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Este texto foi redigido como "A revolução retrocedeu pela passa- separação colônia-metrópole no contexto

introdução ao capítulo sobre


a "Emancipação política do gem de Sua Majestade Fidelíssima para global de que faz parte, e que lhe dá
Brasil", elaborado em cola-
boração com Carlos Guilher- o Brasil, e a guerra do Rio da Prata sentido; acompanhar, só então, o enca-
me Mota, para a Cambridge reuniu de novo os elementos. ( . . . ) A
History of Latin America; o minhamento das forças em jogo, mar-
organizador da coleção, prof. revolução de Espanha e suas colônias, cando sua peculiaridade.
Leslie Bethell, entretanto,
considerou-o "too ideologi- sendo da mesma origem, variou contudo Assumindo esta postura, pode o histo-
cal", preferindo ele mesmo nos resultados. Portugal, sem o poder
redigir o capítulo. riador enfrentar o problema do recorte
real, o mais concentrado possível, não cronológico, ou antes, da periodização de
pode conservar suas colônias, e por con- seu objeto de análise. Pois é claro que
1
SIERRA Y MARISCAL,
seqüência, sua independência".1 a delimitação temporal flutua, alargando-

S
Francisco de, "Idéias sobre
a Revolução do Brasil e
se ou se contraindo segundo a concepção
suas conseqüências" (1823), ão expressões de um panfleto que se encampe do fenômeno a ser es-
Anais da Biblioteca Nacio-
nal, vol. XLIII, Rio de Ja-
famoso, contemporâneo do mo- tudado. E de fato, como indica a mais
neiro, 1920, pp. 52 e 59. vimento de emancipação polí- recente e alentada obra de conjunto sobre
2
RODRIGUES, José Honó- tica. Duas implicações são para a história da independência do Brasil 2 ,
rio, Independência: Revolu- reter desses passos do doutrinário coevo:
ção e Contra-Revolução, Rio a historiografia, desde o início, apresen-
de Janeiro, 1975, 5 vols. Cf. escrevendo pouco depois da proclamação tou essa variação, seja na datação da
especialmente, a discussão his-
toriográfica, vol. V, pp. 253- da independência (7 de setembro de abertura do processo, seja na de seu
266.
1822), ele a via no contexto de um pro- encerramento; ora englobando todo o
cesso revolucionário mais amplo, que se período de "D. João VI no Brasil" e
iniciara muito antes, e cujo curso fora levando o estudo até os limites do perío-
retardado pela migração da corte portu- do regencial, ora restringindo-se aos
guesa para a América; e, caso único na acontecimentos entre 1821 (volta do rei
história, a antiga colônia passando a ca- para a Europa) e 1825 (tratado de re-
beça do Império, o conflito da separa- conhecimento). Mais ainda, preferindo a
ção assumia caráter peculiar. São, ainda segunda alternativa (período restrito), o
hoje, questões preliminares a qualquer autor da importante obra lembra que, na
estudo que vise a uma síntese compreen- historiografia, os autores que preferem
siva da emancipação política da América uma periodização mais longa vinculam-
portuguesa: situar o processo político da se a uma perspectiva conservadora que

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acentua a continuidade, enquanto que a vasor estrangeiro, não havia senão que
perspectiva liberal, por isso mesmo pre- montar, na nova sede, todo o aparato do
ferida, explicitaria a ruptura. Ora, colo- Estado, e abrir os portos da colônia ao
cada a questão nessa dicotomia, fica de comércio internacional (isto é, das "na-
fora um terceiro caminho, que precisa- ções amigas"). Mas a expulsão do inva-
mente nos parece o mais acertado: enca- sor na metrópole (1814), coincidindo
rar a independência como momento de com a elevação do Brasil à categoria de
um longo processo de ruptura, ou seja, Reino-Unido (1815), punha à luz a es-
a desagregação do sistema colonial e a drúxula situação, em que se invertiam
montagem do Estado nacional. as posições; a insistência em mantê-la,
Cumpre portanto explicitar, ainda que por parte de D. João VI, levaria à revo-
sinteticamente, a estrutura que se desa- lução liberal de 1820 em Portugal, pres-
grega e a nova configuração que se vai sionado por uma opção. Para fugir a
formando, para situar e tentar compreen- ela, teria o mesmo D. João VI, ao re-
der o processo de passagem, isto é, o gressar à Europa, aconselhado seu filho,
movimento da independência. Examina- o príncipe regente D. Pedro, a cingir a
dos isoladamente e em si mesmos, os coroa do Brasil "antes que algum aven-
eventos que levaram à separação entre tureiro lance mão dela"; como o mesmo
a colônia e a metrópole, sem enquadrá- D. Pedro era o herdeiro da coroa por-
los no contexto maior de que fazem par- tuguesa, o esquema dinástico se salvava,
te, têm dado lugar a uma visão do pro- recompondo-se, com o tempo, a unidade.
cesso em que o acaso ganha importância, Mas a solução "dinástica" não resolvia
ou os "erros" ou "acertos" dos gover- os problemas do Estado: em que condi-
nantes passam a ser elementos decisivos ções se manteria a unidade? Ora, nas
de compreensão. Cortes de Lisboa, emanadas da revolução
Tangida pela invasão das tropas napo- liberal, o problema não era apenas dinás-
leônicas, a corte portuguesa (protegida tico, mas político: assim, o que se inten-
pela esquadra inglesa) migrou em fins de ta, uma vez imposta ao rei a volta à
1807 e inícios de 1808 para a colônia metrópole, é efetivamente a recoloniza-
americana; ocupada a metrópole pelo in- ção do Brasil; daí a reação das elites

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PASSAGENS PARA O NOVO MUNDO

brasileiras, que conseguem envolver no sente que o movimento das estruturas


seu movimento o príncipe D. Pedro, que cria o quadro de possibilidades dentro
guardara no espírito os conselhos do pai do qual se produzem os acontecimentos,
— e proclamou a independência. Mas os pois se os homens fazem a história, não
problemas persistiam, nas suas dimen- a fazem como querem. Dar sentido à
sões dinástica e política, e a possibilidade série de eventos acima descrita implica,
da reunião das coroas acaba paulatina- pois, situá-los nos movimentos de fundo,
mente por incompatibilizar o príncipe de que são a expressão superficial.

A
com a nação recém-criada, ao mesmo
tempo em que abria, em Portugal, ca- tentemos, preliminarmente,
minho para a reação absolutista de 1828. para o ponto inicial e para
Enfim o desenlace: abdicando em 1831, o ponto final do processo.
D. Pedro I (IV em Portugal) volta para No início, a extensa colônia
disputar Portugal a seu irmão, o rei da pequena metrópole absolutista; no
absolutista D. Miguel, a guerra se pro- fim, a nova nação politicamente indepen-
longando até a vitória liberal em 1834. dente e a implantação do liberalismo na
Pouco depois morria, aos 36 anos, esse antiga metrópole. Há, portanto, uma
quixotesco D. Pedro, proclamador da in- certa ligação entre o vínculo colonial e
dependência do Brasil e implantador do o absolutismo, da mesma forma que
liberalismo em Portugal, desamado em entre independência e liberalismo; tanto
sua pátria de origem, que o acolheu, e que, ao se romper aquele vínculo, entra
herói na sua pátria de adoção, que o em colapso a monarquia absolutista na
expulsou. metrópole. E o movimento de indepen-
O afeto dos brasileiros e o desamor dência foi precisamente o encaminhamen-
dos portugueses pela mesma personagem, to da passagem de uma para outra si-
envolvida na dramática seqüência de tuação. Cumpre pois examinar, na sua
acontecimentos, está a indicar a preca- estruturação interna, o contexto inicial
riedade dessa visão do processo, que se do processo, e depois analisar os meca-
cristalizou na mentalidade coletiva dos nismos da passagem.
dois povos, daí extravasando para a his- Colonialismo e absolutismo se articu-
toriografia. Os descaminhos ideológicos lam, na medida em que a colonização do
da memória social são às vezes insólitos, Novo Mundo na época moderna desen-
e a vertente conservadora da historiogra- volveu-se predominantemente sob o pa-
fia tendeu sempre a enfatizar a impor- trocínio dos Estados absolutistas em for-
tância da participação "portuguesa" na mação na Europa. A rigor, a expansão ul-
independência do Brasil. Esta sua pecu- tramarina, que depois se desdobraria em
liaridade foi uma iniciativa da metrópo- colonização, ocorre paralela e contempo-
le, uma realização de seu príncipe. Daí raneamente com a formação dos Estados
a supor, e depois afirmar, que a coloni- nacionais, no regime de monarquias abso-
zação portuguesa fora na realidade a lutistas; e ambos os processos — expan-
criadora da nação, o passo é curto; as- são ultramarina e formação das monar-
sim, a história da colônia começa a ser quias — reportam-se ao mesmo substrato
lida como algo desde o início destinado comum, a crise do feudalismo, e são for-
a desaguar na independência nacional, mas de superação dessa crise. A supera-
num curioso exercício de profecia do ção da crise do mundo feudal envolveu,
passado. A colonização não envolvia ex- como se sabe, um alargamento de mer-
ploração (até porque a metrópole não cados em escala mundial, tendo por cen-
se desenvolvera), mas o semear da futu- tro a Europa, mas uma Europa dividida
ra nação que, como uma fruta, num dado em Estados nacionais em franca compe-
momento, amadurece para a secessão. tição. A centralização política, na medida
Assim os conflitos desaparecem, as em que se desenvolve, restabelece a or-
tensões se esfumam, a ruptura se apaga; dem social estamental afetada pela crise,
tudo se aplana na harmonia da continui- e implementa a saída econômica em di-
dade. Mas, infelizmente, o curso da his- reção ao Oriente, à África, ao Novo
tória envolve sempre, e ao mesmo tem- Mundo. Na nova estrutura que se vai
po, continuidade (no nível dos eventos) conformando, a circulação do capital
e ruptura (no nível das estruturas), e a comercial comanda o processo econômi-
sua compreensão pressupõe articular os co, mas não domina a produção; vai de-
dois níveis da realidade. Para tentar essa pender do apoio do Estado para manter
difícil articulação, é bom ter sempre pre- o ritmo de acumulação. O Estado abso-

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lutista, porque centralizado, tem condi- Trata-se, antes de tudo, de inserir o
ções para realizar esta política de expan- movimento de independência no quadro
são, ao mesmo tempo em que precisa geral da crise do colonialismo mercanti-
realizá-la, porque se forma em compe- lista; e, num plano mais largo, da desin-
tição com os outros Estados. A política tegração do Antigo Regime, como um
mercantilista estabelece, portanto, a cone- todo. Pois que o sistema colonial era
xão entre Estado centralizado e acumu- parte integrante e articulada nessa estru-
lação de capital comercial. Neste contexto tura global — a que Wallerstein chamou
a colonização vai assumindo sua forma Modem World System — a sua crise
mercantilista, isto é, vai se constituindo e superação correram paralelas com a
em ferramenta (entre outras) para a ace- desintegração do absolutismo. Os meca-
leração da acumulação primitiva de ca- nismos de base, antes explicitados, ope-
pital comercial nas áreas cêntricas. O ram no conjunto, mas expressam-se di-
mecanismo pelo qual se processava a versamente nos vários segmentos parti-
acumulação originária da colônia para a culares. Assim, é o conjunto da explo-
metrópole era o regime do comércio ex- ração colonial que estimula o conjunto
clusivo, o qual, para ser garantido, exi- das economias cêntricas; mas, na assimi-
gia a dominação política da metrópole lação desses estímulos, competem vigo-
sobre a colônia; como decorrência, para rosamente os vários Estados europeus.
engendrar, nas colônias, uma produção As vantagens da exploração de uma co-
mercantil que propiciasse a acumulação lônia necessariamente não se localizam na
na metrópole, o trabalho se organiza em respectiva metrópole, podendo ser trans-
vários graus de compulsão, tendendo feridos para outros pólos. E este é pre-
para o escravismo. cisamente o caso dos países ibéricos,
Tais as peças do Antigo Sistema Colo- pioneiros na colonização, mas declinan-
nial: dominação política, comércio ex- tes a partir do século XVII, e especial-
clusivo, trabalho compulsório; assim se mente de Portugal. Seria ocioso retomar
promovia a acumulação de capital no aqui os estudos sobre o "colonialismo
centro do sistema. Mas, ao promovê-la, informal" das relações anglo-portuguesas
ao mesmo tempo, se criam as condições a partir dos tratados de 1641 e seguintes.
para a emergência final do capitalismo, Igualmente, a maneira pela qual a crise
isto é, para a eclosão da Revolução In- se manifesta no caso luso-brasileiro tinha
dustrial. Desta forma, o sistema de ex- de assumir forma peculiar; aparece como
ploração colonial engendrava sua própria que induzida de fora para dentro, quan-
crise, pois o desenvolvimento do indus- do na realidade se processa do todo para
trialismo torna-se pouco a pouco incom- a parte.
patível com o comércio exclusivo, a es- Mas essa posição de Portugal (e de
cravidão, enfim com a dominação polí- suas colônias) no contexto do Modem
tica, ou seja, com o Antigo Sistema World System é já o primeiro passo em
Colonial. Tal o movimento contraditório nossa análise. Em declínio desde o sécu-
do sistema: ao se desenvolver, desem- lo XVII, a preservação da extensa colô-
boca em sua crise, encaminhando-se sua nia ia-se tornando cada vez mais impres-
superação. A qual não ocorre sem a su- cindível à manutenção do Estado metro-
peração, paripassu, do absolutismo, que politano na Europa; a cessão de vanta-
lhe servia de base. gens no comércio colonial era sua moeda
Crise do Antigo Sistema Colonial 3 pa- nas negociações de alianças, sobretudo a 3
rece, portanto, ser o mecanismo de base, aliança inglesa. Mas na medida em que NOVAIS, Fernando
Estrutura e Dinâmica
A.,
do
que antes buscávamos, que lastreia o fe- o sistema se desenvolve e se encaminha Antigo Sistema Colonial, São
Paulo, 1974, Cadernos CE-
nômeno de separação das colônias, de para a constituição do capitalismo indus- BRAP, n." 17.
que aqueles acontecimentos são uma ma- trial, metrópole e colônia portuguesa não
nifestação específica. É dela que se tem poderão ficar à margem: serão necessa-
de partir, se se quiser compreender a riamente afetadas, de um lado pelos in-
independência do Brasil de forma a ul- fluxos do industrialismo nascente, de
trapassar uma visão superficial dos even- outro pelo pensamento crítico do abso-
tos; o mecanismo de fundo oferece-nos lutismo, isto é, pelas incidências da Ilus-
o quadro estrutural e, por aproximações tração. A pressão do industrialismo in-
sucessivas, podemos focalizar outra vez glês, a presença da Ilustração francesa
os acontecimentos da separação entre a (através dos "estrangeirados"), enfim as
metrópole e a colônia. Tentemos, por- hostes de Junot, nos desdobramentos da
tanto, o caminho dessa reaproximação. Revolução em curso no Ocidente — as-

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PASSAGENS PARA O NOVO MUNDO

sim Portugal vai sendo envolvido no antes acentuava as tensões, e as "incon-


torvelinho da crise do absolutismo e do fidências" marcam o contraponto revo-
colonialismo mercantilista. Não só Por- lucionário do processo. 5 Essas as linhas
5
MAXWELL, Kenneth R.,
Conflicts and Conspiracies:
tugal, mas também o Brasil; o desenvol- de força que se desenlaçam com a vinda
Bra zil & Portugal (1707- vimento econômico da colônia, ainda que da corte, em 1807, para o Brasil.
1808), Cambridge at the Uni-
versity Press, 1973; e dentro dos moldes de uma economia co- Pode-se agora, ainda que sinteticamen-
NOVAIS, Fernando A., Por- lonial típica, acabava por desencadear te, delinear as forças em presença na
tugal e Brasil na Crise do
Antigo Sistema Colonial tensões, que se agravam com a emergên- abertura do processo de independentiza-
(1777-1808), São Paulo, Hu- cia do moderno industrialismo. Os colo- ção da colônia. Os mecanismos de fundo,
citec, 1979.
nos começam a se sentir mais "brasilei- como se procurou indicar, acentuavam a
ros" que portugueses na colônia — "não tensão entre a colônia e a metrópole,
é das piores desgraças o viver em colô- que em determinadas condições podia
nias" 4 , diria um deles em 1802. O chegar ao conflito; mas essa tensão bási-
4
DOS SANTOS VILHENA, mesmo pensamento ilustrado que inspira ca se desdobra em outras. Efetivamente,
Luiz, Recopilação de Notí-
cias Soteropolitanas e Brasí- reformas na metrópole, estimula rebeldia no Antigo Sistema Colonial entre a "me-
licas (1802), 2.ª edição, Braz
do Amaral, Salvador, 1921,
e insurreições na colônia, que a mesma trópole", isto é, os colonizadores, e a
p. 289. forma de pensar pode sofrer várias lei- "colônia", isto é, os colonizados, situa-
turas, até mesmo contrastantes. Nada vam-se os colonos, ou seja, a camada
mais típico dessa ambigüidade do que as dominante na colônia. Esta camada social
leituras metropolitana e colonial da obra é que encarnava (como projeto político)
entre todas famosa de Raynal. os interesses da "colônia", e se contra-
punha à massa escrava, esta sim "colo-

O
s mecanismos de fundo — a nizada". A tensão colônia-metrópole se
transição para o capitalismo desdobrava, pois, em tensão entre senho-
— no seu processo essencial- res e escravos. Por outro lado, na metró-
mente contraditório, engendra- pole, aos interesses ligados ao comércio
vam pois tensões que, a partir de um colonial, empenhados na manutenção do
certo momento (segunda metade do sé- pacto, se associavam ou se opunham in-
culo XVIII), desencadeiam conflitos teresses de outros estratos sociais (cam-
obrigando a reajustamentos no todo e pesinato, produtores independentes, ple-
nas partes. O fato de a transição se com- be urbana, etc.). O Estado reformista
pletar primeiro num ponto do sistema — ilustrado procurava mediar e equilibrar
a Inglaterra — complica inextricavel- esse feixe de interesses conflitantes. No
mente a trama de tensões e conflitos. caso de Portugal, a situação se complica,
A independência dos Estados Unidos pois a essas forças se somam os interes-
(1776, que é quando se publica A Ri- ses do industrialismo inglês em ascensão.
queza das Nações, matriz da nova eco- No Brasil, entre a massa escrava e o se-
nomia política) marca a abertura da crise nhoriato, toda uma heterogênea e flu-
do Antigo Regime e do Antigo Sistema tuante camada de funcionários, profissio-
Colonial; na Europa e na América, no nais liberais, plebe urbana, etc, tende a
Velho e no Novo Mundo, desenvolvem- tornar mais complexo o quadro de ten-
se paralelamente as reformas e desenca- sões no encaminhamento do processo.
deiam-se as insurreições. Observado em conjunto, o complexo
Reforma e revolução aparecem, assim, processo de desatamento dos laços colo-
como vertentes do mesmo processo de niais da América, que se desenrola a par-
reajustamento e ruptura na passagem tir da segunda metade do século XVIII
para o capitalismo moderno, na segunda até as três primeiras décadas do XIX,
metade de Setecentos e primeira de Oito- apresenta várias vias de passagem, que
centos. E com efeito, o chamado "des- correspondem às diversas maneiras como
potismo esclarecido" esforçava-se para se compuseram aquelas forças em jogo,
promover, ao mesmo tempo, a moderni- qual das várias tensões predominou no
zação do absolutismo metropolitano e conflito e, portanto, qual grupo ou clas-
aberturas no sistema colonial. Portugal se social logrou a hegemonia. Tentemos
enveredou muito cedo por esse cami- fixar tais variações: a situação-limite,
nho, a partir do "consulado" pombalino sem dúvida, é aquela em que a tensão
(1750), mas é sobretudo a partir de entre senhores e escravos sobrepõe-se a
1777 (queda do Marquês de Pombal, todas as outras, e o processo se radica-
com a morte de D. José) que se estimu- liza e aprofunda-se numa convulsão so-
la mais claramente a nova política colo- cial; tal o caminho da revolução negra
nial do reformismo ilustrado. Tal refor- de St. Domingue, liderada por Toussaint-
mismo, entretanto, não lograva abrandar, Louverture e, depois, por Dessalines. O

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levante dos escravos varreu a dominação sões levou, de um lado, ao reformismo
dos colonos, resistiu à invasão inglesa, e da Ilustração e, de outro, às tentativas
expulsou o exército enviado por Napo- revolucionárias. A partir da independên-
leão para a reconquista da ilha. No pólo cia dos Estados Unidos, agudizam-se as
oposto, a tensão entre metrópole e colô- tensões e acelera-se o processo, para
nia ganha a preeminência, mas é a me- atingir na Revolução Francesa o seu
trópole que vence a contenda: este é o ponto mais fundo de radicalização; ao
caso das colônias inglesas das Antilhas, mesmo tempo, estabilizando-se no Con-
em que a metrópole — por ser o centro sulado, o movimento revolucionário tor-
das transformações, em pleno curso da nar-se-ia expansionista, atingindo Portu-
Revolução Industrial e predomínio eco- gal (aliado da Inglaterra, que procurava
nômico — consegue comandar o proces- conter esse expansionismo) em 1807.
so, abandonando o exclusivo, suprimindo Reformas, insurreições, guerras interna-
o tráfico negreiro e depois a escravidão, cionais pertencem pois ao mesmo e com-
e ainda podendo se dar ao luxo de plexo processo de ruptura do Antigo
manter o estatuto político das colônias. Regime e de nascimento da sociedade
Entre as duas situações-limites, alinham- burguesa contemporânea. Portugal e
se aquelas em que a tensão metrópole- Brasil inserem-se nesse processo. O re-
colônia foi a preponderante sobre as formismo ilustrado, vigorosamente ini-
demais questões, mas são as colônias que ciado a partir de 1750 pelo Marquês de
levam a palma, e este é o caso das colô- Pombal, não se atenua — antes acentua-
nias espanholas e portuguesas, como an- se — após sua queda em 1777: sobre-
teriormente já tinha sido o das treze tudo no que respeita à política colonial,
colônias inglesas da América Setentrio- inicia-se uma fase de maior flexibilida-
nal. Deixemos de lado certas situações de, com o abandono das companhias
residuais, em que a metrópole, ainda que privilegiadas de comércio e supressão
não hegemônica no conjunto, logra man- dos estancos, ao mesmo tempo em que
ter os laços coloniais: é o caso de Cuba se combate o contrabando e se estimula
e Porto Rico, que se mantêm presas à a diversificação da produção e a melho-
Espanha. ria tecnológica, etc. Correlatamente, em
Vale fixar, nessa medida, para uma Portugal, prossegue-se no esforço indus-
aproximação maior do modelo luso-bra- trialista (proibindo-se em 1785 as ma-
sileiro, aquela terceira via a que nos refe- nufaturas têxteis na colônia) com vistas
rimos acima: a tensão metrópole-colônia a superar o atraso, ao mesmo tempo em
sobreleva todas as demais, e a colônia que se procura, com inspiração nas me-
se independentiza, isto é, a camada so- mórias da Academia das Ciências de
cial de colonos consegue assumir a he- Lisboa, modernizar o país, removendo-
gemonia na condução do processo de se os arcaísmos. Todo esse esforço de
passagem. Aqui, três possibilidades se recuperação, conduzido com persistência
abrem: primeira, a emancipação se dá ao longo de anos, vinha obtendo êxito
sob a forma republicana de governo e quando da invasão das tropas napoleô-
se abole a escravidão, e é o caso das co- nicas — o que altera substancialmente
lônias espanholas; segunda, sob a forma a situação, inviabilizando o esquema re-
republicana, mantém-se a escravidão, e formista e obrigando a duras opções.
fora o caso dos Estados Unidos da Amé- Paralelamente, na colônia, a política
rica; terceira, a libertação da colônia reformista não conseguia distender as
mantém a monarquia e preserva a escra- tensões; até certo ponto, pode-se dizer
vidão, e este é o caso do Brasil. A com- que, ao contrário, o surto de relativo
posição de forças que pôde ir se articu- progresso ainda mais aguçava a tomada
lando no curso do processo para chegar de consciência da exploração colonial,
a tal resultado, é o que podemos agora redobrando as inquietações. Estas ten-
analisar. dem a se expressar em conflitos, como

N
na América espanhola da mesma época:
a segunda metade do século são as inconfidências. Se no Rio de Ja-
XVIII, impulsionadas pelos neiro, em 1794, e em Pernambuco, em
mecanismos estruturais da for- 1801, as tentativas são abortadas no
mação do capitalismo moder- nascedouro, em Minas Gerais (1789) e
no, as tensões sociais agravam-se na na Bahia (1798) o movimento vem à
Europa e nas colônias do Novo Mundo, luz, sendo reprimido com rigor crescen-
e o encaminhamento político dessas ten- te. Se a inconfidência de Minas se inspi-

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PASSAGENS PARA O NOVO MUNDO

rara, mais especificamente, na insurrei- interesses e, a pouco e pouco, dessa


ção dos americanos do Norte, a revolu- convergência se vai delineando um pro-
ção bahiana "dos alfaiates" (depois jeto de "império" com sede na América.
chamada "primeira revolução social bra- A política do Príncipe Regente, depois
sileira"), mais popular, mais radical, já D. João VI, no Brasil, pôs em andamen-
traz fundas marcas da Revolução Fran- to esse projeto; mal chegado, ainda na
cesa. De uma insurreição para outra, Bahia, edita o famoso alvará da abertu-
nota-se um aprofundamento no proces- ra dos portos às nações amigas (janeiro
so: o projeto dos revolucionários bahia- de 1808). Não foi, como se poderia pen-
nos envolvia nada menos que a liberta- sar, uma concessão à Inglaterra6 ; esta
6
PINHO, Wanderley, A aber-
tura dos Portos, Salvador,
ção dos escravos. É por aí que se pode sentia-se no direito de reivindicar a
1961. compreender que, se a política do refor- abertura apenas para si, substituindo-se
mismo colonialista português não ate- à velha metrópole, pois fora a esquadra
nuava as tensões, o aprofundamento do inglesa que garantira a vinda da corte;
processo revolucionário, este sim, terá nem se pense que a Velha Albion era a
assustado a camada dominante da colô- única "nação amiga". No mesmo ano,
nia, de proprietários de terras e senhores já estaria no Brasil o americano Henri
de escravos, levando-a como que imper- Hill, para examinar as possibilidades do
ceptivelmente a se aproximar das posi- novo mercado.7 Das pressões inglesas
7
HILL, H enri, A View o f ções reformistas do Estado metropoli- resultaria, sim, o tratado de 1810, no
tb e C o mmerce o f Bra zil
(1808), Ed. Banco da Bahia, tano. qual o comércio inglês torna-se efetiva-
s/d. Assim, 1807-1808 marca efetivamen- mente privilegiado no mercado brasilei-
te um ponto de confluência. Para o ro, mesmo em relação aos portugueses
príncipe regente D. João, migrar para a metropolitanos. O ano de 1810 aparece,
América, em face da invasão francesa assim, como a contrapartida de 1808.
significava preservar a dinastia à espera

A
de melhores dias; à Inglaterra interessa- o longo de toda uma década,
va não só proteger o aliado valioso na ou seja, até a eclosão da revo-
pugna com Napoleão, mas ainda apro- lução liberal portuguesa em
veitar a oportunidade de penetrar nos 1820, implementa-se essa linha
mercados brasileiros mais abertamente, política, em que se casam os interesses
pois, ocupada a metrópole, tornava-se do senhoriato brasileiro com a perspec-
imperioso suspender o exclusivo do co- tiva do Estado metropolitano, agora as-
mércio da colônia. Mais ainda, na decisão similado e instalado na colônia. À aber-
da transferência da corte, aparentemen- tura dos portos, segue-se o levantamento
te desconcertante, pesavam imperativos das proibições às manufaturas; mais do
mais profundos de situação. É que, dada que isso, passa-se a uma política de in-
a posição que Portugal fora assumindo centivo direto às indústrias, e toda uma
a partir do século XVII (a partir da série de medidas de política econômica
Restauração de 1640), a sua existência se decretam neste sentido.8 Ao mesmo
8
VIOTTI DA COSTA, Emi- dependia mais e mais da colônia; era tempo, a corte se instalava, centralizan-
lia, "Introdução ao Estudo
da Emancipação Política do
com esta que jogava, ou melhor, com do um complexo aparelho de Estado,
Brasil", em MOTA, C. G., as vantagens da exploração colonial, no numa espécie de "naturalização" do go-
(org.), Brasil em Perspectiva, sistema de alianças das relações interna-
São Paulo, Difel, 9.» ed., verno português no Brasil. Ao lado dos
1978. cionais. Cada vez mais, aproximar-se da vários departamentos da administração,
França, contra a Inglaterra, significaria organizam-se as forças armadas, criam-se
pôr em risco a colônia, dada a suprema- as primeiras escolas superiores. A polí-
cia naval inglesa; aliar-se à Inglaterra tica externa se orientava na mesma linha,
punha em risco a metrópole, dada a su- com a expedição à Guiana Francesa, e
premacia continental francesa, aliada à reivindicações no Prata. Assim, em 1815,
Espanha depois de 1715. A diplomacia elevava-se a antiga colônia à condição
portuguesa procura continuamente a de Reino Unido.
neutralidade, hesita, para finalmente Não podia haver dúvida: a corte viera
aliar-se à Inglaterra, potência ascenden- para ficar. Por tudo isso, "o que é de
te; e, em 1807, esta opção chega ao admirar é que só em 1820 tenha havido
limite, com a migração da corte e a "in- em Portugal uma revolução". 9
9
versão colonial". Fernando A. Novais é historiador e professor na Faculda-
CARNEIRO DA CUNHA,
Pedro Octávio, "A Fundação Do ponto de vista da classe dominan- de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
de um Império Liberal", em
História Geral da Civilização te dos colonos — os proprietários de Novos Estudos Cebrap, São Paulo
Brasileira, dir. por Sérgio
Buarque de Holanda, tomo II,
terras e de escravos —, nesta conjuntu- n.º 9, p. 2-8, jul. 84
vo l. 1 , São P aulo , Dif el, ra, tal opção vinha de encontro aos seus
1962, p. 146.

8 NOVOS ESTUDOS N.º 9

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