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Revista Cultural ENTRE Culturas Nº2 Extractos PDF
Revista Cultural ENTRE Culturas Nº2 Extractos PDF
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no que o occid’ente afinisterra
há um amar - oiri’entre rosas e lótus -
que nos empLume infindo o vad’ir
6
tanto |\|
entre tantos
e d i t o r i a l
Após o primeiro número, cujo tema foi o diálogo intercultural, a Cultura ENTRE
Culturas dedica este segundo número ao encontro entre Ocidente e Oriente, na
circunstância oportuna da comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses a Goa.
O encontro Ocidente-‐Oriente, esses dois grandes pulmões do planeta, tem sido e é cada
vez mais a matriz do que de mais significativo surge na história planetária do homem e das
manifestações do espírito que nele e em tudo sopra. A cultura portuguesa tem ocupado
(para o melhor e o pior) um lugar central nessa interlocução e a nossa revista pretende
renovar essa tradição.
Abrimos com uma homenagem a dois vultos que recentemente partiram: Raimon
Panikkar, membro da Comissão de Honra da revista e insigne colaborador que nela
provavelmente teve a sua última publicação em vida; António Telmo, figura maior do
pensamento português contemporâneo, que nos enviou um texto sobre a espiritualidade
persa em Luís de Camões e do qual nos honramos por publicar também o seu derradeiro
escrito, sobre Raymond Abellio e a descoberta portuguesa do trans-‐histórico (os nossos
agradecimentos a José Guilherme Abreu). Panikkar é um ícone do diálogo Ocidente-‐
Oriente, em particular na vertente europeia-‐indiana (assumia-‐se como “cristão-‐hindu-‐
budista-‐secular”). Telmo representa a osmose entre filosofia portuguesa e Cabala hebraica.
Aos dois o nosso sentido “Até sempre!”.
No que respeita aos ensaios, Carlos João Correia mostra, com o habitual rigor e
clareza, como a questão da identidade pessoal, central no Ocidente e no Oriente, se
antecipa na filosofia indiana clássica, bramânica e budista. Rui Lopo apresenta uma
promissora visão panorâmica da sua investigação sobre a recepção ocidental do budismo
(também na cultura portuguesa). Amon Pinho mostra a evolução do pensamento de
Agostinho da Silva sobre o budismo e o cristianismo, no contexto de um progressivo
ecumenismo paraclético. Paulo Borges assinala a fecundidade do entre em Fernando
Pessoa, interpretando o poema “King of Gaps”, bem como as figuras de D. Sebastião e do
Quinto Império na Mensagem, a partir da noção tibetana de bar-‐do (entre-‐dois, estado
intermédio).
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Numa secção com textos vários, a visão de António Telmo de um Camões
interiormente persa articula-‐se com a reflexão de Sam Cyrous sobre religião e política na
Pérsia antiga e no Irão contemporâneo. O escritor intenso que é Miguel Gullander medita
sobre o “cadáver” e a “silenciosa testemunha em tudo o que acontece”. Duarte Braga
problematiza o “orientalismo” na poesia de Gil de Carvalho e Abdul Cadre inicia-‐nos no
Caminho de Santiago e nos enigmas dos dois decapitados, Santo Iago e Prisciliano, que
bem nota haverem sido dois heréticos, respectivamente entre judeus e cristãos.
Quanto aos poetas, a sua voz surge “entre-‐calada” pela dos sábios e dos santos
homens: será assim doravante. Abre-‐se, desde logo – pela mão de Rumi (i.e.“o Romano”)
– , com a grandeza da alma sufi, que nos mostra que o Mesmo, o Único, o Insondável, está
em todos os corações e lugares; e tão plena e intensamente o está, a ponto de parecer
“embriagado, intoxicado e perturbado” aquele que lhe seja lugar, talqualmente os
apóstolos do Cristo, no dia de Pentecostes, a quem alguns criam “cheios de vinho doce”(At.
2,13). O Sem Nome, na verdade, tal como vinho, com nada tolera coabitar no coração do
homem. É único, e por isso é Único o Único, que em tudo é detectável nesse divino jogo de
escondidas que por toda a parte se/nos verifica.
A palavra de Vicente Franz Cecim, primordial e incantatória, virgem como o pulsar
amazónico, convoca as “aves profundas” que sobrevoam as “pedras dos dedos da oração”.
Ethel Feldman, voz intimista que se nos oferece com o rigor da vibrante lâmina do sentir,
enuncia “o voo e via[gem]” do presente, “tempo de sempre / tão tempo de ser”. O verbo
de Maria Sarmento, por seu lado, de orvalhada pureza sempre, ressoa ecos do raro “canto
mudo das rosas e dos veleiros”: nele “sobe aos lábios um canto, [e] sopram-‐se segredos”.
Sussurrantemente.
Longchenpa, um dos maiores vultos da tradição budista tibetana, fala-‐nos acerca
daquela sabedoria não-‐dual que emerge da compreensão da natureza, originalmente pura,
da mente: a ler como quem não lesse! Flávio Lopes da Silva, em poesia de frescura
surpreendente, vai ao ponto de falar-‐nos de um, não menos surpreendente, “apostador
que ao ler um poema dissesse: chega!”. Deixa-‐nos também um conjunto de vívidos
aforismos a ler com todos os olhos.
Sylvia Beirute, que canta sob a luz mediterrânica os al-‐gharbs de ser viva voz,
garante-‐nos “a certeza de não cabermos numa única possibilidade”; daí, talvez, a pertinência
do seu “projecto de ser uma mulher de açúcar” e propor-‐se assim como “um exemplo de
não exemplo”: voz a não perder. De Donis de Frol Guilhade nada se dirá, que sempre
prefere nada se diga de quanto haja dizer. Simeão, cognominado “novo teólogo” pela
tradição ortodoxa bizantina, exprime suas moções místicas mais abissais, perante o
mistério paradoxal da proximidade e inacessibilidade do Divino. Como um selo lacrado a
uma “voz já da cascata”, a palavra sábia e rigorosa de T. S. Eliot fala-‐nos do tempo, do não-‐
tempo nele e do além-‐tempo em ambos, e em tais termos o faz, que mostra ser “[todo o]
poema um epitáfio”. Onde a vida se celebra, a vida para sempre floresce e perdura: ali
onde, num entrelaçar de “línguas de fogo” coroantes das crianças, “o fogo e a rosa [são de
novo] uma só coisa.”
Raimon Panikkar mostra-‐nos, num curto mas belíssimo conjunto de nove aforismos
(sutras), de que é feita a paz e de como é simples, ainda que não fácil, o fazê-‐la e o sê-‐la:
texto de uma imensa sabedoria, que, estando a abrir um justo In Memoriam neste número,
estaria aqui também no seu mais do que justo lugar. Rómulo Andrade, com a sua arte de
primacial pureza, leva a cabo (nas palavras de Ruy Fabiano Rabello) uma “poética que
desperta e sinaliza no rumo duma consciência mais clara e solidária entre as pessoas e a
própria vida”: a ver, sempre. João Paulo Farkas, o fotógrafo convidado para este número, é
senhor de um olhar sobre o homem e a Natureza que, dir-‐se-‐ia, nos faz sentir
“desaparecidos”, lembrando aquela espantosa palavra de António Maria Lisboa, aliás
algures citada na revista: “ver é desaparecer”. E é.
O diálogo entre as culturas e entre cada uma delas e o que a todas transcende e
equipara é o grande desafio do nosso tempo. É dele que depende o universalismo
autêntico, caminho do meio entre nacionalismo cultural e globalização homogeneizadora.
É por essa via que seguimos, criando/descobrindo pontes, mediações, elos. No próximo
número em companhia de Fernando Pessoa, comemorando ainda os 75 anos da passagem
desse que é um dos expoentes maiores de um trans-‐Portugal armilar, cumprindo-‐se e
superando-‐se na mediação de todos com tudo.
Paulo Borges
Luiz Pires dos Reys
10
\|*|
in
memoriam
Raimon Panikkar
(1918 -‐ 2010)
António Telmo
(1927 -‐ 2010)
raimon
panikkar
(1918 –2010)
3. A Paz, nem se conquista para si próprio nem se impõe
aos outros. Ela é, a um tempo, recebida, descoberta e
criada. Pois é um dom (do Espírito).
7. Releva a Paz mais da ordem do mythos, que da do logos.
Fonte: http://www.alastairmcintosh.com/general/resources/1991-‐Panikkar-‐Nine-‐Sutras-‐on-‐Peace.pd
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Nota introdutória
José Guilherme Abreu
Importa referir que este foi o último texto escrito por António Telmo, e que por isso o mesmo
poderá ser visto, como um condensado do seu testamento filosófico-‐espiritual. Destinado a um
Colóquio que co-‐organizei, no Porto, em torno do pensamento e da obra de Raymond Abellio, e para
o qual convidei António Telmo a participar, a sua preparação possibilitou-‐me conhecer
pessoalmente um autor cuja obra acompanhava, e muito admirava, desde o início da década de 80.
Apesar do seu estado de saúde desaconselhar a realização da viagem de Estremoz ao Porto, António
Telmo respondeu positivamente à minha sugestão de escrever um texto para ser lido perante o
colóquio, coisa que viria a acontecer no passado mês de Junho, no dia 26. A fim de organizar da
melhor forma possível um acontecimento cujo significado e valor parecia já adivinhar-‐se, desloquei-‐
me por duas vezes a Estremoz, para me avistar com o autor: a primeira para lhe entregar em mãos a
tradução de um texto de Raymond Abellio que havia feito, e a segunda para receber, também em
mãos, o texto destinado ao colóquio do Porto, tirar uma fotografia do autor para apresentar no
Colóquio e, também, para conversar. Para minha surpresa, António Telmo entregou-‐me o texto sem
título, e disse-‐me que deveria ser eu a atribuí-‐lo, depois de trocarmos impressões e de eu meditar
sobre o mesmo. O original encontra-‐se escrito em português, e dactilografado em quatro folhas de
papel A4, com algumas rasuras e expressões manuscritas. Digitalizei o referido material, e converti-‐
o para texto digital editável, tendo em seguida procedido à sua tradução para francês, e atribuído o
seu título. Em seguida, enviei o material por correio postal a António Telmo, para revisão, coisa que
fez, tendo-‐me enviado, no retorno do correio, duas imagens para introduzir no Power Point que
estava a preparar, para acompanhar a leitura do texto. Pode por isso dizer-‐se, que quer a tradução
do presente texto, quer o seu título, foram validados pelo autor, e que o mesmo foi, desde a
primeira hora, uma contribuição que António Telmo prestou, não sem esforço, mas sobretudo com
espírito de grande dedicação pessoal, à causa da identificação do sentido da Lusocultura. Uma
palavra mais, e decerto uma palavra decisiva, senão determinante, encontra-‐se grafada neste texto.
Resta-‐nos agora desvendá-‐la, e cultivá-‐la.
Obrigado António Telmo!
N.B. A versão francesa do mesmo viria a ser lida, perante os participantes em 26 de Junho do
corrente ano, em virtude do estado de saúde do autor não permitir a sua deslocação.
No compêndio de Geografia para a instrução primária, adoptado a meio do século XX, figurava o
mapa de Portugal inscrito num rectângulo traçado pelos pontos extremos desse mapa a Norte, a Sul, a
Leste e a Oeste, o qual (coisa espantosa!) é a soma exacta de dois quadrados. A linha de Este a Oeste
que os divide passa, sem erro ou desvio, por Tomar, cidade Templária por excelência.
Imaginando a terra e o seu céu como um templo, e devemos fazê-‐lo para que compreendamos
alguma coisa sobre o destino e o fim da Humanidade, Portugal, visto como um rectângulo, é
interpretável como um tapete no centro do mundo.
O tapete desenhado por Lima de Freitas para as lojas maçónicas do Rito Escocês Rectificado é,
igualmente, composto pela soma de dois quadrados e como não obedece nas suas proporções “ao que
é de regra”, coisa que o ilustre pintor não desconhecia, é de todo possível que tenha estudado pelo
mesmo Compêndio, e encontrado depois a mesma relação que venho propondo.
É à volta do tapete que se fazem as viagens iniciáticas que têm por fim, como devem saber, o
Oriente. Igual fim tiveram as navagações dos portugueses que, pela Viagem, como observa Camões,
foram “Compassando o Universo”.
Portugal pode também ser imaginado como um barzakh, se tivermos por base, como é devido, do
mesmo Luís de Camões, os seguintes versos:
do oriente |.|:
e n s a i o s
Îbn 'Arabi
" [...] é o
Espírito o traço comum de sujeito e objecto, por onde se estabelece todo o diálogo;
é o Espírito a fonte indefinível de onde a vida pode fluir sob quaisquer formas,
aquelas que eu conheço e venero ou não, e aquelas de que nem sequer posso ter uma ideia;
é o Espírito que anima os que estão comigo e os meus adversários;
foi o Espírito quem me trouxe o Cristo e quem a outros trouxe Buda, Maomé e Lao-‐Tseu;
foi o Espírito quem me deu Eckhart e quem me deu a geometria analítica,
nele se reconciliam Aristóteles e Platão, nele se acabam as geografias, ou políticas,
que separam Ocidente de Oriente"
1. Será nosso objectivo neste artigo mostrar a forma como a questão da identidade pessoal foi
abordada no Ocidente e no Oriente1.
Existem questões ou problemas universais, i.e. que preocupam os seres humanos,
independentemente da época ou da cultura em que foram colocados. Esta visão, a saber, a de
que existem interrogações perenes, é habitualmente conhecida pela expressão latina philosophia
perennis, ideia assumida tanto pelo escritor Aldous Huxley2 , como por Ananda K.
Coomaraswamy3 . Trata-‐se de uma intuição que atravessa a cultura tradicional indiana, em
particular quando sondamos as raízes do que se designa por “Hinduísmo”. Com efeito, este
último termo foi utilizado por Ram Mohun Roy, nos anos de 1816/17, com o objectivo de englobar
as diferentes formas de crença e de culto congénitas à Índia. Anteriormente, o termo “hindu” era
empregue pelo sultanato de Delhi para referir todos aqueles que não faziam parte das
comunidades reconhecidas religiosamente pelo Islão. Em termos simples, serse “hindu”
significava, na época, algo similar à conotação pejorativa de “pagão”. Deste modo, o termo mais
apropriado para englobar as múltiplas visões do mundo (darśanas) -‐ filosóficas e religiosas -‐ que
eclodiram no subcontinente indiano não é “hinduísmo”, mas, antes, o de sanātana dharma –
literalmente “eterna lei” -‐ expressão presente já nos textos védicos, nas leis de Manu ou nos
Puranas, com um sentido bem preciso: o dharma que pode ser escutado por quem quiser prestar
atenção. Sanātana dharma (“lei eterna”) é, assim, o termo equivalente a philosophia perennis na
Índia antiga, ao designar a experiência de uma verdade que transcende o tempo e o espaço.
Entre as questões que constituem o legado deste tipo de filosofia à humanidade, encontra-‐se
o conjunto de problemas associados à determinação da identidade pessoal. Este tipo de
preocupação surgiu na Índia, com toda a clareza, no século V a.C, na época em que viveu Gotama,
o Buda, ou Shākyamuni. Teve algum eco, no Ocidente, nas divisas de Sócrates e de Heraclito,
respectivamente, nos ditames “conhece-‐te a ti próprio” e “procurei-‐me a mim mesmo”, assim
1 Este artigo baseia-‐se num texto discutido na escola de formação de professores de yoga da Faculdade de
Motricidade Humana de Lisboa (5 de Junho de 2010).
2 Cf. Huxley 1946. Na Introdução, o escritor e filósofo esclarece quais são são os tópicos essenciais da filosofia perene:
“The metaphysic that recognizes a divine Reality substantial to the world of things and lives and minds; the psychology
that finds in the soul something similar to, or even identical with, divine Reality; the ethic that places man's final end in
the knowledge of the immanent and transcendent Ground of all being -‐ […]. Rudiments of the perennial philosophy may
be found among the traditional lore of primitive peoples in every region of the world, and in its fully developed forms it
has a place in every one of the higher religions" (Huxley 1946: 1). Tese similar é igualmente defendida por Frithjof
Schuon, nomeadamente na ideia de uma religião perene (religio perennis): “The essential function of human
intelligence is discernment between the Real and the illusory or between the Permanent and the impermanent, and the
essential function of the will is attachment to the Permanent or the Real. This discernment and this attachment are the
quintessence of all spirituality; carried to their highest level or reduced to their purest substance, they constitute the
underlying universality in every great spiritual patrimony of humanity, or what may be called the religio
perennis” (Schuon 2005: 68). Leibniz utiliza a expressão numa carta a Remond (26 de Agosto de 1714): “En faisant
remarquer ces traces de la vérité dans les anciens, ou (pour parler plus generalement) dans les anterieurs, on tireroit l’or
de la boue, le diamant de sa mine, et la lumiere des tenebres, et ce seroit en effet perennis quaedam
Philosophia.” (Leibniz 1978: 624-‐625). A expressão philosophia perennis foi criada pelo humanista italiano, Agostino
Steuco [Steuchus ] (1497-‐1548), De perenni philosophia (1540).
3 "The doctrine of art is intrinsic to the philosophia perennis and can be recognized wherever it has not been forgotten
that “culture” originates in work and not in play” (Coomaraswamy 1956: 23).
18
como nas reflexões agostinianas sobre a verdade; o problema, no entanto, só irrompeu com toda
a clareza no Ocidente no pensamento filosófico europeu seiscentista.
2. A questão sobre a identidade pessoal e a reflexão acerca da natureza humana estão longe de
ser coincidentes. Com efeito, os conceitos de pessoa e de ser humano não são necessariamente
equivalentes. Não se trata de uma distinção nova na cultura ocidental, visto que na Idade Média a
noção de pessoa divina era distinta da humana. E, no entanto, ainda hoje se procede como se
estivéssemos em face de noções idênticas, esquecendo a intuição notável de John Locke quando
nos pergunta como designaríamos um ser que não fosse humano, mas que exibisse o tipo de
comportamento, autonomia e reflexão que atribuímos a pessoas 4.
Em torno desta distinção entre pessoa e ser humano joga-‐se o problema perene da identidade
pessoal. Em termos sintéticos, podemos sustentar que neste dilema estão em causa duas
questões distintas, embora complementares. A primeira questão prende-‐se com o conhecimento
que cada um de nós tem si mesmo como sendo a mesma pessoa, problema que foi formulado,
pela primeira vez, com toda a clareza, pelo filósofo inglês, anteriormente referido, no seu Ensaio
sobre o Entendimento Humano. Dito de uma forma sintética, nesta interrogação perguntamo-‐nos
pelo critério que nos permite afirmar que somos a mesma pessoa em momentos diferentes do
tempo. A segunda questão é de índole mais especulativa e consiste na indagação da natureza
fundamental de uma pessoa, nomeadamente quando nos questionamos sobre quem somos
independentemente do tempo/espaço em que vivemos. São problemas complementares, visto
que, quando queremos pensar o conceito de pessoa e, em particular, a nossa experiência pessoal,
é-‐nos impossível não nos questionarmos sobre a razão pela qual cada um de nós se considera
como sendo o mesmo em momentos e situações distintas. Citando Locke: “para descobrir em que
é que consiste a identidade pessoal temos de saber o que é que a pessoa representa – e que penso
tratarse de um ser pensante e inteligente que (...) pode considerarse a si mesmo como si mesmo,
como uma mesma coisa pensante em tempos e espaços diferentes.” 5 A versão contemporânea
desta tese énos oferecida por Peter Singer: “Pessoas (...) são todos os seres racionais e
autoconscientes, conscientes de si mesmos como entidades distintas com passado e futuro.” 6
A tese de John Locke é, numa primeira análise, muito semelhante à conhecida intuição de
Descartes sobre o cogito, mas aponta já numa nova direcção. Como nos diz o filósofo inglês,
“quanto à nossa própria existência apercebemola com tanta clareza e certeza que não é preciso nem
se é capaz de qualquer prova. Pois nada pode ser mais evidente para nós do que a nossa própria
existência. Penso, raciocino, sinto prazer e dor; pode qualquer destas coisas ser mais evidente para
mim do que a minha própria existência? Se duvido de todas as outras coisas, essa mesma dúvida
fazme aperceber da minha própria existência, e não me permitirá duvidar disso. Se sei que sinto dor,
é evidente que tenho como certa uma percepção da minha própria existência como da existência da
dor que sinto (...) Então a experiência convencenos de que temos um conhecimento intuitivo da
nossa própria existência e uma percepção interior de que existimos. Em cada acto de sensação, de
raciocínio ou de pensamento, estamos conscientes do nosso próprio ser e, sobre isso, não ficamos
4 “Since I think I may be confident, that, whoever should see a creature of his own shape or make, though it had no
more reason all its life than a cat or a parrot, would call him still a man; or whoever should hear a cat or a parrot
discourse, reason, and philosophize, would call or think it nothing but a cat or a parrot; and say, the one was a dull
irrational man, and the other a very intelligent rational parrot.” (Locke 1975: 333 [2.27.8]).
5 “(…) to find wherein personal Identity consists, we must consider what Person stands for; which, I think, is a thinking
intelligent Being (…) and can consider it self as it self, the same thinking thing in different times and places” (Locke
1975: 335 [2.27.9])
6 “[Persons] are rational and selfconscious beings, aware of themselves as distinct entities with a past and a
rui lopo
da universalidade, do oriente, do orientalismo, da filosofia da religião, do budismo definido
como niilismo e do que haja de romântico entre tudo isto. (Diário de uma investigação1)
(…) na Holanda, quando se pretendeu obter (…) uma versão da oração dominical
no idioma de Barantola [Lhassa], viram-‐se embargados neste ponto: santificado seja o vosso nome;
é que, com efeito, não se pôde explicar aos Barantolas o que queria dizer a palavra santo.
Leibniz
BOUDDHISME: "Fausse religion de l'Inde" (Définition du Dictionnaire Bouillet, 1re édition).
Citado por Flaubert no seu Dictionnaire des Idées Reçus.
O que implica iniciar uma reflexão sobre filosofia da religião a partir das Luzes? O
questionamento do cristianismo, teológica, política e culturalmente efectivo, isto é: nas
modalidades do seu ser realmente existente, leva à eclosão, desenvolvimento teorético e
expansão de múltiplos cristianismos possíveis. É desta dilatação do campo religioso de
pensabilidade como do campo de pensabilidade do que seja o religioso que a integração do outro
do europeu se perfila com a agudeza que lhe dá não só este mesmo revolucionamento teórico
mas o próprio encontro histórico-‐mundial em curso.
Neste sentido, constatamos em diversos autores, de Condorcet e Kant a Hegel, Feuerbach e
Marx, de Comte a Nietszche o quadro de um refazer da filosofia da religião numa modernidade
entendida em referência ao outro grande acontecimento histórico-‐mundial inaugurador da nossa
época, o tempo de todas as universalizações: a Revolução Francesa. Isto não significa que não
seja ele também visto como época de particularização concreta de vários universais previamente
tidos como sólidos, mas afinal sofrendo acelerada dissolução no ar que actualmente respiramos.
Por sua vez, a reconstrução iluminista, romântica e pós-‐iluminista da filosofia da religião
articula-‐se e prende-‐se com a construção da ideia de universalidade que é correlativa e
indiscernível dos processos sócio-‐históricos concretos de universalização, de que é exemplo
pregnante a inscrição formal da cidadania num mercado mundial que, de certo modo, a engendra
e circunscreve. No decurso destes processos (actualmente designáveis como mundialização do
mundo ou globalização do globo), a Europa começou a compreender-‐se como contingente, isto é,
a reconhecer-‐se como uma efectividade limitadamente situada, de âmbito político e cultural, e
não como uma realidade geográfica ou natural, segundo a lição filosófica de Montaigne, e a
exposição historiográfica contemporânea de Fernand Braudel e Lucien Febvre. Simultaneamente,
o cristianismo defrontou-‐se com a sua relatividade – desde os textos eclesiais, missionários e
1 O autor destas linhas ocupa-‐se actualmente de uma investigação na área da história da filosofia e da filosofia da religião, tentando
demonstrar a importância da apropriação do pensamento oriental pela filosofia europeia de oitocentos. As notas que aqui se
apresentam são glosas e comentários a esse mesmo estudo.
29
II
Este segundo aspecto contextualiza a identificação do budismo com uma forma de niilismo
por parte dos autores ocidentais, considerando o nirvana equivalente ao nada, o que leva à
equação da prática espiritual budista como uma forma de auto-‐aniquilação3.
Esta identificação é estabelecida num momento em que o niilismo surgia como uma
possibilidade filosófica, cultural e espiritual temida como maximamente corrosiva.
Um dos autores que mais longe levaram a operação de codificação do budismo como um
conceito filosófico operativo, especificamente relativo às discussões filosóficas, ideológicas e
culturais europeias coevas, desligado da sua realidade histórico-‐social asiática e da prática
espiritual e religiosa que lhe corresponderia (assim como da sua filosofia)4 , é Nietzsche, no âmbito
do seu diagnóstico do niilismo europeu. É neste sentido que este autor designará
perspectivisticamente a cultura europeia como niilista5 e apontará o budismo como um contributo
para superar essa condição, mas também, noutro nível de significação, denunciará o próprio
budismo como um niilismo a combater ou superar. Recordemos, a título ilustrativo, um famoso
passo, intitulado O nosso ponto de interrogação, datado de 1882, da Gaia Ciência, de Nietzsche:
2 Sobre este tema, de uma perspectiva budista, consulte-‐se The Awakening of the West, de Stephen Batchelor.
3 Sobre o tema da equivalência oitocentista entre budismo e culto do nada (segundo a expressão de Victor Cousin),
veja-‐se o histórico trabalho de Roger Pol-‐Droit. Estas notas que aqui se apresentam não procuram de modo nenhum
estabelecer um exercício comparativo entre tradições, nem sequer um diagnóstico exaustivo das distorções que o
budismo sofre às mãos dos seus intérpretes ocidentais, mas visam tão só memorar um processo histórico de selecção
e utilização de metáforas: isto é, de um processo ideológico em actual superação na cultura ocidental. Neste sentido,
recordemos sem espanto que, em termos filosóficos, a filosofia búdica da via do meio, de Nagarjuna a Chandrakirti
denuncia dois extremos conceptuais que haveria que evitar a todo o custo: eternalismo (crença na eternidade,
substancialidade, auto-‐subsistência, auto-‐justificação, auto-‐causação, independência e consistência dos fenómenos,
em si e por si considerados) e niilismo (crença na mera inexistência de todas as coisas).
4 Uma das características mais decisivas da distorção ideológica orientalista é a ausência de reconhecimento de
distinções discursivas e de género no território do outro – a ausência de uma consciência genológica: constate-‐se,
como exemplo entre tantos, o modo como os autores utilizam sutras (sermões do Buda) para discutir uma qualquer
questão filosófica, omitindo o esmagador acervo de comentário doutrinário, sapiencial e filosófico das diversas
tradições budistas: Parece-‐nos que tal equivaleria a uma tentativa de rebater ou justificar filosoficamente um
versículo do sermão da montanha ignorando os dois mil anos de elaboração teológica e filosófica de inspiração cristã.
5 Sobre o complexo tema do niilismo em Niezsche, aqui apenas muito genericamente aflorado, remetemos para os
amon pinho
cristianismo e vontade, ocidente e crise de espírito:
da interpretação niilista de O Budismo ao buda-‐dharma e ao universalismo,
percursos de Agostinho da Silva
Dizemos que alguma coisa é má apenas porque a nossa visão limitada do mundo a faz aparecer
como má, isto é, como oposta ao que seria nosso desejo; as coisas deixarão de ser más (ou boas,
como oposto a más), no momento em que transcendermos a nossa visão particular do Universo.
(…) Todas as religiões são verdadeiras como linguagem; mas o verdadeiro templo de Deus está na
alma do homem que atingiu a felicidade; e o seu verdadeiro culto é o amor sem desejo de tudo
quanto existe no mundo.
Agostinho da Silva, Alcorão.
Negar o mundo, virar-‐se dele como de um pântano a cuja beira nos encontrássemos. Negar como o
Buda, negando-‐lhe a realidade absoluta; negar como o Cristo, negando-‐lhe a realidade relativa.
Fernando Pessoa, Livro do desassossego.
Formado em Filologia Clássica pela primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
em 1928, ano em que inicia um período de uma década de assídua colaboração na Seara Nova, a
relevante revista portuguesa de doutrina e crítica, Agostinho da Silva funda, em 1939, o Núcleo
Pedagógico de Antero de Quental, com a finalidade de concretizar um amplo projeto de difusão
da cultura, a partir de um diversificado conjunto de atividades, que iam desde palestras
radiofônicas e conferências presenciais à abertura de escolas de pedagogia experimental,
passando por publicações de artigos, de livros – dentre os quais a conhecida série das Biografias
ou, à semelhança de Plutarco, Vidas de homens célebres – e de coleções de opúsculos temáticos,
a que ele, enquanto autor e editor, deu a designação geral de Cadernos de Divulgação Cultural.
Pois foi precisamente numa dessas colecções, denominada Iniciação: Cadernos de Informação
Cultural, que, em 1940, veio a lume O Budismo, uma interessante e proveitosa introdução à vida de
Siddartha Gautama e à doutrina que derivou da sua iluminação, do seu despertar enquanto Buda,
mas que, aqui, a despeito das suas qualidades, nos permitiremos abordar pelo que apresenta de
inconsistente e questionável; numa palavra, pelo que ali haveria de “limitado”, para lembrarmos
um dos termos com que o próprio Agostinho da Silva, numa entrevista a Irene Lisboa, em 1944,
avaliou o referido caderno, ao que as entrelinhas levam a crer, motivado por críticas que, à época,
sobre este haviam incidido1.
Se aos olhos do seu próprio autor, portanto, O Budismo revelou-‐se, em certos aspectos,
“limitado”, para não dizer “incompleto” e “imperfeito”2, diríamos que aos nossos essencialmente
nos pareceu que a sua imperfeição, incompletude ou limitação deva ser atribuída ao prisma
através do qual se estabeleceu a sua linha fundamental de interpretação. Prisma, pois, destinado
1 LISBOA, Irene. Inquérito ao livro em Portugal – Bibliotecas culturais. In: DAVI, Amon Pinho; EPIFÂNIO, Renato; PINHO, Romana Valente
(orgs.). In memoriam de Agostinho da Silva: 100 anos, 150 nomes. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006, p. 194.
2 Cf. id., ibid., p. 194.
35
“Há tentativas recentes de adaptação do budismo aos tempos modernos (...). E muitos têm pensado que a
adoção do budismo poderia ser remédio para grande parte dos males de que sofre a civilização ocidental. (...) o
budismo [todavia] dificilmente satisfaz as exigências intelectuais e de ação dos homens do tipo que se convencionou
chamar ocidental; uma religião universalista terá que contar com elas e de pensar que houve na Europa, com os seus
filósofos e os seus homens de ciência uma educação racionalista que totalmente falta à Índia; além disso, não
adotamos, em geral, diante da vida, a atitude de nos desprendermos dela, mas sim a de a vencer. [¶] (...) [A atitude
do budismo] perante a vida é uma atitude de fraqueza e não de força; para nós, em geral, a vida apresenta-‐se como
um conjunto de alegria e de dores que tem de ser compreendido como um todo e que é, talvez, possível modificar,
pela ação individual ou coletiva, naquilo em que nos não agrada; o ter como projeto o ‘querer ser’ não é visto como
fonte de dor, mas, pelo contrário, como uma fonte de energias e de felicidade; não temos o desejo de nos afastarmos
do mundo, mas de nele lutarmos pela sua modificação, porque, se somos pessimistas quanto ao presente, somos
otimistas quanto ao futuro e confiantes nas possibilidades do homem; ora o budismo aparece-‐nos sobretudo como
uma religião de pessimistas e céticos; é porque nada jamais se poderá conseguir que o nirvana é desejável”3 .
Não querendo desmerecer, nem relativizar, a importância educativa, religiosa, cultural e, por
extensão, social, política e humana de uma publicação introdutória sobre o budismo, tanto mais
porque voltada para o grande público – para as classes trabalhadoras, sobretudo –, no Portugal
salazarista e estreitamente católico de inícios dos anos 1940, há que se notar que a abordagem
agostiniana do Dharma do Buda peca crucialmente pelo seu marcado eurocentrismo,
constituindo-‐se pois numa interpretação que não chega a se converter em verdadeira
compreensão; isto é, numa hermenêutica de restrito alcance que ao invés de tender para um
conceito o mais mediado e aprofundado possível da coisa mesma, detem-‐se num pré-‐conceito
dela.
Pré-‐conceito este que, em 1942 – portanto, à volta de dois anos depois de publicado o folheto
sobre o budismo –, tornaria a aparecer num outro folheto da coleção Iniciação, cujo tema de
eleição era o cristianismo, e no qual a figura do Cristo aparece contrastada com a de Buda, nos
seguintes termos: enquanto Cristo, nos Evangelhos, teria pregado e proposto uma doutrina
espiritual em que estaria implicada uma necessária transformação social, política e econômica do
mundo, uma vez que o Reino de Deus dever-‐se-‐ia consumar na Terra e não numa ascenção post-‐
mortem para um paraíso vago e distante, à maneira católica, Buda antes teria ansiado “abolir” do
que transformar o dito mundo num determinado sentido. Siddartha, considera George Agostinho,
“fala dos problemas que existiriam, mesmo para o homem que tivesse toda a parte material da sua existência
perfeitamente resolvida: ele próprio é um príncipe que tem tudo quanto quer e que tudo abandona porque sente o
trágico da vida, de uma vida que é trágica exatamente porque é vida; a ação, por conseqüência, aparece como um
mal para o Buda; o que encontramos em Cristo é bem diferente: Jesus vem dos pobres, é um deles, e interessam-‐no
pouco as questões morais que não signifiquem uma ajuda para o estabelecimento do Reino [de Deus]; a piedade, o
amor do próximo, são em Buda uma consequência da vanidade e da dor de viver: deve-‐se ser bom para tudo o que
existe porque tudo sofre de existir; a piedade de Jesus, o amor que ele reclama são uma força revolucionária, neste
sentido de que hão de apressar a vinda do mundo divinizado: se o rico amasse o seu irmão, pensa Jesus, as riquezas
igualmente distribuídas dariam para todos e o mundo seria feliz; mas Buda, ao abandonar a riqueza, não o faz por
amor aos outros: sendo pobre sofre menos, porque vive com menos intensidade. Exatamente porque não anseia por
nenhum modelo do mundo, mas quer abolir o mundo, exatamente porque não tem de apontar aos homens um
3 SILVA, Agostinho da. O Budismo. Lisboa: Edição do Autor, 1940, pp. 20-‐21. (Iniciação: Cadernos de Informação Cultural)
45
Paulo Borges
Fernando Pessoa no Tibete
ou de como pelo Bar-‐do se compreende D. Sebastião como o “King of Gaps”
e o Quinto Império como o seu “estranho Reino”
A palavra e o conceito entre, que inspiram o projecto desta revista, são recorrentes e centrais
na obra pessoana. Em conformidade com o espírito intercultural que nos move, pretendemos
esclarecer uma das suas ocorrências mais importantes, no poema inglês The King of Gaps (que nos
levará a deambular pela Mensagem), em confronto com uma das noções fundamentais da cultura
e da espiritualidade tibetanas: bar-‐do (sânscrito antarābhava). Bar significa literalmente “espaço
intermédio, o que reside ou vem entre, o que intervém”, enquanto do significa “dois”. Bar-‐do
significa assim entre-‐dois 1. Se a partir da cultura budista tibetana esta palavra se tornou sinónima
de “estado intermédio entre a morte e o renascimento”, devido ao tema de um dos capítulos do
Livro Tibetano dos Mortos 2 , o bar-‐do, enquanto “estado intermédio”, designa todavia na mesma
cultura seis categorias de entre-‐dois, referentes à experiência humana enquanto transição
contínua de um estado para outro: o bar-‐do do nascimento ou da vida, dos sonhos, da
concentração meditativa, do momento da morte, da realidade (na experiência pós-‐morte) e do
renascimento 3 . Nesta perspectiva, o que habitualmente se designa como “estado intermédio
entre a morte e o renascimento” inclui as três últimas categorias 4 , dizendo a primeira de toda a
série respeito à entrada na existência e à própria vida, enquanto as duas seguintes se relacionam
com modificações da consciência durante a vida.
Embora esta seja a perspectiva mais convencional, um reputado mestre tibetano como
Chögyam Trungpa adverte que o Livro Tibetano dos Mortos não se baseia “na morte enquanto
tal”, concebendo-‐a de modo “completamente diferente”. Podendo chamar-‐se “Livro tibetano do
nascimento”, é em última instância “um Livro do espaço”, no sentido de um “meio primordial que
“contém o nascimento e a morte” e é a matriz do “ambiente” onde vivemos, respiramos e
agimos 5 . Recordando que “Bardo significa intervalo”, não apenas no sentido de algo suspenso
após a morte, mas também no “de uma suspensão durante a vida”, considera que múltiplas
experiências afins ao bar-‐do acontecem a cada instante, como na paranóia, na incerteza, no não
saber para onde se vai nem o que se passa 6. Cremos que aqui surgem duas concepções distintas
1 Cf. Sarat Chandra Das, A Tibetan-‐English Dictionary with sanskrit synonyms, Delhi / Patna / Varanasi, Motilal
Banarsidass, 1973, pp.866-‐867; Tsepak Rigzin, Tibetan-‐English Dictionary of Buddhist Terminology, Dharamsala,
Library of Tibetan Works and Archives, 2003, edição revista e alargada, p.180.
2 Bar-‐do thos-‐grol, o capítulo XI, geralmente considerado como o próprio Livro Tibetano dos Mortos, que só
recentemente foi integralmente traduzido: Livro Tibetano dos Mortos, composto por Padmasambhava,
revelado pelo Terton Karma Lingpa, comentário introdutório de Sua Santidade o Dalai Lama, tradução da
versão inglesa de Gyurme Dorje por Paulo Borges e Rui Lopo, Lisboa, Ésquilo, 2006.
3 Cf. Ibid., “Glossário de palavras-‐chave”, p.515. Cf. também Tsepak Rigzin, Tibetan-‐English Dictionary of
Buddhist Terminology, p.180; Sarat Chandra Das, A Tibetan-‐English Dictionary with sanskrit synonyms, p.867.
4 Cf. Paulo Borges, "A Morte no Budismo. Da contemplação da impermanência à vida pós-‐morte e à
descoberta da imortalidade", Revista Portuguesa de Filosofia, 65 (Braga, 2009), pp.423-‐470.
5 Cf. Chögyam Trungpa, “Commentaire”, in Le Livre des Morts Tibétain. La grande libération par l’audition
pendant le bardo, por Guru Rinpoche, segundo Karma Lingpa, nova tradução com um comentário por
Francesca Fremantle e Chögyam Trungpa, Paris, Le Courrier du Livre, 1979, 2ª edição corrigida, p.23.
6 Cf. Ibid., pp.23-‐24.
46
do bar-‐do: uma como espaço primordial e não espaço intermédio, espaço absoluto e não relativo,
que na verdade contém todos os bar-‐do, todos os espaços intermédios entre isto e aquilo, de si
inseparáveis; outra como espaço inter-‐médio e inter-‐valar, suspenso entre isto e aquilo, mas
emergente também como espaço absoluto (ou seu afim) numa suspensão da distinção nítida
entre isto e aquilo, como nos exemplos dados de perturbação da consciência, hesitação e
confusão, ou noutros, mais benignos, em que se inter-‐rompe o fluxo aparentemente normal da
vida.
Na cultura budista tibetana, o “espaço” é a metáfora por excelência da vacuidade enquanto
fundo sem fundo primordial (kun-‐gzhi), natureza incondicionada da mente e matriz de todos os
fenómenos. Como diz Longchenpa, o “fundo de tudo o que surge”, “vazio em essência”, jamais
havendo “existido como o quer que seja, emerge todavia como absolutamente tudo” 7 . Tudo o
que se manifesta no universo como seres, formas, sons, vozes, pensamentos e estados não-‐
conceptuais são “adornos” da “vasta expansão” do “espaço fundamental”. Se todo “o universo
de aparências (snang) e possibilidades (sid, palavra que também significa “existência”) […]
aparece no íntimo da esfera do espaço fundamental dos fenómenos tal como as ilusões,
manifestas, porém não existentes”, os aparentes seres sencientes que nascem e morrem nos seis
mundos possíveis – homens, deuses, semi-‐deuses, animais, espíritos ávidos e seres infernais -‐ ,
bem como todos os objectos que emergem na sua percepção dualista, “não se extraviam
minimamente” dessa incondicionada natureza primordial 8 . Apesar de designados como hgro-‐wa -‐
o que vai, o que se move -‐ , é apenas a ignorância dualista dos seres fictícios que, obscurecendo a
sua conaturalidade ao espaço absoluto (dbyings), os leva a errar ilusória e mentalmente pela
ronda dos seis mundos do samsāra, experimentando os seis tipos de espaços intermédios (bar-‐do)
como outros tantos sonhos ou alucinações não reconhecidos como tais. Segundo Chögyam
Trungpa, é esse espaço ou “meio primordial” a “fonte” do Livro Tibetano dos Mortos 9 , que
mostra ser pela sua ignorância e velamento conceptual e emocional que se processam as diversas
experiências e fases dos vários estados intermédios, nos seis mundos e em cada um deles, a cada
instante.
Com efeito, se todas as nossas experiências e estados de consciência se processam no seio
desse infinito e absoluto espaço primordial, ou seja, inter, entre, no meio dele, no seu imo, como
de si inseparáveis, o não reconhecimento disso faz com que simultaneamente se constituam
como pontuações dualistas desse mesmo espaço, cindindo-‐o aparente e ilusoriamente em
múltiplas, interdependentes e mutáveis correlações sujeito-‐objecto, configurando entidades
ficticiamente substanciais que o velam na sua infinitude e não o deixam senão aparecer – como
um intermitente entreluzir -‐ no espaço relativo entre cada sujeito e objecto, entre cada suposta
entidade, entre cada momento de percepção dualista, tornando-‐o apenas mais evidente quando
todos esses bar-‐do da consciência dual se suspendem e ela de si mesma se desnuda no imenso
espaço primordial.
É desse espaço e do seu vislumbre que, numa transcultural superação da aparente distância
entre Portugal, o Tibete e o fundo sem fundo da mente, porventura nos fala o poema pessoano
The King of Gaps, “O Rei das Fendas / Brechas / Aberturas / Hiatos / Lacunas / Vazios / Intervalos /
Abismos”, que ilustra de forma particularmente sugestiva esse incondicionado e indeterminado
7 Cf. Longchen Rabjam, The Precious Treasury of the Basic Space of Phenomena, traduzido sob a direcção de Sua
Eminência Chagdud Tulku Rinpoche por Richard Barron (Lama Chökyi Nyima), editado por membros da
Comissão de Tradução Padma: Susanne Fairclough, Jeff Miller, Mary Racine e Robert Racine, edição bilíngue
tibetano-‐inglês, Junction City, Padma Publishing, 2001, pp.3 e 5.
8 Cf. Ibid., p.5. Longchenpa expõe a visão do que considera ser o pináculo da via budista tibetana, o rDzogs
Chen, à qual é dedicado o capítulo IV do Livro Tibetano dos Mortos, composto por Padmasambhava, revelado
pelo Terton Karma Lingpa, pp.89-‐114.
9 Cf. Chögyam Trungpa, “Commentaire”, in Le Livre des Morts Tibétain. La grande libération par l’audition
pendant le bardo, por Guru Rinpoche, segundo Karma Lingpa, p.23.
47
irredutível a todas as antinomias discriminativas entre isto e aquilo que reside latente e apenas se
entremostra nessa terra de ninguém que se abre não só entre o, mas também no âmago (inter)
do, recorte da forma de todas as aparentes e opostas determinações e configurações do sujeito e
da objectivação do real, denunciando o vazio inerente à sua aparente solidez e substancialidade
ôntico-‐ontológica.
There lived, I know not when, never perhaps -‐
But the fact is he lived -‐ an unknown king
Whose kingdom was the strange Kingdom of Gaps.
He was lord of what is twist thing and thing,
Of interbeings, of that part of us
That lies between our waking and our sleep,
Between our silence and our speech, between
Us and the consciousness of us; and thus
A strange mute kingdom did that weird king keep
Sequestered from our thought of time and scene.
Este “rei desconhecido”, soberano do “estranho Reino dos Vazios” que é ele próprio -‐
evocado num registo semelhante ao do início dos mitos ou contos de fadas, nesse outrora que em
verdade é outra hora intemporal e indeterminável, a qual, não sendo nenhuma, pode soar em
todas e a cada instante 11 -‐ , figura isso que há “entre” uma “coisa” e outra “coisa”, o inter-‐valar e
não entificado, id-‐entificado ou id-‐entificável espaço vazio que se desvela entre as entidades, o
fundo informe onde as formas se recortam e definem, bem designado como “entre-‐seres”. Se
num sentido parece assumir a função de um mesmo indiferenciado, perante o qual tudo o que
nele se delimita e diferencia surge como as formas da sua alteridade, e se noutro sentido
podemos pensá-‐lo como o outro imanifestado enquanto transcende e envolve todas as formas
patentes do mesmo, num outro sentido ainda podemos reconhecer-‐lhe uma transcensão mais
radical, tanto do mesmo como do outro, tanto do idêntico como do diferente, na medida em que
estes se constituam no âmbito de uma relação de confluência mútua entre formas e entidades
que só se torna possível por haver esse espaço não-‐entitativo do “estranho Reino dos Vazios” que
permite a constituição e o reconhecimento da relação e do relacionado, nesse universo de
interconexões que Pessoa bem vislumbrou como o “entreser-‐se” 12.
Na verdade, como se apercebe no verbo intransitivo “to gape”, que significa “bocejar, abrir a
boca”, a palavra inglesa “gap” provém do mesmo universo semântico do Káos grego, que remete
10 Fernando Pessoa, Poesia Inglesa, I, edição e tradução de Luísa Freire, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p.280.
11 Cf. Eudoro
de Sousa, História e Mito, in Mitologia. História e Mito, apresentação de Constança Marcondes
César, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, pp.221-‐222.
12 Cf. Fernando Pessoa, Textos e Ensaios Filosóficos, I, estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho,
Lisboa, Ática, 1993, p.38 (note-‐se como Pessoa antecipa a noção de interbeing no conhecido mestre budista
Thich Nhat Hanh, fundador da Ordem do Entre-‐ser na primeira metade dos anos sessenta).
53
f o t o g r a f i a |
| p o e s i a
Foruk Farokzad
54
Rúmí ∗
∗ Poema de Mowlana Jalálu’d-‐Dín-‐i-‐Rúmí (1207-‐1273 d.C.) em tradução de Sam Cyrous, a partir da edição inglesa de
“Selected Poems”, de R. A. Nicholson.
1 Pagoda é um templo encontrado no Extremo Oriente, geralmente uma torre de vários andares, ornamentada e
comformato de pirâmide.
2 Cidades situadas, respectivamente, no oeste e no centro-‐sul do actual Afeganistão.
3 Cordilheira que, segundo a tradição da época, circunda ao mundo, e na qual reside o Simorgh (v. Nota 4).
4 ‘Anqa é a palavra árabe que designa uma ave lendária, descrita como Simorgh em persa, que pode ser equiparada a
um fênix, um grifo, uma águia, ou mesmo esfinge. Simboliza o mais puro de todos os espíritos, o rei dos pássaros
segundo a Conferência dos Pássaros de Attar.
5 Ka’ba ou Caaba ou Kaaba significa, literalmente, o cubo. Trata-‐se do santuário de Meca contendo a famosa Pedra
Negra. Simboliza também o lugar de adoração da Deidade, o que varia conforme a Dispensação Divina.
6 Ibn Sina – ou, latinizando o seu nome, Avicena – viveu entre os anos 980 e 1037 d.C. e “foi membro da nobreza,
eramédico, filósofo e diplomata” (cit. in N. Peseshkian, O Mercador e o Papagaio, p. 188).
7 Shamsi Tabriz – ou, Shams-‐i-‐Tabríz – foi “o Sufí que exerceu poderosa influência sobre Jalálu’d-‐Dín Rúmí, desviando a
sua atenção da ciência para o misticismo. Grande parte dos trabalhos de Rúmí são a ele dedicados” (N.T. de Os Sete
Vales, pp. 38-‐9, N. 75).
55
mente
calada
no deserto Inundado
dos Teus sonhos: Cílio
da Carne,
lá, onde
a Água Escura de um Abismo
39 Poemas do livro “Fonte dos que dormem”, de “Viagem a Andara oO livro invisível”
40 A pedido explícito do autor, e atidas as suas fundamentadas razões, os títulos dos poemas fogem aqui ao
critério geral, adoptado nesta revista, de minuscular nomes de autores e títulos das suas colaborações.
59
e t h e l
f e l d
m a n
m a r i a sar
m e n t o
marinheiros estáticos
(poema entre-‐órfico)
66
f l á v i o lopes
da s i l v a
69
sylvia bei
r u t e
r e v ó l v e r
m a n d a l y o n d e m a ’ a t
s i m e ã o o novo teólogo *
hino 38
* Considerado por muitos o maior místico e poeta de toda a tradição cristã ortodoxa (949-‐1022), mereceu o epíteto de
“novo teólogo”, que o equiparou a João Teólogo, o quarto evangelista, e a Gregório, o Teólogo, de Nazianzo (326-‐389),
que viria a ser Arcebispo de Constantinopla e Patriarca Ecuménico.
Teve uma vivência mística (i.e., teológica) e teológica (i.e., mística) tão marcadamente cristofórica quanto
pneumocêntrica, enquadradas ambas no âmbito da estrita prática monástica hesicasta.
Viveu e defendeu, em meio cristão, e por isso foi censurado e até perseguido, um vínculo e uma veneração para com o
seu pai espiritual -‐ o higúmen Simeão Studita -‐ próximos dos que a tradição hindu (à semelhança de outras, aliás)
plasmou na figura do guru.
(Tradução de Luiz Pires dos Reys, a partir da tradução francesa das monjas de Dourgne e Clairefontaine, in “Prière
Mystique”, Éditions du Cerf, Paris, 1979)
78
têmpera
sobre papel artesanal
1996
espírito das águas
© rómulo andrade
r ô m u l o
a n d r a d e
uma poética que desperta e sinaliza
no rumo duma consciência mais clara e solidária
entre as pessoas e a própria vida.
Ruy Fabiano Rabello
© rômulo andrade
atemporal
têmpera
sobre papel artesanal
1996
80
j o ã o paulo
f a r k a s
Nasci e vivo em um país de grande diversidade e de acelerada transformação,
em que documentar é fascinante e urgente. Também a India,
um sub-‐continente de múltiplas culturas, vive processo semelhante.
E é fundamental entender visualmente aquilo que se perderá com a globalização.
Por trás de suas imagens chocantes, a India é ancestral.
E conhecê-‐la é muitas vezes re-‐conhecê-‐la.
Com sua poesia, suas profundas culturas locais, e a sabedoria espiritual
que se corporifica em tantas manifestações tangíveis,
a India é um universo em que não se penetra sem ser-‐se tocado, inspirado, despertado.
Ao recolher imagens, além do óbvio registro dos objetos, documentamos este percurso de
transformações do olhar, da sensibilidade e dos sonhos que inspiram a alma.
(J.P.F)
Kerala
Tecelagem,
Varanasi
© joão
paulo
fark
81
85
éditos e inéditos
A viagem de conhecimento na qual se traduz a travessia dos mares
rumo ao centro do mundo é apenas uma abstracção
se, para cá ou para lá de a pensarmos, não a sentirmos como um acto real
em que também nós participámos e continuamos a participar.
António Telmo
86
matthieu ricard
neurociências e meditação
Matthieu Ricard, nascido em 1946, é filho da artista plástica Yahne Le Toumelin e do
filósofo Jean-‐François Revel. Viajou até à Índia pela primeira vez em 1967, onde encontrou
extraordinários mestres espirituais tibetanos. Após terminar a sua tese em genética
celular no Instituto Pasteur, sob a orientação do Professor François Jacob, decide
estabelecer-‐se nos Himalayas onde se tornou monge e vive desde há quase quarenta
anos, estudando e praticando o budismo. É o intérprete francês do Dalai Lama desde
1989. É autor de vários livros. Entre eles, de um diálogo com o seu pai, O Monge e o
Filósofo (Ed. ASA), e outro com o astrofísico Trinh Xuan Thuan, intitulado O Infinito na
Palma da Mão (Ed. Notícias), de Plaidoyer pour le bonheur, de La Citadelle des Neiges¸ e
de l’Art de la Méditation (NiL Editions). Mathieu Ricard traduziu diversas obras do
original tibetano, entre as quais se destacam La Vie de Shabkar e Au cœur de la
compassion. É ainda autor de vários livros de fotografia como Himalaya Bouddhiste;
Tibet, regards de compassion; Un voyage immobile, e Bhoutan, terre de sérénité
(Editions de La Martinière). Desde o ano 2000, tem colaborado activamente em diversos
projectos de investigação, na área das neurociências, dedicados ao estudo dos efeitos do
treino do espírito e da meditação. Matthieu vive actualmente no mosteiro de Shechen,
no Nepal, e distribui a totalidade dos seus direitos de autor por cerca de quarenta
projectos humanitários no Nepal, na Índia e no Tibete (centros de saúde, escolas,
orfanatos, pontes, etc.) Para mais informações, consultar: www.karuna-‐shechen.org;
www.matthieuricard.org
No ano 2000 teve lugar em Dharamsala, na Índia, um encontro excepcional. Alguns dos
maiores especialistas no estudo das emoções, psicólogos, investigadores da área das
neurociências e filósofos passaram uma semana inteira a debater com o Dalai-‐Lama na intimidade
da sua residência, situada nos contrafortes dos Himalayas. Foi essa também a primeira vez em que
tive a oportunidade de participar nessas reuniões fascinantes organizadas pelo Mind and Life
Institut, fundado em 1987 por Francisco Varela, afamado investigador da área das neurociências e
Adam Engle, um empresário americano. O diálogo centrou-‐se sobre o tema das emoções
destrutivas e o modo como lidar com elas 42.
Numa manhã, durante a realização deste encontro, o Dalai Lama declarou: «Estas discussões
são muito interessantes, mas o que é que nós podemos verdadeiramente dar à sociedade?» À
hora do almoço, os participantes encetaram uma discussão animada que culminou na proposta de
se lançar um projecto de investigação sobre os efeitos de curto e longo prazo do treino do
espírito, isto é, daquilo a que geralmente se chama meditação. Já da parte da tarde, na presença
do Dalai Lama, a proposta foi acolhida de forma entusiástica. Iniciou-‐se assim um projecto de
investigação fascinante, dedicado às neurociências contemplativas.
Foram então encetados diversos estudos, nos quais tive oportunidade de participar desde o
início. Estes realizaram-‐se nos laboratórios do saudoso Francisco Varela, em França, no de Richard
Davidson e Antoine Lutz, em Madison (Wisconsin), no de Paul Ekman e Robert Levenson em São
Francisco e Berkeley e nos de Jonathan Cohen, em Princeton, e Tania Singer em Zurique.
42 Os resultados deste encontro foram organizados e editados em livro por Daniel Goleman. (Em português: Emoções destrutivas e
como dominá-‐las. Um diálogo científico com o Dalai Lama, Lisboa, Ed. Temas e Debates, 2005. [N. do T.] )
91
françoise bonardel
Deus, os deuses e o divino sob o olhar do monoteísmo e do budismo
Reconheçamo-‐lo desde já: a «questão de Deus», tão importante no Ocidente onde, desde os
gregos, tem sido associada à questão do Ser, ocupa um lugar bastante secundário entre os
ensinamentos do Buda, o qual é mesmo qualificado como «instrutor dos deuses e dos homens» 49.
A actual sedução que os ocidentais experimentam em relação ao Budismo não se deverá em
grande parte ao facto de pensarem poder, graças a ele, enfrentar este questionamento, e assim
acabar com a «religião» e todos os pressupostos comummente ligados a noções como crença
cega, dogmas ou hierarquia clerical? Supondo que esta seja uma interrogação tipicamente
ocidental, apresenta ela o risco de induzir uma compreensão errónea do budismo o qual, não
postulando a existência de nenhum deus criador do qual dependeria o Despertar, pode ser
considerado como um não-‐teísmo. Tal seria ainda uma maneira, diga-‐se de passagem, de o situar e
de o definir em relação ao teísmo (e neste quadro, a uma das suas formas, ocidental ou hindu) do
qual supostamente seria uma negação ou do qual estaria privado. A seu respeito mais valeria
então falar de um a-‐teísmo na medida em que o a privativo pode igualmente designar o
afastamento, a indiferença, o facto de ser ou estar livre de – como a partícula los em alemão – do
que aquilo que se opõe ou conflitua com o teísmo: como aquilo que a palavra ateísmo designa,
uma atitude polémica e hostil a qualquer crença num Deus ou em deuses; um anti-‐teísmo radical
que detectamos nalguns dos filósofos das Luzes ditos materialistas (como D’Holbach e Sade) ou,
por outras razões, em Schopenhauer e Nietszche.
Se nos detivermos sobre um dos mais famosos sermões do Buda relativos às «questões
inúteis» (Cûlamâlunkya-‐sutta50 ) concluiremos que a questão de Deus é implicitamente uma delas e
não a menor. É certo que a palavra «Deus» não é jamais proferida pelo Buda neste sermão, mas se
examinarmos as questões aí consideradas inúteis, constatamos que elas dizem respeito aos
temas de cariz metafísico, o que implica, do ponto de vista ocidental, pelo menos, um
questionamento sobre a existência de Deus: o universo é limitado ou ilimitado, mortal ou imortal?
Ora, se as ciências excluem qualquer Génese do mundo por acção de Deus ou de um demiurgo-‐
relojoeiro, como Voltaire pretendia, os três monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islão)
respondem a estas questões recorrendo à intervenção de um Deus criador e ordenador.
Tratando-‐se de saber se o princípio vital é a mesma ou outra coisa diferente do corpo, estes
mesmos monoteísmos afirmam a existência de uma alma imortal, enquanto os filósofos dissertam
desde há bastante tempo sobre as difíceis relações com o corpo. Quanto à terceira das questões
inúteis – se o Tathagatha51 existe ou não depois da morte – ela acrescenta à anterior, relativa à
natureza da alma, uma interrogação sobre a existência real ou fictícia de um Além.
A posição do Buda tem de singular o facto de se recusar a distinguir entre isto e aquilo, sem
que a sua silenciosa reserva autorize a conclusão segundo a qual a tese e a antítese seriam
antinomias lógicas que exigiriam a substituição de um saber especulativo inoperante por uma
«crença» ética racionalmente fundada, como em Kant. É aquém de qualquer formulação deste
tipo que o ensinamento búdico «desconstrói» a metafísica, dando como única resposta para o
conjunto de todas estas questões apenas a lei do karma, cujo rigor vale verdadeiramente todos os
49 Môhan Wijarayatna, Sermons du Bouddha, Paris, Cerf, 1988, p. 57.
50 Op. cit., pp. 109-‐117.
51 Termo sânscrito que designa o Assim-‐Ido [Ainsi-‐allé], isto é, o Buda que assumiu e trilhou o caminho da
talidade [ainsité]. [Embora se trate da mesma palavra em francês, permitimo-‐nos vertê-‐la de duas maneiras
assinalando contudo que a talidade é aquilo que é tal como é, ou assim como é. N. T.]
101
Transpor qualquer coisa de uma cultura estrangeira é um processo difícil, que pode corromper
o que está sendo importado. O budismo não é certamente uma excepção, na verdade, entre os
bens estrangeiros passíveis de importação, o Dharma talvez seja o mais propenso à corrupção. No
começo, compreender o Dharma, mesmo em um nível intelectual, não é nada simples. Depois,
quando já temos alguma compreensão, colocar o Dharma em prática é ainda mais subtil, pois isso
exige de nós sermos capazes de ir além dos nossos padrões habituais. Intelectualmente,
podemos até compreender como os nossos hábitos – oriundos de uma mente tacanha – são os
responsáveis pelo nosso próprio ciclo de sofrimento, mas, ao mesmo tempo, também podemos
ter medo de nos engajar plenamente e de coração aberto no processo de libertação destes
nossos hábitos, devido ao cultivo que fazemos ao ego; pois, ainda que nós acreditemos que
queremos praticar o caminho budista, abandonar o nosso apego ao ego não é fácil, e podemos
perfeitamente acabar com uma versão do Dharma elaborada pelo nosso próprio ego. Criaríamos
assim um pseudo-‐dharma que só traz mais sofrimento, ao invés da libertação. Por esta razão, a
maioria dos mestres orientais são muito cépticos sobre o processo de transpor o Dharma para o
mundo ocidental, acreditando que falta aos ocidentais o refinamento e a coragem para entender
e praticar apropriadamente os ensinamentos do Buda. Por outro lado, existem alguns que dão o
melhor de si em prol da transmissão destes para o Ocidente.Todavia, é importante lembrar que a
transposição completa do Dharma não pode ser realizada em uma única geração. Não é um
processo fácil e irá, sem qualquer dúvida, levar algum tempo – tal como sucedeu quando o
budismo foi trazido da Índia para o Tibete. Existem enormes diferenças de comportamento entre
as várias culturas e interpretações diversas elaboradas a partir de fenômenos semelhantes. É fácil
nos esquecermos de que noções supostamente universais como: “ego”, “liberdade”,
“igualdade”, “poder”, e as implicações de “gênero” e de “sigilo”, são todas elas construções
específicas de cada cultura e diferem radicalmente quando vistas através de perspectivas
distintas. As especulações em torno de um determinado assunto, em uma certa cultura, podem
nem sequer ocorrer àqueles de uma outra cultura, onde a prática em questão é assumida como
correta.
Nos últimos anos, críticas numerosas têm sido feitas em relação tanto aos ensinamentos
budistas, quanto a certos professores do budismo. Infelizmente, tais críticas muitas vezes revelam
um grau grave de ignorância sobre o assunto em questão. Muitos lamas tibetanos adotam a
atitude de que “não importa”, porque sinceramente não se incomodam com tais ataques. Eu
acredito que a perspectiva destes muitos lamas é bem mais ampla do que tentar se manter a par
dos últimos “gostares” e “não gostares” formulados pela tão inconstante mente moderna.
Outros lamas tibetanos dizem que os ocidentais têm a mesma relação com a espiritualidade que
1 Dado a tradutora deste texto, Ana Paula Martins Gouveia, ser brasileira, manteve-‐se inalterada a ortografia.
(Nota da Direcção)
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giangiorgio pasqualotto
porquê o Oriente?
(Uma entrevista de Davide de Pretto)
A pergunta está longe de ser banal, porque muitas vezes o uso corrente
deste termo associa a “Oriente” tudo aquilo que se encontra a Este da
Europa. Só que não é nada óbvia uma definição exacta dos confins orientais
da Europa. Pense-‐se apenas nos seculares debates sobre a questão da
identidade da Rússia – se se deve considerar “asiática”, “europeia” ou “euro-‐
asiática” – ou talvez nas mais antigas disputas sobre a correcta definição
geográfica e cultural de Bizâncio. Estabelecer de modo justo os confins entre
Europa e Ásia foi sempre um problema: basta lembrar que muitas colónias
gregas eram deslocadas naquela que se definia genericamente “Ásia
Menor”. Provavelmente é mais confortável utilizar uma demarcação de
natureza cultural, considerando que o “arquipélago Europa” -‐ para retomar
uma imagem feliz de Massimo Cacciari, se formou na base de duas colossais
“falhas tectónicas”: a cultura grega e aquela que aproxima os três grandes
monoteísmos (judaico, cristão e islâmico). Por conseguinte pertenceriam ao
Oriente aquelas tradições de pensamento que não remetem directamente
para estes dois enormes âmbitos culturais: em primeiro lugar as tradições
indianas e chinesas. É necessário, todavia, sublinhar que estas duas tradições
não são realmente unívocas e compactas: cada uma articulou-‐se no seu
interior num considerável número de escolas de pensamento, às vezes muito
diferentes entre si/elas. Portanto, seria melhor falar em “Orientes” no plural,
contrariamente a um único “Oriente” de modo a considerar a pluralidade e a
variedade das culturas e das filosofias que a palavra “Oriente” pretende
abarcar.
Nesse virar para o Oriente emerge o problema de como e, ainda antes,
do se, podemos falar de “filosofia oriental”. Pode-‐se objectar, de facto, que
“filosofia” seja um termo peculiar da língua grega e que, assim sendo, não
se aplique a outras tradições de pensamento.
2 «Carta de D. João de Albuquerque, Bispo de Goa a D. João III, Rei de Portugal, Goa, 28 de Novembro de 1548, in
Documentação para a História das Missões e do Padroado Português do Oriente (DHMPPO), ed. António da Silva Rêgo, IV,
Lisboa Agência Geral do Ultramar, 1947-‐1955, pp. 131-‐140.
3 «Juntamente convem termos qua licença de lermos os livros que fazem para confutar as ceitas e ritos dos imfieis, que qua se acham
judeus, mouros e gentios; e esta licença se avia de estender a lermo-‐los em sua limgoa, o que creo que he prohibydo.» («Carta de Dom
Gonçalo da Silveira escrita ao Padre Inácio», Cochim, Janeiro de 1557, in DHMPPO, VI, pp. 205-‐206).
4 Cf. Livro do Pai dos Cristãos, ed. José Wicki, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969.
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antónio telmo
a identidade religiosa de luís de camões
René Guénon nunca fala dos portugueses, mas, como muitos outros textos seus, este, que recolhi
do seu famoso livro O Rei do Mundo, está intimamente ligado connosco. No âmbito do que me propus
tratar neste primeiro caderno de filosofia livre, abre caminhos insuspeitados no sentido de determinar
a verdadeira identidade de Luís de Camões.
“Na Idade Média havia uma expressão, na qual os dois aspectos medulares da autoridade (régia e
sacerdotal) se encontravam reunidos de uma maneira digna de nota. Nessa época falava-‐se muitas vezes
de uma região misteriosa a que se chamava “o Reino do Preste João”. Era no tempo em que o que se
poderia designar como a “cobertura exterior” do Centro Supremo era formado numa boa parte pelos
Nestorianos (ou o que se convencionou chamar assim com razão ou sem ela) e os Sabeus. E eram estes,
precisamente, que davam a si mesmos o nome de “Mendayyeh de Yahia, isto é, “discípulos de João”.”
Em nota ao que vem dizendo, o ilustre francês informa que “se encontraram na Ásia Central e
particularmente na região do Turquestão, cruzes nestorianas que, como forma, são exactamente
semelhantes às cruzes da cavalaria”
Mais adiante, esclarece o que deixou atrás: “Para que ninguém se admire da expressão “cobertura
exterior” que viemos de empregar, deve ter-‐se em atenção, efectivamente, que a iniciação cavaleiresca era
essencialmente uma iniciação de Kshatriyas (Guerreiros), o que explica, entre outras coisas, o papel
preponderante que aí representa o simbolismo do amor.”
Começa já a desenhar-‐se a figura guerreira do poeta de Amor Luís de Camões. Esta relação com o
texto não terá nada de surpreendente quando nos lembrarmos que os nestorianos na Ásia eram os
cristãos de São Tomé, de São Tomé a quem o poeta dedicou nada menos do que doze estrofes d’Os
Lusíadas.
Estas doze estrofes que aparecem como que engastadas no curso do Canto X todo ele em grande
parte tratando de geografia, narram a vida, os milagres e a morte do apóstolo na Índia. Ainda mais
estranho é o modo como Camões faz a exaltação do Santo ao referi-‐lo como “o núncio de Cristo
“verdadeiro”. Não sabemos, dada a índole da sintaxe portuguesa, se o adjectivo se refere a núncio ou a
Cristo. Se a núncio, então distingue-‐o como verdadeiro entre os outros; se a Cristo, então deve supor-‐se
a existência de falsos Cristos. O último verso das doze estrofes é como uma luz que ilumina todo o
relato: “Mas deixemos esta matéria perigosa.”
Perigosa porquê? Por dizer que Tomé era o núncio de Cristo verdadeiro? Por dizer também que são
seus os lusitanos?
miguel gullander
a meditação do cadáver
A cabeça espreita, pelos buracos do saco de plástico pendurado, num prego.
Sempre permanece uma silenciosa testemunha em tudo o que acontece...
O clamor do ruído não cessa a bordo.
Gemidos e gritos, o sangue que escorre, borbulha e espirra. Lâminas rombas, cordas esticadas,
decepam membros e garroteiam gargantas. A caravela, enorme, inclina-‐se vertiginosamente e com ela
todos os seus crimes no convés oscilam na dança, passando de um pé para outro. Balançando,
oscilando, a roda da fortuna troca as sortes na dança. De um pé para o outro.
Um oficial português ainda olha para cima, para os causadores da carnificina. O navio pirata,
Ozymandias, com uma orgulhosa cabeça de dragão, horas antes abalroara a sua caravela, e todos os
piratas concretizaram a abordagem contra os seus homens.
A peruca é-‐lhe arrancada, para que a mão chegue ao cabelo verdadeiro. O cabelo arrepanhado é
puxado para trás para expor, ao sol escaldante dos trópicos, o rosto. O rosto é belo, jovem, sem barba.
Ao redor dos olhos rugas precoces comprovam a dureza da vida do mar, do sal, da falta de vitaminas. O
cabelo arrepanhado é acompanhado por um gemido, enquanto a cabeça é puxada para trás com a
violência duma mão nórdica, inimiga de latinos, inimiga de todos os homens neste barco. Inimiga de
todos os homens.
Uma mão humana é sempre uma mão inimiga de todos os homens.
É-‐lhe, então, arrancado o olho com uma ponta de faca, cujo cabo é feito de osso de rena. O animal que
o pirata pastoreava nas vastas tundras sob o sol da meia-‐noite, entre tempestades de auroras boreais –
tempestades do próprio sol da meia-‐noite. O pastor, feito agora pirata, cospe na cara do homem assim
maltratado e atira-‐lhe o rosto contra as tábuas que pisa, onde este português deverá chorar a sua
última súplica de perdão. Por um olho só. Um só olho, que espreita por entre as tábuas aqueles a quem
deve dirigir as lágrimas da sua última súplica de perdão:
Ali, nas sombras do porão, movendo-‐se como sombras, pessoas tornadas sombras, sombras que deste
seu negócio de tráfego humano, o acompanharão na morte precoce – uma culpa sem fim que ele
espreita por um olho, entre as tábuas.
Sempre permanece uma silenciosa testemunha em tudo o que acontece...
Entre as tábuas o rapaz português vê a menina, uma sombra de terror, a ser arrastada pelo pirata que
agora entrou no porão, mesmo debaixo de si. Talvez lhe chore em cima uma lágrima, ténue chuva para
apaziguar o fogo do nórdico enraivecido pelo álcool, sangue – e o veneno do cogumelo amanita
muscaria com que se intoxicou antes de iniciarem o ataque a esta caravela de esclavagistas
portugueses.
O gigante ruivo brande a espada, e arrasta pelo braço uma menina aterrorizada. Todas as sombras
gritam de horror, de saudade dilacerada pelos amigos que não as podem ver nem proteger nem acudir
–
Todas as sombras gritam por Kalunga – oh Deus, oh Deus, que este bárbaro da cor de um espectro da
morte está a arrastar-‐nos pelos braços, está a brandir uma catana afiada, está a apavorar-‐nos com os
seus olhos transparentes!
O pirata do norte é o famigerado Homem-‐dos-‐Mil-‐Olhos. Desde que começou em raids no mar nunca
mais viu a sua mulher de tranças, nem os sardentos filhos. Nunca mais percorreu, com uma estranha
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sam cyrous
da Pérsia ancestral ao Irão actual:
do misticismo religioso à modernidade teocrática
1 Título de uma série de poemas de Gil de Carvalho.
2 Cito a partir da obra coligida: Viagens, 1978-‐2008, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. Os livros que a constituem são indicados por siglas,
abdul cadre
caminho de santiago
«Suponhamos os Mestres ou Sacerdotes de uma Ordem do Templo, de posse, como tais, de uma verdade
divina, e suponhamos que essa verdade é o Verbo incarnado e sacrificado para a redenção do Mundo. Suponhamos,
ainda, que esses sacerdotes, de posse dessa verdade real e não simbólica, vivem num mundo pagão, crente nos deuses
múltiplos da religião grega e romana. Suponhamos, mais, que esses mestres da doutrina secreta querem comunicar aos
que merecem, por provarem que merecem, a doutrina secreta de que são senhores. Formarão para isso Mysterios, ou
Iniciações. E, na formação do ritual desses Mysterios, procederão da seguinte maneira. Buscarão primeiro, entre os
deuses pagãos qual é aquele cuja história possa conformar-‐se, como a sombra ao corpo que a projecta, à vida e à morte
do Verbo. Encontrarão, por exemplo, Baco, em cuja história divina há analogias evidentes com a do Verbo incarnado,
ainda que em nível diferente, que é o que é preciso. Redigirão uma fórmula em que, eliminando os acidentes que
perturbam a semelhança, consigam dar, na história de Baco, por símbolo e analogia a história do Verbo. E esta fórmula,
uma vez encontrada, chamar-‐se-‐á a Fórmula do Transepto. Nela está obtido o segredo supremo da Ordem ou Mysterio a
"crear", mas o verdadeiro segredo está guardado por eles, altos iniciadores, pois o que vão transmitir como verdade
suprema nesse mundo pagão é também uma sombra da verdade». Fernando Pessoa
Faz muitos anos, um amigo meu que, até penetrar no próprio mistério da vida, ao mesmo
assentar praça, nunca saíra da sua aldeia do tempo que em prece pedia a Júpiter que a manhã
interior, perto de Chaves, contou-‐me e recontou-‐ trouxesse ao Leste o renovado brilho do sol
me bastas vezes, ao longo de serões de nostalgia, nascente.
o medo que sentira ao ver o mar pela primeira A Galiza é a sempre noiva de Portugal que os
vez. E para mais em fúria! Dizia-‐me ele que maus negócios da estreita política dos homens
chegou mesmo a pensar que – e seria uma do passado fizeram separar e os mesmos
questão de tempo – o mar acabaria por engolir a estreitos e maus negócios euro-‐unionistas
terra. previsivelmente vão juntar. Talvez seja Deus a
Li mais tarde, num qualquer livro de escrever por linhas tortas. Desta irmandade de
esoterismo, que os soldados do general romano fala e de alma resulta o insólito de nós,
Décio, ao verem pela primeira vez, no cabo portugueses, sermos ali tratados por «hermanos»
Finisterra, o sol mergulhar no mar e apagar-‐se, enquanto aos outros povos da Península se lhes
teriam entrado em quase histeria, temendo que dá o tratamento de espanhóis. Se nada mais
se perpetuasse a noite e que aquele lugar fosse houvesse do que isto, no meu entender, seria já
verdadeiramente a terra dos mortos. bastante para alimentar a nossa saudade galaico-‐
Não há nada como o temor para nos tornar portuguesa que é, simultaneamente, uma
reverentes. É também o medo que nos faz nostalgia pelo passado comungado e um anseio
sacralizar o que se desconhece, seja o mar, o de futuro por haver.
trovão, o poder divino ou a morte do sol. Todos Mas há mais: mais alto, mais além e mais
sabemos que não há dragões, mas se tivermos profundo. É que dos três únicos lugares
medo dos dragões, esse medo será sempre verdadeiramente sagrados do mundo judaico-‐
verdadeiro. cristão (Jerusalém, Meca e Compostela) é a
A actual cidade de Santiago de Compostela capital da Galiza que mais perto nos fica pela
nasceu sobre um antigo castro romano que os língua, pelo coração e pela geografia.
rios Sar e Sarela demarcavam. Fica no coração da Santiago de Compostela ousou ser para a
Galiza, a dois dedos do mar e a um palmo do cristandade o que Roma nunca quis ou nunca
Cabo Finisterra. Foi neste cabo – imagino eu – pôde e o tempo já não lhe permite agora. Mas o
que Décio Juno Bruto se terá interrogado se um mito compostelano tem ainda a seu favor o que
passo em frente não seria afrontar o sagrado e
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