Você está na página 1de 9

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO-UFMA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS-CCH

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA- DEHIS

PROF: PAULO HENRIQUE

HISTORIA E HISTORIOGRAFIA DO CRIME, CRIMINOSO E CRIMINALIDADE:


NARRATIVAS, OBJETOS E METODOLOGIAS

MÁRCIO ANDRÉ COSTA SAMPAIO

RESUMO ESTENDIDO: HISTÓRIAS DE PERDÃO E SEUS NARRADORES


NA FRANÇA DO SECULO XVI, de Natalie Zemon Davis

SÃO LUÍS-MA

2023
RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise das interpretações do processo criminal


francês a partir das cartas de remissão realizados pela pesquisadora e historiadora
Natalie Zemon Davis. A autora realizou pesquisas em arquivos franceses estudando
conjuntos documentais referentes as histórias de crimes ocorridos na França do século
XVI. Com foco nas cartas de remissão, Zemon apresenta instrumentos jurídicos para
solicitação do perdão real pelo crime de homicídio. Por meio dos relatos individuais, a
autora nos permite debruçar no contexto histórico-social das relações de crime e perdão,
diante de um processo judicial que pode ocasionar condenações terríveis aos culpados.
O livro nos comtempla com os registros do cotidiano, da vida social, do tratamento de
mulheres e dos processos de penalidade. Analisando buscar correlações entre história,
literatura, direito e sociabilidade, a autora oferece uma discussão ao debate sobre as
relações da realidade e da ficção desses documentos, valendo ressaltar que ficção não
indica aspecto fraudulentos das cartas.
Palavras-Chaves: Perdão; remissão; rei; juízes.
INTRODUÇÃO

Tendo como pano de fundo, o texto Historias de Perdão e seus narradores na


França do século XVI, de Natalie Zemon Davis, historiadora canadense-estadunidense,
escritora, roteirista e ativista pelos direitos da mulheres. Sua obra apresenta casos e
petições de perdão na França do século XVI, colocando o leitor no ambiente
sociocultural do período citado. Tendo como alvo as cartas de remissão, Natalie nos
apresenta como esse gênero misto apresentam o meio histórico a partir de um processo
criminal e de como a sociedade trata de casos de homicídios em circunstâncias
diferentes entre homens e mulheres.
Na introdução do texto, a autora nos situa na petição do lavrador Thomas
Manny, de 36 anos, morador de Sens, ligado por matrimônio a Claudine Guyart com a
qual tem um filho. O requerente afirma que a esposa precedeu com lascívia e perversão
a contrair sífilis, o qual o requerente fez com que tratasse e curasse. Ao longo da carta, o
requerente apresenta toda a ambientação e justificativas do crime. Ao depararmos com o
termo “esposa lasciva”, percebemos logo quem é foi vitimado pelo autor da carta. Nessa
ambientação do crime, o requerente situa motivos como as tentativas e humilhações do
marido, o amante e a esposa em local público, demonstrando desrespeito ao marido, a
fille de joie, termo utilizado na prostituição, prometendo contar tudo sobre o que a
esposa fazia, mediante pagamento. Enfim, todas as possíveis justificativas são
apresentadas ao leitor, possibilitando uma entrada na mente do requerente e seus
motivos. Ao longo do texto, percebemos que esse ressalvo de humilhação se constitui
como uma ótima estratégia, evitando parecer um “criminoso cruel”, com uma
linguagem apelativa, para ser finalmente remissível.

Para nós, historiadores, cabe ressaltar a devida questão: qual a importância das
cartas de remissão como valor documental? É necessário despir o documento de
elementos ficcionais, nessa trama de contra verdades, evidenciando o meio histórico.
Vale lembra que os aspectos ficcionais são os elementos formadores, modeladores e
construtivos, ou seja, a elaboração de uma narrativa. Buscar aspectos ficcionais nessa
carta não significa buscar índices de fraudes no documento. Hayden White acentuava
que o mundo não se apresenta na forma de histórias bem feitas, com começo, meio e
fim. No caráter da narrativa é necessário haver escolhas formativas de linguagem,
detalhes e ordem para apresentar um relato condizente com a verdade.

As cartas de remissão eram gêneros mistos, ou seja, uniam-se relatos históricos,


petições judiciais, testemunhos e etc. Zemon cita em seu texto o verbo “feindre” que
significa criar, não dissimular, tendo como princípio a ficção. A autora ressalta que
essas cartas apresentam fontes para o estudo da violência e vingança e atitudes relativas
do rei. Além disso, demonstram como as pessoas do século XVI contavam histórias,
como faziam ganhar sentido e introduziam coerência. A maneira de como a trama de
acontecimentos, dos relatos judiciais e da violência/ perdão interagiam com os hábitos
contemporâneos.
Mas, afinal, Por que as cartas de remissão? Não há como negar que elas são as
melhores fontes de narrativa ininterrupta provenientes de todas as classes, em especial
as inferiores. São numerosos os contratos de casamentos e testamentos demonstrando os
planos e sensibilidades de homens e mulheres. As cartas permitiam uma certa liberdade
maior à pessoas ouvida pelo notário. Zemon acentua que os relatos de testemunhos
apresentam historias sem começo e nem fim. François Hartog, na sua obra, Evidencias
da História; capitulo 5: A Testemunha e o Historiador; ressalta o instrumento do
testemunho como estrutura de transição entre a memória e a História, como também
ressalta Agamben (2008, p. 68,): “o humano propriamente nada mais é que esta
passagem da pura língua ao discurso; porém este trânsito, este instante, é a história”.
Entretanto pode ocorre o risco de uma confusão entre a autenticidade e a verdade, tendo
a necessidade de separação entre a veracidade e a confiabilidade. Em suma, os
testemunhos são relatos de pequenos pedaços de uma história completa. São utilizados
para o embasamento e estrutura do corpo da carta de remissão, como a autora
apresentará mais à frente.

As cartas de remissão impediam que o autor do homicídio fosse executado e/ou


bens confiscados. Essas cartas, geralmente, entram na vida de um requerente por causa
de uma morte. No capítulo seguinte, a época em que se contavam histórias, apresenta
como era disposto o sistema criminal francês. Em relação ao homicídio, esse crime era
tratado como uma única rubrica, ou seja, não existia a concepção de homicídio doloso
ou culposo. Sendo assim, com a morte se pagava o crime de homicídio. No entanto,
existia a interpretação criminal da legitima defesa, como no caso de adultério e
defloração de virgens.

O homicídio era permitido nessas situações supracitadas, mas em casos de morte


durante um jogo embriagado ou em uma briga repentina, o homicídio era permitido,
mas passível de processo criminal. Nesse contexto, a carta de remissão entra como uma
possibilidade de perdão àqueles com possíveis condenações a morte. Retornando ao
caso inicial do Sr. Manny. Sendo preso imediatamente, foi aconselhado a fazer um
pedido de remissão, como uma forma de impedir sua execução. Em 1530, o rei ordenou
que o meirinho de Sens o libertasse. O interessante de se notar era que boa parte das
cartas de remissão enviada por mulheres apresentam traços de arrependimentos sobre
seus crimes e procuravam a redenção por seus atos. Entretanto, a maioria das cartas de
remissão de homens utilizam do argumento de que tal crime havia sido cometido devido
a um acesso de raiva, não apresentando, muita das vezes, remorso ou culpabilidade.
Zemon ressalta que a quantidade de cartas que eram seladas para mulheres eram taxas
ínfimas, ou seja, a cada cem pessoas, três eram mulheres. Os crimes frequentemente
atribuídos às mulheres eram os de bruxaria e infanticídio, ambos com caráter
imperdoável, em resumo, sem remissão.

Zemon acentua que havia ocasiões em que o assassino fugia com intuito de
chegar ao rei, em Paris. Chegando lá, poderia pedi ao rei que solicitava ao notário real
que redigisse uma carta de remissão. Todos buscavam uma ordem na chancelaria real.
Até mesmo a Igreja enviava advogados quando havia casos de seus membros
envolvidos em escândalo de assassinatos. Em alguns casos, quando o rei visitava as
cidades, pessoas eram entrevistadas por quaisquer crimes cometidos.

A autora frisa a maneira de como proceder uma carta de remissão. Em primeiro


plano, a história era contada a um notário real, o escriba da elite, pelo requerente. Uma
vez escrita, deve ser lida na presença de um chanceler. Quando ocorria audiência, o
próprio rei poderia ser um dos ouvintes na Grande Chancelaria. Sendo aceita a carta era
assinada, selada com cera verde com fios de seda e, depois do pagamento, entregue ao
requerente. Em relação a preço, era duas vezes superior aos ganhos de um trabalhador
não qualificado, avaliado em dez libras. Quando o requerente era pobre, o rei concedia a
carta gratuita ou com desconto. As pessoas faziam empréstimos para conseguir ter uma
carta. O obstáculo não era tanto em si a pobreza, mas o isolamento, o fator de não poder
contar com uma rede de informações.

Vale ressaltar, que ter o documento em mãos não significava o fim do processo.
Era necessário ratificar na jurisdição regional. A carta era lida em voz alta, com o
solicitante fazendo juras de verdade e implorando o benefício da graça. Os juízes faziam
perguntas que deviam se ajustar ao relato do rei. Não se deve esquecer o que foi escrito
na carta de remissão. Com tudo em ordem, a carta era ratificada com a condição de: o
solicitante custeasse orações pelas as almas de suas vítimas, pagasse uma soma as
famílias da vítimas ou fizesse doações aos pobres. Havia casos em que o requerente saia
da cidade pelo um período de dois anos.

Quando a carta não era ratificada, o requerente teria de enfrentar os rigores de


um processo criminal como a prisão perpetua ou execução. O rei oferecia perdão em
três casos: por ser jovem, digno ou pela idade. Tudo isso levado em conta por um juiz.
O parlamento de Paris tinha o poder de reduzir as penas de morte a açoites, banimentos
ou às galés. Entretanto, não podia simplesmente libertar alguém que havia matado outro
em legitima defesa, apenas o rei tinha esse poder. No processo criminal, o inquérito
sendo aberto, o requerente era interrogado por vários juízes, com acareação formal com
testemunhas e interrogatório sob tortura. Com isso, havia o medo dos procedimentos
judiciais. Caso a audiência de ratificação corria bem, o requerente não estaria sujeito à
ansiedade e pressão do confronto com as testemunhas, sendo assim menos provável um
interrogatório sob tortura. Para cada remissão, havia, pelo menos, duas pessoas
envolvidas em sua composição. Em relação a arma do crime, a carta transparece que
objeto utilizado era um utensilio doméstico comum para explicar que o crime não foi
premeditado.

O primeiro autor da carta de remissão era o próprio requerente, sendo sua voz a
mais marcante dessa criação coletiva. O corpo do documento é composto pelo notário;
que faz a introdução e conclusão da carta, o advogado, de senhores a pastores e padres,
estes que usavam em seus testemunhos os exames de consciência coletado durante a
quaresma, onde as pessoas se confessavam não demonstrando vergonha. A carta surge
do intercâmbio entre diversas pessoas sobre os acontecimentos, pontos da lei e o estilo
da chancelaria. Todos os autores conservam certas ligações com as tradições narrativas
literárias e orais. Os acontecimentos locais, frequentemente, se transformavam em
canções, acentuando as histórias de maneira natural. Às vezes, os vizinhos
aconselhavam o requerente a fugir.

Na metade do século XVI, em certas ocasiões, os acontecimentos políticos ou


históricos emolduravam uma história de uma remissão de maneira a explicá-la. No caso
de Thomas Manny, sua esposa foi morta no dia de Santa Maria Madalena, utilizando de
um quadro ritual para ajudá-lo a justificar o sentido do ocorrido. O santo do dia conduz
e julga a ação. Essa maneira de pensar, por meio de correlações, nutre-se das ideias
medievais e renascentistas de correspondência e analogia entre os mundos sobrenatural
e natural e das crenças ancestrais em dia de boa e má sorte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Natalie Zemon Davis nos contempla com uma obra de proximidade do hábitos
cotidianos francês do século XVI. Esses relatos de remissão apresenta etapas de um
crime como moldes de uma história. O modo de como a sociedade trata e julga o
processo criminal tece um pano de fundo de fontes empíricas para base do
conhecimento histórico. Percebemos as diferentes formas de tratamento entre homens e
mulheres, ressaltando que a quantidade de crimes remissíveis masculina é muito maior
quando se tratava de mulheres. Em suma, as cartas de remissão situa-nos um mundo da
sociedade francesa, diante de um crime, privilegiando o relato da pessoa que pede
perdão, mas que apresenta ao leitor do século XXI um universo de formas de
sociabilidade, crime e justiça.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
Celso Barbosa, I. R. (2023). Representações do papel da mulher nos estudos de Natalie
Zemon Davis sobre a Europa Moderna. Revista Cantareira, (37). Recuperado de
https://periodicos.uff.br/cantareira/article/view/46590
DAVIS. Natalie Zemon. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século
XVI. 2001. Companhia das Letras. Páginas 13-61
HARTOG. François. Evidência da história - O que os historiadores veem. Capitulo 5: A
Testemunha e O Historiador. Pagina 203- 228. Título original: Évidence de l’histoire –
ce que voient les historiens. Editora origem: Éditions de l’EHESS. ISBN:
9788575265840. Código: 28153. 2011

Você também pode gostar