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A necessidade de limites à liberdade

religiosa

Breve análise acerca da liberdade religiosa que, em determinados


casos, poderá ensejar o cometimento de ilícitos.

23/dez/2005

Marina Batista Garrett


m.garrett@uol.com.br
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Desde os primórdios de sua história, as sociedades humanas estão
diretamente atreladas a alguma religião.

Diversas civilizações se desenvolveram fundamentadas sob o manto


de alguma crença. Culturas inteiras como o Egito Antigo, Maias,
Persas e tantas outras, viviam sob a égide da Teocracia. A figura do
governante confundia-se com a de um Deus ou representante seu,
estando o poder, assim, justificado pela escolha de deste [1].

No mundo moderno, a religião se dissociou do governo, mas não


perdeu sua importância para a sociedade. Ao longo da história o que
se percebeu foi momentos em que determinada religião era
praticamente hegemônica, e em outros em que a liberdade de crença
ficou consagrada.

Segundo Mauricio Scheinmam, em artigo publicado acerca do tema,


“Foi no século III d.C que a expressão liberdade religiosa – libertas
religionis - foi, provavelmente, utilizada pela primeira vez, por
Tertuliano, advogado convertido ao cristianismo e que passou a
defender a liberdade religiosa em face dos abusos do Império
Romano.” [2]

A doutrina indica três sistemas para a relação Estado-Igreja: a


confusão, em que o Estado se confundia com a religião; a União, em
que existiam determinadas relações jurídicas entre o Estado e a
Igreja; e a separação, em que o Estado não tem mais relação com
qualquer religião, tornando-se laico ou ateu.
O fato é que a existência de uma crença religiosa sempre foi presente
e muito importante para uma sociedade. O seu reconhecimento deu-
se com o respeito individual diante das diferenças, tendo como ápice
o surgimento das diversas legislações asseguradoras da liberdade
religiosa, como exemplo, Declaration on the Elimination of All
Forms of Religious Intolerance, que esclarece de maneira detalhada
o que consiste o direito a liberdade de pensamento, crença, religião e
consciência.

Nesse sentindo, cumpre registrar que a liberdade ao ateísmo


também é assegurada nas diversas legislações acerca do tema, bem
como, na Constituição Federal do Brasil.

Neste, a afirmação do direito a liberdade religiosa não foi diferente:


a Constituição Federal através de seu art. 5º, VI, assegura o livre
exercício de cultos religiosos e garante a proteção aos seus locais e
suas liturgias.

Relativamente ao histórico de tal direito no Brasil, ensina Alexandre


de Moraes:

“Saliente-se que na história das constituições brasileiras nem


sempre foi assim, pois a Constituição de 25 de março de 1824
consagrava a plena liberdade de crença, restringindo, porém, a
liberdade de culto, pois determinava em seu art. 5º que ‘a Religião
Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do
Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com o seu culto
domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma
alguma exterior de Templo.’ Porém, já na 1ª Constituição da
República, de 24 de fevereiro de 1891, no art. 72, §3º, foram
consagradas as liberdades de crença e de culto, estabelecendo-se que
‘todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e
livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo
bens, observadas as disposições do direito comum.’ Tal previsão foi
seguida pelas demais constituições.” [3]

A religião, tem assim, um histórico concernente a sua relação com o


Estado. O direito de tê-la faz parte da liberdade de pensamento e o
seu exercício é garantido a todos.
Entretanto, a liberdade individual para o livre exercício de uma
religião não pode sobrepor-se ao coletivo. Ou seja, a liberdade de
culto [4] é garantida até onde não haja perturbação da ordem
pública. Nesse sentido, doutrina novamente Alexandre de Moraes:

“A Constituição Federal assegura o livre exercício do culto religioso,


enquanto não for contrário à ordem, tranqüilidade e sossego
públicos, bem como compatível com os bons costumes.” [5]

As questões relativas a religião, entretanto, não são tão simples


como pode parecer.

Os limites à liberdade religiosa não são desnecessários ou abusivos.


Algumas religiões ou cultos, por assim dizer, praticam atos abusivos
e condenados socialmente. Sob o manto da religião, algumas pessoas
praticam atos ilegais e imorais com o intuito de satisfazer sua
lascívia ou obter alguma vantagem financeira. Aproveitando-se da
ignorância alheia, tantas outras prometem grandes conquistas ou
curas milagrosas. Entretanto, fé é uma questão indiscutível, não há
explicação ou qualquer parâmetro que indique o que é certo ou
errado. O objeto da critica em questão não é direcionada a qualquer
religião ou sua manifestação em especifico, mas sim aos atos
abusivos praticados sob o seu manto.

Desse modo, o direito a liberdade religiosa, como todas as demais


garantias constitucionais, deve ter certo limite sob o risco de abrigar
a pratica de atos ilegais. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal
já se manifestou:

“A Constituição Federal assegura o livre exercício do culto religioso,


enquanto não forem contrários à ordem, tranqüilidade e sossego
públicos, bem como compatíveis com os bons costumes.” [6]

“Poder de polícia. Livre exercício dos cultos religiosos, assegurado


pela Constituição, não implica na tolerância de ofensa aos bons
costumes, na relegação de disposições do Código Penal.” [7]

A sociedade civil tem o direito de se proteger frente a pratica de atos


ilegais realizados sob o manto da religião.
Tal questão não é nada simples. A liberdade religiosa foi conquistada
com muita dificuldade e é uma questão que até nos dias atuais
denota muito preconceito. Não chega a ser nada difícil, verificar no
mundo moderno, conflitos decorrentes da intolerância religiosa.

Entretanto, como anteriormente comentado, a religião não pode ser


um véu para encobrir atitudes ilícitas. Um exemplo clássico para tal
questão, são determinadas seitas que, em nome de algum ente
espiritual, realizam sacrifícios de animais ou até mesmo de humanos
com o intuito de alcançar algum desejo. Eventualmente, inclusive,
surgem relatos sobre crianças encontradas mortas ou abusadas após
a realização de algum “ritual”. Ora, como podem seres humanos
serem mortos para satisfazer os desejos alheios? O que ocorre são
verdadeiros crimes realizados sob a égide da “religião”. Casos como
esses são relativamente constantes, entretanto, dificilmente vem ao
conhecimento público.

A liberdade religiosa é sim um direito fundamental do ser humano,


um direito conquistado em cima de duras batalhas e essencial, por
sua natureza e história, ao seu humano, mas que, assim como os
demais direitos fundamentais, deve encontrar limites de modo a
assegurar o bem comum.

BIBLIOGRAFIA:

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª


ed., 1994

MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed.,2003.

SCHEINMAN, Maurício. Liberdade religiosa e escusa de


consciência. Alguns apontamentos. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n.
712, 17 jun. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?
id=6896>. Acesso em: 24 out. 2005.
[1] Entenda-se “Deus” como qualquer ente considerado divino por
uma população.

[2] SCHEINMAN, Maurício. Liberdade religiosa e escusa de


consciência. Alguns
apontamentos.

[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed. São


Paulo. 2003.

[4] Entenda-se “Culto” como religião de um modo geral.

[5] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed. São


Paulo. 2003.

[6] STF. RTJ 51/344

[7] STF. RMS 16857/ MG; Rel. Min. Eloy da Rocha; DJ. 24.10.1969

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