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ISSN: 1516-1498
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil
funcionar como modelo de busca da feli- O amor seria, então, uma tentativa de fa-
cidade e reconhecera sua natureza ilusória zer desaparecer a falta original do desejo.
no sentido de consolar e tornar tolerável A situação paradoxal do amor, no entanto,
o mal-estar próprio do desejo humano. também é reconhecida por Freud e por
Como delinear as diferenças e articu- Lacan: se o encontro amoroso proporcio-
lações entre o amor e o desejo sexual, ter- na, por um lado, um certo apaziguamento
mos de uso comum que, na psicanálise, ao alimentar a ilusão da completude per-
ganham contornos originais? Recorrendo dida, por outro lado, implica sempre um
ao texto freudiano e ao ensino de Lacan, efeito de logro, pois basta amar para que o
Nadiá nos leva a considerar como tal ques- sujeito se reencontre com essa hiância es-
tão se revela fundamental à definição da trutural, como diz Lacan, na medida em
especificidade do campo da psicanálise. que o que falta ao sujeito (amante), o
Fazendo sobressair o tema do amor, per- objeto (amado) também não tem.
corre, habilmente, as elaborações destes A diferença entre amor e sexo é a se-
autores, de seu nascimento às suas refor- gunda articulação da autora. Para Freud, o
mulações, destacando o vigor conceitual termo ‘amor’ é reservado para o movi-
ali contido. Sua indicação central é de que mento do eu na direção do objeto para
o lugar do amor deve ser situado a partir além da relação de puro prazer. Ou seja,
do encontro sempre faltoso do sujeito com ainda que portando a marca do pulsional
a sexualidade, conforme Lacan o formula, (sexual), o amor a ultrapassa. Lacan dirá
avançando na direção apontada por Freud. que, quando se trata do amor, o que está
Eis o mote de três articulações iniciais que em jogo é a suposição de um ser no ou-
contextualizam o pensamento de Freud e tro. Iludido pelo significante (que suge-
Lacan sobre o amor, além de introduzir a re que haja ser), o sujeito busca, com o
perspectiva ética da psicanálise. amor, fazer signo, suspendendo, ainda
Em sua primeira articulação – a relação que provisoriamente, o deslizamento
entre amor e castração –, podemos situar infinito do desejo.
o “problema do amor”. A esperança de Finalmente, a autora chama a atenção
completude, facilmente reconhecível para a relação entre amor e gozo, o segun-
quando se trata deste sentimento, tem do apontando, para Lacan, a ordem do
como fundamento uma perda original, excesso, para além do prazer. Aqui, o sofri-
colocada por Freud em termos de objeto mento, embora relativamente comum no
perdido de uma satisfação primeira e ori- campo do amor, particularmente em sua
gem de um profundo e permanente an- vertente de paixão, revela uma possibili-
seio por seu retorno, o qual recebe o nome dade de enlace com o gozo e, portanto,
de ‘desejo’. Freud situa a busca amorosa de manifestar sua face mortífera, pois o
(ou escolha de objeto) em uma perspec- prazer não mais o limita.
tiva distinta, mas não independente da Colocadas as balizas iniciais, Nadiá de-
sexualidade, uma vez que apoiada nos la- fende que, para Freud, o amor está ligado
ços com os primeiros objetos. Tomando o mais à idealização, enquanto para Lacan, à
conceito de objeto pulsional em sua radi- sublimação. Na obra freudiana, o amor é, a
calidade, Lacan define-o como faltoso. Ou princípio, situado do lado da pulsão se-
seja, a falta de objeto seria uma condição xual, enraizando-se no narcisismo primá-
primordial, marca da entrada do sujeito rio. Ou seja, amor e sexo compartilham,
no mundo simbólico, da linguagem. em sua constituição, o prazer parcial
ligado, de início, à boca. Amar como sinô- seu interesse na formulação de sua estru-
nimo de devorar seria, então, a primeira tura. Ressaltando a dificuldade de se dizer,
configuração do amor. Além disso, o amor sobre o amor, algo que se sustente, Lacan
seria independente do ódio (forma mais circunscreve uma primeira distinção fun-
primitiva de relação com o objeto), opon- damental: o amor como paixão imaginá-
do-se a este apenas sob a regência do prin- ria e o amor em sua face simbólica. O amor-
cípio de prazer. Mais tarde, com a intro- paixão se dirige ao outro como objeto,
dução do conceito de narcisismo, impli- buscando complementaridade e revelan-
cando em que o eu é também objeto da do sua raiz narcísica, já indicada por Freud.
pulsão sexual, Freud distingue duas for- Ou seja, o sujeito ama para ser amado. Acres-
mas de amar, mas não se descuida de dis- centa que a paixão (além do amor, o ódio
cutir os destinos pulsionais. A escolha amo- e a ignorância) é, justamente, a alienação
rosa seria marcada, então, pela divisão da do desejo no objeto. Em sua face simbóli-
libido entre o eu e o objeto, implicando ca, diferentemente, o eixo do amor é si-
uma supervalorização do eu ou do objeto tuado, não no objeto, mas naquilo que o
e sendo denominada, respectivamente, objeto não tem. Como dom ativo, o amor
narcisista e anaclítica (mais tarde, ligada à visa o ser, para além da captura imaginária,
identificação e à idealização). O amor, sustentando-se e equivocando-se na tra-
modelado pelas primeiras experiências, e ma significante. O que Lacan sublinha é,
as pulsões sexuais, com seus pontos de sobretudo, a falta de harmonia fundamental
fixação, são considerados dois campos dis- entre sujeito e objeto. Como a linguagem,
tintos, ambos funcionando como se o o amor, em sua vertente simbólica, revela
tempo houvesse parado. É, especialmen- um esforço, sempre precário, de fazer fren-
te, em sua vertente de idealização, na qual te ao real da falta.
o objeto é tomado como fonte de todo Lacan destacará, também, do amor como
bem, que Freud destaca a tendência a uma recusa do dom, articulando-o com a pulsão
relação de submissão neurótica a este. Há de morte e com a sublimação, pois, em
uma preciosa indicação da autora sobre a seu centro, habita o vazio e não o objeto.
aproximação, realizada por Freud, entre o O amor cortês é um entre os exemplos
amor e os destinos da pulsão sexual, que trabalhados pela autora para explicitar os
devemos destacar. Não obstante a distin- meandros desta modalidade de amor, que
ção estrutural, os dois campos mantêm se apóia na renúncia ao objeto. A elabo-
pontos de conexão, que podem ser en- ração teórica encaminhada por Lacan tem
trevistos na ampliação da oposição amor e como um de seus pontos fundamentais
ódio (que passa a incluir a indiferença e o as diferentes posições subjetivas diante
ser amado). Finalmente, com a formula- do objeto amoroso e dupla possibilida-
ção da pulsão de morte, Freud volta a reu- de do amor de manter ou apagar a falta
nir amor e sexo sob a denominação de viva do desejo.
Eros, agora tomado em seu poder de opo- A relação entre amor e saber, na trans-
sição frente à morte. ferência, constitui um importante desdo-
As contribuições de Lacan sobre o tema bramento realizado por Lacan: o amor de
do amor atravessam seu ensino, avançan- transferência, em sua essência amor-pai-
do em caminhos abertos por Freud. Tam- xão, seria acompanhado da ignorância,
bém ele se deixa instigar por Eros, usando paixão sustentada, simultaneamente, por
a expressão “teoria do amor” para afirmar um “não-querer-saber” e pela suposição