real é um olhar que vigia,
demarcando a falta do sujeito, e uma voz que critica, cobrando a busca pelo alcance do
O supereu é o lugar desse paradoxo da lei: é uma lei que não tem objeto, como
nos ensina Kant, mas não deixa de tê-lo, como nos mostrou Lacan. Esse objeto é
o objeto a, que se apresenta ao sujeito como o olhar de vigilância da lei, e como a
voz da instância crítica. A lei como máxima pura (S¹) e a lei como vigilância e
crítica (a) são as duas faces do que o sujeito sofre com a instância moral. Sua
conjunção (S¹/a) faz do Outro o Um que o vigia, julga, e pune. O objeto presente
na lei se exprime, na clínica, pelo delírio de observação e, na civilização, pela
estrutura “panóptica” da sociedade escópica em que o olhar do Outro faz a lei.
(QUINET, 2004, p. 285)
De acordo com Quinet (2004), que aborda com mais precisão o objeto escópico, o
objeto olhar é a modalidade do supereu que observa o sujeito, exigindo-lhe sua retidão ao
ideal do Outro. Para Quinet (2004), a sociedade atual se organiza em torno do mal-estar
provocado pelo olhar. O olhar supereuoico situa o consumidor como mancha e faz com
que o mesmo se veja como insuficiente perante o ideal do Outro. A mancha é responsável
impõe a busca pelo gozo pleno. O ideal social de consumo aparece como um Outro não
barrado e o supereu se apoia nesse ideal do Outro consistente para impor ao sujeito barrado
consumidor e se imbricar na busca pelo gozo. Para atingir o ideal do Outro, todos precisam
ser consumidores e os que não se empenham nesse objetivo se sentem culpados. Nesse
possível, que se ampara na suposição de saber sobre o gozo, difundida pela propaganda,
diz: Goze sendo consumidor!, a culpa surge quando o sujeito se depara com a
(...) o fundamento da culpabilidade não está ligado ao fato de gozar, mas à falta
de gozo, ou seja, ao fato de que o gozo está sempre perdido, parcial, limitado e
insuficiente. Imaginar que o que torna o sujeito culpável é aceder aos gozos não
corresponde à tese de Lacan, que sustenta que ser culpável advém da
insuficiência dos gozos, ou seja, da impossibilidade própria da estrutura. Assim,
o gozo que falta advém da estrutura do significante, que em última instância, é
responsável pela divisão do sujeito, e é aí que está o verdadeiro fator causal da
culpabilidade. (TEIXEIRA, A. 2008, p.140-141)
Ramos (2008a) quando este afirma que a culpa diante da imposição ditada pelo Outro da
do consumidor.
Conforme Ramos (2008a), na sociedade que tem o consumo como ideal do Outro a
culpa aparece com o desencontro com o objeto perdido. Assim como na sociedade
inquestionável.
produção, julgamos importante destacar que a presença da culpa não significa ausência de
inconsistente faz com que o sujeito se aproprie tanto de sua divisão quanto de sua
consistente.
ultrapassam o ano de 196451, é importante destacar uma formulação de Zizek (2010) que
(2010) esclarece que, para a psicanálise, gozo não é apenas o gozo pleno, idealizado no
encontro com o objeto perdido. Gozo não é sinônimo de prazer. Com o ensinamento de
Zizek (2010) é possível entender que, enquanto o prazer está no nível do equilíbrio e da
51
Como já pontuamos em nota apresentada no item 2.3, sabemos que em estudos posteriores ao seminário
11, Lacan conceitua o objeto a como mais de gozar e que esse conceito que permite falar que com a entrada
na ordem significante há um jogo de excesso. Entretanto, apesar de compreendemos a importância do
conceito de objeto a mais de gozar para pensar como o capitalismo avançado trabalha com o excesso, para
respeitar a delimitação do presente estudo e não ultrapassar as produções lacanianas do ano de 1964, tal
definição de objeto a não será abordada. Reservamos a definição de objeto a como mais de gozar para
estudos posteriores.
109
que o objeto encontrado não seja o objeto a causa do desejo, o resto dessa operação de
busca pela plenitude faz reluzir a possibilidade de encontrá-lo. A falta que sobra da
sociedade que incentiva o consumo, em vez de trazer o gozo pleno, reduz o desejo à
falta, o movimento repetitivo do consumo trabalha com o gozo e busca encontrar o objeto
perdido.
Por ter uma dinâmica que trabalha com a ideia de que “todo-gozo” é possível, o
capitalismo atual não trabalha com a lógica do sujeito do desejo. Atuando pela lógica de
que “todo-gozo” é possível, a sociedade caracterizada pelo consumo usa a falta estrutural
do sujeito e o imperativo supereuoico Goza! para manipular os sujeitos, que são reduzidos
a consumidores.
caracterizada pelo incentivo ao consumo nega o sujeito enquanto sujeito dividido, faltante,
barrado. O capitalismo atual esmaga o sujeito tal qual a psicanálise o define, ou seja, anula
Afirmações apresentadas por Silveira (2005) reforçam essa posição. Segundo o autor, a
ética da psicanálise não se fundamenta no eu, na unidade imaginária, mas no sujeito divido
e desejante. É uma ética que traz à tona o registro real e elimina as acomodações que
Para sair dessa lógica de busca pelo gozo pleno que se evidencia na sociedade
capitalista contemporânea Quinet (2004) nos explica que é preciso saber que o Outro não é
suprime totalmente o supereu em suas faces de olhar e voz, visto que, como defendemos
Entretanto, com a apropriação por parte do sujeito de sua falta constituinte e com a
assunção de sua impossibilidade do gozo pleno, o imperativo supereuoico Goza! perde sua
potência suprema. Ao ver o Outro como barrado, o sujeito não toma o imperativo de gozo
como pressão e não precisa se ver como impotente por não alcançar o gozo pleno.
Nesse sentido, atravessar a fantasia de que é possível gozar pela via do consumo
pode ser uma forma de o sujeito considerar a falta que faz parte de sua constituição e
caminho, não do gozo, mas do desejo. Sobre tal questão, concordamos com Fingermann
(2005):
É preciso apostar que pôr em obra o pior que está no princípio do humano
possibilita barrar as grandes manobras do discurso que nega esse princípio de
saída para melhor garantir o seu império. (FINGERMANN, 2005, p. 91)
Outro faz surgir a instância psíquica supereu, responsável pelo imperativo de gozo, é
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justamente o fato de o sujeito ser faltante que lhe fornece certa liberdade perante a
imposição de gozo, que na atualidade vem tanto da estrutura do supereu como do ideal da
sociedade.
não pode ser alcançado e contentar-se com satisfações provenientes do circuito pulsional,
que contorna o objeto sem buscar capturá-lo. Para operar conforme o circuito pulsional,
que permite a renovação constante do desejo, cabe ao sujeito conceber o Outro como
essa saída pode ser encontrada pela análise em intensão. Não temos a pretensão de
apresentar uma proposta de manejo da sociedade. Entretanto, mesmo sem oferecer uma
estratégia para a erradicação do mal-estar que se apresenta na sociedade que reduz o sujeito
atual.
contemplem teorizações lacanianas que não fizeram parte de nosso escopo teórico, como a
elucidações sobre o mote em questão. Esperamos que esse trabalho mobilize a realização
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