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DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

LEPLAT, J. & HOC, J.-M. Tarea y actividad SCHWARTZ, Y. Le Paradigme Ergologique


en en el análisis psicológico de situationes. ou un Métier de Philosophe. Toulouse:
In: CASTILLO, J. & VILLENA, J. (Orgs.) Octarès, 2000.
Ergonomía: conceptos y métodos. Madrid:
TEIGER, C. El trabajo, ese oscuro objeto
Editorial Complutense, 1998.
de la Ergonomía. In: CASTILLO, J. &
MONTMOLLIN, M. Vocabulaire de VILLENA, J. (Orgs.) Ergonomía: conceptos y
L’Ergonomie. Toulouse: Éditions Octarès, métodos. Madrid: Editorial Complutense,
1995. 1998.

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TRABALHO REAL

Jussara Cruz de Brito

Como uma primeira definição de a produção deste comportamento não


‘trabalho real’ (‘atividade’), pode-se são diretamente observáveis.
dizer que é aquilo que é posto em jogo O esforço conceitual sinalizado na
pelo(s) trabalhador(es) para realizar o expressão ‘trabalho real’ está vincula-
trabalho prescrito (tarefa). Logo, tra- do ao pressuposto de que as prescri-
ta-se de uma resposta às imposições ções são recursos incompletos, isto é,
determinadas externamente, que são, que desde a sua concepção elas não
ao mesmo tempo, apreendidas e mo- são capazes de contemplar todas as
dificadas pela ação do próprio traba- situações encontradas no exercício co-
lhador. Desenvolve-se em função tidiano de trabalhar. Nesse sentido, é
dos objetivos fixados pelo(s) dada ênfase ao papel das pessoas
trabalhador(es) a partir dos objetivos como protagonistas ativos do processo
que lhe(s) foram prescritos. A parte produtivo (e não como ‘fator’ ou ‘re-
obser vável da atividade (o curso’ humano). Mesmo no caso de
comportamental) é apenas um de seus tarefas muito repetitivas, cabe ao tra-
aspectos, pois os processos que geram balhador fazer regulações/ajustes/des-

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Trabalho Real

vios – mesmo que infinitesimais – que estão ligadas, principalmente, às carac-


garantam a continuidade da produção. terísticas das equipes (qualificações e
Isso implica o questionamento de ex- competências dos diferentes profissi-
pressões, como ‘trabalho manual’ ou onais, se são majoritariamente com-
‘trabalho de execução’, que não assi- postas de mulheres, de homens ou
nalam ao caráter ativo (mobilização mistas, diferenças culturais, de ritmo
cognitiva e afetiva) do trabalhador. etc.) e às mudanças de ‘estado’ de cada
Fundamentalmente, a defasagem trabalhador durante a jornada, mês ou
sempre existente entre o trabalho pres- ano (condições de saúde, problemas
crito e o ‘trabalho real’ se deve ao fato extraprofissionais, nascimento de fi-
de as situações reais de trabalho serem lhos, desenvolvimento de competên-
dinâmicas, instáveis e submetidas a cias, expectativas e perspectivas pro-
imprevistos, conforme mostram os fissionais, efeitos da idade, fadiga etc.).
estudos realizados no âmbito da Conseqüentemente, a compreensão da
‘ergonomia da atividade’, desde do fi- atividade não se limita ao que é posto
nal da década de 1960. Portanto, a ati- em jogo pelo(s) trabalhador(es) para
vidade de trabalho envolve estratégias realizar o trabalho prescrito, pois al-
de adaptação do prescrito às situações guns de seus determinantes são encon-
reais de trabalho, atravessadas pelas trados na história da pessoa ou equi-
variabilidades e o acaso. pe, na cultura.
Do ponto de vista do sistema A atividade de trabalho (‘trabalho
sócio-técnico, as variabilidades dizem real’) pode ser definida, então, como
respeito a oscilações normais do pro- um processo de regulação e gestão das
cesso produtivo (por exemplo, quan- variabilidades e do acaso. Compreen-
to à quantidade e tipo de produtos/ der a atividade de trabalho é compre-
atendimentos/procedimentos/ações ender os compromissos estabelecidos
ao longo do dia, mês ou ano) ou re- pelos trabalhadores para atender a exi-
sultam de imprevistos e disfuncio- gências freqüentemente conflitivas e
namentos (falhas ou defeitos em equi- muitas vezes contraditórias. Esses com-
pamentos, problemas com instalações, promissos se vinculam a dois pólos de T
inadequação ou falta de material, pro- interesses: os relativos aos próprios tra-
blemas relativos aos fluxos previstos e balhadores (saúde, desenvolvimento de
à comunicação etc.). Do ponto de vista competências, prazer) e os relativos à
dos trabalhadores, as variabilidades produção. A atividade de trabalho é,

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portanto, sempre singular, dado que ser capazes de construir estes proble-
caracteriza o trabalho de indivíduos mas, como sinalizou há décadas o
singulares e instáveis/variáveis, efetua- ergonomista Alain Wisner.
do em contextos singulares e variáveis A inteligência do/no trabalho, de
(em suas dimensões materiais, acordo com a psicodinâmica do tra-
organizacionais ou sociais). balho (Dejours, 1997), se caracteriza
Além disso, a defasagem entre a pela astúcia a que é necessário recorrer
prescrição e a realidade do trabalho diante das dificuldades da prática. É
também se deve à diferença entre o uma forma de inteligência criativa,
discurso produzido sobre a prática e multiforme e móvel, o que permite
aquilo que os trabalhadores experimen- uma atuação exitosa nos processos de
tam concretamente na prática. Trata- trabalho, com suas instabilidades. Um
se dos limites das rotinas e protocolos outro traço desta inteligência – que tem
tomados como referência, indicando como modelo uma divindade femini-
que há sempre uma parte da atividade na da Grécia Antiga, Mètis – é que suas
que não é traduzida em palavras. É por capacidades estão sempre enraizadas
isso que a abordagem da ‘psicodi- no corpo. A inteligência da prática está
nâmica do trabalho’ chama a atenção relacionada com ajustes feitos às nor-
que trabalhar implica sair do discur- mas prescritas, visando solucionar as
so para confrontar-se com o mundo. dificuldades experimentadas no con-
E nesse confronto os trabalhadores fronto com o real (e não previstas nos
não ‘aplicam’ os saberes adquiridos manuais, protocolos etc.). Portanto, o
(não são ‘executores’), mas, afetados trabalho envolve inteiramente aquele que
pela situação de trabalho, mobilizam- trabalha, tem sempre um caráter
se, operando com o patrimônio de inventivo e, neste sentido, é enigmático.
saberes adquiridos, produzindo no- A evolução do debate sobre o
vos elementos. hiato entre trabalho prescrito e ‘traba-
Observa-se, além disso, que os lho real’ tem levado à efervescência e
problemas que os trabalhadores têm renovação conceitual da noção de ati-
de resolver, além de nunca estarem vidade de trabalho – para muitos mais
definidos inteiramente no enunciado fértil que a noção de ‘trabalho real’.
formal de suas tarefas prescritas, não Yves Schwartz (2005), na perspectiva
estão totalmente definidos a priori; ou da ergologia, aponta três razões para
seja, são os trabalhadores que devem esta efervescência do debate. Primei-

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Trabalho Real

ramente, porque se trata de uma no- re-se a um plano muito específico e


ção que não pode ser absorvida total- local do trabalho (seu nível ‘micro’),
mente por nenhuma disciplina, na sua acepção tem sido renovada pela
medida em que a atividade atravessa indicação de que o foco sobre o micro
o biológico, o psicológico e o cultural, remete ao macro – e vice-versa. Dito
o individual e o coletivo, o fazer e os de outro modo: o foco sobre a ati-
valores, o privado e o profissional, o vidade de trabalho permite tanto com-
imposto e o desejado. Em outras pa- preender os condicionantes econômi-
lavras, a atividade faz uma síntese des- cos e sociais dos processos produtivos
ses diversos elementos, pois nas situa- quanto reconhecer a história singular que
ções concretas não é possível separá- se faz no cotidiano desses processos. É
los: o fazer é impregnado de valores, nesse sentido que a perspectiva
o privado se articula com o profissio- ergológica propõe um vai-vem entre
nal etc. Logo, a atividade de trabalho micro e macro: um dado olhar sobre
não pode ser vista apenas de um ân- as dificuldades e possibilidades encon-
gulo, compreendê-la, operar com este tradas nas situações concretas de tra-
conceito, exige o diálogo entre diver- balho, buscando identificar aí as mar-
sas disciplinas, diferentes campos de cas da história de uma sociedade (seu
saberes. A ergologia chama atenção que desenvolvimento científico e cultural,
este debate sinérgico proposto envol- as relações de poder instituídas) e seus
ve necessariamente os protagonistas do valores. Nesse sentido, a atividade de
trabalho em análise, remetendo para a trabalho é sempre um ‘encontro’ en-
discussão sobre um dispositivo perti- tre ‘micro’ e ‘macro’: no caso dos ser-
nente à geração de saberes para com- viços de saúde, um encontro entre, de
preender-transformar positivamente o um lado, diferentes profissionais (com
trabalho. seus saberes particulares e distintas for-
A efervescência da noção de ati- mas de inserção do processo), usuári-
vidade de trabalho está vinculada tam- os (com suas histórias de vida e con-
bém ao seu caráter de mediação entre dições clínicas), chefias, equipes,
o ‘micro’ (o espaço-tempo onde ocor- tecnologias; de outro lado, políticas e T
re o processo de trabalho) e o ‘macro’ programas de saúde, legislações, a
(seu contexto social, econômico e po- estruturação da rede assistencial etc.
lítico), entre o local e o global. Se apa- Atividade como encontro que envol-
rentemente a noção de atividade refe- ve lógicas distintas: a lógica do cuida-

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do, a lógica da gestão do serviço e a normas econômicas e técnicas suben-


lógica financeira. O ‘trabalho real’ acon- tendidas na atividade de trabalho seria
tece neste encontro, e é o trabalhador, pensá-lo numa perspectiva apenas
individual e coletivamente, que faz a adaptativa, o que, na verdade, não dá
gestão de tudo isso no cotidiano, mui- conta da complexidade da vida e do
tas vezes ‘se virando’. É nesse sentido trabalho. Do mesmo modo que é im-
que ‘trabalhar é gerir’, e que a atividade possível eliminar as variabilidades do
de trabalho envolve sempre criação. meio de trabalho (conforme eviden-
Há ainda uma outra razão para ciou a ergonomia da atividade), não se
efervescência da noção da atividade. pode viver sob um regime de total im-
Ela remete, simultaneamente, às nor- posição deste meio já-dado, isto é, de
mas antecedentes instituídas e suas normas antecedentes. Diante de-
enraizadas nos processos de trabalho las, na situação real de trabalho, os tra-
e à tendência dos seres humanos de balhadores (re)criam estratégias, em um
criar novas normas diante dos desafi- movimento contínuo de (re)nor-
os do cotidiano (renormatizações). Ou matização. É nesse sentido que Yves
seja, o ‘trabalho real’ é um lugar de Schwartz (2005), na linhagem de
debates de normas e valores, como se Canguilhem, afirma que em toda ativi-
entende na perspectiva ergológica. dade de trabalho há sempre ‘uso de si’.
Para entender essa afirmação, lembre- De um lado, ‘uso de si pelos outros’,
mos que há normas (antecedentes) como nos é mais visível; de outro, algo
propostas-impostas, ligadas a instân- que é mais difícil de considerar: ‘uso de
cias exteriores aos indivíduos, assim si por si’. Sim, pois os trabalhadores
como há normas instauradas na pró- precisam – nas situações reais de traba-
pria atividade (renormatizações), liga- lho – mobilizar-se, fazer uso de suas
das ao próprio indivíduo – pois, con- próprias capacidades, de seus próprios
forme Canguilhem (2001), cada um recursos e de suas próprias escolhas,
busca ser produtor de suas próprias além de fazer uso de si para mobilizar
normas, re-centrando a situação de redes de parceiros, para equacionar e
trabalho. As normas que o indivíduo gerir os problemas emergentes, as vari-
(re)inventa não são da mesma nature- abilidades, as diferentes lógicas e as di-
za que as normas às quais ele se con- ferentes normas então presentes.
fronta em seu trabalho. Pensar o tra- Nesta mesma perspectiva, na
balho como reprodução idêntica das abordagem da clínica da atividade

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Trabalho Simples

(Clot, 2006), sinaliza-se que, para uma construção fundada em regras produ-
melhor compreensão da atividade de zidas pelos coletivos de trabalho, a
trabalho, se deve considerar também partir de critérios de eficácia e de va-
o que não se fez e o que não se faz, lores. Esta cooperação depende de
por não querer ou poder, assim como condições favoráveis à mobilização
aquilo que se tem vontade e se pensa subjetiva – que por sua vez está relaci-
fazer em outro momento. Esta abor- onada à dinâmica do reconhecimento
dagem enfatiza que o conceito de ati- das contribuições dos trabalhadores
vidade de trabalho deve englobar, além (invenções e ajustes feitos) para que não
do trabalho realizado e dos obstácu- haja uma paralisação da produção.
los encontrados, também as possibili- Trata-se de uma dinâmica que passa
dades de desenvolvimento da ativida- necessariamente pela visibilidade do
de, remetendo ao trabalho como ‘zona que se faz (das transgressões), exige a
de desenvolvimento potencial’ e às possibilidade de confiança, compreen-
potencialidades do agir individual e co- de a existência de um espaço público
letivo no trabalho – aquilo de novo que interno no meio de trabalho, passa por
no trabalho cada um pode se tornar. um julgamento – por parte dos pares,
Todo este debate sobre o ‘traba- da hierarquia e dos clientes – sobre o
lho real’ e mais especificamente sobre ato profissional e o seu produto, en-
o conceito de atividade de trabalho fim, pelo reconhecimento da contri-
mostra que este é um assunto atraente buição. Logo, o ‘trabalho real’ apre-
e complexo, envolvendo vários aspec- senta também uma dimensão subjeti-
tos. A dimensão coletiva do trabalho va e intersubjetiva.
exige ser considerada. Já foi evidenci- Considerar a dimensão coletiva
ado pela ergonomia da atividade e pela do trabalho implica ainda reconhecer
psicodinâmica do trabalho que a or- que diferentes redes são formadas para
ganização real do trabalho se baseia na que as atividades se desenvolvam. Re-
cooperação espontânea entre os tra- des que podem envolver contatos
balhadores, ao contrário da organiza- presenciais diretos ou comunicações
ção prescrita do trabalho que busca telefônicas ou escritas, que podem se T
definir separadamente os papéis, os constituir e em seguida se desfazer, mas
domínios de competência e as respon- que integram o ‘trabalho real’. Por
sabilidades de cada um. A coopera- exemplo, no cuidado de recém-nasci-
ção não pode ser prescrita: é uma dos prematuros, em uma UTI-

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Neonatal, se constitui um coletivo tran- Para saber mais:


sitório formado por profissionais da
equipe de enfermagem e as mães dos CANGUILHEM, G. Meio e normas do
bebês. Outro exemplo: redes que se homem no trabalho. Proposições, 12(2-3):
35-36, jul.-nov., 2001.
criam a partir da ação do Programa
Saúde da Família (PSF), envolvendo CLOT, Y. A Função Psicológica do Trabalho.
Petrópolis: Vozes, 2006.
inclusive a comunidade.
Para concluir: é muito importante DEJOURS, C. O Fator Humano. São Paulo:
Ed. FGV, 1997.
e difícil apreender o ‘trabalho real’,
especialmente quando este envolve tão DANIELLOU, F. (Org.) A Ergonomia em
Busca de seus Princípios: debates epistemológicos.
poderosamente um componente
São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2004.
relacional, como o trabalho em saúde.
SCHWARTZ, Y. Actividade Laboreal, 1(1):
O fundamental é não negar que desvi-
63-64, 2005. Disponível em: <http://
os, ajustes, transgressões, micro-decisões laboreal.up.pt>.
fazem parte desse universo, pois o tra-
WISNER, A. A Inteligência no Trabalho:
balho humano é sempre necessário textos selecionados de ergonomia. São Paulo:
para fazer face aos acontecimentos. Fundacentro, 1994.

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TRABALHO SIMPLES

Júlio César França Lima


Lúcia Maria Wanderley Neves
Marcela Alejandra Pronko

Conceito formulado por Karl tanto, historicamente determinados. O


Marx, no volume 1 de O Capital, em ‘trabalho simples’, ao contrário do tra-
1867, como par do conceito ‘trabalho balho complexo, caracteriza-se por ser
complexo’. Ambos os conceitos refe- de natureza indiferenciada, ou seja, dis-
rem-se à divisão social do trabalho, que pêndio da força de trabalho que “todo
existe em qualquer sociedade, mudan- homem comum, sem educação espe-
do de caráter de acordo com os paí- cial, possui em seu organismo” (Marx,
ses e os estágios de civilização e, por- 1988, p. 51).

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