Você está na página 1de 18

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

ANTROPOLOGIA

DANIEL ZÜRCHER

ORQUESTRA DA GROTA:
REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO MUSICAL DENTRO DE UMA FAVELA

NITERÓI
2016
Introdução

Para começar este capitulo quero apontar questões relacionadas à favela e à


“cultura” da favela. Quando estudamos questões relacionadas à cultura, em especifico à
música, como é o meu caso, temos que tratar de outros aspectos tais como o contexto no
qual estamos estudando, qual a influência do meio externo do nosso campo e como
transpor a musicalidade do nosso campo, para o texto etnográfico. Prestando atenção a
esses fatores, apresento meu campo e seu contexto, levando em conta os conflitos
culturais e regionais que o perpassam.

Venho desenvolvendo um trabalho de campo com integrantes de uma orquestra,


criada através de um projeto social desenvolvido no Espaço Cultural da Grota. O
projeto teve sua origem em 1983, com a Otávia Paes Selles, mãe do Marcio Paes
Selles1 que era professora aposentada. Primeiramente ela começou com aulas de reforço
escolar para evitar que os jovens da Grota não abandonassem a escola. Em 1994 Marcio
Paes Selles começou a dar aulas de flauta doce para os jovens que frequentavam o
espaço, algum tempo depois os próprios alunos começaram a reivindicar aulas de
violino.

“Eles que quiseram, porque tinha o Jonas que


morava aqui. O Jonas faz violinos, violoncelos e contra
baixos, ele é luthier. Daí, eles ficaram interessados...
Porque os filhos do Jonas já tocavam, e então eles vieram
tocar com a gente, foi quando então formamos a nossa
orquestra de cordas. Ai começaram a chamar a gente
para tocar em chá beneficente e festas, meio que de
brincadeira.” (Trecho retirado de uma entrevista
realizada, no dia 7 de maio de 2016, com o coordenador
do projeto Marcio Paes Selles)
Quero atentar para o fato de os próprios alunos demandarem aulas de Violino,
abrindo uma brecha em meu texto para discutir alguns pontos sobre o simbolismo deste
instrumento. A música clássica é, de maneira geral, apresentada como sendo a música
mais respeitada e frequentemente é colocada em um patamar acima dos demais gêneros,
assim como já vem acontecendo há algum tempo com a MPB. Já, alguns outros

1
Marcio Paes Selles é o atual coordenador, juntamente com Lenora Pinto Mendes.

2
gêneros populares, como o pop, rock, axé, — até mesmo o samba, são vistos por certos
setores com um outro olhar, mas ainda assim são considerados “aceitáveis”2. Quando
falamos em música na favela, nos referimos, de maneira geral, ao funk e ao rap, pois o
samba já não é majoritariamente visto como sendo originário da favela. Os dois gêneros
são vistos por certas categorias mais elitizadas como sendo de um estatuto inferior. O
rap hoje em dia vem ganhando mais espaço e respeito no senso comum, que tempos
atrás fazia parte de uma cultura marginal , assim como o funk, que ainda assim ocupa
um lugar onde sim, o funk principalmente, é mal visto por esses setorespela sociedade.
Sendo assim, de um lado temos a música clássica que goza de um estatuto elevado e que
é imposta como superior por todo um setor da sociedadea uma sociedade, e por outro
lado, o funk, frequentemente representado como o seu oposto e em grande parte como
não sendo considerado uma manifestação cultural.

O violino é um instrumento musical elaborado no século XVI como o produto


mais acabado de uma nova concepção musical que marcará a música de concerto do
Ocidente moderno no quadro da ideologia do progresso e da racionalidade iluminista.
Talvez mais do que qualquer outro instrumento, o violino materialize estas ideias na
música, pelas suas possibilidades técnicas virtuosísticas e por sua sonoridade. Desse
modo, o violino tem um valor social especial para certos setores formados na tradição
da música de concerto. Nesse sentido, a pessoa que toca o violino adquire
frequentemente um status mais elevado. Podemos assim, contrastar as situações de
alguém tocando violino em uma orquestra clássica com um Mestre de Cerimônias
cantando funk e observar que estas se desenvolvem em quadros morais e valorativos
bem distintos. É verdade também que a grande difusão dos meios de comunicação de
massa tem colocado estes mundos em contato com mais frequência. Mundos musicais,
morais e valorativos têm se misturado, desafiando fronteiras mais tradicionais. Sabe-se,
também, que o próprio violino seguiu carreiras distintas, sendo apropriado em contextos
distintos do da música de concerto, figurando em formações e gêneros populares em
muitas partes do mundo. Commented [1]: encaixar melhor

Neste trabalho estou interessado em estudar praticas musicais ligadas à tradição


da música de concerto numa favela e em verificar como este gênero pode ser
transmitido fora dos convencionais conservatórios e para categorias sociais que

2
Sei que o termo “aceitáveis” parece meio forte, mas a ideia e fazer um painel geral e raso,
para termos uma ideia.

2
normalmente não detém o “capital cultural” supostamente necessário para a sua fruição
e aprendizado, fazendo com que essa música seja transformada de acordo com os
habitus, e o “capital cultural” dos alunos que “reinterpretam” a música tradicional de Commented [2]: termo entre "" ou não?

concerto. Formatted: Font: Italic

Em meado de 2014 comecei a elaborar o meu projeto de pesquisa, que começou


a partir de um trabalho final de uma disciplina oferecida pelo departamento de
Antropologia da UFF, ministrada pelo professor Luís Fernando Rojo, intitulada como
Antropologia das Emoções. Por causa do teor da disciplina, fui estudar as emoções
provocadas pela música de concerto nos participantes da Orquestra de Cordas da Grota.
A ideia era estudar como os participantes percebiam e sentiam a música erudita. Pelo
curto tempo que eu tive para realizar este trabalho, acabei focando mais na parte teórica
da discussão, o que me serviria mais a frente como base para construção e
aprofundamento de minhas questões e meu tema principal. Logo após terminar o
trabalho para a disciplina, comecei a pensar num rumo para a minha pesquisa. Ao longo
de praticamente um ano observando e estudando a construção do meu objetivo e da
minha hipótese, busquei pegar referencias tanto na antropologia clássica e
contemporânea, como também na etnomusicologia, tomando ideias e conceitos para
aprofundar e moldar minha pesquisa e meu trabalho em campo.

...

A orquestra nasce de dentro, ou é importada de fora?

Nesta parte do texto, abro espaço para aprofundar a discussão sobre a cultura
erudita em contraste com a popular a partir de um dos pontos mais significativos do
meu trabalho: a sugestão de que projetos sociais levariam para as favelas uma cultura de
fora apresentando-a geralmente como sendo superior. No caso da minha pesquisa,
abordo a questão da música de concerto levada à favela da Grota pelo projeto da
Orquestra de Cordas da Grota. Procuro problematizar esta questão a partir dos meus
dados de campo.

O estudo da música, quando feito através da etnomusicologia, precisa


necessariamente abordar aspectos sociais que compõem o ambiente no qual ela está
inserida. Proponho um trecho de “A etnomusicologia e o estudo da música popular

3
urbana: Uma explanação introdutória”, de Gledson Meira, para dar suporte ao raciocínio
construído ao longo desse texto.

“O estudo da música possui em sua prática vários


campos de atuação que contemplam estratégias e objetivos
distintos dentro dessa área macro. A etnomusicologia é um
desses campos. Ela traz, em suas perspectivas, o estudo da
música em âmbito mais amplo, considerando e entendendo que
essa arte não deve ser estudada apenas enquanto fenômeno
acústico, mas, que deve ser levado em consideração, o contexto
sociocultural relacionado às diversas músicas dos diferentes
grupos humanos.” (MEIRA,Gledson. s.d, p.01)

Sendo assim, quero explorar algumas representações construídas em torno das


noções de musica de concerto em contraste com outros gêneros, como o funk e o rap. O
senso comum nos informa frequentemente que música clássica impõe certa formalidade,
elegância, envolvendo uma classe de pessoas bem educadas e com um poder
socioeconômico elevado. Dificilmente associamos a musica clássica à um padrão mais
popular, a um estilo mais informal. A imaginamos através da presença do spalla3, do
maestro, de um conjunto de músicos elegantes e músicas belas e harmônicas. Quanto ao
funk e o rap, testes gêneros costumam ser representados como um tipo de cultura
marginal, que está numa posição inferior à cultura erudita, e que, de maneira geral, é
associada à favela e à criminalidade.

“A sociedade estabelece um modelo de categorias e


tenta catalogar as pessoas conforme os atributos considerados
comuns e naturais pelos membros dessa categoria. Estabelece
também as categorias a que as pessoas devem pertencer, bem
como os seus atributos, o que significa que a sociedade
determina um padrão externo ao indivíduo que permite prever
a categoria e os atributos, a identidade social e as relações com
o meio.”( MELO, Z. M. 1999, p.1)

3
O Spalla é o primeiro violino ao lado esquerdo do maestro, sendo o último instrumentista a
entrar no palco, tendo a função de afinar toda a orquestra e a preparando para a entrada do maestro.
Portanto, é uma posição de destaque diante de toda a orquestra.

4
Nas minhas idas ao ECG conversei com pessoas que contavam que a orquestra
dava aos integrantes que tocam nas orquestras e aos participantes do projeto na parte da
organização, uma oportunidade de sair do meio da favela e conseguir “ser alguém na
vida”, vejo esse discurso sendo um reflexo de um discurso de senso comum, que julga a
favela ainda como um lugar carente de cultura, ainda que as favelas vem ganhando uma
maior visibilidade e um reconhecimento, podemos ver a favela sendo estereotipada pelo
senso comum, como um lugar de marginalidade. Sendo assim aAlguns dos jovens
acabam optando por seguir outra carreira, como foi o caso de um aluno da Orquestra
que entrou esse ano para cursar Antropologia, entre outros que já cursam carreiras como
medicina, entre outras.

Uma questão que vem me chamando atenção ao longo desta pesquisa é o uso
recorrente pelos projetos sociais, como o da Grota, de discursos que veem a favela como
um lugar sem cultura, sem lazer e sem oportunidade. Esse tipo de discurso defende a
ideia de que são os projetos sociais que levam isso para a comunidade e que, como
consequência, podem conseguir “tirar” as pessoas da favela.

Em minhas conversas com os coordenadores, alunos e professores, muitos


evocavam a palavra “oportunidade”, e de fato o discurso base construído em torno de
projetos como o da Grota, é o discurso da oferta de oportunidade para o jovem sair do
meio da favela e ter uma vida melhor. Nesse ponto gostaria de trazer à cena a posição
dos criadores da Orquetra da Grota em relação ao discurso baseado na oferta de
oportunidade para que o jovem tenha contato outras formas de cultura. Conforme pude
observar, na perspectiva de seus organizadores não há a intenção de reforçar a ideia de
que a favela é um lugar carente de cultura e lazer.

De acordo com Zélia Maria, vemos que há um sistema classificatório com


categorias que o senso comum estabelece para cada individuo. Nesse sentido, a favela é
frequentemente percebida como lugares desordenados, associados à criminalidade.
Moradores de favela são colocados em categorias julgadas inferiores. É verdade,
entretanto, que nos últimos tempos as representações sobre a favela tem sofrido
mudanças importantes em decorrência de um conjunto de fatores. Pode-se sugerir aqui,
a ascensão sócio-econômica das classes mais baixas, como resultado da política
econômica do governo Lula, a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora

5
(UPP) em algumas favelas e a ampliação de servições nestes lugares. Estes fatores
acabaram por repercutir na imagem pública da favela, que passou a ser disseminada em
meios de comunicação de massa de forma positivada e na forma de um bem de
consumo. Hoje, algumas favelas do Rio de Janeiro gozam de status de pontos turísticos,
como é o caso do Morro do Alemão e do Morro da Providência que abrigam teleféricos
e que recebem muitos visitantes.

Esses estigmas nascem com o individuo morador de favela e os projetos sociais,


de maneira geral, estão sempre tentando eliminar esses estereótipos, de modo a
reorganizar a imagem constrúida sobre estes lugares e seus residentes, tanto entre
moradores e não moradores. Estes projetos buscam, assim, aproximar a favela de uma
cultura mais erudita, reproduzindo o discurso que impõe o erudito como melhor.
Portanto, o discurso da superioridade da musica erudita está enraizada em nosso
imaginário, como resultado da hegemonia dos padrões valorativos dos países centrais,
no quadro da colonialidade.

Nesse contexto observei que no ECG, os coordenadores e professores buscam


desconstruir a ideia de superioridade da cultura erudita ao valorizarem culturas
populares e regionais. Segundo Márcio Paes Selles, a ideia do projeto é apresentar
outras culturas através da música.

“ Eu aprendi que a cultura é uma coisa universal, tem


que pensar no mundo como um todo, você pode tocar música
alemã, indiana, argentina entre outras. Então não posso tocar
forró porque o forró é do Nordeste ? Eu sou do Rio, tenho que
tocar só samba e chorinho? Eu acho que tem essa coisa de
tocar a música local, mas também de conhecer outras culturas.
E quando você conhece outras culturas você se enriquece
mais, até a própria cultura local.” (Trecho retirado de uma
entrevista, realizada no dia 7 de mai de 2016, com o
coordenador do projeto Marcio Paes Selles)

Essa valorização da cultura local pode ser verificada quando os participantes da


Orquestra tocam músicas pop nos intervalos dos ensaios ou das aulas. Noto que muitos
participantes se engajam nessas performances espontâneas e que os organizadores do
projeto incentivam esta atividade.

6
Notei que em algumas das aulas, os professores tentam trazer exemplos do
cotidianos dos alunos, para explicar a parte da teoria musical, como é o caso da aula de
percepção musical, com a professora Adriana Miana, que procura trazer exemplos de
musica pop para exemplificar questões de escalas e ritimos. Um fato muito interessante
que ocorreu em uma dessas aulas, foi que um aluno começou a fazer um ritmo de funk
durante a aula, e a Adriana perguntou aos demais, qual seria as figuras rítmicas que o
aluno estava “cantando”fazendo, e logo após ela começou a explicar o ritmo, abrindo
uma discussão em torno dos tempos rítmicos que estavam presentes naquela batida.
Com isso observei que a ideia que esta presente no ECG, é a ideia de aproximar o
máximos pela arte, mundos que de certa forma ainda são separados por questões
socioeconimicas.

Através do discurso produzido pelas falas dos entrevistados, noto que o espaço
da cultural da Grota é tido como um espaço de intercambio cultural, promovendo
acolhimento para muitos dos jovens que frequentam. Em algumas entrevistas e até no
convívio ouvi estudantes dizendo o quanto a música os ajudou, e que hoje não se
imaginam sem a música em suas vida. Há depoimentos de integrantes relatando o quão
Márcio foi atencioso, dando esperança a jovens e até mesmo o descrevendo como um
pai para muitos delesdaqueles jovens,. Katuga Vidal, que foi aluno a tempos atrás, e
atualmente professor de violoncelo no ECG, relatou em uma entrevista feita para uma
reportagem sobre o ECG, que a orquestra era como uma lar para muitos daqueles
jovens, e dava um novo horizonte para os integrantes, “A gente é programado pra ser
um repetidor daquilo que vivemos, então eu via minha mãe trabalhando de domestica,
meu pai trabalhando num trabalho que tinha na época, então pensava que era isso que ia
fazer”. Com esses discursos podemos ver que, para a grande maioria dos integrantes da
Orquestra, o projeto repercutiu positivamente em suas vidas. Realmente pude observar
que Márcio e Lenora são tidos por muitos como uma segunda família, ajudando em
dificuldades que os estudantes têm em casa, as vezes até falta de dinheiro. Assim
podemos enxergar também o ECG como um lar aconchegante para os jovens
frequentadores, seja por tocarem na Orquestra, ou apenas por participarem como
amigos, público ou moradores da Grota.

“Para investigar sobre o potencial social da música, é


preciso tomá-la, primeiramente, como um fato social, ou seja,
como um dado da realidade objetiva, da realidade exterior a
todos nós, que tem o poder de agir sobre nossa subjetividade,

7
ou seja, de agir sobre nossa consciência. Trabalhar a dimensão
social da música é um caminho também para refletir sobre um
tema clássico na sociologia. Qual seja, a relação entre
indivíduo e sociedade, que se desenvolve no processo de
socialização. Nesse sentido, cabe perguntar, como se dá essa
articulação? Como se operacionaliza a relação indivíduo e
sociedade? Ou, mais especificamente, como a música pode
socializar e, consequentemente, como a música pode nos ajudar
a falar sobre a difícil tarefa de construir a identidade do jovem
de hoje?” (SETTON, M. G. J, 2008, p.16-17)

O Espaço serve como um lugar de encontro, um lugar onde os jovens se sentem


bem. Em minha primeira ida ao ECG eu percebi que era um espaço onde todos eram
bem-vindos. Alguns pais e familiares de alunos interagiam ali como se fossem
pertencentes ao local.

Numa outra ida ao campo observei um momento único, que demonstrou como a
música une as pessoas. Havia dois jovens tocando uma música, da qual não me recordo
bem qual era, e logo em seguida foram chegando mais algumas pessoas. Cada um foi
pegando um instrumento e se juntando ao grupo que tocava. Terminada uma música,
todos seguiam para uma outra e assim por diante. Esse momento demonstra como a
música é um fator de integração entre as pessoas. Muitas das entrevistas que realizei no
Espaço da Grota mencionaram que, além do projeto proporcionar o aprendizado de
algum instrumento, proporciona também novas amizades e relações pelo fato de
tocarem juntos.

8
Favela e Seus “Salvadores”

Abro esta parte do texto utilizando “Favela é comunidade?” de Patricia Birman,


onde ela aborda a identidade que se cria para o favelado e aponta alguns importantes
aspectos da favela que podem complementar e introduzir a temática que pretendo
desenvolver neste trabalho.

Neste trecho do texto, a autora cita os atores que criam essa identificação da
favela, notando que não há consenso:

“Os atores dessas identificações não são somente


aqueles que participam diretamente do governo, mas
também as varias agências e associações que lá se
encontram: igrejas, clubes de futebol, ONGs, associações
culturais diversas. Contudo, não encontramos
unanimidade em relação a essas identificações. (...)”
(BIRMAN, 2008,p.104)
ESCREVER MAIS SOBRE FAVELA Commented [3]: ...

Portanto, podemos observar que a questão mais trabalhada nesses projetos é a


criação de oportunidades para tirar o jovem da “vagabundagem” da rua e afastá-lo do
mundo das drogas, e com isso também combater o crime.

Gostaria, portanto, de problematizar os discursos dos projetos das ONG’s, tendo


em vista que muitos projetos realizado por ONGs dentro das favelas carrega em sua
base a ideia de afastar o jovem do mundo do crime e das drogas.

“Na atualidade, as práticas musicais têm sido


associadas à construção de novas possibilidades de vida e ao
enfrentamento das violências e vulnerabilidades sociais,
principalmente nos centros urbanos. Essas possibilidades
costumam ser definidas pela ideia de que ”a música‟
(normalmente pensada no singular e associada a certos valores
sócio-culturais) pode realizar uma ”transformação social‟
”positiva‟ nos contextos e na vida das pessoas.”(GUAZINA,
Laize, 2012, p.1)

Das Favelas Para os Palcos

9
“Face às lagrimas de um ser humano é preciso participar ou
compadecer-se. Raros são aqueles que não ficam emocionados com as
lágrimas de um outro, sendo difícil reter as lagrimas diante daquelas
que são derramadas.” (VINCENT-BUFFAULT, 1988, p. 33)

Com base na citação acima, abordo aqui a questão das emoções provocadas pela
música clássica nos jovens frequentadores da Orquestra e desenvolvo minha ideia sobre
uma troca de sentimentos para que se possa fazer música. Dentro de um palco, quando
esses jovens estão tocando para um público, há uma relação de troca de emoções, uma
inter-subjetividade. De um lado, os músicos mobilizam sentimentos e emoções
psíquicas ao tocar a musica e transmití-las para o publico, que não está lá apenas para
ouvir a musica tocada, mas também para compartilhar emoções. Sendo esses lugares
espaços de trocas emocionais muito marcantes, onde certas emoções estão implícitas
como regras, os músicos e a plateia compartilham certos códigos de comportamento4.
“Estes não berram e não gritam só para expressar o medo, a ira ou a dor, mas porque são
encarregados, obrigados a fazê-lo” (MAUSS, 1981, p.150). Pegando emprestada essa
fala do Mauss, posso dizer que se alguém no meio daquele espaço de trocas das
emoções não se expressar mais ou menos de acordo com o resto do publico — ou no
caso do musico, de acordo com o resto da orquestra — esta pessoa poderá ser vista de
forma negativa por aqueles que estão ali.“Não só o choro, mas toda uma série de
expressões orais de sentimento não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou
fisiológicos, mas sim fenômenos sócias, marcados por manifestações não-espontâneas e
da mais perfeita obrigação” (MAUSS, 1981, p.147)

Assim, podemos perceber na musica dois aspectos: o aspecto técnico, marcado


pela técnica de tocar um instrumento ou cantar, e o lado emocional ao interpretar uma
musica, sendo o segundo aspecto igualmente importante para se tocar uma peça. Em
uma de minhas idas a campo pude observar o Márcio, em umas de suas aulas virar-se
para um aluno e diz: “As notas estão perfeitas, mas faltou você tocar com emoção.”
Como exemplo, podemos pensar em um cantor de ópera que suba ao palco sem estar
envolvido com a música e apenas a cante exatamente como está escrita no papel. O
resultado não será bom o suficiente, porque não terá o emocional. Esse é o principal
motivo de termos com uma mesma peça diversas interpretações distintas, conforme
quem as executa. Cada interpretação será diferente da outra, por conta do lado

4
Obrigadas no sentido de ser uma regra. As pessoas teriam que de uma certa forma seguir um
padrão nos sentimentos.

10
emocional e cultural do seu intérprete. Esta questão é muito visível por exemplo em
solos musicais, pois são nos solos, mais que no resto da peça, que o lado emocional
aparece. Podemos fazer uma breve comparação com o teatro onde, na maioria dos
casos, o que irá determinar a escolha de um ator para um papel, é se o ator conseguirá
passar para o publico a emoção que o papel exige, e não apenas se ele decorou as falas.
As vezes a pessoa pode saber tocar/interpretar muito bem, mas não se encaixa no papel
ou no solo.

11
A Música Clássica Pela Favela Formatted: Space After: 6 pt, Border: Top: (No
border), Bottom: (No border), Left: (No border), Right:
Nessa parte de meu texto, quero discutir os fatores socioculturais que (No border), Between : (No border)

influenciam no consumo da música, como ouvinte e posteriormente na interpretação da


mesma. Para essa parte acho prudente entrar um pouco na discussão de gosto, e de
como ele é inculcado socialmente. Para isso vou me utilizar da ideia de gosto proposta
por Bourdieu e dialogar também com o autor John Blacking.

Em Bourdieu, vemos que as artes são dotadas de códigos específicos que,


segundo ele, são necessários para apreciar e entender aquela arte. Para o autor, para que
a pessoa tenha um determinado gosto, ela teria que dominar o código do qual aquela
arte faz parte. Assim, o indivíduo pode entender e, então, determinar se gosta ou não da
arte em questão. Esse “código” seria passado através do habitus, que é incorporado na
pessoa através da família e da escola. A música, está carregada de significados e
códigos, que passam a ser interpretados e reinterpretados, de acordo com o habitus da
pessoa.

Os significados atribuídos por uma pessoa ou um grupo de pessoas passam a ser


interpretados de acordo com determinados fatores. Primeiro, o autor atribui um sentido
para obra de acordo com o seu ponto de vista para a mesma, sentindo que carrega
fragmentos do seu próprio habitus. Sendo assim para a obra ser interpretada da mesma
maneira que o autor planejou, é preciso que o interprete compartilhe do mesmo habitus
do autor da obra.O segundo fator é que, quem interpretará essa obra, também carrega na
interpretação da obra o seu próprio habitus, dando a ela um significado diferente ao do
autor. O terceiro fator que irá influenciar na interpretação da obra, é o local que a obra
de arte está inserida. Commented [4]: mudar de parágrafo ou não?

Recentemente, dois adolescentes deixaram um par de óculos no chão do Museu


de Arte Moderna de São Francisco, para fazer uma espécie de experimento, para ver se
as pessoas achariam que aquele par de óculos fazia parte da exposição do museu.

“‘Vimos um monte de arte e pinturas legais na parede,


mas tinha também outras coisas como um animal empalhado ou
um cobertor cinza... Então pensamos, isso realmente é arte?’,
disse TJ Khatayan, de 17 anos, ao jornal "USA Today". Para
tirar a prova, ele pediu emprestados os óculos do amigo Kevin
Nguyen, 16, e colocou-os no chão, próximos a uma parede
branca. Não demorou até que visitantes se aglomerassem em

12
torno do objeto, tentando "entender" a proposta.” (Trecho
retirado de uma reportagem do site da UOL)
Neste caso podemos ver claramente como o local onde está inserida a obra de
arte pode mudar totalmente o contexto da mesma. O trecho da reportagem retrata
claramente o valor simbólico atribuído ao museu e a seus objetos, e a partir do
momento em que esses objetos são inseridos, eles acabam absorvendo os valores
atribuídos ao local. Outro bom exemplo também, foi um situação pela qual passei ao
visitar o Museu do Inhotim, onde havia peças que não representavam uma obra de arte
para mim, mas eu buscava enxergar elas de alguma forma artística, só pelo fato de
estarem inseridas em um meio onde elas são consideradas com tal.

“Os mesmos padrões de som não apenas podem ter


diferentes significados em diversas sociedades, mas também
podem ter significados diferentes no interior da mesma
sociedade, por causa dos contextos sociais diferentes. Dessa
forma, como nos estudos modernos dos atos de fala, a ênfase
deve estar nas intenções de significar algo dos atores e em suas
interpretações das intenções de significar das outras pessoas.
Isto também obriga a reconhecer que atores e analistas podem
interpretar mal as intenções dos outros, o que pode ter
consequências para a ação social bem como para o rigor
analítico. Isto é, uma pessoa pode interpretar um
comportamento não-intencional de outra como uma ação
intencional e responder de acordo. Um tique nervoso pode ser
interpretado como uma piscadela, ou como um tique nervoso.
(BLACKING, John, 2007, p.213)”

Concluindo esse raciocínio, eu pude observar que a arte só passa a ser


considerada como tal quando a pessoa que a está consumindo lhe dê algum significado
de acordo com o seu ponto de vista. Ponto de vista esse adquirido através da noção de
habitus trabalhada pelo autor Pierre Bourdie. Portanto a música, assim como toda a arte,
está em constante movimento e transformação, sendo ressignificada por cada pessoa,
gerando assim um movimento contínuo da arte.

13
Aqui é o meu lugar: Reflexões sobre a “MostrArte - Encurtando
Distâncias”

Em 29 de maio de 2016, aconteceu a primeira edição da MostrArte, com o


intuito de abrir o ECG para diversos artistas mostrarem seu trabalho a comunidade. O
evento contou com diversas apresentações de alunos, ex-alunos e amigos do ECG, que
fizeram dele seu palco: os ex-alunos relembrando o seu inicio na música e na arte,
discursando sobre suas trajetórias e a importância que o ECG teve na construção das
mesmas, e os alunos atuais comentando a mudança do espaço e como isso agregou na
própria construção. Em cima destes discursos quero trabalhar a ideia de pertencimento e
o relacionamento que os alunos e ex-alunos tem com o ECG. Neste dia, achei prudente
utilizar de uma linguagem que a muito tempo venho procurando trabalhar em minha
pesquisa, que é a linguagem audiovisual e fotográfica, dando enfase maior na fotografia,
que é o meio no qual estou inserido há alguns anos e tendo alguns trabalhos já
realizados. Então para melhor relatar essa parte, irei utilizar os matérias coletados por
mim durante o evento. O evento perpassou vários estilos musicais, passando pelo rock,
funk, sertanejo, musica clássica, hip-hop e MPB.

14
Conclusão

Sendo esse trabalho uma introdução para minha monografia, apresento aqui
algumas conclusões, que ao longo de minha monografia pretendo aprofundar com mais
detalhes.

As questões que apresento neste texto, servem como uma complementação entre
si. A primeira questão apresentada neste texto, é a de que projetos sociais em favela tem
uma problemática de estar impondo de certa forma uma cultura nos jovens de favela.
Neste ponto venho observando que os projetos servem como uma ponte entre o que a
sociedade julga ser a “cultura boa”. Ao longo desse primeiro ano em campo, consegui
observar o discurso da sociedade elevando e valorizando a música clássica, em
detrimento de outros gêneros musicais. Entre discursos de oportunidades e imposições
culturais, procuro achar um equilíbrio, entrede encontrar os pontos positivos e negativos
passado pelo projeto da Grota. Commented [5]: reescrever

Como apresentei nos capítulos desse texto, o objetivo dessa pesquisa é


apresentar como um todo, o funcionamento do projeto cultural da Orquestra de Cordas
da Grota. Sendo assim, o objetivo final de minha pesquisa, não é ditar ou julgar a
eficácia ou não de projetos como o da Grota, mas sim fazer uma discussão sobre o papel
do projeto. Fazendo uma abordagem aprofundada, quero problematizar pontos
peculiares do projeto da Grota. Pegando o discurso de uma “imposição” cultural, em
dialogo com o discurso de dar “oportunidades”, pretendo chegar ao final do meu
trabalho apresentando uma discussão aprofundada entre a preservação, ou melhor
dizendo, a valorização de uma cultura local, e a imposição de uma cultura externa e de
elite.

“A sociedade limita e delimita a capacidade de ação de


um sujeito estigmatizado, marca-o como desacreditado e
determina os efeitos maléficos que pode representar. Quanto
mais visível for a marca, menos possibilidade tem o sujeito de
reverter, nas suas inter-relações, a imagem formada
anteriormente pelo padrão social.” (MELO, Z. M., 1999,
p.3)

Concluo também que a imagem padronizada que se tem desses jovens acaba
desmotivando milhares de jovens. Que por carregar esses estigmas acabam desistindo

15
de certos projetos de vida, ou pior, muitos deles nem começam sequer, a pensar em um
futuro, por conta da sociedade já lhes impor um destino.

Para finalizar, quero entender como os jovens que frequentam a Orquestra da


Grota, veem a música clássica e a questão de ela ser uma música elitizada. Em que
patamar eles se consideram e consideram a cultura erudita, e em contraponto o que eles
acham da cultura local, na qual cresceram; se eles a enxergam como sendo inferior a
cultura erudita, e a valorizam da mesma maneira, ou até mais do que a erudita. Essas
são as questões que estou buscando compreender em minha pesquisa e meu trabalho de
campo.

16
Bibliografia

BLACKING, Jhon. Música. Cultura e Experiência. CADERNO DE CAMPO,


SÃO PAULO, nº16, p. 201-218, 2007

BIRMAN, Patricia, Favela é comunidade? In MACHADO DA SILVA, Luiz


Antonio. Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

GUAZINA, L.. Entre a música e o crime? Uma análise sobre discursos


midiáticos e o ensino de música para crianças e jovens em projetos sociais. In: VIII
Conferência Brasileira de Mídia Cidadã, 2012, Brasília. Anais da VIII Conferência
Brasileira de Mídia Cidadã. Santa Cruz: UNICENTRO, 2012.

MAUSS, Marcel. A expressão obrigatória dos sentimentos (325-335). In:


Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.

MELO, Z. M. Estigmas: a deterioração da identidade Social. In: seminário


internacional sobre sociedade inclusiva, 1999, belo horizonte/ mg. anais do seminário
internacional sobre sociedade inclusiva, 1999

MEIRA, Gledson. A etnomusicologia e o estudo da musica popular urbana: Uma


explanação introdutória.

VINCENT-BUFFAULT, Anne – A troca de lágrimas e suas regras (31-57). In:


História das lágrimas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

Reportagens:

“Adolescentes ‘transformam’ par de óculos em arte e se divertem com reações”,


reportagem retirada do jornal UOL, podendo ser acessada través do link:
[http://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2016/05/27/adolescentes-
transformam-par-de-oculos-em-arte-e-se-divertem-com-reacoes.htm]

17

Você também pode gostar