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Barbárie acima de tudo, violência acima de todos: o “programa” de Bolsonaro

para a Segurança Pública

O plano de governo de Jair Bolsonaro, que é denominado ​O caminho da


prosperidade​, apresenta em sua capa os termos “constitucional”, “eficiente” e
“fraterno”, além da citação bíblica do Evangelho segundo João “E conhecereis a
verdade, e a verdade vos libertará”. Palavras ao vento. A proposta apresentada pelo
candidato do PSL ignora os preceitos constitucionais, desconsidera a fraternidade e
não guarda qualquer vinculação com os princípios genuinamente cristãos. Na
melhor das hipóteses leva em consideração a máxima neoliberal da eficiência, mas
não diz como e portanto o faz de forma decadente.

O arquivo conta com muitas imagens, quadros ilustrativos, letras gigantescas e


muito pouca informação. 8 páginas em 80, uma espécie de JK ao contrário.
Recomendo, inclusive, que todos - eleitores de Bolsonaro ou adeptos do #elenão -
dediquem uns minutos para analisar o documento que pretende apresentar um
projeto para o Brasil. Feita essa introdução, vamos ao que interessa: que respostas
o Capitão reformado efetivamente dá para o problema da Segurança Pública?

Praticamente nenhuma.

Em primeiro lugar, fica evidente que o ponto de partida e o foco do material é a


apresentação do inimigo, ou seja, a “esquerda”, que supostamente é a grande
responsável pelos problemas relativos à Segurança Pública no Brasil. Num tópico
denominado “contra a esquerda: números e lógica” é possível ler que armas são
objetos inertes com capacidade tanto de matar quanto de “salvar vidas” e que tudo
depende de quem as está utilizando, se pessoas “boas ou más”. Faço aqui meu
adendo: é o programa de Bolsonaro que elege duas categorias de pessoas, as que
podem (e devem) morrer e as que merecem permanecer vivas. É essa a lógica que
orienta as diretrizes da (in)segurança pública e jurídica do candidato. E não é
necessário fazer um grande esforço intelectual para compreender quem vai acabar
morrendo: negros, jovens, periféricos, mulheres, LGBTs, indígenas. São todos
esses os grupos de “sujeitos maus” que ele almeja combater, mas voltemos ao
inimigo declarado: os problemas da segurança pública não apenas deixaram de ser
solucionados pela esquerda, segundo o programa, mas foram ​criados ​por ela. A
falácia chega a dizer que “A verdade é que o número de homicídios no Brasil
passou a crescer de forma consistente a partir do 1º Foro de SP, no início dos anos
1990”, como se fosse o Foro, e não a ascensão do neoliberalismo que suscitou a
sua criação, o responsável pelo exponencial aumento da violência no país. Trata-se
de uma inversão absurda que tanto desconhece profundamente a economia política
da barbárie quanto se pauta deliberadamente pela má fé. A própria campanha de
Bolsonaro cria o inimigo que pretende combater.

(​Imagem 1: página 27 da “Proposta de Plano de Governo” de Jair Bolsonaro)​

Além da proclamação do inimigo, a esquerda, e da apologia irresponsável ao


armamento, outro ponto chama a atenção quando é feita a leitura do programa de
Bolsonaro, que é o quanto parece se preocupar com os policiais, os quais chama de
“Heróis Nacionais”. O documento apresenta o alarmante número de policiais mortos
nos dois últimos anos e promete homenageá-los gravando seus nomes no Panteão
da Pátria e da liberdade, mas, como faz com outras questões das quais tratarei
adiante, não apresenta propostas concretas para reduzir de fato a mortalidade
policial e para melhorar a qualidade de vida dos mesmos. Não fala da epidemia de
problemas de saúde mental que acomete os trabalhadores da segurança pública
(dentre os quais, além dos policiais, destaco os agentes penitenciários) e o que
fazer para lidar com isso; não fala que o treinamento é precário e que deixa aqueles
que diz proteger (bem como a sociedade como um todo) em situação de
vulnerabilidade; e, principalmente, além de não apontar que a grande responsável
pela morte de policiais é a Guerra às Drogas, dá todas as demais diretrizes no
sentido de intensificá-la. Bolsonaro se coloca como o candidato dos militares, mas
também para eles faz promessas evasivas e deslocadas de seus problemas
cotidianos. Diz que vai garantir uma “retaguarda jurídica” para os policiais através do
excludente de ilicitude, só esquece de dizer que, diante do desastroso cenário que
desenha, a licença para matar é também uma licença para morrer.
Mas, dos pontos apresentados, considero um especialmente evasivo e preocupante:
o que fala sobre “prender e deixar na cadeia”. O não projeto do Capitão reformado
para a execução penal diz que os estados da federação que mais prendem são os
que “mostram avanços”, mas não diz quais parâmetros são utilizados para
determinar o que é considerado avanço, não aponta dados, não indica índices de
reincidência. Nada. Apenas toma como pressuposto que o encarceramento salva
vidas e vende essa falsa informação para os desavisados que estejam dispostos a
comprá-la. Para consolidar a ideia, promete acabar com a progressão de penas e
pauta a redução da maioridade penal para 16 anos, mas não diz o que vai fazer
quando crescer a já gigantesca população carcerária do Brasil, que atualmente é a
terceira maior do mundo1. Numa análise global do plano de governo, a “solução”
mais provável é a que aponta para a privatização das unidades de cumprimento de
pena, mas Jair Bolsonaro evidenciou sua profunda ignorância quando, questionado
sobre a superlotação de presídios numa entrevista de fevereiro deste ano,
respondeu com “Quem falou que não tem vaga, porra? Bota um em cima do outro!”2
. Não sabe o que diz, não dimensiona o problema, não tem um plano razoável
(mesmo dentro de seus duvidosos parâmetros) sobre o que vai ser feito. Mesmo
que decida entulhar (ainda mais) de gente os presídios e deixar que milhares de
brasileiros morram ali, evidencia sua incompreensão sobre as óbvias consequências
disso: rebeliões, incitação da mais profunda guerra com as facções criminosas,
imensa insegurança da sociedade civil. Seu discurso inflamado e repleto de jargões
aciona uma bomba-relógio da qual todos nós (inclusive e especialmente os
trabalhadores da segurança pública) seremos vítimas.

(​Imagem 2: página 32 da “Proposta de Plano de Governo” de Jair Bolsonaro)​

Além da tão comentada proposta de reformulação do estatuto do desarmamento,


cuja resultante seria a possibilidade de “legítima defesa” para os “cidadãos de bem”
e dos pontos que tentei desenvolver acima, cabe destacar a ideia de tipificar como
terrorismo as “invasões” de propriedades rurais e urbanas, num evidente aceno para

1
​https://istoe.com.br/populacao-carceraria-no-brasil-ja-e-terceira-maior-do-mundo/
2
​https://www.youtube.com/watch?v=z14n_7D0AbE
a criminalização e repressão violenta dos movimentos sociais por terra e moradia. A
sacralização da propriedade privada, a partir da retirada da concepção
constitucional de sua função social, é outra aberração que aparece na listagem de
“conclusões” do tópico de segurança. Ao indicar que priorizará a defesa das vítimas
(fica a dúvida de como isso será feito), alega que efetuará um “redirecionamento” da
política de direitos humanos, deixando claro que ela serve apenas para uma parcela
da população. De razoável é possível apontar apenas a menção ao investimento em
tecnologia e inteligência das forças policiais, mas também não diz de que forma e
com que dinheiro fará isso. É tudo extremamente vago e impreciso.

Mas não há espaço para ilusão: a carta em branco, apesar de evidenciar o


despreparo de Bolsonaro e de sua equipe, não caracteriza um mero descuido. Ela
revela um vácuo a ser preenchido pela barbárie, traço típico de governos
autoritários e antidemocráticos. As pautas relativas à segurança certamente têm o
potencial de trazerem consigo alguns dos traços mais sombrios do cada vez mais
provável mandato do Capitão das fake news.

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