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Resumo
Este artigo resulta de uma pesquisa iniciada em 2010 cuja questão principal se
apresentou com o título “O amor e suas letras”,1 direcionando-nos para a leitura de um
conjunto de textos tanto da psicanálise quanto da literatura. Ele tem como objetivo
discutir a proposição de que uma estruturação psíquica, conforme se pode depreender na
elaboração freudiana, ou então, de que o processo de causação de um sujeito –
elaboração lacaniana – relaciona-se em algum ponto com as condições ou possibilidades
de amar. A partir de alguns elementos colhidos em diversas letras da música popular
brasileira, vamos discutir, numa dimensão clínica, a possível articulação entre o amor, o
desejo, a pulsão e a escrita. A noção de estranho faz-se importante, pois nos convoca a
considerar, numa constituição, tanto o que lhe é familiar quanto o que lhe escapa,
desconfigurando-a. Outro ponto importante é o conceito de letra em Lacan, que nos
permite pensar o sujeito do inconsciente não apenas submetido à linguagem, mas
também referido ao objeto.
Abstract
It Was Written, But Not in The Stars: Considerations About Love in Literature
and Psychoanalysis
This article results from a survey begun in 2010 whose main issue was presented
through the title "Love and its lyrics",3 and centered on the reading of a set of texts on
both psychoanalysis and literature. It aims to discuss the proposition that a psychic
structure, as can be deduced from Freudian thought structure, or rather, that the process
of causation of a subject - Lacanian thought structure – is related at some point to the
conditions or possibilities of love . Using certain elements collected from the various
lyrics of Brazilian popular music, we will discuss, from a clinical viewpoint, the
possible connection between love, desire, drive and the writing. The notion of uncanny
is important because, in a constitution, it calls us to consider both what is familiar and
what escapes us, thereby disconfiguring it. Another important point is the concept of
letter in Lacan, which allows us to think about the subject of the unconscious not only
subjected to the language, but also in reference to the object.
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desde “o período em que o ego não se infalivelmente à nossa casa.” (p. 44) O
distinguira ainda nitidamente do mundo argumento primeiro de Freud não
externo e de outras pessoas” (p. 295). parece ser diferente: “o estranho
O estranho, portanto, provém de algo familiar que foi
acompanha Nataniel e o faz sentir seus reprimido” (p. 307); ao que ele
efeitos desde o momento em que o eu- acrescenta: “uma experiência estranha
Nataniel era objeto, outro. E mais: sua ocorre quando os complexos infantis
fixação nesse lugar o impede de amar que haviam sido reprimidos revivem
uma mulher. Isso se escreveu. Ao uma vez mais por meio de alguma
contrário de uma entrada no estádio, impressão, ou quando as crenças
palco em que se joga o jogo amor- primitivas que foram superadas parecem
pulsão-desejo-amor, o que se vê aí na outra vez confirmar-se” (p. 310).
história desse rapaz? Seu sugamento Depois, por fim, sua cartada que faz
pelo buraco negro, a que Freud chama com que a questão permaneça: “essas
de pulsão de morte – “compulsão à duas categorias de experiência estranha
repetição, procedente dos impulsos nem sempre são nitidamente
instintuais [...] compulsão poderosa o distinguíveis” (p. 310). Ao contrário,
bastante para prevalecer sobre o para Freud (1919/1976) as crenças
princípio do prazer” (p. 297). Não lhe primitivas não apenas se relacionam
foi possível se haver com o grande mal- intimamente com os complexos infantis,
entendido em que se resume nossa vida. mas também se baseiam neles.
Ele não foi tão bem enganado como se Por isso, a seguinte questão: qual
esperava pela operação significante. é exatamente o valor dessa
Estranho é como Kafka (1999) argumentação de que o estranho provém
caracteriza um tal ser “que se chama de algo familiar que foi recalcado, se na
Odradek” (p.43): ele “é literatura imaginativa (histórias de
extraordinariamente móvel e não se fadas, por exemplo) quase todos os
deixa capturar”; “ele se detém exemplos contradizem a nossa hipótese?
alternadamente no sótão, na escadaria, Mas, o interessante é que Freud não a
nos corredores, no vestíbulo”. “Às abandona, e sim propõe como ponto
vezes fica meses sem ser visto; com possível de resolução distinguir entre “o
certeza mudou-se então para outras estranho que realmente experimentamos
casas; depois porém volta e o que simplesmente visualizamos ou
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sobre o qual lemos” (p. 308). Ele em alemão? Algo que é do próprio Eu,
exemplifica, para explicar essas duas mas que ao mesmo tempo o ultrapassa?
situações: primeiro, tomando o estranho Sim, mas também algo que, às vezes, o
ligado à onipotência de pensamentos, à ultrapassa de modo horrorizante – que
realização de desejos aparentemente às vezes se trata do próprio
impossíveis, aos poderes secretos do aniquilamento desse Eu. Outro
mal e ao retorno dos mortos, pode-se paradoxo efetivamente evocado com
considerar que se trata de “uma questão esse termo é a relação entre semblante e
de teste de realidade, uma questão da real. O amor, por exemplo, que faz
realidade material dos fenômenos” (p. semblante ao que pode haver de terrível
309); segundo, embora o estranho que – ao real, contornado pelas
provém da experiência real seja quase estruturações simbólicas e,
sempre pertencente ao primeiro grupo, singularmente, pelo modo peculiar de
ele se torna diferente quando “provém um sujeito ocupar sua posição subjetiva
de complexos infantis reprimidos, do – encadeia-se retomando
complexo de castração, das fantasias de incessantemente os primeiros traços de
estar no útero, etc.” (p. 309). uma história cujo primeiro capítulo foi
Aqui, em nossa leitura, parece escrito antes mesmo de o Eu ter nascido
emergir um ponto fundamental: para ali.
Freud (1919/ 1976), uma coisa é o Há algo, portanto, no processo
estranhamento intelectual, enquanto que de causação do sujeito que já estava
outra, bem diferente, é o estranhamento escrito, e o amor então seria uma
que, para além de recalcar um conteúdo maneira de o Eu aí advir e se organizar
ideativo, põe em suspensão a própria em seu movimento de báscula,
realidade material, isto é, um tal ponto duplicando-se em um e outro. Pode ser
da estruturação do sujeito em que essa este o sentido do condescender usado
tal realidade não surge, sendo que “o acima: o amor permite uma estruturação
seu lugar é tomado pela realidade simbólica, desejante, na qual o sujeito
psíquica” (p. 309). Em vez da lógica pode contornar o gozo sem ser por ele
racional, o que temos aqui senão a engolido. Como Freud nos diz, tanto o
lógica da sexualidade? amor quanto a arte, além de evocarem
O que se quer dizer com esse inúmeros enigmas, constituem-se como
termo “estranho-familiar”, Unheimlich destinos sublimados das pulsões. Lacan,
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por sua vez, o denomina como “a vivo, humano. Não se trata de pensar
sublimação do desejo” (1962- essa linguagem como mais um
1963/2005, p. 198) ou amor-sublimação instrumento para o homem, e sim como
que permite ao gozo condescender. uma possibilidade ou uma maneira
De fato, guardadas as devidas singular de o mundo se escrever nele (e
diferenças com a dimensão em que para ele). Para a psicanálise, a escrita
poderíamos articular arte e sublimação, diz respeito, então, à maneira como,
o amor pode ser tomado aqui como primeiramente, um sujeito é falado e
fundamental ao propósito de se pensar antecipado. Escrita e amor, literatura e
análise e sublimação, pois podemos psicanálise: a verdade em todos esses
dizer que na experiência analítica o que casos não pode ser sulcada senão devido
se põe em questão são as condições para à negatividade dos significantes, em
que o amor advenha e faça ver seus cuja cadeia o sujeito é representado.
efeitos. O sujeito se põe a tecer com sua As várias vezes que Freud
fala os significantes que marcaram sua insiste em que o efeito de
história desde a infância, e esse trabalho estranhamento não se encontra
pode lhe render algumas efetivamente relacionado aos fatores
reconfigurações em sua pauta corporal, racionais, e sim à trama constitutiva das
que à primeira vista pode nos parecer pulsões, bem como o retorno de Lacan
fixa e definitiva. aos conceitos freudianos oferecem-nos,
sem dúvida, boas pistas para que
Corpo e Escrita pensemos a implicação da psicanálise
com a literatura. Por isso, quando se
Voltamos, portanto, ao muro, fala de escrita em psicanálise, o que se
l’amour, da linguagem. É da nossa evoca e se põe em questão é que um
tentativa de dizer algo sobre esse pas- significante e seu encadeamento,
possible (não-possível, passo-possível) mesmo ao desempenhar sua função de
que evocamos no título deste texto o semblante, pode também provocar
fato de que o amor, quando acontece, já rupturas no real, devido a seus
estava escrito, mas não nas estrelas.4 rearranjos, à sua insistência e a seus
Interessa-nos, por exemplo, indagar modos peculiares de sulcar o corpo. Ele
sobre os efeitos que a linguagem pode às vezes tem o poder de dissolver o que
trazer ao implantar-se num organismo já constituía forma e fazer precipitar o
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3) An issue – love and its lyrics – proposed by the XII Jornadas de Formação Clinícas at
the Forum of the Rio de Janeiro Lacanian Association, held in November, 2010.
4) Título que emerge também de uma letra de música, Escrito nas estrelas (composição
de Arnaldo Black e Carlos Rennó), que o Brasil conheceu em 1985 na voz de Tetê
Espíndola. Venceu, nesse ano, o Festival dos festivais da Rede Globo bem como bateu
os recordes de execução e vendagens, ganhando inclusive o disco de ouro. Eis um
trecho: Caso do acaso/ Bem marcado em cartas de tarô/ Meu amor, esse amor/ De cartas
claras sobre a mesa/ É assim/ Signo do destino/ Que surpresa ele nos preparou/ Meu
amor, nosso amor/ Estava escrito nas estrelas/ Tava, sim”.
5) O tempo 2 incide sobre o tempo 1, que por sua vez volta modificado no tempo 2, e
assim “sucessivamente” – sucessões às custas de itermitências.
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6) Esta frase diz respeito ao desejo de vingança de Atreu contra seu irmão Tiestes, que
seduzira/desencaminhara a esposa do primeiro, bem como ao desejo de vingança de
Dupin contra o ministro, que desviara a carta da rainha.
Referências
Buarque, Chico; Nascimento, Milton. (Acesso em 20 de maio, 2014). O que será (À flor
da pele). Disponível em http://www.vagalume.com.br
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Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Trabalho original publicado em 1962-1963).
Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1968-1969)
Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1971)
Poe, E. A. (s/d). A carta roubada. In E. A. Poe, Os melhores contos de Edgar Allan Poe.
São Paulo: Círculo do livro.
Tom Zé. (s/d). Menina, amanhã de manhã (O sonho voltou) In: Warner 30 anos.
Manaus-AM: Waner Music Brasil Ltda.
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