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“SENTIMENTO DA INFÂNCIA”: CONSIDERAÇÕES E CONTRASTES

EM RELAÇÃO ÀS IDEIAS DE PHILIPPE ARIÈS SOBRE A INFÂNCIA


NA IDADE MÉDIA1

Marcela Babini Cabral2


Prof.ª Maria Artemis Ribeiro Martins3

Resumo:
Quando se reflete sobre a infância na Idade Média, as ideias de Philippe Ariès (1981)
são frequentemente predominantes em termos de referências e citações. Este trabalho é uma
revisão do que se refere à criança da Idade Média em sua obra clássica, o livro História Social
da Criança e da Família, e aproveita para trazer visões contrastantes de dois outros autores
(Kroll, 1977 e 1986; Orme, 1995 e 2009), que desenvolvem exposições sobre a criança no
mesmo período histórico e, em certo sentido, respondem contrariamente às colocações de
Ariés, especialmente a de que a “particularidade que distingue a criança do adulto [...] não
existia” na Idade Média.

Palavras-chaves: Infância, Idade Média, Sentimento da Infância

INTRODUÇÃO

A História da humanidade é quase sempre a história dos adultos. A criança aparece


muito pouco quando aprendemos sobre qualquer período da história humana. Por exemplo,
sobre a Idade Média, é comum que se estude desde o Ensino Fundamental II sobre as relações
de suserania e vassalagem, os feudos e os burgos e a Inquisição católica. Em nenhum desses
assuntos, no entanto, estuda-se as crianças que viviam naquele tempo e quais eram os traços
principais de suas vidas, ou como eram vistas em sua época. Este trabalho pretende recuperar,
a partir de escritos de três autores principais, alguns dos traços da infância na Idade Média e,
assim, expor algo da história das crianças, em geral ignorada.
O principal nome referente à História da Infância ainda hoje é Philipe Ariès. Em sua
obra História Social da Criança e da Família, o autor explica como a criança existia e era
percebida em diversos períodos históricos. Curiosamente, sobre o período medieval, Ariès

1
Artigo apresentado como avaliação parcial da disciplina de História da Educação do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, campus Tianguá.
2
Estudante do curso de Licenciatura em Física. E-mail: marcela.babini@gmail.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9580083217272679.
3
Professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, campusTianguá. E-mail:
artemis.martins@ifce.edu.br. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8358429287587583
afirma que a percepção da criança como um grupo diferente do dos adultos, o que chama de
“sentimento da infância” (ARIÈS, 1981), não existia ao longo da maior parte da Idade Média.
Assim, ao mesmo tempo que traz a história da infância no período, Ariès traz uma não-
história. Este trabalho vem, de forma sucinta, propor uma discussão em relação a essa
afirmação de Ariès, a partir de dois outros autores, Orme (1995 e 2009) e Kroll (1977).
Ariès propõe, como será visto com mais profundidade à frente, que a infância na
Idade Média era indiferenciada da idade adulta. Em diferentes momentos do livro diz que a
particularização da infância não existia no período – análise que pode ser enriquecida por
achados documentais posteriores de outros historiadores, com outros pontos de vista - ou que
não existia como existe hoje – aqui este artigo não propõe nenhuma argumentação contrária.
O objetivo deste trabalho é trazer um ponto de vista que debata com o de Ariès e assim
considerar que talvez a infância fosse, sim, particularizada na Idade Média, só que de forma
diferente da contemporânea, ou mesmo daquela da Idade Moderna.
O debate pretendido exige uma maior compreensão, ainda que não tão aprofundada
quanto talvez se desejaria, da dimensão sócio-histórica da infância, para a qual este trabalho
se utiliza de quatro referenciais teóricos principais: de Philippe Ariès, a obra clássica História
Social da Criança e da Família, publicada originalmente em 1973, utilizando-se a edição
brasileira de 1981; de Jerome Kroll, o artigo The Concept of Childhood in the Middle Ages,
publicado em 1977, em resposta ao livro de Ariès, ainda recente à época, no periódico Journal
of the History of the Behavioral Sciences; Finalmente, de Nicholas Orme, que também é autor
do livro Medieval Children, os artigos Medieval Childhood: Chalenge, Change, Achievement,
de 2009, publicado no periódico Childhood in the Past; e The Culture of Children in Medieval
England, de 1995, publicado no periódico The Past and Present Society, da Oxford University
Press.
A revisão da literatura utilizada será iniciada pela exposição das ideias de Ariès e, em
seguida, serão expostos os argumentos dos outros dois autores mencionados.

O SENTIMENTO DA INFÂNCIA

Logo nos capítulos iniciais do livro de Ariès, encontra-se a ideia de que a infância se
misturava à vida adulta. Na conclusão Os Dois Sentimentos da Infância, Ariès (1981, p. 99 e
100) defende que

“Na sociedade medieval, [...] o sentimento da infância não existia – o


que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas
ou desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que
afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade
infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do
adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia. [...] Essa
indeterminação da idade se estendia a toda a atividade social: aos jogos
e brincadeiras, às profissões, às armas.”

E continua:
“A criança muito pequenina, demasiado frágil ainda para se misturar à
vida dos adultos ‘não contava’ [...]. Assim que a criança superava esse
período de alto nível de mortalidade, em que sua sobrevivência era
improvável, ela se confundia com os adultos.”

Da forma como exposto, o pensamento de Ariès parece apontar para a realidade de


que a criança não era considerada como criança, como uma classe de seres humanos toda
distinta daquela dos adultos. O mesmo autor (idem, pp.6-7), no entanto, lembra que em um
texto da Idade Média, as fases da vida da criança são apontadas e há uma divisão por idades:
Do nascimento aos sete anos, a criança na França é um “não-falante” (enfant, a palavra
francesa para “criança”); depois disso, até os 14 anos, a criança é pura, “como a menina dos
olhos”. Só depois disso vem a adolescência (que, estranhamente às definições atuais, dura até
os 35 anos) e as fases seguintes da vida.
Nota-se, desde logo, que há alguma diferenciação, pelo menos até os 14 anos. Ariès
escreve que a nomenclatura e a divisão eram puramente científicas e não correspondiam aos
costumes do período (idem, p. 4-5), mas coloca, mais ao final do livro, que tratamentos
diferentes eram dados às crianças nas duas primeiras fases da vida – como pode ser notado no
trecho abaixo (idem, p.154):

“Após conservá-las em casa até a idade de sete ou nove anos, eles [os
adultos ingleses da Idade Média] as colocam, tanto os meninos quanto
as meninas, nas casas de outras pessoas, para aí fazerem o serviço
pesado, e as crianças aí permaneciam por um período de sete ou nove
anos (portanto, até entre cerca de 14 e 18 anos).”

Ariès, assim, ao mesmo tempo que propõe a indiferenciação das idades da infância e
da maturidade, o próprio historiador aponta outros indícios de clara diferenciação etária, tais
como o local de habitação e as companhias frequentadas pelas crianças na primeira e na
segunda fases da vida, como visto.
O que Kroll e Orme dirão é que os costumes e a cultura diferenciavam a criança
consideravelmente mais do que o que é afirmado por Ariès. Kroll desenvolverá sua análise a
partir de indícios de escritos médicos e legais. Logo no início de seu texto, Kroll (1977,
p.384) escreve, em resposta a Ariès:

“Portanto, se procurarmos [na Idade Média] por um conceito moderno e


ocidental de infância, não deveríamos nos surpreender quando não
encontrássemos. É mais provável que as crianças fossem vistas
diferente do que as crianças de agora, mas ainda assim vistas como
crianças.”4

É a partir desse ponto de vista que Kroll desenvolve sua argumentação. Sem tentar
defender que a infância fosse vista no passado como é vista hoje, mas defendendo que era
vista como infância, de toda forma, a partir de passagens de diversos documentos escritos. Em
suas análises sobre documentos da área médica, por exemplo, em uma seção sobre cuidados
com crianças presente dentro de uma seção sobre os cuidados com/da mulher, Kroll (1977,
p.386) comenta sobre o que um tratado médico propõe, ainda no século VI:

“A descrição de Soranu sobre a seleção de uma ama de leite e os


cuidados com o recém-nascido desde o momento do nascimento mostra
uma apreciação da vulnerabilidade e do valor da criança. Ele oferece
instruções detalhadas sobre cortar o cordão umbilical, banhar o bebê,
amamentação, vestir o bebê e alimentação. Ele também discute o
reconhecimento e o tratamento dos problemas mais comuns da infância
(falta de ar, tosse, dentição, diarreia). [Os princípios dos cuidados com a
criança] refletem um conceito de criança como um ser muito frágil e
vulnerável. De fato, pelos padrões modernos, os bebês eram tratados
com cuidado demais.”5

Nota-se que, do ponto de vista médico, a criança existia – e era contada –, de formas
específicas e separadas do adulto. Seus problemas eram reconhecidos e suas necessidades
percebidas, de uma forma ou de outra.
Da mesma forma, a lei reconhecia a criança de forma diferente daquela como
percebia o adulto – mais cuidadosa e protetora. Apesar de as relações sociais medievais
estabelecerem a natureza desse cuidado e dessa proteção, a criança ainda era reconhecida de
forma especial (KROLL, 1977; p.387):

4
Em tradução livre. O trecho original é: “Therefore, if we look for a modern western concept of childhood, we
should not be surprised when we do not find it. It is more likely that children then were viewed differently than
children now, but still viewed as children.”
5
Em tradução livre. O trecho original é: “Soranus’s description of the selection of a wet nurse and care for the
newborn from the moment of birth shows an appreciation of the vulnerability and value of the infant. He offers
detailed instructions regarding severing the cord, bathing the baby, breastfeeding, swaddling, and feeding. He
also discusses the recognition and treatment of the more common problems of infancy (wheezing, cough,
teething, diarrhea). […] reflecting a concept of the infant and young child as a very vulnerable and fragile being.
In fact, by modern standards, the baby was treated too carefully.”
“Ainda assim, a lei reconhecia a menoridade das crianças e estabelecia
[...] provisões específicas sobre a guarda para proteger as vidas, o bem-
estar e a propriedade das crianças [...não por] motivos altruístas [...] a
criança medieval era uma commodity [...] Isso era coerente com a
natureza das relações feudais”.6

De certa forma, todos os indivíduos eram importantes por sua contribuição para a
sobrevivência ou por seu valor econômico, numa relação feudal. A criança o era também, mas
de forma específica da infância, e protegida pela lei de forma compatível.
A História é sempre escrita por alguém. Orme (2009) argumenta que, sendo escrita
por adultos, em geral ela habitualmente deixa a criança de fora de seus registros. Isso não
significa, para o autor, que não haja uma História da Infância. Especificamente sobre a Idade
Média, Orme defende (2009, p.117):

“As crianças eram sujeitos de interesse ou preocupação não só para seus


pais, mas para teólogos, enciclopedistas, professores e músicos,
médicos e advogados e aqueles que guardavam a paz.”7

Ariès embasa parte de seu raciocínio sobre a ausência de um sentimento sobre a


infância no período medieval em pinturas, nas quais as crianças acompanham os adultos em
seus afazeres – e daí se deduziria, portanto, que não haveria distinção entre as duas classes
etárias. Orme nos traz uma observação que permite repensar este aspecto de Ariès sob nova
luz: “O prazer das crianças em imitar os adultos em suas brincadeiras é muito antigo, se não
natural na humanidade” (do original: “The liking of children to imitate adults in their play is
very ancient, if not natural to humanity” – ORME, 1995, p.63). Assim, é provável que as
cenas em que crianças acompanham adultos em afazeres não correspondam a uma
indiferenciação, uma falta de sentimento da infância, mas ao fato de que aquilo que os adultos
faziam era imitado pelas crianças como brincadeira, como acontece ainda hoje.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação sobre a infância na Idade Média se deu como uma pesquisa
bibliográfica, que partiu da obra clássica de Ariès para chegar às outras - as contradições

6
Em tradução livre. O original traz: “Nevertheless, the law did recognize the minority status of children and
established, […] specific provisions of guardianship to protect the lives, well-being, and property of children.
[…not for] altruistic motives. […] the medieval child was a commodity […] This was in keeping with the nature
of all feudal relationships.”
7
Em tradução livre. O trecho original traz: “Children were a subject of interest or concern not only to their
parents but to theologians and encyclopaedists, teachers and musicians, doctors and lawyers and those who kept
the peace.”
internas na obra pareciam abrir espaço para uma investigação maior acerca do sentimento da
infância, aspecto escolhido para ser tratado neste artigo. Um levantamento de literatura sobre
o assunto levou a pesquisa para um outro caminho, a partir da resposta de Kroll (1977) e
artigos escritos por Orme (1995 e 2009). A partir de passagens selecionadas, foi apresentado
um panorama das referências que encontradas, mostrando que, acompanhada de outras duas
perspectivas, a reflexão de Ariès acerca do sentimento da infância no período medieval pode
ser enriquecida e relativizada. Aparentemente, a infância era, sim, separada da maturidade de
formas variadas e especiais – mesmo também sendo unida à sociedade adulta pelo tipo de
relação que se estabelecia com a criança. Em uma época na qual muitas das relações se
estabeleciam por deveres e obrigações, a criança também era inserida nessa lógica, mas de
formas diferentes das do adulto.
Outras referências também foram encontradas e lidas, especialmente sobre a história
da arte medieval, a história dos abusos contra crianças e sobre práticas antigas de pedofilia,
que não figuram aqui devido ao escopo do trabalho, mas que contribuíram para a percepção
de que há como argumentar a favor de uma existência muito mais antiga do sentimento da
infância do que Ariès propõe.

REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Ltc, 1981.
196 p. Tradução de Dora Flaksman.

KROLL, Jerome. The concept of childhood in the middle ages. Journal Of The History Of
The Behavioral Sciences, v. 13, n. 4, p.384-393, out. 1977. Wiley.
http://dx.doi.org/10.1002/1520-6696(197710)13:43.0.co;2-y.

ORME, Nicholas. Medieval Childhood: Challenge, Change and Achievement. Childhood In


The Past, v. 1, n. 1, p.106-119, jan. 2009. Maney Publishing.
http://dx.doi.org/10.1179/cip.2009.1.1.106.

ORME, Nicholas. The Culture of Children in Medieval England. Past & Present, ., n. 148,
p.48-88, ago. 1995. Published by: Oxford University Press.

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