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A vinculação constitucional de recursos para


a saúde: avanços, entraves e perspectivas

Constitutional binding of resources for the health


sector: breakthoughs, barriers and perspectives

Ana Cecília de Sá Campello Faveret 1

Abstract As in other public policies, financ- Resumo Como em outras políticas públicas, o
ing is a powerful element which induces strate- financiamento é um poderoso elemento indu-
gies and actions in the health sector. On one tor de estratégias e ações de saúde. Se, por um
hand, the financial decentralization put for- lado, a descentralização financeira promovi-
ward by the Federal Constitution of 1988 al- da pela Constituição Federal de 1988 possibi-
lowed municipalities to effectively take charge litou aos municípios a assumirem efetivamen-
of their financing role in the health policy. On te parte do financiamento da política de saúde,
the other hand, during the first half of nineties, por outro lado, na primeira metade da déca-
there was great instability of the federal fi- da passada, houve grande instabilidade do fi-
nancing of health. The Constitutional Amend- nanciamento federal da saúde. A Emenda
ment n. 29/00, which binds fiscal resources to Constitucional n. 29/00, ao vincular recursos
expenditures with public health services and tributários de estados e municípios a despesas
actions, was the way out of this situation. Its com ações e serviços públicos de saúde, foi a
effective implementation, however, depend up- solução encontrada para o quadro. A sua real
on the advances in the understanding of the implementação, contudo, depende dos avan-
terms of the Constitution by the actors in the ços nos entendimentos do texto constitucional
public health sector. Nonetheless, it is already pelo conjunto de atores da política de saúde.
possible to estimate that the share of the states Desde logo, contudo, estima-se que a partici-
in the financing of public health will improve pação dos estados no financiamento da saúde
greatly, while the federal government share will aumente substancialmente, reduzindo-se a fa-
decrease and the municipalities will, in aver- tia da União, e havendo manutenção dos ní-
age, maintain their current level of public veis médios atuais de gastos municipais. Essa
spending in health. This may imply that sub- situação poderá implicar maior grau de auto-
national governments will have greater au- nomia das esferas subnacionais na definição e
tonomy in the design and implementation of implementação da política de saúde.
health policies. Palavras-chave Política de saúde, Saúde pú-
1 Ministério da Saúde,
Sistema de Informações
Key words Health policy, Public health, Fi- blica, Financiamento, Sistema Único de Saúde
sobre Orçamentos Públicos nancing, Unified Health System
em Saúde.
Rua Joaquim Nabuco 186/
301, Ipanema, 20080-030
Rio de Janeiro RJ.
afaveret@iis.com.br
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Introdução A partir de 1993, particularmente com a es-


pecialização da folha de salários no financia-
A discussão da implementação do Sistema Úni- mento dos gastos previdenciários do Instituto
co de Saúde (SUS) no Brasil está intimamente Nacional do Seguro Social (INSS) e, mais recen-
ligada aos aspectos relativos às formas de finan- temente, com a competição do Ministério da
ciamento setorial desenhadas pelo Ministério Previdência pelas demais contribuições sociais,
da Saúde. É por meio delas que, desde o início da o estabelecimento de fontes estáveis para o fi-
década de 1990, estados e municípios têm aces- nanciamento público da saúde tornou-se ainda
so aos recursos federais de modo mais ou menos mais essencial. Afinal, a estabilidade de gastos é
automático, de acordo com as condições de ges- um dos principais requisitos na garantia da ma-
tão estabelecidas pelas Normas Operacionais do nutenção de um sistema baseado no financia-
SUS e, mais recentemente, pela Norma Opera- mento público e na cobertura universal.
cional da Assistência à Saúde (NOAS). Do reconhecimento dessa necessidade sur-
Em que pesem os grandes avanços nos pro- giram várias propostas de emendas à Constitui-
cessos decisórios no âmbito do SUS, incluindo ção Federal (PECs) visando garantir tais recur-
a implantação de instâncias deliberativas in- sos, sendo uma delas finalmente aprovada pe-
tergovernamentais – as Comissões Intergesto- lo Senado Federal, em 13 de setembro de 2000.
res Tripartite e Bipartite, e o funcionamento dos Trata-se da Emenda Constitucional n. 29/00.
Conselhos de Saúde nas três esferas de gover- A nova norma constitucional define um pa-
no, acredita-se que a organização da política e, tamar mínimo inicial, para 2000, de 7% das re-
inclusive, o modelo assistencial preconizado pe- ceitas municipais e estaduais a serem aplicadas
la União vêm sendo implementados por estados em saúde e um acréscimo de 5% sobre o mon-
e municípios majoritariamente através da nor- tante empenhado pelo Ministério da Saúde em
matização federal a respeito de repasses de re- 1999.
cursos que são, ainda que em diferentes graus, Nos anos seguintes, até 2004, os percentuais
dirigidos a objetivos específicos. previstos para estados e municípios deverão ele-
Disso decorre a importância da análise do var-se até atingir 12% das receitas estaduais e
quadro atual de regulamentação da Emenda 15% das receitas municipais, enquanto a parti-
Constitucional n. 29/00 que, aprovada em se- cipação da União será corrigida pela variação
tembro de 2000, vinculou receitas das três esfe- nominal do Produto Interno Bruto (PIB).
ras de governo para os gastos em ações e serviços Dadas as diferentes regras de crescimento
de saúde, consolidando o co-financiamento na das vinculações estabelecidas para as diversas
política de saúde. Os novos dispositivos constitu- esferas de governo, uma avaliação precisa do
cionais trazem em si, portanto, a possibilidade de montante de recursos adicionais que a imple-
ganhos de autonomia para estados e municípios, mentação da emenda trará ao sistema público
através de aumentos no aporte de recursos não de saúde depende da antecipação da evolução
necessariamente regidos pelas regras federais. das receitas públicas de estados e municípios, e
do crescimento do PIB, no caso dos recursos da
União.
A EC 29/00: Co-financiamento Se é verdade que a vinculação tem o inegá-
e estabilidade do SUS vel mérito de comprometer efetivamente as três
esferas de governo com o financiamento da saú-
Em que pesem as diversas questões de natureza de, além de atenuar a usual instabilidade da re-
tributária que têm implicação positiva ou ne- ceita, e nesse sentido constitui um avanço e uma
gativa sobre as fontes de financiamento tradi- promessa de defesa do orçamento da saúde, di-
cionais da saúde e, também, a complexa intera- versos entraves ainda deverão ser superados pa-
ção entre o Orçamento Geral da União (OGU) ra a sua real implementação.
e o Orçamento da Seguridade Social (OSS), a Desses entraves fazem parte não apenas
criação do SUS em 1988 associou ao conjunto questões ligadas à concepção do novo dispositi-
de entes federados, mediante a diretriz de des- vo constitucional, em especial no que diz respei-
centralização, a responsabilidade pelo financia- to ao OSS, mas também em relação à compreen-
mento e gestão do sistema. Contudo, na pri- são pelo conjunto de atores da política de saúde,
meira metade da década de 1990, o governo fe- aí incluídos os órgãos de controle nos três níveis
deral continuava responsável por cerca de 70% de governo, sobre as definições nele contidas.
dos recursos financeiros destinados à saúde.
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Avanços e entraves na recursos passíveis de serem acumuladas no pe-


regulamentação da EC 29/00 ríodo entre 2001 e 2002, caso fosse considerado
o entendimento da Fazenda, seria de até R$4,2
A regulamentação do novo texto constitucional bilhões de reais (Abrasco, 2001).
deverá ser feita através de lei complementar. Esse foi o estopim para a rearticulação dos
As negociações para a elaboração da lei, embo- atores mencionados anteriormente, cujo resul-
ra sob a responsabilidade do Poder Legislativo, tado foi não apenas um embate jurídico com o
vêm sendo conduzidas, desde 2001, pelo próprio Ministério da Fazenda, mas também a produção
Ministério da Saúde, que tem como principal do primeiro documento sobre a regulamentação
interlocutor e parceiro o Conselho Nacional de da emenda, intitulado “Parâmetros consensuais
Saúde. Outros órgãos vêm também participan- sobre a implementação e regulamentação da EC
do do processo, com destaque para os Conselhos 29” (2001). Além da questão do “ano anterior”,
de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e de o documento contemplou outros aspectos polê-
Secretários Municipais de Saúde (Conasems), a micos ou pouco esclarecidos da emenda.
Comissão de Seguridade Social da Câmara Fe- Entre os aspectos de maior consenso esta-
deral, a Comissão de Assuntos Sociais do Sena- vam os seguintes:
do e a Associação dos Membros dos Tribunais • a definição de quais receitas de estados e mu-
de Contas (Atricon). nicípios devem ser vinculadas às ações e servi-
Essa articulação, que existia em maior ou ços de saúde, uma vez que estão bem especifica-
menor grau, durante as negociações para a apro- das, quais sejam, os impostos diretamente arre-
vação da emenda, foi reforçada logo após sua cadados, acrescidas e reduzidas as transferências
publicação devido à necessidade do estabeleci- legais e constitucionais recebidas e pagas, res-
mento dos recursos do Ministério da Saúde pa- pectivamente;
ra o ano seguinte, ou seja, 2001. • o período de vigência da emenda, que por
O texto constitucional não deixava dúvidas ser auto-aplicável, já deveria viger em 2000, mas
em relação ao montante a ser destinado à saúde não havia tempo para suplementações substan-
no ano 2000. Segundo o art. 7o, inciso I, letra “a”, ciais nos orçamentos e, portanto, acordou-se sua
esse valor seria o equivalente ao montante em- vigência a partir do ano de 2001;
penhado em ações e serviços públicos de saúde • os percentuais mínimos de vinculação de
acrescido de, no mínimo, cinco por cento. Uma receitas por estados e municípios e sua evolução
vez que a emenda só foi publicada ao fim do ano até 2004, partindo-se do patamar de 7% para
de 2000, este não era um problema que foi, de fa- ambos e chegando à diferença mínima anual de
to, gerado, porque a destinação havia sido maior 1/5, até 12% e 15%, respectivamente;
do que o percentual de acréscimo estabelecido. • a variação do PIB a ser utilizada no cálculo
Cabe explicar: a letra “b” do artigo e inciso men- da evolução da União, uma vez que os dados são
cionados estabelece que serão destinados recur- divulgados pelo IBGE com defasagem em rela-
sos mínimos para a saúde equivalentes a, “do ano ção às decisões sobre orçamentos, tendo-se op-
2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano ante- tado pela utilização do PIB disponível quando
rior, corrigido pela variação nominal do PIB”. da votação da Lei Orçamentária;
Ora, no momento de decidir o orçamento • o acompanhamento, avaliação e controle da
da saúde para o ano de 2001, o Ministério da emenda, cujo instrumento principal foi defini-
Fazenda, através de sua Procuradoria Jurídica, do como sendo o Sistema de Informações sobre
emitiu o parecer PGFN/CAF n. 2.561/2000, de Orçamentos Públicos de Saúde (Siops), abran-
7 de dezembro de 2000, que continha o enten- gendo também os próprios Planos de Saúde e
dimento de que a referência para o “ano ante- os Relatórios de Gestão da Saúde e Fiscais (pre-
rior” é, de fato, para 2001, “o valor calculado na vistos, os últimos, na Lei de Responsabilidade
forma do art. 7o, I, A, do Ato das Disposições Fiscal).
Constitucionais Transitórias (ADCT)”, ou seja, Por outro lado, alguns aspectos continua-
o ano de 1999 acrescido de 5%, aplicando-se, ram nebulosos e demandaram, ao longo do ano
daí por diante, a variação do PIB. Desse modo, de 2001 e em 2002, a realização de novos encon-
o parecer “congelou” o orçamento do Ministé- tros do grupo, dessa vez expandidos pela pre-
rio da Saúde entendendo que, ainda mesmo em sença de membros dos Tribunais de Contas. Fo-
2004, o “ano anterior” é 1999 (acrescido de 5%). ram realizados três seminários sobre a Opera-
À época, cálculos da Secretaria Executiva do cionalização da Emenda Constitucional n. 29/
Ministério da Saúde indicaram que as perdas de 00, não apenas na busca de esclarecimentos, mas
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também para a troca de informações e divulga- pesas que, se não estiverem muito bem delimita-
ção dos consensos até então alcançados. das, podem acarretar impactos negativos sobre
Um dos principais entraves à implementa- o dispositivo constitucional em termos de apor-
ção do texto constitucional e, conseqüentemen- te de recursos.
te, do acompanhamento de seu cumprimento é Durante as discussões com os Tribunais de
a definição do que são “ações e serviços públicos Contas, ficou claro que os gastos referentes a pa-
de saúde”. Conceito aparentemente conhecido gamento de amortização e encargos de dívidas
de todos nos debates, ficam evidentes as distin- contraídas para o financiamento setorial devem
tas compreensões do escopo do termo – ele in- necessariamente compor os gastos com ações e
clui ou não ações de saneamento, inclui ou não serviços públicos de saúde, inclusive para efei-
o pagamento de dívidas contraídas para finan- tos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Contudo,
ciamento de ações de saúde, inclui ou não o pa- isso foi previsto apenas como uma excepciona-
gamento de pessoal aposentado e de pensionis- lidade nos parágrafos 1o e 2o da 6a diretriz.
tas da saúde? Finalmente, a 7a diretriz dispõe sobre o que
Se tais definições não estiverem regulamen- não é considerado ações e serviços públicos de
tadas, a aplicação de recursos adicionais decor- saúde, nela estando incluídos o pagamento de
rente da implementação do texto da Carta Mag- aposentadorias e pensões, a assistência à saúde
na poderá ser comprometida. Até o momento, para clientelas fechadas, o saneamento básico fi-
como resultado das discussões supramencio- nanciado por tarifas ou taxas, a limpeza urbana
nadas, foi aprovada, pelo Conselho Nacional de e outras.
Saúde, a resolução n. 316, de 4 de abril de 2002, O processo de regulamentação do texto cons-
que dispõe sobre dez diretrizes acerca da apli- titucional alterado pela EC 29/00 está apenas
cação da emenda. no seu início mas, em que pesem as dificuldades
A 5a diretriz define três critérios para o que e controvérsias que já existem e virão ainda a
deve ser considerado como despesa com ações existir, acredita-se que nesse processo estados e
e serviços públicos de saúde: municípios poderão vir a ter ganhos importan-
• sejam destinadas às ações e serviços de aces- tes em termos de autonomia financeira no
so universal, igualitário e gratuito; campo da saúde, ainda que com a coordenação
• estejam em conformidade com objetivos e fundamental da União e, se e quando possível,
metas explicitados nos Planos de Saúde de cada dos estados.
ente federativo;
• sejam de responsabilidade específica do setor
de saúde, não se confundindo com despesas re- O gasto público com saúde
lacionadas a outras políticas públicas que atuam em 2000 e perspectivas
sobre determinantes sociais e econômicos, ainda
que com reflexos sobre as condições de saúde. Pesquisa realizada a partir de dados do Sistema
Na 6a diretriz tais despesas são detalhadas de Informações sobre Orçamentos Públicos em
por tipo de ação, incluindo aquelas tradicional- Saúde (Siops) e da Secretaria Executiva, ambos
mente desenvolvidas no setor, relativas à pro- do Ministério da Saúde (Faveret, 2002) apon-
moção, proteção, recuperação e reabilitação da tam que os recursos destinados pelos três níveis
saúde, conforme disposto na Lei Orgânica da de governo, com suas receitas próprias, às ações
Saúde, com destaque para dois itens: e aos serviços públicos de saúde, conforme os
• inciso XII: saneamento básico e do meio am- consensos mencionados na seção anterior, so-
biente, desde que associado ao controle de veto- maram em 2000 cerca de 37 bilhões de reais, a
res, a ações próprias de pequenas comunidades valores de 2001, para os quais a União contri-
ou em nível domiciliar, ou aos Distritos Sanitá- buiu com 59%, e os estados e municípios com,
rios Especiais Indígenas (DSEI), e outras ações de respectivamente, 18,2% e 22,7%.
saneamento a critério do Conselho Nacional de A tabela 1 apresenta esses dados em valores
Saúde, e por habitante e com o percentual do PIB. Além
• inciso XII: serviços de saúde penitenciários, disso, indica os percentuais de cumprimento do
desde que firmado Termo de Cooperação especí- dispositivo constitucional de vinculação de re-
fico entre os órgãos de saúde e os órgãos respon- ceitas a gastos em saúde de estados e municípios.
sáveis pela prestação dos referidos serviços. O gasto público com saúde representou, por-
Ações e serviços de saneamento e os voltados tanto, em 2000, 3,17% do PIB brasileiro, equi-
para clientelas delimitadas estão no rol de des- valendo a R$216,99 por habitante no ano.
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Tabela 1
Gasto público com ações e serviços de saúde empenhado pelas três esferas de governo – total, per capita,
participação no PIB, distribuição entre esferas e cumprimento EC 29/00 – 2000. Em R$ de 2001 e percentual

Esfera de governo Total (R$) Per capita (R$) % PIB % Esferas % EC 29


União 21.743.629.992,03 128,05 1,87 59,02 N.A.
Estados 6.717.934.391,00 39,56 0,58 18,23 7,1
Municípios 8.382.650.908,49 49,37 0,72 22,75 13,2
Brasil 36.844.215.291,52 216,99 3,17 100,00 N.A.
Fonte: Ministério da Saúde.
Notas: (1) Valores em reais de 2001 atualizados pelo IPCA. (2) Os valores da União excluem os gastos com dívidas, ina-
tivos, pensionistas e ações de saneamento do Projeto Alvorada. Elaboração própria.

Segundo dados do Banco Federativo (BNDES, ma determinados para o ano de 2000, um apor-
2002), a distribuição das receitas disponíveis to- te adicional de recursos da ordem de R$11,4 bi-
tais em 2000 por parte dos entes federados era lhões, a valores de 2001, conforme a tabela 2.
de 62,71% para a União, 24,56% para os estados De modo resumido a metodologia de esti-
e 12,73% para os municípios, o que comprova mativa consiste em:
que foram os últimos os que, proporcionalmen- • Para a União: no ano de 2000, o montante
te, mais investiram em saúde naquele ano. mínimo aplicado em ações e serviços públicos de
De fato, o processo de descentralização das saúde deveria ser acrescido de 5% em relação a
receitas, implementado a partir da Constituição 1999 (o que aconteceu). Nos anos seguintes, en-
Federal de 1988, foi acompanhado, no campo tre 2001 e 2004, o aumento das despesas está vin-
da saúde, da descentralização de encargos que culado à variação nominal do PIB; estimado pa-
avançou especialmente no âmbito municipal, ra o período como de 4% ao ano a partir de 2002.
comprovado pelo aumento do aporte de recur- • Para os estados e municípios: os percentuais
sos dos municípios ao setor. mínimos de vinculação de sua receita de impos-
A figura 1 compara os dados de 2000 com tos deverão chegar a 12% e 15% em 2004, respec-
os apurados por Médici (1994) e por Biasoto & tivamente. Para o ano 2000, estipulou-se o valor
Piola (2001), e demonstra a evolução da parti- mínimo de aplicação em 7%. Dessa forma, bus-
cipação das três esferas de governo no financia- cou-se um aumento gradual para os gastos em
mento público da saúde. saúde dos entes federados, visando minimizar
Não obstante todas as dificuldades metodo- as disparidades em relação aos valores despen-
lógicas encontradas na comparação de séries de didos em ações e serviços públicos de saúde pe-
dados financeiros, pode-se verificar as tendên- las esferas subnacionais.
cias, ao longo dos anos 90, de redução acentua- • Os dados estaduais foram extraídos de
da da participação da União no financiamento seus balanços e os municipais foram calculados
público da saúde, de aumento pouco expressivo a partir de um painel contendo dados de 2.550
da participação dos estados, e de grande aumen- dos 3.252 municípios que informaram o Siops
to da participação municipal, que praticamente (ano-base 2000), que abrange 46,3% do núme-
dobrou entre 1992 e 2000. ro de municípios brasileiros e 64,5% da popu-
A Emenda Constitucional n. 29/00 aporta lação brasileira em 2000.
um novo componente para o financiamento do Está claro que o maior impacto da vincula-
sistema de saúde que parece indicar, em prin- ção constitucional será sobre as contas estadu-
cípio, ganhos em termos de volume e estabili- ais, cujos gastos com saúde deverão crescer 71%
dade dos recursos destinados pelo setor, através até 2004. Para a União e os municípios, o aumen-
da consolidação do mecanismo de co-financia- to de recursos até 2004 será da ordem de 17% e
mento. 37%, respectivamente, resultando aumento to-
Mediante a utilização de metodologia de es- tal de 31% para as três esferas de governo.
timativa do impacto da implementação do dis- O acentuado impacto sobre os estados e o
positivo constitucional acerca da vinculação de menor impacto sobre os municípios decorre da
recursos para a saúde (Faveret et al., 2001), pre- evolução do formato federativo do sistema de
vê-se até 2004, considerando-se os valores aci- saúde brasileiro vis-à-vis o formato das relações
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Figura 1
Evolução da participação das três esferas de governo no gasto público com saúde – 1992, 1996 e 2000

80
União
72.4
70
Estados
60 59,0
53,7
Municípios
50

40

30 27,8
22,8
20 18,5 18,2
14,8 12,8
10

0
1992 1996 2000

Fonte: Ministério da Saúde, Biasoto & Piola, 2001 e Médici, 1994. Elaboração própria.

Tabela 2
Impacto da Emenda Constitucional n. 29/2000, por esfera de governo.
Em R$ milhões de 2001 e percentual

Esfera de governo Empenhado Estimativa Adicional EC Adicional EC


2000 (R$) 2004 (R$) 29 00/04 (R$) 29 00/04 (%)
União 21.744 25.338 3.594 17
Estados 6.718 11.482 4.764 71
Municípios 8.383 11.474 3.091 37
Brasil 36.844 48.294 11.450 31
Fonte: Ministério da Saúde - SIS/CGOP-SIOPS.
Notas: (1) Valores atualizados pelo IPCA. (2) Os valores da União excluem os gastos com dívidas, inativos, pensionistas
e ações de saneamento do Projeto. Elaboração própria.

federativas de caráter fiscal estabelecidas ao lon- infraconstitucional do SUS, em particular nas


go da década de 1990, que fortaleceram as finan- suas Normas Operacionais Básicas. Não bastas-
ças municipais em detrimento das estaduais. se isso, passaram por um intenso processo de
Assim, entende-se que, por um lado, a in- reestruturação financeira, com maior compro-
tensificação do processo de municipalização da metimento de suas receitas com o pagamento
saúde, principalmente a partir da Norma Ope- de suas dívidas internas. Esses dois fatores con-
racional Básica de 1993, aliada à reforma fiscal tribuíram sobremaneira para a reduzida parti-
implementada na própria Constituição Federal, cipação dos estados no total de gastos públicos
teve como conseqüência natural a elevação dos com saúde no período.
gastos dos municípios na área da saúde ao lon- Registre-se que a Emenda Constitucional n.
go dos anos 90. 29/00, além de garantir recursos adicionais pa-
Por outro lado, o oposto ocorreu com os es- ra a saúde, teve como importante avanço a res-
tados durante a década passada, já que não tive- ponsabilização de todos os entes federados com
ram seu papel claramente definido na legislação o financiamento do SUS, ilustrada na figura 2.
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Figura 2
Participação percentual das três esferas de governo na despesa com saúde – 2000 e estimativas para 2004

70
União
60 59.0
Estados
52,5
50
Municípios
40

30
22,8 23,8 23,8
20 18,2

10

0
2000 2004

Fonte: Ministério da Saúde – SIS/CGOP-SIOPS. Elaboração própria.

Ademais, cabe lembrar que a simples vincu- Note-se que a estratégia de relacionamen-
lação não significa, por si só, a redução de desi- to direto da União com os municípios pode ser
gualdades e tampouco a solução para problemas também um tanto atribuída aos próprios gover-
relacionados à equidade, em especial na saúde, nos estaduais, pela ausência, inclusive, no que
que depende de uma complexa organização da tange ao financiamento. Essa situação poderá
rede e, também, de uma rede de complexas or- ser parcialmente revertida a partir da aplicação
ganizações, que envolve múltiplos atores e dife- dos novos dispositivos constitucionais.
rentes interesses. A vinculação, de fato, apenas Por fim, na perspectiva da União, a Emenda
garante que os estados e os municípios venham Constitucional n. 29/00 torna irrelevante, a par-
a se colocar em um mesmo ponto de partida no tir da indexação ao crescimento do PIB, a forma
que tange ao gasto com saúde e, com isso, te- de financiar a receita federal destinada à saúde.
nham a possibilidade de ter maior autonomia na Em outras palavras, isso poderá implicar o es-
forma de executar o gasto, definindo seus mo- vaziamento definitivo do Orçamento da Seguri-
delos assistenciais próprios. dade Social cuja base, formada pelas contribui-
Por outro lado, é importante ressaltar que a ções sociais, dissociou o acesso às políticas so-
intensa e extensa normatização levada a cabo ciais das contribuições individuais, e concreti-
pelo Ministério da Saúde, ao mesmo tempo em zou, na Constituição Federal de 1988, do ponto
que engessa a atuação de estados e municípios, de vista do financiamento, a universalização des-
permite em boa parte a superação de uma série te conjunto de direitos.
de dificuldades organizativas enfrentadas pelos
gestores subnacionais.
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Referências bibliográficas

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