Você está na página 1de 416

P arece estranho, mas houve uma época

em que eu não lia fantasia.


Ou, na verdade, metade de um romance.
Naquela época, as Crônicas de Dragonlance
existiam em português de Portugal, cada
Mesmo jogando RPG e acompanhando
o gênero de outras formas, a literatura de livro dividido em duas partes. Eu tinha
fantasia demorou a fazer parte da minha recebido a segunda parte de Dragões do
vida. Minha formação como leitor foi Crepúsculo de Outono, pois a primeira parte
em outros gêneros. Não era questão de tinha sido roubada. Li aquilo, começando
preconceito: existia pouca fantasia em pela metade, e adorei. Queria mais.
português e pouca oferta de literatura Então recebi o volume que me conquistou
fantástica em inglês onde eu morava. de vez: Dragões da Noite de Inverno.
Contudo, um título se destacava, Se o primeiro livro das Crônicas é uma
sendo mencionado de novo e de novo: ótima aventura de RPG transformada em
Dragonlance. Numa época pré-Internet, saga, o segundo é literatura da melhor qua-
não era fácil descobrir o que estava por lidade. A história de Sturm, Laurana, Tas e
trás daquela palavra. Artigos e citações os outros me transformou. A partir daquele
falavam em uma “saga”, um “mundo”. momento, eu era um leitor de fantasia.
Falavam nas “crônicas”. Mesmo dentro Não vou estragar a trama. Não vou revelar
do meio RPGista, informações chegavam nenhum pedaço. A jornada por Dragões
através de boataria e conceitos vagos. da Noite do Inverno é algo que cada um
Mas, certo dia, um amigo me convidou precisa fazer por si só.
para jogar uma campanha nova. Mas, como um pequeno spoiler de outra
Emprestou-me um livro de capa mole que história, alguns anos depois escrevi um con-
explicava a cosmologia e a geografia do to baseado em Dragonlance. Ele foi lido por
mundo de Krynn. Comecei a ler aquilo e um editor e, a partir disso, surgiu o con-
fiquei fascinado. Deuses como Paladine, vite para escrever um conto no cenário de
Kiri-Jolith, Mishakal e a temida Takhisis Tormenta. Então um romance. Então toda
pareciam figuras vivas. Lugares como uma carreira como escritor de fantasia.
Solace, Palanthas e o Monte Nevermind
Dragonlance é um cenário especial. Dragões
exigiam ser visitados. Imediatamente quis
da Noite de Inverno é um livro especial. São
ser um Cavaleiro de Solamnia.
obras capazes de mudar a percepção sobre
Devolvi o livro elogiando muito aquele todo um gênero. Capazes de abrir portas e
mundo, comentando como era rico. até mudar vidas, como foi o meu caso.
Meu amigo deu um risinho. Disse que
Est Sularus oth Mithas,
a geografia e a cosmologia não eram
nada comparadas à história. Então me — Leonel Caldela
emprestou um romance. Verão de 2019
Outros títulos de literatura da Jambô

Dragon Age
O Trono Usurpado

Dungeons & Dragons


A Lenda de Drizzt, Vol. 1 — Pátria
A Lenda de Drizzt, Vol. 2 — Exílio
A Lenda de Drizzt, Vol. 3 — Refúgio
A Lenda de Drizzt, Vol. 4 — O Fragmento de Cristal
A Lenda de Drizzt, Vol. 7 — Legado
Crônicas de Dragonlance, Vol. 1 — Dragões do Crepúsculo do Outono

Profecias de Urag
O Caçador de Apóstolos
Deus Máquina

Tormenta
A Deusa no Labirinto
A Flecha de Fogo
A Joia da Alma
Trilogia da Tormenta, Vol. 1 — O Inimigo do Mundo
Trilogia da Tormenta, Vol. 2 — O Crânio e o Corvo
Trilogia da Tormenta, Vol. 3 — O Terceiro Deus
Crônicas da Tormenta, Vol. 1
Crônicas da Tormenta, Vol. 2

Universo Invasão
Espada da Galáxia

Para saber mais sobre nossos títulos,


visite nosso site em www.jamboeditora.com.br.
C RÔN IC A S
Volume Dois

DRAGÕES
N i
oite Do NVerNo
da

Poesia original por michael Williams


Capa por matt staWicki
Arte interna por DeNis BeauVais
Tradução por GilVaN GouVêa
CrôniCas Vol. 2 — Dragões Da noite Do inVerno
©2003 Wizards of the Coast, LLC. Todos os direitos reservados.
Dungeons & Dragons, D&D, Dragonlance, Wizards of the Coast
e seus respectivos logos são marcas registradas de Wizards of the Coast, LLC.

Título Original: Chronicles Vol. 2 — Dragons of Winter Night


Tradução: Gilvan Gouvêa
Revisão: Elisa Guimarães e Vinícius Mendes
Diagramação: Felipe Headley
Editor-Chefe: Guilherme Dei Svaldi
Equipe da Jambô: Guilherme Dei Svaldi, Rafael Dei Svaldi,
Leonel Caldela, Guiomar Soares, J. M. Trevisan, Vinicius Mendes,
Karen Soarele, Freddy Mees, Maurício Feijó, Diego Alves

Rua Coronel Genuíno, 209 • Porto Alegre, RS


CEP 90010-350 • Tel (51) 3391-0289
contato@jamboeditora.com.br • www.jamboeditora.com.br
Todos os direitos desta edição reservados à Jambô Editora. É proibida a
reprodução total ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que venham
a ser criados, sem autorização prévia, por escrito, da editora.
1ª edição: dezembro de 2019 | ISBN: 978858365124-6
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

W426d Weis, Margaret


Dragões da noite do inverno / Margaret Weis e Tracy
Hickman; tradução de Gilvan Gouvêa. — Porto Alegre:
Jambô, 2019.
416p. il.

1. Literatura norte-americana. I. Tracy, Hickman. II.


Gouvêa, Gilvan. III. Título.

CDU 869.0(81)-311
Para meus pais,
Dr. e Sra. Harold R. Hickman, que me
ensinaram o que é a honra verdadeira
— Tracy Raye Hickman

Para meus pais, Frances e George Weis,


que me deram um presente mais precioso
do que a vida: o amor pelos livros
— Margaret Weis

Agradecemos a ajuda dos autores


das aventuras de RPG de Dragonlance:
Douglas Niles (Dragons of Ice);
Jeff Grubb (Dragons of Light),
e Laura Hickman (Dragons of War, coautora).

Por fim, para Michael: Est Sularus oth Mithas


s ventos do inverno assolavam o exterior, mas nas cavernas dos
anões, sob as Montanhas Kharolis, a fúria da tempestade não era
sentida. Enquanto o Tano pedia silêncio entre os anões e humanos
reunidos, um anão bardo se adiantou para homenagear os companheiros.

Canção dos Nove Heróis


Do norte veio o perigo, como sabíamos que seria:
Na vanguarda do inverno, a dança de um dragão
Desfez a terra até que, saídos da floresta,
Saídos das planícies eles vieram, da terra mãe,
O céu abriu-se diante deles.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
Um de um jardim de pedra erguida,
Dos salões de anões, da intempérie e da sabedoria,
Onde o coração e a mente andam incontestáveis
Na veia inexplorada da mão.
Em seus braços paternais, o espírito se reuniu.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
Um de um refúgio de brisas descendentes,
Leve no ar que maneja,
Para os prados ondulantes, o campo dos kenders,
Onde o grão saído da pequenez surge
Para crescer verde, dourado e verde novamente.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
A próxima das planícies, do cuidado da terra longa,
Nutrida na distância, nos horizontes do nada.
Portando um cajado ela veio e um fardo
De misericórdia e luz convergiu em sua mão:
Portando as feridas do mundo, ela veio.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
O próximo das planícies, na sombra da lua,
Através do costume, através do ritual, seguindo a lua
Onde suas fases, sua crescente e minguante, controlavam
A maré do seu sangue e a sua mão de guerreiro
Ascendeu através das hierarquias do espaço até a luz.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
Uma dentro de ausências, conhecida por partidas,
A espadachim sombria no coração do fogo:
Suas glorias, o espaço entre as palavras,
A canção de ninar reminiscente na idade,
Lembrada à beira do despertar e do pensamento.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
Um no coração de honra, formado pela espada,
Pela passagem dos séculos do martim-pescador sobre a terra,
Por Solamnia arruinada e ressuscitada, erguendo novamente
Quando o coração ascende para o dever.
Enquanto dança, a espada é para sempre uma herança.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
O próximo em uma luz simples, um irmão para a escuridão,
Deixando a mão da espada tentar todas as sutilezas,
Até mesmo as teias intrincadas do coração. Seus pensamentos
São poças perturbadas na mudança de vento...
Ele não pode ver seu fundo.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
O próximo, o líder, meio-elfo, traído
Enquanto o sangue retorcido divide a terra,
As florestas, os mundos dos elfos e dos homens.
Chamado na bravura, mas temendo pelo amor,
E temendo isso, chamado em ambos, ele não faz nada.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.

O último da escuridão, respirando a noite


Onde as estrelas abstratas escondem um ninho de palavras,
Onde o corpo suporta a ferida dos números,
Entregue ao conhecimento, até que, incapaz de abençoar,
Sua bênção devora os baixos, os ignorantes.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.

Acompanhados por outros, eles estavam no conto:


Uma garota sem graça, agraciada além das graças;
Uma princesa de sementes e mudas, chamada para a floresta;
Um antigo tecelão de acidentes;
Nem podemos dizer quem a história reunirá.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.

Do norte veio o perigo, como sabíamos que seria:


Nos acampamentos de inverno, o sono do dragão
Se estabeleceu na terra, mas, saídos da floresta,
Saídos das planícies eles vêm, da terra mãe
Definindo o céu diante deles.
Nove eles eram, sob as três luas,
Sob o crepúsculo do outono:
Enquanto o mundo ruía, eles surgiram
No coração da história.
O Martelo
Martelo de Kharas!
O grande Salão de Audiências do Rei dos Anões da Montanha
ecoou com o anúncio triunfal. Ele foi acompanhado por um
aplauso selvagem, as vozes profundas dos anões misturando-se aos gritos
ligeiramente mais agudos dos humanos, quando as enormes portas do
fundo do salão foram abertas e Elistan, clérigo de Paladine, entrou.
Em forma de anfiteatro, o salão era grande, mesmo para os padrões
da arquitetura anã. Ainda assim, estava lotado. Quase todos os oitocentos
refugiados de Pax Tharkas se alinhavam nas paredes, enquanto os anões se
amontoavam nas bancadas de pedra esculpida abaixo.
Elistan apareceu no começo da longa passagem central, segurando
com reverência o gigantesco martelo de guerra. Os gritos aumentaram com
a visão do clérigo de Paladine em suas vestes brancas, o som retumbando
contra a grande abóbada do teto e reverberando pelo salão, até parecer que
o chão tremia com as vibrações.
Tanis estremecia enquanto o barulho fazia sua cabeça latejar. Ele
estava sufocado na multidão. Não gostava de estar no subsolo e, embora
o teto fosse tão alto que o topo se elevava para além da luz da tocha e
desaparecesse na sombra, o meio-elfo se sentia enclausurado.
— Ficarei feliz quando isso acabar — murmurou para Sturm, de pé
ao lado dele.
Sturm, sempre melancólico, parecia ainda mais sombrio e preocupado
do que o habitual. — Eu não aprovo isso, Tanis — murmurou, cruzando os
braços sobre o metal brilhante da sua antiga couraça.
— Eu sei — disse Tanis, irritado. — Você já disse isso, não uma, mas
várias vezes. Agora, é tarde demais. Não há nada a ser feito, a não ser tirar
o máximo da situação.
O final de sua frase se perdeu diante de outro aplauso retumbante
quando Elistan ergueu o Martelo acima de sua cabeça, o mostrando para
a multidão antes de caminhar pelo corredor. Tanis colocou a mão na testa.
Estava ficando tonto enquanto a caverna subterrânea fria esquentava com
a massa de corpos.
Elistan começou a andar pelo corredor. Levantando-se para cumpri-
mentá-lo, em uma plataforma no centro do salão, estava Hornfel, Tano
dos anões Hylar. Atrás do anão havia sete tronos de pedra esculpida, todos
vazios. Hornfel estava diante do sétimo trono, o mais magnífico: o trono
do Rei de Thorbardin. Vazio há muito tempo, seria ocupado mais uma vez,
quando Hornfel aceitasse o Martelo de Kharas. O retorno desta relíquia
antiga era um triunfo singular para ele. Com o seu domínio em posse do
cobiçado Martelo, ele poderia unir os tanos anões rivais sob sua liderança.
— Lutamos para recuperar aquele Martelo — Sturm disse, seus olhos
sobre a arma reluzente. — O lendário Martelo de Kharas. Usado para forjar
as lanças do dragão. Perdido há centenas de anos, encontrado novamente e
perdido mais uma vez. E agora dado aos anões! — disse em desgosto.
— Foi dado aos anões anteriormente — Tanis o lembrou, cansado,
sentindo o suor escorrer pela testa. — Peça para Flint contar a história, se
tiver esquecido. De qualquer forma, é realmente deles agora. — Elistan
havia chegado ao pé da plataforma de pedra onde o Tano o aguardava,
vestido com mantos pesados e as enormes correntes de ouro que os anões
amavam. Ajoelhou-se ao pé da plataforma, um gesto político, pois, caso
contrário, o clérigo alto e musculoso ficaria cara a cara com o anão, apesar
da plataforma estar quase um metro acima do chão. Os anões aplaudiram
vigorosamente. Tanis notou que os humanos estavam mais quietos, alguns
resmungando entre si, não gostando de ver seu líder se humilhando.

13
— Aceite este presente do nosso povo... — As palavras de Elistan se
perderam em outro aplauso dos anões.
— Presente! — Sturm bufou. — Tributo seria mais adequado.
— Em troca — continuou Elistan quando pôde ser ouvido —, agrade-
cemos aos anões pelo presente generoso de um lugar para morar em seu reino.
— Pelo direito de ser selado em um túmulo... — Sturm resmungou.
— E prometemos nosso apoio aos anões caso a guerra chegue a nós
— gritou Elistan.
A celebração ressoou por toda a câmara, aumentando enquanto o
Tano Hornfel se inclinava para receber o Martelo. Os anões bateram e
assobiaram, a maioria subindo nas bancadas de pedra.
Tanis começou a sentir náuseas. Olhou em volta. Ninguém sentiria a
ausência deles. Hornfel falaria, assim como cada um dos outros seis Tanos e
os membros do Conselho dos Altos Seguidores. O meio-elfo tocou Sturm
no braço, apontando para o cavaleiro seguí-lo. Os dois caminharam silen-
ciosamente pelo corredor, curvando-se para passar por um arco estreito.
Embora ainda estivessem no subsolo da grandiosa cidade dos anões, pelo
menos estavam longe do barulho, no ar fresco da noite.
— Você está bem? — Sturm perguntou, percebendo a palidez de Tanis
sob a barba. O meio-elfo deu longos suspiros no ar frio.
— Agora estou — disse Tanis, envergonhado de sua fraqueza. — Foi
o calor... e o barulho.
— Bem, logo sairemos daqui — Sturm disse. — Se o Conselho de
Altos Seguidores votar para autorizar nossa viagem a Tarsis, é claro.
— Ah, não há dúvida de como eles vão votar — disse Tanis, dando de
ombros. — Elistan está no controle, agora que levou as pessoas a um lugar
seguro. Nenhum dos Altos Seguidores se atreve a se opor a ele... pelo menos
não na sua frente. Não, meu amigo, daqui a um mês, talvez, embarcaremos
em um dos navios de asas brancas de Tarsis, a Bela.
— Sem o Martelo de Kharas — acrescentou Sturm amargamente.
Suavemente, começou a citar. “E foi-lhe dito que os Cavaleiros levaram o
Martelo dourado, que fora abençoado pelo grande deus Paladine e entregue
Àquele do Braço de Prata para forjar a Lança do Dragão de Huma, e o deram
ao anão que chamavam de Kharas, ou Cavaleiro, por sua valentia e honra
em batalha. O anão deu seu nome ao martelo. E o Martelo de Kharas passou
para o reino dos anões, com a garantia deles de que seria trazido de novo
quando necessário...”

14
— Ele foi trazido — disse Tanis, lutando para conter sua raiva
crescente. Já ouvira essa citação vezes demais.
— Foi trazido e será deixado para trás! — Sturm cerrou os dentes.
— Poderíamos tê-lo levado para Solamnia, usado-o para forjar nossas
próprias lanças do dragão...
— E você seria outro Huma, cavalgando para a glória, com a Lança
do Dragão em sua mão! — Tanis perdeu o controle. — Enquanto isso, você
deixaria oitocentas pessoas morrerem...
— Não, não teria deixado elas morrerem! — Sturm gritou em uma
fúria imensa. — A primeira pista que temos para as lanças do dragão e você
a entrega por...
Os dois pararam de discutir abruptamente, subitamente conscientes
de uma sombra aumentando a partir da escuridão que os rodeava.
— Shirak — sussurrou uma voz e uma luz se acendeu, emanando de
uma bola de cristal presa na garra dourada de um dragão no topo de um ca-
jado de madeira. A luz iluminou os mantos vermelhos de arcano. O jovem
mago caminhou em direção aos dois, apoiando-se em seu cajado, tossindo
levemente. A luz do seu cajado irradiava sobre um rosto esquelético, com
a pele dourada refletindo, esticada sobre ossos finos. Seus olhos brilhavam,
também dourados.
— Raistlin — disse Tanis, com a voz firme. — Você quer alguma
coisa?
Raistlin não parecia nem um pouco incomodado com os olhares
raivosos que ambos lhe lançaram, aparentemente acostumado ao fato de
que poucos se sentiam à vontade em sua presença ou o queriam por perto.
Parou diante dos dois. Esticando a mão frágil, o mago falou: —
Akular-alan suh Tagolann Jistrathar — e uma imagem pálida de uma arma
apareceu, enquanto Tanis e Sturm observavam, atônitos.
Era uma lança de infantaria, com mais de três metros de comprimento.
A ponta era feita de prata pura, farpada e reluzente, a haste trabalhada de
madeira polida.
— É linda! — Tanis arfou. — O que é?
— Uma lança do dragão — respondeu Raistlin. Segurando a lança
na mão, o mago se colocou entre os dois, que abriram espaço para deixá-lo
passar como se não estivessem dispostos a serem tocados por ele. Seus olhos
estavam na lança. Então, Raistlin se virou e a estendeu para Sturm.

15
— Aqui está sua lança do dragão, cavaleiro — Raistlin sibilou —, sem
necessidade do Martelo ou do Braço de Prata. Você cavalgará com ela para
a glória, lembrando que, para Huma, com a glória veio a morte?
Os olhos de Sturm brilharam. Ele recuperou o fôlego quando estendeu
a mão para pegar a lança do dragão. Para sua surpresa, a mão passou direto
por ela. A lança do dragão desapareceu, assim que ele a tocou.
— Mais um de seus truques! — ele rosnou. Virando-se de costas, se
afastou, sufocando em raiva.
— Se queria fazer disso uma piada, Raistlin — Tanis disse calmamente
— não foi engraçado.
— Uma piada? — o mago sussurrou. Seus olhos dourados estranhos
seguiram o cavaleiro enquanto Sturm entrava na escuridão densa da cidade
dos anões sob a montanha. — Você deveria me conhecer melhor, Tanis.
O mago riu, a risada estranha que Tanis ouvira apenas uma vez antes.
Então, curvando-se ironicamente ao meio-elfo, Raistlin desapareceu,
seguindo o cavaleiro nas sombras.

16
LIVRO UM
1
Navios de asas brancas.
A esperança está além das Planícies da Poeira.

anis Meio-Elfo sentou-se na assembleia do Conselho dos Altos


Seguidores e ouviu, de testa franzida. Embora a religião falsa dos
Seguidores estivesse oficialmente morta, o grupo que compunha
a liderança política dos oitocentos refugiados de Pax Tharkas ainda era
chamada assim.
— Não é que não sejamos gratos aos anões por nos permitir viver
aqui — disse Hederick expansivamente, acenando com a mão cheia de
cicatrizes. — Somos todos gratos, tenho certeza. Assim como somos gratos
àqueles cujo heroísmo em recuperar o Martelo de Kharas tornou nossa vin-
da para cá possível. — Fez uma reverência para Tanis, que respondeu com
um breve aceno de cabeça. — Mas não somos anões! — Esta afirmação
enfática trouxe murmúrios de aprovação, aquecendo a sua audiência.
— Nós, humanos, não fomos feitos para viver no subterrâneo! —
Gritos de aprovação e alguns aplausos.
— Somos fazendeiros. Não podemos cultivar comida na encosta de
uma montanha! Queremos terras como as que fomos forçados a deixar para
trás. E digo que aqueles que nos forçaram a deixar a nossa antiga pátria
devem nos fornecer novas!
— Ele está falando dos Senhores dos Dragões? — Sturm sussurrou sarcas-
ticamente para Tanis. — Tenho certeza que eles ficariam felizes em atendê-lo.
— Os tolos deveriam estar gratos por estarem vivos — Tanis mur-
murou. — Olhe para eles, voltando-se contra Elistan... como se fosse
culpa dele! — O clérigo de Paladine e líder dos refugiados levantou-se
para responder a Hederick.
— É por precisarmos de novas casas — disse Elistan, sua voz forte
de barítono ressoando pela caverna — que proponho que enviemos uma
delegação para o sul, para a cidade de Tarsis, a Bela.
Tanis ouvira o plano de Elistan antes. Sua mente vagou pelo mês
desde que ele e seus companheiros retornaram da Tumba de Derkin com o
Martelo sagrado.
Os Tanos anões, agora consolidados sob a liderança de Hornfel, se
preparavam para combater o mal que vinha do norte. Os anões não temiam
muito este mal. Seu reino na montanha parecia inexpugnável. Mantiveram
a promessa feita a Tanis em troca do Martelo: os refugiados de Pax Tharkas
podiam se estabelecer em Portão Sul, a parte mais meridional do reino
montanhoso de Thorbardin.
Elistan levou os refugiados para Thorbardin. Eles começaram a tentar
reconstruir suas vidas, mas o arranjo não fora totalmente satisfatório.
Estavam seguros, com certeza, mas os refugiados, em sua maioria fa-
zendeiros, não estavam felizes em viver no subterrâneo, nas cavernas enor-
mes dos anões. Na primavera, poderiam plantar na encosta da montanha,
mas o solo rochoso produziria pouco. As pessoas queriam viver sob o sol e
no ar fresco. Não queriam depender dos anões.
Foi Elistan quem lembrou das antigas lendas de Tarsis, a Bela, e seus
navios com asas de gaivota. Mas eram somente isso, lendas, como Tanis
apontara quando Elistan mencionou sua ideia pela primeira vez. Ninguém
nesta parte de Ansalon ouvira falar sobre a cidade de Tarsis desde o Cata-
clismo, há trezentos anos. Naquela época, os anões tinham fechado o reino
montanhoso de Thorbardin, cortando toda a comunicação entre o sul e o
norte, já que o único caminho através das Montanhas Kharolis era através
de Thorbardin.

21
Tanis ouviu melancolicamente enquanto o Conselho dos Altos Se-
guidores votava, de forma unânime, a aprovação da sugestão de Elistan.
Eles propuseram enviar um pequeno grupo para Tarsis com instruções para
descobrir que navios chegavam ao porto, para onde iam e quanto custaria
comprar passagem... ou até mesmo um navio.
“E quem vai liderar este grupo?”, Tanis pensou, embora já soubesse
a resposta.
Todos os olhos se voltaram para ele. Antes que o meio-elfo pudesse
falar, Raistlin, que estivera ouvindo tudo o que fora dito sem comentários,
avançou para ficar diante do Conselho. O mago olhou para eles, seus estra-
nhos olhos brilhando dourados.
— Vocês são tolos — Raistlin disse, sua voz sussurrando com desprezo
— e estão vivendo em um sonho de tolos. Quantas vezes devo repetir?
Quantas vezes devo lembrá-los do presságio das estrelas? O que dirão para
si mesmos quando olharem para o céu noturno e verem os buracos negros
das duas constelações ausentes?
Os membros do Conselho se ajeitaram em seus assentos, vários
trocando olhares resignados indicando seu tédio.
Raistlin percebeu isso e continuou, sua voz ficando cada vez mais
desdenhosa: — Sim, ouvi alguns de vocês dizendo que não é nada mais do
que um fenômeno natural... Uma coisa que acontece, talvez, como a queda
das folhas das árvores.
Vários membros do Conselho murmuraram entre si, assentindo.
Raistlin observou silenciosamente por um momento, seu lábio se curvando
em escárnio. Então, falou mais uma vez: — Repito, vocês são tolos. A cons-
telação conhecida como a Rainha das Trevas está ausente no céu porque
a Rainha está presente aqui em Krynn. A constelação do Guerreiro, que
representa o antigo Deus Paladine, como nos dizem os Discos de Mishakal,
também retornou a Krynn para lutar contra ela.
Raistlin parou. Elistan, que estava entre eles, era um profeta de Pala-
dine e muitos presentes foram convertidos para essa nova religião. O mago
sentia a raiva crescente, com o que alguns consideravam uma blasfêmia: a
ideia de que os deuses se envolviam pessoalmente nos assuntos dos homens.
Mas ser considerado blasfemo nunca o incomodou.
Sua voz elevou para um tom alto: — Marquem bem minhas palavras!
Com a Rainha das Trevas, vieram suas “hostes estridentes”, como diz o

22
Cântico. E as hostes estridentes são dragões! — Raistlin soltou a última
palavra em um silvo que, como Flint disse, “estremeceu a pele”.
— Sabemos tudo isso — retrucou Hederick, impaciente. Já passava
da hora do copo noturno de vinho quente do Teocrata e sua sede lhe
dava coragem para falar. Ele se arrependeu imediatamente, no entanto,
quando os olhos de ampulheta de Raistlin pareceram perfurá-lo como
flechas negras. — O-o que você quer dizer?
— Que não há paz em qualquer lugar de Krynn — sussurrou o
mago. Ele acenou com a mão frágil. — Encontrem navios, velejem para
onde quiserem. Para onde quer que forem, sempre que olharem para o céu
noturno, verão esses buracos negros. Onde quer que forem, haverá dragões!
— Raistlin começou a tossir. Seu corpo se contorceu com os espasmos e
parecia que iria cair, mas seu irmão gêmeo, Caramon, avançou e o pegou
em seus braços fortes.
Após Caramon tirar o mago da assembleia do Conselho, parecia que
uma nuvem escura fora dissipada. Os membros do Conselho se sacudiram
e riram, embora um tanto trêmulos, e falaram sobre histórias para crianças.
Pensar que a guerra teria se espalhado para todo Krynn era ridículo. Ora, a
guerra já estava quase terminando aqui em Ansalon. O Senhor dos Dragões,
Verminaard, fora derrotado, seus exércitos draconianos repelidos.
Os membros do Conselho se levantaram, se esticaram e saíram da
câmara para se dirigirem para a taverna ou suas casas.
Eles esqueceram que nunca perguntaram a Tanis se ele levaria o grupo
a Tarsis. Simplesmente assumiram que sim.
Trocando olhares sérios com Sturm, Tanis saiu da caverna. Era a sua
noite de fazer vigia. Embora os anões se sentissem seguros em sua cidadela
nas montanhas, Tanis e Sturm insistiram em que uma vigia fosse mantida
nas paredes que levavam ao Portão Sul. Eles passaram a respeitar demais os
Senhores dos Dragões para dormir em paz sem isso, mesmo no subterrâneo.
Tanis encostou-se na parede externa do Portão Sul, com o rosto
pensativo e sério. Diante dele, havia um prado coberto de neve macia e
fina. A noite estava calma e parada. Atrás dele, estava a grande extensão
das Montanhas Kharolis. O Portão Sul era, na verdade, um tampão gi-
gantesco na lateral das montanhas. Fazia parte das defesas dos anões, os
isolando do mundo por trezentos anos após o Cataclismo e as destrutivas
Guerras Anãs.

23
Com dezoito metros de largura na base e quase a metade da altura, o
portão era operado por um mecanismo enorme que o obrigava a entrar e
sair da montanha. Com pelo menos doze metros de espessura no centro,
o portão era mais resistente que qualquer outro conhecido em Krynn,
exceto seu irmão igual ao norte. Uma vez fechados, eles não podiam ser
distinguidos das faces da montanha, tamanha era a habilidade dos antigos
construtores anões. No entanto, desde a chegada dos humanos em Portão
Sul, tochas foram colocadas na abertura, permitindo que homens, mulheres
e crianças tivessem acesso ao ar exterior, uma necessidade humana que
parecia uma fraqueza inexplicável para os anões subterrâneos.
Enquanto Tanis ficava ali, olhando para a mata além do prado e não
encontrando paz em sua beleza tranquila, Sturm, Elistan e Laurana se
juntaram ao meio-elfo. Os três estavam falando dele, e ficaram em um
silêncio desconfortável.
— Como você é solene — disse Laurana para Tanis, aproximando-se
e colocando a mão no braço dele. — Você acredita que Raistlin está certo,
não é, Tanthal... Tanis? — Laurana corou. Seu nome humano ainda vinha
desajeitadamente aos seus lábios, mas agora ela o conhecia bem o suficiente
para entender que seu nome élfico só lhe causava dor.
Tanis olhou para a mão pequena e esguia em seu braço e gentilmente
colocou a sua sobre ela. Há apenas alguns meses, o toque daquela mão teria
o irritado, causando confusão e culpa enquanto seu amor por uma mulher
humana lutava contra o que ele dizia ser uma paixão de infância por essa
elfa. Mas, agora, o toque da mão de Laurana o enchia de calor e paz, mesmo
enquanto mexia com seu sangue. Ele ponderou sobre esses sentimentos
novos e perturbadores enquanto respondia à pergunta.
— Eu considerei o conselho de Raistlin por muito tempo — ele disse,
sabendo como isso os perturbaria. De fato, o rosto de Sturm ficou sombrio
e Elistan franziu a testa. — E acho que ele está certo desta vez. Nós vence-
mos uma batalha, mas estamos longe de ganhar a guerra. Sabemos que está
sendo travada ao norte, em Solamnia. Acho que podemos presumir com
segurança que não é apenas pela conquista de Abanassínia que as forças das
trevas estão lutando.
— Você está especulando! — Elistan argumentou. — Não deixe que
a escuridão que paira em torno do jovem mago nuble seu pensamento. Ele
pode estar certo, mas isso não é motivo para desistir da esperança, desistir
de tentar! Tarsis é uma grande cidade portuária... pelo menos de acordo

24
com tudo o que sabemos. Lá encontraremos aqueles que podem nos dizer
se a guerra envolve o mundo todo. Se envolver, então certamente ainda
deve haver refúgios onde poderemos encontrar a paz.
— Escute Elistan, Tanis — Laurana disse suavemente. — Ele é sábio.
Quando nosso povo deixou Qualinosti, eles não fugiram cegamente. Eles
viajaram para um refúgio pacífico. Meu pai tinha um plano, embora não
ousasse revelá-lo...
Laurana parou, surpresa ao ver o efeito da sua fala. De repente, Tanis
soltou seu braço do toque dela e voltou seu olhar para Elistan, seus olhos
cheios de raiva.
— Raistlin disse que a esperança é a negação da realidade — Tanis
declarou friamente. Então, vendo o rosto preocupado de Elistan encará-lo
com tristeza, o meio-elfo sorriu, combalido. — Me desculpe, Elistan. Estou
cansado, é isso. Me perdoe. Sua sugestão é boa. Vamos viajar para Tarsis
com esperança, pelo menos.
Elistan assentiu e virou-se para sair. — Você vem, Laurana? Sei que
está cansada, minha querida, mas temos muito a fazer antes que eu possa
entregar a liderança ao Conselho na minha ausência.
— Logo estarei com você, Elistan — disse Laurana, corando. — Eu...
quero falar com Tanis.
Elistan deu a ambos um olhar compreensivo e, depois, atravessou o
portal escuro com Sturm. Tanis começou a apagar as tochas, preparando-se
para o fechamento do portão. Laurana parou perto da entrada, sua expres-
são ficando mais fria quando ficou óbvio que Tanis a estava ignorando.
— Qual é seu o problema? — ela disse finalmente. — É quase como
se você estivesse representando o mago de alma escura contra Elistan, um
dos humanos mais nobres e sábios que já conheci!
— Não julgue Raistlin, Laurana — Tanis disse de forma áspera,
colocando uma tocha em um balde de água. A luz desapareceu com um
silvo. — As coisas nem sempre são em preto e branco, como vocês elfos
costumam acreditar. O mago salvou nossas vidas mais de uma vez. Passei a
confiar na mente dele... e, admito, acho mais fácil confiar nisso do que na
fé cega.
— Vocês elfos! — Laurana gritou. — Como isso soa tipicamente
humano! Existe mais de elfo em você do que gostaria de admitir, Tanthalas!
Você costumava dizer que não usava barba para esconder sua herança e eu
acreditava em você. Mas agora não tenho tanta certeza. Eu vivi entre os

25
humanos tempo suficiente para saber como eles se sentem sobre elfos! Mas
tenho orgulho da minha herança. Você não! Você tem vergonha disso. Por
quê? Por causa daquela humana por quem você está apaixonado! Qual é o
nome dela, Kitiara?
— Pare, Laurana! — Tanis gritou. Jogando uma tocha no chão, ele
caminhou até a elfa parada perto da passagem. — Se quer discutir relacio-
namentos, que tal você e Elistan? Ele pode ser um clérigo de Paladine, mas
é um homem, um fato que você pode atestar, sem dúvida! Tudo o que eu
ouço de você — ele imitou a voz dela — é “Elistan é tão sábio”, “Pergunte
a Elistan, ele saberá o que fazer”, “Ouça Elistan, Tanis...”
— Como se atreve a me acusar de suas próprias falhas? — Laurana
retrucou. — Eu adoro Elistan. Eu o reverencio. É o homem mais sábio que
conheci e o mais gentil. Ele é abnegado... Toda a sua vida está envolvida em
servir os outros. Mas há apenas um homem que amo, apenas um homem
que amei... embora agora esteja começando a me perguntar se talvez não
tenha cometido um erro! Você disse, naquele lugar horrível, no Sla-Mori,
que eu estava me comportando como uma menina e era melhor eu cres-
cer. Bem, eu cresci, Tanis Meio-Elfo. Nestes últimos meses amargos, vi o
sofrimento e a morte. Tive medo porque nunca soube que existia medo!
Aprendi a lutar e causei a morte dos meus inimigos. Tudo isso me machuca
por dentro até me deixar tão entorpecida que não posso mais sentir dor.
Mas o que me machuca ainda mais é ver você claramente.
— Eu nunca afirmei ser perfeito, Laurana — Tanis disse em voz baixa.
A lua prateada e a vermelha haviam nascido, nenhuma delas ainda
cheia, mas brilhando o suficiente para Tanis ver lágrimas nos olhos claros
de Laurana. Ele estendeu as mãos para tomá-la em seus braços, mas ela deu
um passo para trás.
— Você pode nunca ter afirmado — ela disse com desdém —, mas
certamente gosta de deixar que pensemos assim!
Ignorando suas mãos estendidas, ela pegou uma tocha da parede e
entrou na escuridão além do portão de Thorbardin. Tanis a observou sair,
viu a luz refletir em seu cabelo cor-de-mel, a viu andar, tão graciosa quanto
os álamos esguios de sua terra natal élfica, Qualinosti.
Tanis ficou parado por um momento, olhando para ela, coçando a
barba grossa e avermelhada que nenhum elfo de Krynn poderia ter. Pon-
derando a última frase de Laurana, pensou, sem harmonia, em Kitiara. Ele
evocou imagens em sua mente do cabelo preto curto e encaracolado de Kit,

26
seu sorriso torto, seu temperamento ardente e impetuoso, seu corpo forte
e sensual, de uma espadachim treinada... Mas descobriu, para sua surpresa,
que a imagem se dissolveu, perfurada pelo olhar calmo e claro de dois olhos
élficos levemente amendoados e luminosos.
O trovão retumbou da montanha. O eixo que movia o enorme portão
de pedra começou a girar, fechando a porta. Tanis, observando-a fechar,
decidiu que não entraria. — Selado em um túmulo. — Ele sorriu, lem-
brando-se das palavras de Sturm, mas também havia um arrepio em sua
alma. Ficou parado por um bom tempo, olhando para a porta, sentindo seu
peso se estabelecer entre ele e Laurana. A porta se fechou com um estrondo
surdo. A face da montanha estava vazia, fria, austera.
Com um suspiro, Tanis puxou sua capa e começou a andar em direção
à floresta. Até mesmo dormir na neve era melhor do que no subterrâneo.
Era melhor se acostumar logo com isso. As Planícies da Poeira pelas quais
eles viajariam para chegar a Tarsis provavelmente seriam sufocadas pela
neve, mesmo no começo do inverno.
Pensando na jornada, enquanto caminhava, Tanis olhou para o céu
noturno: era lindo, deslumbrante, com estrelas. Mas os dois buracos negros
rasgavam a beleza. As constelações desaparecidas de Raistlin.
Lacunas no céu. Lacunas nele próprio.

Depois da briga com Laurana, Tanis estava quase contente em começar a


jornada. Todos os companheiros concordaram em ir. Ele sabia que nenhum
deles se sentia realmente em casa entre os refugiados.
Os preparativos para a jornada deram ao meio-elfo muita coisa para
pensar. Ele conseguia dizer a si mesmo que não se importava que Laurana
o evitasse. E, no começo, a jornada em si foi agradável. Parecia que eles
estavam de volta aos primeiros dias de outono, em vez de no início do
inverno. O sol brilhava, aquecendo o ar. Apenas Raistlin usava seu manto
mais pesado.
As conversas enquanto os companheiros atravessavam a parte norte
das planícies eram alegres e leves, cheias de provocações e brincadeiras, lem-
brando mutuamente da diversão que compartilharam nos dias passados e
felizes em Consolação. Ninguém falava sobre as coisas sombrias e malignas
que viram no passado recente. Era como se, ao contemplar um futuro mais
radiante, desejassem que essas coisas nunca tivessem existido.

27
À noite, Elistan explicava o que estava aprendendo sobre os deu-
ses antigos nos Discos de Mishakal, que levava consigo. Suas histórias
enchiam suas almas com paz e reforçavam sua fé. Até mesmo Tanis,
que embora tivesse passado a vida inteira procurando por algo em que
acreditar, também era cético, sentia em sua alma que poderia acreditar
nisso. Ele queria acreditar, mas algo o impedia e, toda vez que olhava para
Laurana, sabia o que era. Até que pudesse resolver seu próprio conflito
interior, a divisão furiosa entre o elfo e o humano dentro de si, nunca
conheceria a paz.
Apenas Raistlin não participava das conversas e das brincadeiras
no acampamento. O mago passava seus dias estudando seu grimório. Se
interrompido, respondia com um grunhido. Depois do jantar, do qual
comia pouco, se sentava sozinho, os olhos no céu noturno, observando os
dois buracos negros que se espelhavam nas pupilas escuras em forma de
ampulheta do mago.
Apenas depois de vários dias, a animação começou a enfraquecer. O
sol foi obscurecido pelas nuvens e o vento soprava frio do norte. A neve caía
tão forte que um dia não conseguiram viajar e foram forçados a procurar
abrigo em uma caverna até que a nevasca se dissipasse. Eles mantinham
uma vigia dupla à noite, embora ninguém pudesse dizer exatamente por
quê, apenas que tinham uma sensação crescente de ameaça e perigo. Vento
Ligeiro olhou desconfortável para a trilha que deixavam na neve. Como
Flint disse, um anão tolo e cego poderia seguí-la. A sensação de ameaça
cresceu, a sensação de olhos observando e ouvidos escutando.
Mesmo assim, quem poderia ser, aqui nas Planícies de Poeira onde
nada e ninguém viveu por trezentos anos?

28
2
Entre mestre e dragão.
Jornada funesta.

dragão suspirou, flexionou suas asas enormes e ergueu seu corpo


pesado das águas quentes e relaxantes das fontes termais. Emer-
gindo de uma nuvem ondulada de vapor, se preparou para entrar
no ar frio. O ar límpido do inverno era como agulhas em suas narinas
delicadas e cortava sua garganta. Engolindo dolorosamente, ele resistiu
firmemente à tentação de retornar às piscinas quentes e começou a subir
até a saliência rochosa acima.
O dragão pisou irritado sobre as pedras escorregadias com gelo forma-
do pelo vapor das fontes termais, que esfriaram quase instantaneamente no
ar congelante. As pedras racharam e quebraram sob suas garras, deslizando
e caindo no vale abaixo.
Ele escorregou uma vez, fazendo com que perdesse momentaneamente
o equilíbrio. Abrindo suas grandes asas, ele se recuperou facilmente, mas o
incidente só serviu para aumentar ainda mais sua irritação.
O sol da manhã iluminava os picos das montanhas, tocando o dragão,
fazendo com que suas escamas azuis brilhassem douradas na luz clara, mas
fazendo pouco para aquecer seu sangue. O dragão tremeu novamente, ba-
tendo os pés no chão frio. O inverno não era para os dragões azuis, assim
como viajar neste campo abismal. Com esse pensamento, que estivera em sua
mente durante toda a noite longa e amarga, Skie procurou por seu mestre.
Ele encontrou a Senhora dos Dragões de pé em cima de um aflora-
mento de rocha, uma figura imponente em elmo de dragão com chifres e
armadura de escamas de dragão azul. A Senhora, com a capa balançando
no vento frio, contemplava com interesse tenso a grande planície abaixo.
— Venha, Senhora, volte para a sua tenda. — E deixe-me voltar para
as fontes termais, Skie completou mentalmente. — Esse vento frio corta até
os ossos. E por que a Senhora está aqui fora?
Skie poderia supor que a Senhora estava reconhecendo, planejando
a disposição das tropas, os ataques das revoadas de dragões. Mas não era
o caso. A ocupação de Tarsis fora planejada há muito tempo... planejada,
na verdade, por outro Senhor dos Dragões, pois esta terra estava sob o
comando dos dragões vermelhos.
“Os dragões azuis e seus Senhores dos Dragões controlavam o norte,
mas aqui estou, nestas terras geladas do sul”, pensou Skie irritado. E atrás
de mim está uma revoada inteira de dragões azuis. Ele virou a cabeça ligei-
ramente, olhando para baixo para seus companheiros que batiam as asas
no início da manhã, gratos pelo calor das fontes termais que tirou o frio de
seus tendões.
“Tolos”, Skie pensou com desdém. “Tudo o que esperam é um sinal
da Senhora para atacar. Iluminar os céus e queimar as cidades com seus
relâmpagos mortais é tudo com o que se importam. Sua fé na Senhora
dos Dragões é implícita. Além disso”, Skie admitiu, “sua mestre os levara à
vitória após a vitória no norte e nenhum deles fora perdido”.
Eles deixam as perguntas para mim... porque eu sou a montaria da
Senhora, porque eu sou o mais próximo da Senhora dos Dragões. Bem, que
assim seja. Nós nos entendemos, a Senhora e eu.
— Não temos motivo para estar em Tarsis. — Skie falou francamente.
Ele não temia a Senhora. Ao contrário de muitos dos dragões em Krynn,
que serviam seus mestres com uma relutância rancorosa, sabendo que eles
mesmos eram os verdadeiros governantes, Skie servia sua mestre com res-
peito... e amor. — Os vermelhos não nos querem aqui, isso é certo. E não

31
somos necessários. Aquela cidade fraca que chama tão estranhamente sua
atenção cairá facilmente. Sem exército. Eles engoliram a isca e marcharam
para a fronteira.
— Estamos aqui porque meus espiões me disseram que eles estão aqui,
ou estarão em breve — foi a resposta da Senhora. A voz era baixa, mas era
audível até no vento cortante.
— Eles ... eles ... — resmungou o dragão, tremendo e movendo-se
inquieto sobre a saliência. — Deixamos a guerra no norte, perdemos tempo
precioso, perdemos uma fortuna em aço. E por que?... um punhado de
aventureiros viajantes.
— A riqueza não é nada para mim, você sabe disso. Eu poderia com-
prar Tarsis, se isso me agradasse. — A Senhora dos Dragões acariciou o
pescoço do dragão com uma luva de couro coberta de gelo que estalava
com os movimentos poderosos. — A guerra no norte está indo bem. Lorde
Ariakas não se importou com minha partida. Bakaris é um comandante
jovem, hábil e conhece meus exércitos quase tão bem quanto eu.
E não se esqueça, Skie, eles são mais que vagabundos. Esses “aventu-
reiros viajantes” mataram Verminaard.
— Ora! O homem já havia cavado seu próprio túmulo. Ele estava ob-
cecado, perdeu o contato com o propósito verdadeiro. — O dragão lançou
um olhar à sua mestre. — O mesmo pode ser dito dos outros.
— Obcecado? Sim, Verminaard estava obcecado, e existem aqueles
que deveriam levar essa obsessão mais a sério. Ele era um clérigo, sabia
o dano que o conhecimento sobre deuses verdadeiros poderia nos causar,
uma vez espalhado entre as pessoas — respondeu a Senhora. — Agora,
de acordo com relatos, as pessoas têm um líder nesse humano chamado
Elistan, que se tornou um clérigo de Paladine. Adoradores de Mishakal
trazendo a cura verdadeira de volta à terra. Não, Verminaard via o que
estava por vir. Existe um grande perigo aqui. Devemos reconhecer e agir
para impedir... e não zombar disso.
O dragão bufou, debochando. — Este sacerdote... Elistan... não lidera
o povo. Ele lidera oitocentos humanos infelizes, ex-escravos de Verminaard
em Pax Tharkas. Agora, estão escondidos em Portão Sul com os anões da
montanha. — O dragão se acomodou na rocha, sentindo o sol da manhã
finalmente trazer um pouco de calor para sua pele escamosa. — Além dis-
so, nossos espiões informam que eles estão viajando para Tarsis enquanto

32
conversamos. Esta noite, esse Elistan será nosso e tudo acabará. Chega do
servo de Paladine!
— Elistan não tem utilidade para mim. — A Senhora dos Dragões
deu de ombros, sem interesse. — Não é ele quem eu procuro.
— Não? — Skie levantou a cabeça, surpreso. — Quem então?
— Existem três em quem tenho um interesse particular. Mas eu darei
descrições de todos eles — a Senhora dos Dragões se aproximou de Skie
— pois sua captura é o motivo de participarmos da destruição de Tarsis
amanhã. Aqui estão aqueles que procuramos...

Tanis caminhava através das planícies congeladas, seus passos batendo


ruidosamente através da crosta de neve varrida pelo vento. O sol se levantou
em suas costas, trazendo muita luz, mas pouco calor. Ele agarrou sua capa
e olhou em volta para se certificar de que ninguém estava ficando para trás.
Os companheiros se dispunham em fila única. E pisavam nos rastros uns
dos outros, as pessoas mais pesadas e fortes na frente abrindo caminho para
os mais fracos atrás.
Tanis os liderava. Sturm caminhava ao seu lado, firme e fiel como sem-
pre, embora ainda chateado por deixar o Martelo de Kharas, que assumira
uma qualidade quase mística para o cavaleiro. Ele parecia mais ansioso e
cansado do que o habitual, mas nunca deixava de acompanhar Tanis. Não
era um feito fácil, já que o cavaleiro insistia em viajar com sua armadura de
batalha antiga completa, cujo peso forçava os pés de Sturm a penetrarem
na neve encrostada.
Atrás de Sturm e Tanis vinha Caramon, caminhando pela neve como
um grande urso, seu arsenal ressoando ao redor dele, carregando sua
armadura e sua parte de suprimentos, bem como a de seu irmão gêmeo,
Raistlin, em suas costas. Só observar Caramon já deixava Tanis cansado,
pois o grande guerreiro não estava apenas andando pela neve profunda
com facilidade, mas também conseguindo ampliar a trilha para os outros
atrás dele.
De todos os companheiros, aquele de quem Tanis poderia se sentir
mais próximo, já que foram criados juntos como irmãos, era Gilthanas,
que vinha na sequência. Mas Gilthanas era um elfo nobre, o filho mais
novo do Orador dos Sóis, governante dos elfos de Qualinosti, enquanto
Tanis era um bastardo e apenas meio-elfo, produto de um estupro brutal
feito por um guerreiro humano. Pior, Tanis ousara se sentir atraído, mesmo

33
que de maneira infantil, imatura, pela irmã de Gilthanas, Laurana. E assim,
longe de serem amigos, Tanis sempre teve a impressão desconfortável de
que Gilthanas ficaria feliz em vê-lo morto.
Vento Ligeiro e Lua Dourada andavam juntos atrás do elfo. Vestidos
com capas de pele, o frio era pouco para os dois da Planície. Certamente o
frio não era nada comparado à chama em seus corações. Eles se casaram há
pouco mais de um mês e o amor e compaixão profundos que um sentia pelo
outro, um amor abnegado que levara o mundo à descoberta dos antigos
deuses, agora alcançavam profundezas maiores à medida que descobriam
novos modos de expressá-lo.
Depois, vinham Elistan e Laurana. Elistan e Laurana. Tanis achou
estranho que, pensando com inveja da felicidade de Vento Ligeiro e Lua
Dourada, seus olhos encontrassem esses dois. Elistan e Laurana. Sempre
juntos. Sempre envolvidos profundamente em conversas sérias. Elistan,
clérigo de Paladine, resplandecente em mantos brancos que brilhavam
até mesmo contra a neve. De barba branca, pouco cabelo, ele ainda era
uma figura imponente. O tipo de homem que pode muito bem atrair uma
jovem. Poucos homens ou mulheres podiam fitar os olhos azuis de Elistan
e não se sentirem agitados, impressionados com a presença de alguém que
caminhara pelo reino da morte e encontrara uma fé nova e mais forte.
Com ele, caminhava sua “assistente” fiel, Laurana. A jovem elfa nobre
fugira de seu lar em Qualinosti para seguir Tanis com uma paixão infantil.
Ela foi forçada a amadurecer rapidamente, os olhos abertos para a dor e o
sofrimento do mundo. Sabendo que muitos membros do grupo, incluindo
Tanis, a consideravam um incômodo, Laurana lutou para provar seu valor.
Com Elistan, ela encontrou sua chance. Filha do Orador dos Sóis de Qua-
linosti, ela nasceu e foi criada na política. Quando Elistan se encontrava
cheio de dificuldades, tentando alimentar, vestir e controlar oitocentos
homens, mulheres e crianças, foi Laurana quem entrou em cena e aliviou
seu fardo. Ela se tornara indispensável para ele, um fato que Tanis achava
difícil de lidar. O meio-elfo rangeu os dentes, deixando o olhar passar por
cima de Laurana para recair sobre Tika.
A garçonete que virou aventureira andava pela neve com Raistlin,
atendendo ao pedido do irmão dele para ficar perto do mago frágil, já que
Caramon era necessário na frente. Nem Tika, nem Raistlin pareciam felizes
com esse arranjo. O mago vestido de vermelho caminhava com ar sombrio,
a cabeça inclinada contra o vento. Frequentemente era forçado a parar,

34
tossindo até quase cair. Nessas horas, Tika começava a colocar o braço ao
redor dele, hesitante, seus olhos vendo a preocupação de Caramon. Mas
Raistlin sempre se afastava dela com um grunhido.
O velho anão vinha em seguida, rolando pela neve; a ponta de seu
elmo e a franja “da juba de um grifo” eram o que estava visível acima da
neve. Tanis tentara dizer que grifos não tinham juba, que a franja era de cri-
na de cavalo. Mas Flint, afirmando com firmeza que seu ódio pelos cavalos
se devia ao fato de que eles o faziam espirrar violentamente, não acreditava
em nada disso. Tanis sorria, balançando a cabeça. Ele insistira em ficar na
frente da fila. Foi só depois que Caramon o tirou de três montes de neve
que Flint concordou, resmungando, em andar na “retaguarda”.
Pulando, ao lado de Flint, estava Tasslehoff Burrfoot, sua voz estridente
podendo ser ouvida por Tanis na frente da fila. Tas estava divertindo o anão
com uma história maravilhosa sobre quando encontrou um mamute, ou o
que quer que fosse, mantido prisioneiro por dois bruxos dementes. Tanis
suspirou. Tas estava dando nos nervos. Ele já o repreendera severamente por
jogar uma bola de neve na cabeça de Sturm. Mas sabia que era inútil. Os
kender viviam para aventuras e novas experiências. Tas estava aproveitando
cada minuto dessa jornada funesta.
Sim, eles estavam todos lá. Todos ainda o estavam seguindo.
Tanis virou-se abruptamente, voltando-se para o sul. “Por que me
seguem?” Ele se perguntou, ressentido. “Mal sei aonde minha vida está
indo, mesmo assim, esperam que eu lidere os outros. Não tenho a missão
motivante de Sturm de livrar a terra dos dragões, como fez seu herói Huma.
Não tenho a missão sagrada de Elistan de levar o conhecimento sobre os
deuses verdadeiros para o povo. Nem mesmo tenho a busca ardente de
Raistlin pelo poder”.
Sturm o cutucou e apontou para a frente. Uma linha de pequenas
colinas aparecia no horizonte. Se o mapa do kender estivesse correto, a
cidade de Tarsis ficava logo atrás delas. Tarsis, os navios de asas brancas e as
torres de um branco cintilante.

35
3
Tarsis, a Bela.

anis abriu o mapa do kender. Eles chegaram ao pé das colinas


estéreis e sem árvores que, de acordo com o mapa, deveria ter uma
vista para a cidade de Tarsis.
— Seria melhor não escalar à luz do dia — disse Sturm,
tirando o lenço da boca. — Ficaríamos visíveis para tudo dentro de um raio
de cinquenta quilômetros.
— Não — Tanis concordou. — Vamos acampar aqui na base. Mas eu
vou subir para dar uma olhada na cidade.
— Não gosto disso, nem um pouco! — Sturm resmungou soturna-
mente. — Algo está errado. Você quer que eu vá com você?
Vendo o cansaço no rosto do cavaleiro, Tanis balançou a cabeça. — Fi-
que e organize os outros. — Vestindo um manto de viagem para o inverno,
se preparou para escalar as colinas cobertas nevadas. Pronto para começar,
sentiu uma mão fria em seu braço. Se virou e fitou os olhos do mago.
— Irei com você — Raistlin sussurrou.
Tanis o encarou espantado, depois olhou para as colinas. A subida
não seria fácil e ele sabia que o mago não gostava de esforço físico extremo.
Raistlin viu o seu olhar e entendeu.
— Meu irmão me ajudará — disse ele, acenando para Caramon, que
parecia surpreso, mas se levantou imediatamente e se aproximou para ficar
ao lado de seu irmão. — Gostaria de ver a cidade de Tarsis, a Bela.
Tanis o olhou desconfortável, mas o rosto de Raistlin era tão impassível
e frio quanto o metal que parecia.
— Muito bem — disse o meio-elfo, estudando Raistlin. — Mas você
vai aparecer na face daquela montanha como uma mancha de sangue.
Coloque uma túnica branca. — O sorriso sarcástico do meio-elfo era uma
imitação quase perfeita do de Raistlin. — Pegue uma com Elistan.

Em pé no topo da colina, com vista para a lendária cidade portuária de


Tarsis, a Bela, Tanis começou a praguejar baixinho. Nuvens de vapor flutua-
vam de seus lábios com as palavras quentes. Tirando o capuz de seu manto
pesado da cabeça, ele olhou para a cidade com uma decepção amarga.
Caramon cutucou seu gêmeo. — Raist — ele disse. — Qual o pro-
blema? Eu não entendo.
Raistlin tossiu. — Seu cérebro está em seu braço de espada, meu
irmão — o mago sussurrou causticamente. — Olhe para Tarsis, a lendária
cidade portuária. O que você vê?
— Bem... — Caramon forçou os olhos. — É uma das maiores cidades
que já vi. E há navios... como nos disseram...
— “Os navios de asas brancas de Tarsis, a Bela” — Raistlin citou
amargamente. — Repare nos navios, meu irmão. Você percebe algo
peculiar sobre eles?
— Não estão em muito boa forma. As velas estão esfarrapadas e... —
Caramon piscou. Então, ofegou. — Não há água!
— Muito observador.
— Mas o mapa do kender...
— Datado de antes do Cataclismo — Tanis interrompeu. — Droga,
eu deveria saber! Deveria ter considerado essa possibilidade! Tarsis, a Bela...
Um porto lendário, agora sem litoral!
— E tem sido assim por trezentos anos, sem dúvida — Raistlin sussurrou.

37
— Quando a montanha de fogo caiu do céu, ela criou mares, como
vimos em Xak Tsaroth, mas também os destruiu. O que faremos com os
refugiados agora, meio-elfo?
— Eu não sei — Tanis retrucou irritado. Ele olhou para a cidade,
depois se virou. — Não é bom ficar parado aqui. O mar não vai voltar só
para nos ajudar. — Ele se virou e desceu lentamente pelo penhasco.
— O que vamos fazer? — Caramon perguntou ao seu irmão. — Não
podemos voltar para Portão Sul. Eu sei que algo ou alguém estava seguindo
nossos passos. — Ele olhou em volta, preocupado. — Sinto os olhos obser-
vando.... até mesmo agora.
Raistlin colocou a mão no braço do irmão. Por um raro instante,
os dois estavam incrivelmente parecidos. Luz e escuridão não eram mais
diferentes que os gêmeos.
— Você é sábio em confiar em suas sensações, meu irmão — Raistlin
disse suavemente. — Um grande perigo e um grande mal nos rodeiam.
Senti isso crescendo em mim desde que as pessoas chegaram em Portão Sul.
Tentei avisá-los... — Ele parou com um ataque de tosse.
— Como sabe disso? — perguntou Caramon.
Raistlin balançou a cabeça, incapaz de responder por longos momen-
tos. Então, quando o espasmo passou, ele respirou estremecendo e olhou
irritado para o irmão. — Você ainda não aprendeu? — disse amargamente.
— Eu sei! Enfie isso na cabeça. Paguei pelo meu conhecimento nas Torres
da Alta Magia. Paguei com o meu corpo e quase todo o meu bom senso.
Paguei por isso com... — Raistlin parou, olhando para seu gêmeo.
Caramon estava pálido e quieto como de costume, sempre que o teste
era mencionado. Tentou dizer alguma coisa, engasgou, depois limpou a
garganta. — É só que eu não entendo...
Raistlin suspirou e balançou a cabeça, retirando sua mão do braço do
seu irmão. Então, apoiado em seu cajado, começou a descer a colina. —
Nem entenderá — ele murmurou. — Nunca.

Há trezentos anos, Tarsis, a Bela, era a Cidade Soberana das terras de


Abanassínia. Daqui partiam os navios de asas brancas para todas as terras
conhecidas de Krynn. Para cá eles voltavam, carregando todos os tipos de
objetos, preciosos e curiosos, hediondos e delicados. O mercado tarsiano
era uma maravilha. Marinheiros andavam arrogantes pelas ruas, seus
brincos dourados brilhando tão intensamente quanto suas facas. Os navios

38
traziam povos exóticos de terras distantes para vender seus produtos. Al-
guns vestidos com sedas alegres e coloridas, adornadas com joias. Vendiam
especiarias, chás, laranjas, pérolas e pássaros de cores berrantes em gaiolas.
Outros, vestidos com peles cruas, vendiam casacos luxuriantes feitos de
animais estranhos tão grotescos quanto aqueles que os caçavam.
Claro, também havia compradores no mercado tarsiano, quase tão
estranhos, exóticos e perigosos quanto os vendedores. Magos vestidos com
mantos brancos, vermelhos ou pretos caminhavam pelos bazares, procuran-
do por componentes arcanos raros para fazer sua mágica. Suspeitos mesmo
naquela época, eles caminharam pela multidão isolados e sozinhos. Poucos
falavam até com os que usavam os mantos brancos e ninguém os trapaceava.
Clérigos também buscavam ingredientes para suas poções de cura.
Pois havia clérigos em Krynn antes do Cataclismo. Alguns adoravam os
deuses do bem, alguns os deuses da neutralidade, outros os deuses do mal.
Todos tinham grande poder. Suas orações eram respondidas, pelo bem ou
pelo mal.
E caminhando sempre, entre todos os povos estranhos e exóticos reuni-
dos no bazar de Tarsis, a Bela, estavam os Cavaleiros de Solamnia: mantendo
a ordem, protegendo a terra, vivendo suas vidas disciplinadas em observância
rígida do Código e da Providência. Os Cavaleiros eram seguidores de Paladine
e eram conhecidos por sua obediência devota aos deuses.
A cidade murada de Tarsis tinha seu próprio exército e, conforme as
histórias, nunca caíra para uma força invasora. Era governada, sob o olhar
atento dos Cavaleiros, por uma Família Soberana e teve a boa sorte de ficar
aos cuidados de uma família que possuía caráter, sensibilidade e justiça. Tarsis
tornou-se um centro de aprendizado. Sábios de todas as terras ao redor vieram
aqui para compartilhar sua sabedoria. Escolas e uma grande biblioteca foram
estabelecidas, templos foram construídos para os deuses. Homens e mulheres
ávidos por conhecimento vieram a Tarsis para estudar.
As primeiras guerras com os dragões não afetaram Tarsis. A enorme cida-
de murada, seu exército formidável, suas frotas de navios de asas brancas e seus
Cavaleiros de Solamnia vigilantes intimidavam até mesmo a Rainha das Trevas.
Antes que ela pudesse consolidar seu poder e atacar a Cidade Soberana, Huma
expulsou seus dragões dos céus. Assim, Tarsis prosperou e se tornou, durante a
Era do Poder, uma das cidades mais ricas e orgulhosas de Krynn.
E, como em tantas outras cidades em Krynn, com seu orgulho,
aumentou sua vaidade. Tarsis começou a buscar mais e mais dos deuses:

39
riqueza, poder, glória. As pessoas adoravam o Rei-Sacerdote de Istar que,
vendo o sofrimento na terra, exigia dos deuses, em sua arrogância, o que
concederam a Huma em humildade. Até mesmo os Cavaleiros de Solam-
nia, obrigados pelas leis rígidas da Providência, estavam envolvidos em uma
religião que se tornara toda ritualística e sem muita profundidade; caíram
sob a influência do poderoso Rei-Sacerdote.
Então, veio o Cataclismo... Uma noite de terror, quando choveu fogo.
O chão se ergueu e rachou enquanto os deuses, em sua fúria justa, atiraram
uma montanha sobre Krynn, punindo o Rei-Sacerdote de Istar e o povo
pelo seu orgulho.
As pessoas se voltaram para os Cavaleiros de Solamnia. “Vocês que são
justos, nos ajudem”, gritaram. “Acalmem os deuses!”
Mas os Cavaleiros não podiam fazer nada. O fogo caiu do firma-
mento, a terra se partiu. As águas do mar fugiram, os navios afundaram e
tombaram, a muralha da cidade desmoronou.
Quando a noite de horror terminou, Tarsis estava sem litoral. Os
navios de asas brancas jaziam na areia como pássaros feridos. Atordoados
e sangrando, os sobreviventes tentaram reconstruir sua cidade, esperando,
a qualquer momento, ver os Cavaleiros de Solamnia marchando de suas
grandes fortalezas no norte, marchando de Palanthas, Solanthus, Forte
Vingaard, Thelgaard, marchando para o sul até Tarsis para ajudá-los e
protegê-los mais uma vez.
Mas os cavaleiros não vieram. Eles tinham seus próprios problemas e
não puderam deixar Solamnia. Mesmo se pudessem marchar, um novo mar
dividira as terras de Abanassínia. Os anões em seu reino montanhoso de
Thorbardin fecharam seus portões, recusando a entrada a qualquer um e,
assim, as passagens nas montanhas foram bloqueadas. Os elfos se retiraram
para Qualinosti, cuidando de suas feridas, culpando os humanos pela catás-
trofe. Logo, Tarsis perdeu todo o contato com o mundo ao norte.
E assim, depois do Cataclismo, quando se tornou aparente que a ci-
dade tinha sido abandonada pelos Cavaleiros, veio o Dia do Banimento. O
senhor da cidade ficou em uma posição desconfortável. Ele não acreditava
verdadeiramente na corrupção dos Cavaleiros, mas sabia que as pessoas
precisavam de algo ou alguém para culpar. Caso se aliasse aos Cavaleiros,
perderia o controle da cidade. Então, foi forçado a fechar os olhos para
multidões enfurecidas que atacavam os poucos cavaleiros que restavam em
Tarsis. Eles foram expulsos da cidade... ou assassinados.

40
Depois de um tempo, a ordem foi restaurada em Tarsis. O senhor e
sua família estabeleceram um novo exército. Mas muita coisa mudou. As
pessoas acreditavam que os antigos deuses, que adoraram por tanto tempo,
se afastaram delas. Encontraram novos deuses para adorar, embora esses
novos deuses raramente respondessem às orações. Todos os poderes clericais
que estiveram presentes na terra antes do Cataclismo foram perdidos. Cléri-
gos com promessas e esperanças falsas proliferaram. Curandeiros charlatães
andavam pela terra, vendendo suas panaceias falsas.
Depois de um tempo, muitas das pessoas se afastaram de Tarsis. Os ma-
rinheiros não mais caminhavam pelo mercado. Elfos, anões e outras raças não
vinham mais. As pessoas que ficaram em Tarsis gostaram disso. Começaram
a temer e desconfiar do mundo exterior. Estranhos não eram encorajados.
Mas Tarsis fora um centro de comércio por tanto tempo que aquelas
pessoas do interior que ainda podiam chegar a Tarsis continuaram a fazê-lo.
A junção externa da cidade foi reconstruída. A parte interna: os templos, as
escolas, a grande biblioteca, foi deixada em ruínas. O bazar foi reaberto, só
que agora era um mercado para os fazendeiros e uma tribuna para clérigos
falsos pregando novas religiões. A paz encobriu a cidade como um cobertor.
Os dias antigos de glória eram como um sonho e, talvez, nem sequer seriam
acreditados, se não fosse pelas evidências no centro da cidade.
Agora, claro, Tarsis ouviu rumores de guerra, mas eles foram geral-
mente desconsiderados, ainda que o senhor enviasse seu exército para
proteger as planícies ao sul. Se alguém perguntasse por que, ele dizia que
era um exercício de campo, nada mais. Afinal, esses rumores surgiram do
norte e todos sabiam que os Cavaleiros de Solamnia estavam tentando de-
sesperadamente restabelecer seu poder. Era incrível até onde os Cavaleiros
traidores iriam... Até mesmo espalhar histórias sobre o retorno dos dragões!
Esta era Tarsis, a Bela, a cidade que os companheiros entraram naquela
manhã, pouco tempo depois do nascer do sol.

41
4
Presos! Os heróis são separados.
Uma despedida sinistra.

s poucos guardas sonolentos nas muralhas da cidade naquela


manhã acordaram com a visão do grupo cansado, portando
espadas, em busca da entrada. Eles não negaram. Nem mesmo
os questionaram... muito. Um meio-elfo de barba vermelha e fala mansa,
como não se via em Tarsis há décadas, disse que eles vieram de longe e
buscavam abrigo. Seus companheiros ficaram em silêncio atrás dele, sem
fazer gestos ameaçadores. Bocejando, os guardas indicaram a Hospedaria
do Dragão Vermelho.
Isso poderia ter terminado o assunto. Afinal, Tarsis estava começando
a ver mais e mais pessoas estranhas à medida que os rumores da guerra
se espalhavam. Mas o manto de um dos humanos se destacou quando
ele atravessou o portão e um guarda percebeu um lampejo de armadura
brilhante no sol da manhã. O guarda viu o símbolo odiado e ultrajante dos
Cavaleiros de Solamnia no peitoral antigo. Franzindo a testa, o guarda en-
trou nas sombras, se esgueirando atrás do grupo enquanto este caminhava
pelas ruas da cidade desperta.
O guarda os observou entrarem no Dragão Vermelho. Ele esperou do
lado de fora, no frio, até ter certeza de que deveriam estar em seus quartos.
Então, entrando, ele trocou algumas palavras com o dono da hospedaria. O
guarda espiou no salão comum e, vendo o grupo sentado e aparentemente
acomodado por algum tempo, saiu correndo para fazer seu relatório.
— Esse é resultado de confiar no mapa de um kender! — disse o anão
irritado, empurrando seu prato vazio e limpando a boca com a mão. — Nos
trouxe para uma cidade portuária sem mar!
— Não é minha culpa — Tas protestou. — Eu disse a Tanis quando
dei o mapa que ele era de antes do Cataclismo. “Tas”, Tanis disse antes de
sairmos, “você tem um mapa que mostre como chegar à Tarsis?” Eu disse
que sim e entreguei este. Ele mostra Thorbardin, o Reino Anão sob a Mon-
tanha, Portão Sul, aqui mostra Tarsis, e todo o resto estava exatamente onde
o mapa indicava que deveria estar. Não posso fazer nada se algo aconteceu
com o oceano! Eu...
— Já chega, Tas. — Tanis suspirou. — Ninguém está culpando você.
Não é culpa de ninguém. Apenas deixamos nossa esperança ficar muito alta.
Com suas emoções apaziguadas, o kender recuperou seu mapa, o
enrolou e guardou no seu estojo, com todos os seus outros mapas preciosos
de Krynn. Então, ele colocou o queixo pequeno nas mãos e ficou olhando
ao redor da mesa, para seus companheiros tristes. Eles começaram a discutir
o que fazer a seguir, conversando sem muito entusiasmo.
Tas ficou entediado. Ele queria explorar esta cidade. Havia todos os
tipos de visões e sons incomuns... Flint fora forçado a praticamente ar-
rastá-lo enquanto entravam em Tarsis. Havia um mercado fabuloso com
coisas maravilhosas por aí, esperando para ser admirado. Ele também viu
outros kenders e queria conversar com eles. Estava preocupado com sua
terra natal. Flint o chutou por baixo da mesa. Suspirando, Tas voltou sua
atenção para Tanis.
— Vamos passar a noite aqui, descansar e aprender o que pudermos,
depois vamos avisar Portão Sul — dizia Tanis. — Talvez haja outra cidade
portuária mais ao sul. Alguns de nós podem continuar e investigar. O que
você acha, Elistan?
O clérigo afastou um prato de comida não consumida. — Acredito
que é a nossa única escolha — disse com tristeza. — Mas voltarei para

43
Portão Sul. Não posso ficar longe das pessoas por muito tempo. Você de-
veria vir comigo também, minha querida. — Ele colocou a mão sobre a de
Laurana. — Não posso dispensar sua ajuda.
Laurana sorriu para Elistan. Então, seu olhar se voltou para Tanis, o
sorriso desapareceu quando viu a expressão fechada do meio-elfo.
— Vento Ligeiro e eu já falamos sobre isso. Nós voltaremos com Elistan
— disse Lua Dourada. Seu cabelo prata-dourado brilhava à luz do sol que
entrava pela janela. — O povo precisa das minhas habilidades de cura.
— Além disso, o casal sente falta da privacidade da sua tenda — Ca-
ramon disse em voz baixa, mas audível. Lua Dourada ficou cor de rosa
enquanto seu marido sorria.
Sturm olhou para Caramon com aversão e se virou para Tanis. — Eu
irei com você, meu amigo — ele ofereceu.
— Nós também, é claro — disse Caramon prontamente.
Sturm franziu a testa, olhando para Raistlin, que estava sentado com
seu manto vermelho perto do fogo, bebendo a mistura estranha de ervas
que aliviava sua tosse.
— Não acho que seu irmão esteja bem para viajar, Caramon —
Sturm começou.
— De repente, você ficou muito preocupado com minha saúde,
cavaleiro — Raistlin sussurrou sarcasticamente. — Contudo, não é minha
saúde que o preocupa, certo, Sturm Brightblade? É meu poder crescente.
Você tem medo de mim...
— Já chega! — disse Tanis, enquanto o rosto de Sturm se escurecia.
— Ou o mago volta, ou eu volto — disse Sturm friamente.
— Sturm... — Tanis começou.
Tasslehoff aproveitou esta oportunidade para deixar a mesa muito
silenciosamente. Todos estavam focados na discussão entre o cavaleiro, o
meio-elfo e o mago. Tasslehoff passou pela porta da frente do Dragão Ver-
melho, um nome que achou particularmente engraçado. Mas Tanis não riu.
Tas pensou nisso enquanto caminhava, olhando as novas paisagens
com prazer. Tanis não ria de mais nada. Parecia que o meio-elfo estava cer-
tamente carregando o peso do mundo em suas costas. Tasslehoff suspeitava
saber o que havia de errado com Tanis. O kender tirou um anel de uma de
suas bolsas e o estudou. O anel era dourado, de fabricação élfica, esculpido
na forma de folhas de hera. Ele o pegou em Qualinosti. Desta vez, o anel

44
não era algo que o kender havia “adquirido”. Ele fora jogado aos seus pés
por Laurana, de coração partido, após Tanis tê-lo devolvido.
O kender pensou nisso tudo e decidiu que se separar e partir em uma
nova aventura era exatamente o que todo mundo precisava. Ele, claro, iria
com Tanis e Flint... O kender acreditava firmemente que eles não poderiam
se dar bem sua presença. Mas primeiro, ele daria uma olhada nessa cidade
interessante.
Tasslehoff chegou ao fim da rua. Olhando para trás, ele podia ver a
Hospedaria do Dragão Vermelho. Ótimo. Ninguém estava procurando por
ele ainda. Estava prestes a perguntar a um vendedor de rua que passava
como chegar ao mercado quando viu algo que prometia deixar essa cidade
interessante muito mais interessante...

Tanis resolveu a discussão entre Sturm e Raistlin, pelo menos por


enquanto. O mago decidiu ficar em Tarsis para caçar os restos da antiga bi-
blioteca. Caramon e Tika se ofereceram para ficar com ele, enquanto Tanis,
Sturm e Flint (e Tas) seguiriam para o sul, se encontrando com os irmãos
no caminho de volta. O resto do grupo levaria a novidade decepcionante
de volta a Portão Sul.
Isso sendo resolvido, Tanis foi até o dono da hospedaria para pagar
sua hospedagem pela noite. Ele estava contando moedas de prata quando
sentiu uma mão tocar seu braço.
— Quero que você peça para mudar meu quarto para um perto do de
Elistan — disse Laurana. Tanis olhou para ela intensamente.
— E por que? — ele perguntou, tentando manter a grosseria longe
da sua voz.
Laurana suspirou. — Não vamos passar por isso novamente, vamos?
— Não tenho ideia do que quer dizer — Tanis disse friamente, afas-
tando-se do estalajadeiro sorridente.
— Pela primeira vez na minha vida, estou fazendo algo significativo e
útil — disse Laurana, segurando o braço dele. — E quer que eu desista por
causa de uma ideia ciumenta que você tem sobre mim e Elistan...
— Não estou com ciúmes — retrucou Tanis, corando. — Eu disse
em Qualinosti, o que havia entre nós quando éramos mais jovens já aca-
bou. Eu... — Ele fez uma pausa, imaginando se isso era verdade. Mesmo
enquanto falava, sua alma tremia com a beleza dela. Sim, aquela paixão
juvenil se foi, mas estava sendo substituída por outra coisa, algo mais forte

45
e mais duradouro? E ele estava a perdendo? Ele já a perdera, por sua pró-
pria indecisão e teimosia? Estava agindo tipicamente como um humano,
pensava o meio-elfo. Recusando o que era fácil de alcançar, só para chorar
quando não podia mais ter. Ele balançou a cabeça em confusão.
— Se você não está com ciúmes, então por que não me dá espaço e
me deixa continuar meu trabalho para Elistan em paz? Laurana perguntou
friamente. — Você...
— Silêncio! — Tanis levantou sua mão. Irritada, Laurana começou a
falar, mas Tanis a encarou com tanta ferocidade que ela fez silêncio.
Tanis escutou. Sim, ele estava certo. Podia ouvir claramente agora o
chiado estridente, agudo e berrante da funda de couro na ponta do hoopak
de Tas. Era um som peculiar, produzido pelo kender ao balançar a funda
em um círculo sobre a cabeça, que eriçava os pelos da sua nuca. Também
era um sinal do kender para o perigo.
— Problemas — Tanis disse baixinho. — Reúna os outros. — Dando
uma olhada em seu rosto sério, Laurana obedeceu sem questionar. Tanis
virou-se abruptamente para encarar o estalajadeiro, que estava rodeando a
mesa. — Para onde está indo? — perguntou com severidade.
— Só saindo para verificar seus quartos, senhor — disse o estalajadeiro
suavemente, desaparecendo de forma rápida na cozinha. Nesse momento,
Tasslehoff entrou correndo pela porta da hospedaria.
— Guardas, Tanis! Guardas! Vindo para cá!
— Eles certamente não podem estar aqui por nossa causa — disse
Tanis. Ele parou, olhando para o kender de dedos leves, tendo um pensa-
mento repentino. — Tas...
— Não fui eu, juro! — Tas protestou. — Sequer cheguei ao mercado!
Tinha acabado de chegar ao fim da rua quando vi uma tropa inteira de
guardas vindo nessa direção.
— O que estão falando sobre guardas? — Sturm perguntou quando
entrava no salão comum. — É uma das histórias do kender?
— Não. Ouça — disse Tanis. Todos silenciaram. Eles podiam ouvir o
barulho de botas vindo em sua direção e se entreolharam, com apreensão
e preocupação. — O dono da estalagem sumiu. Achei que entramos na
cidade com muita facilidade. Eu deveria ter esperado problemas. — Tanis
coçou a barba, ciente de que todos estavam esperando suas ordens.
— Laurana, você e Elistan vão para o andar de cima. Sturm, você
e Gilthanas ficam comigo. O resto de vocês vai para seus quartos. Vento

46
Ligeiro, você está no comando. Você, Caramon e Raistlin os protegem.
Raistlin, use sua magia, se necessário. Flint...
— Eu fico com você — o anão afirmou com firmeza.
Tanis sorriu e colocou a mão no ombro de Flint. — Claro, velho
amigo. Nem pensei que precisaria dizer pra você.
Sorrindo, Flint puxou seu machado de batalha de seu suporte nas
costas. — Leve isso — ele disse para Caramon. — É melhor ficar com você
do que qualquer guarda desprezível e cheio de piolhos dessa cidade.
— É uma boa ideia — disse Tanis. Soltando o cinto da espada, ele
entregou para Caramon a Exterminadora de Dragões, a espada mágica que
foi dada pelo esqueleto de Kith-Kanan, o Rei Elfo.
Gilthanas entregou sua espada e seu arco élfico em silêncio.
— A sua também, cavaleiro — Caramon disse, estendendo a mão.
Sturm franziu a testa. Sua espada de duas mãos e sua bainha antigas eram o
único legado que ele recebera do seu pai, um grande Cavaleiro de Solamnia,
que desaparecera depois de mandar sua mulher e seu filho para o exílio. Len-
tamente, Sturm desafivelou o cinto da espada e a entregou para Caramon.
O guerreiro jovial, vendo a preocupação óbvia do cavaleiro, ficou sério.
— Vou guardá-la com cuidado, você sabe disso, Sturm.
— Eu sei — disse Sturm, sorrindo tristemente. Ele olhou para Rais-
tlin, que estava de pé na escada. — Além disso, sempre existirá o grande
verme Catirpelius para protegê-la, não é, mago?
Raistlin ficou surpreso com esta lembrança inesperada de um mo-
mento na cidade incendiada de Consolação, quando fez alguns robgoblins
acreditarem que a espada de Sturm estava amaldiçoada. Foi o mais próximo
de uma expressão de gratidão que o cavaleiro já dera ao mago. Raistlin
sorriu brevemente.
— Sim — ele sussurrou. — Sempre existirá o Verme. Não tema, cava-
leiro. Sua arma está segura, assim como as vidas daqueles que você deixa sob
nossos cuidados... se houver alguma segurança... Adeus, meus amigos — ele
sibilou, seus estranhos olhos de ampulheta reluzindo. — E será uma longa
despedida. Alguns de nós não estão destinados a se encontrarem novamente
neste mundo! — Com isso, ele fez uma reverência e, juntando os mantos
vermelhos ao seu redor, começou a subir as escadas.
Com certeza Raistlin sairia com um floreio, Tanis pensou irritado,
ouvindo os passos de botas perto da porta. — Vão em frente! — Ele orde-
nou. — Se ele estiver certo, não há nada que possamos fazer agora.

47
Depois de um olhar hesitante para Tanis, os outros fizeram o que
ele ordenou, subindo as escadas rapidamente. Apenas Laurana lançou um
olhar de medo para Tanis enquanto Elistan segurava seu braço. Com a
espada desembainhada, Caramon esperou atrás até que o último passasse.
— Não se preocupem — o guerreiro disse, com desconforto. — Va-
mos ficar bem. Se vocês não voltarem até a noite...
— Não venham nos procurar! — Tanis disse, adivinhando a intenção
de Caramon. O meio-elfo estava mais perturbado do que gostaria de admi-
tir pela afirmação sinistra de Raistlin. Ele conhecia o mago há muitos anos
e viu o seu o poder aumentar, mesmo quando as sombras pareciam ficar
mais densas ao redor dele. — Se não voltarmos, leve Elistan, Lua Dourada
e os outros de volta a Portão Sul.
Caramon concordou com relutância, então subiu pesadamente as
escadas, suas armas batendo ao seu redor.
— Provavelmente é apenas uma verificação de rotina — disse Sturm
apressadamente em voz baixa, pois, agora, os guardas podiam ser vistos
pela janela. — Eles farão algumas perguntas, depois nos liberam. Mas, sem
dúvida, eles têm uma descrição de todos nós!
— Tenho a sensação de que não é rotina. Não do jeito que todos sumi-
ram. E eles terão que se contentar com alguns de nós — Tanis disse em voz
baixa enquanto os guardas entravam na porta, liderados pelo condestável e
acompanhados pelo guarda da muralha.
— São eles! — Gritou o guarda, apontando. — Lá está o cavaleiro,
como eu disse. E o elfo barbado, o anão, o kender e um elfo.
— Certo — disse o condestável, com pressa. — Agora, onde estão
os outros? — Com seu gesto, seus guardas levantaram suas alabardas, as
apontando para os companheiros.
— Não entendo qual é o problema — Tanis disse calmamente. —
Somos estrangeiros em Tarsis, simplesmente passando rumo ao sul. É assim
que dão boas-vindas aos estrangeiros em sua cidade?
— Não damos boas-vindas a estrangeiros em nossa cidade — respon-
deu o condestável. Seu olhar passou para Sturm e ele zombou. — Espe-
cialmente um cavaleiro de Solamnia. Se vocês são inocentes como dizem,
não se importarão em responder a algumas perguntas do Senhor e de seu
conselho. Onde está o resto do seu grupo?
— Meus amigos estão exaustos e foram para seus quartos descansar.
Nossa jornada foi longa e cansativa. Mas não queremos causar problemas.

48
Nós quatro vamos com vocês e responderemos suas perguntas. (“Cinco”,
disse Tasslehoff, indignado, mas todos o ignoraram.) Não é preciso pertur-
bar nossos companheiros.
— Vá buscar os outros — o condestável ordenou a seus homens. Dois
guardas se dirigiram para as escadas, que de repente explodiram em chamas!
Fumaça tomou conta da sala, afastando os guardas. Todos correram para a
porta. Tanis pegou Tasslehoff, que observava com os olhos arregalados, e o
arrastou para fora.
O condestável estava apitando freneticamente, enquanto vários de
seus homens se preparavam para sair correndo pelas ruas, dando o alarme.
Mas as chamas se apagaram tão rapidamente quanto apareceram.
— Priii.... — O condestável parou seu apito. Com o rosto pálido, ele
entrou cautelosamente na hospedaria. Espiando por cima do ombro, Tanis
balançou a cabeça, maravilhado. Não havia um fio de fumaça e nada do
verniz fora afetado. Do alto da escada, ele podia ouvir fracamente o som da
voz de Raistlin. Quando o condestável olhou apreensivo para as escadas, o
canto parou. Tanis engoliu em seco e, depois, respirou fundo.
Ele sabia que devia estar tão pálido quanto o condestável e olhou para
Sturm e Flint. O poder de Raistlin estava crescendo...
— O mago deve estar lá em cima — murmurou o condestável.
— Muito bom, Passarinho, e quanto tempo demorou para descobrir
isso — Tas começou em um tom de voz que Tanis sabia que significava
problema. Ele pisou no pé do kender e Tas fez silêncio com um olhar
reprovador. Felizmente, o condestável não pareceu ter ouvido. Ele encarou
Sturm. — Você virá conosco pacificamente?
— Sim — respondeu Sturm. — Você tem minha palavra de honra —
acrescentou o cavaleiro — e não importa o que possa pensar dos Cavaleiros,
você sabe que minha honra é a minha vida.
Os olhos do condestável foram para a escadaria escura. — Muito
bem — disse ele, por fim. — Dois de vocês guardas ficam aqui na escada.
O resto cobre as outras saídas. Verifique quem entra e sai. Vocês todos têm
as descrições dos estrangeiros? — Os guardas assentiram, trocando olhares
inquietos. Os dois escolhidos para ficarem dentro da hospedaria olhavam
assustados para a escadaria e ficavam o mais longe possível dela. Tanis sorriu
de forma sinistra para si mesmo.
Os cinco companheiros, com o kender sorrindo de emoção, seguiram
o condestável para fora da construção. Ao entrarem na rua, Tanis percebeu

49
o movimento em uma janela do andar de cima. Olhando para cima, viu
Laurana observando, com o rosto marcado de medo. Ela levantou a mão,
ele viu os lábios dela formarem as palavras “Sinto muito”, em élfico. As
palavras de Raistlin vieram à sua mente e ele sentiu arrepios. Seu coração
doeu. O pensamento de que nunca mais a veria fez o mundo parecer re-
pentinamente lúgubre, vazio e desolado. Percebeu o que Laurana passara
a significar para ele nestes últimos meses sombrios, mesmo quando sua
esperança morreu ao ver os exércitos malignos dos Senhores dos Dragões
invadirem a terra. Sua fé inabalável, sua coragem, sua esperança eterna,
infalível! Como era diferente de Kitiara!
O guarda cutucou Tanis nas costas. — Olhe para frente! Pare de
sinalizar para os seus amigos! — rosnou ele. Os pensamentos do meio-elfo
voltaram para Kitiara. Não, a guerreira nunca agiria de forma tão abnegada.
Nunca poderia ajudar as pessoas como Laurana as ajudara. Kit ficaria impa-
ciente e irritada e deixaria que eles vivessem ou morressem como quisessem.
Detestava e desprezava quem era mais fraco do que ela.
Tanis pensou em Kitiara e pensou em Laurana, mas estava interessa-
do em perceber que a antiga emoção dolorosa não significava mais nada
quando dizia o nome de Kitiara para si mesmo. Não, agora era Laurana, a
garotinha boba que não era mais do que uma criança mimada e irritante
meses atrás, que fazia seu sangue ferver e suas mãos procurarem desculpas
para tocá-la. E agora, talvez, fosse tarde demais.
Quando chegou ao fim da rua, ele olhou para trás novamente, espe-
rando dar algum tipo de sinal para ela. Mostrar que ele entendeu. Mostrar
que ele foi um idiota. Mostrar que ele...
Mas a cortina estava fechada.

50
5
O tumulto. Tas desaparece.
Alhana Brisestelar.

avaleiro imundo! — gritaram.


Uma pedra atingiu Sturm no ombro. O cavaleiro se encolheu,
embora a pedra pudesse causar pouca dor através de sua armadura.
Tanis sabia, olhando para o rosto pálido e o bigode trêmulo, que a dor era
mais profunda do que uma arma poderia infligir.
A multidão cresceu enquanto os companheiros marchavam pela rua e
a notícia de sua chegada se espalhava. Sturm andava com dignidade, com
a cabeça orgulhosa, ignorando as provocações e vaias. Embora os guardas
empurrassem o povo para trás repetidas vezes, o faziam sem entusiasmo,
e a multidão sabia disso. Mais pedras foram jogadas, assim como outros
objetos ainda menos agradáveis. Logo, todos os companheiros estavam
cortados, sangrando e cobertos com lixo e sujeira.
Tanis sabia que Sturm nunca se entregaria à retaliação, não a essa turba,
mas o meio-elfo precisava segurar Flint com firmeza. Mesmo assim, estava
com medo constante de que o anão zangado passasse pelos guardas e come-
çasse a quebrar cabeças. Mas, ao observar Flint, Tanis esquecera Tasslehoff.
Além de serem casuais em relação à propriedade alheia, os kenders têm
outra característica desagradável conhecida como a “provocação”. Todos
possuem esse talento, em maior ou menor grau. Foi assim que sua raça
diminuta conseguiu prosperar e sobreviver em um mundo de cavaleiros,
guerreiros, trolls e robgoblins. A provocação é a capacidade de insultar um
inimigo e levá-lo a uma fúria tão febril que ele perde a cabeça e começa a
lutar de forma descontrolada e errática. Tas era um mestre na provocação,
embora raramente achasse necessidade de usá-la quando viajava com seus
amigos guerreiros. Mas decidiu aproveitar ao máximo essa oportunidade.
Ele começou a responder os insultos.
Tanis percebeu o que estava acontecendo tarde demais. Tentou calá-lo,
em vão, Tas estava na frente da fila, e o meio-elfo no final, além disso, não
havia como amordaçar o kender.
Tais insultos como “cavaleiro imundo” e “escória élfica” careciam de
imaginação, Tas imaginava. Ele decidiu mostrar a essas pessoas exatamente
a variedade de alcance e escopo que estava disponível no idioma comum. Os
insultos de Tasslehoff eram obras-primas de criatividade e engenhosidade.
Infelizmente, também costumavam ser extremamente pessoais e, ocasio-
nalmente, bastante grosseiros, feitos com um ar de inocência encantadora.
— Isso é o seu nariz ou uma doença? Essas pulgas rastejando em seu
corpo podem fazer truques? Sua mãe era uma anã tola? — eram apenas o
começo. As coisas pioraram rapidamente daí em diante.
Os guardas começaram a olhar para a multidão zangada, enquanto o
condestável dava a ordem para apressar a marcha dos prisioneiros. O que
ele considerara como uma procissão de vitória, exibindo seus troféus de
conquista, parecia estar se tornando um tumulto em grande escala.
— Calem esse kender! — ele gritou com raiva.
Tanis tentou desesperadamente alcançar Tasslehoff, mas os guardas,
em dificuldade com a multidão que avançava, tornaram isso impossível.
Gilthanas foi derrubado. Sturm se inclinou sobre o elfo, tentando pro-
tegê-lo. Flint estava chutando e se debatendo em fúria. Tanis acabara de
se aproximar de Tasslehoff quando foi atingido no rosto por um tomate,
ficando cego por um instante.
— Ei, condestável, sabe o que você poderia fazer com esse apito?
Você poderia...

52
Tasslehoff nunca teve a chance de dizer ao condestável o que ele po-
deria fazer com o apito pois, naquele instante, uma mão grande o arrancou
do meio da briga. Uma mão cobriu a boca de Tas, enquanto mais dois
pares de mãos agarraram os pés do kender. Um saco foi colocado sobre sua
cabeça e tudo o que Tas viu ou cheirou a partir daquele ponto foi aniagem,
enquanto se sentia sendo carregado.
Limpando o tomate de seus olhos ardendo, Tanis ouviu o som de
botas e mais gritos e berros. A multidão gritou e zombou, depois se afastou
e correu. Quando finalmente pôde ver de novo, o meio-elfo olhou rapida-
mente para se certificar de que todos estavam bem. Sturm estava ajudando
Gilthanas a se levantar, limpando o sangue de um corte na testa do elfo.
Flint estava xingando bastante, arrancando o repolho da barba.
— Onde está aquele maldito kender?! — o anão rugiu. — Eu vou...
— Ele parou e olhou, virando de um lado para o outro. — Onde está
aquele maldito kender? Tas? Então, me ajude...
— Silêncio! — Tanis ordenou, percebendo que Tas conseguira escapar.
Flint ficou roxo. — Esse pequeno bastardo! — praguejou. — Foi
quem nos colocou nessa e nos deixou para...
— Quieto! — Tanis disse, encarando o anão. Flint engasgou e se
calou. O condestável empurrou seus prisioneiros até o Tribunal de Justiça.
Apenas quando estavam em segurança, dentro da construção feia de tijolos
foi que percebeu um deles faltando.
— Devemos ir atrás dele, senhor? — perguntou um guarda. O con-
destável pensou por um momento, depois sacudiu a cabeça, irritado.
— Não perca seu tempo — disse amargamente. — Você sabe como
é tentar encontrar um kender que não quer ser encontrado? Não, deixe ele
para lá. Ainda temos os mais importantes. Peça que esperem aqui enquanto
eu informo o Conselho.
O condestável entrou em uma porta simples de madeira, deixando os
companheiros e seus guardas de pé em um corredor escuro e fétido. Um
artífice estava em um canto, roncando ruidosamente, tendo obviamente
bebido muito vinho. Os guardas tiraram a casca de abóbora dos uniformes
e jogaram fora as cenouras e outros tipos de lixo pendurados. Gilthanas
limpou o sangue em seu rosto. Sturm tentou limpar o manto da melhor
forma possível.
O condestável voltou, acenando da porta.
— Traga-os para cá.

53
Quando os guardas empurraram seus prisioneiros para a frente,
Tanis conseguiu se aproximar de Sturm. — Quem está no comando
aqui? — sussurrou.
— Se tivermos sorte, o Senhor ainda está no controle da cidade — o
cavaleiro respondeu em voz baixa. — Os senhores tarsianos sempre tiveram
a reputação de serem nobres e honrados. — Ele deu de ombros. — Além
disso, quais acusações eles têm contra nós? Não fizemos nada. Na pior das
hipóteses, uma escolta armada nos fará sair da cidade.
Tanis balançou a cabeça em dúvida enquanto entrava no tribunal.
Levou algum tempo para que seus olhos se ajustassem à penumbra das
câmaras encardidas que cheiravam ainda pior do que o corredor. Dois dos
membros do conselho tarsiano seguravam laranjas perto do nariz.
Os seis membros do conselho estavam sentados no banco, que ficava
numa plataforma alta, três de cada lado do seu Senhor, cuja cadeira alta
ficava no centro. O Senhor levantou a cabeça quando entraram. Suas
sobrancelhas ergueram-se levemente ao ver Sturm e, parecia para Tanis,
seu rosto se acalmou. O Senhor até fez em um gesto de saudação educada
ao cavaleiro. A esperança de Tanis aumentou. Os companheiros andaram
para frente, parando diante da bancada. Não havia cadeiras. Suplicantes ou
prisioneiros diante do conselho ficavam em pé para apresentar seus casos.
— Qual é a acusação contra esses homens? — perguntou o Senhor. O
condestável deu aos companheiros um olhar sinistro.
— Incitar um tumulto, milorde — disse ele.
— Tumulto! — Flint explodiu. — Não tivemos nada a ver com um
tumulto! Foi aquele cabeça-de-vento...
Uma figura de mantos longos saiu das sombras para sussurrar no ou-
vido de seu Senhor. Nenhum dos companheiros percebeu a figura quando
entraram. Mas a perceberam agora.
Flint tossiu e ficou em silêncio, dando a Tanis um olhar sério e soturno
por baixo das sobrancelhas brancas e grossas. O anão sacudiu a cabeça, os
ombros caídos. Tanis suspirou, cansado. Gilthanas limpou o sangue de seu
corte com a mão trêmula, suas feições élficas pálidas de ódio. Apenas Sturm
permanecia calmo e impassível enquanto olhava para o rosto meio-reptiliano,
meio-humano e retorcido de um draconiano.

Os companheiros que permaneceram na Hospedaria sentaram-se


no quarto de Elistan por pelo menos uma hora depois dos outros serem

54
levados pelos guardas. Caramon ficou de guarda perto da porta, sua espada
desembainhada. Vento Ligeiro vigiava pela janela. Ao longe, podiam ouvir
os sons da multidão enfurecida e se olharam com rostos tensos e estremeci-
dos. Então, o barulho parou. Ninguém os perturbou. A hospedaria estava
mortalmente quieta.
A manhã passou sem incidentes. O sol pálido e frio subia no céu,
fazendo pouco para aquecer o dia de inverno. Caramon embainhou sua
espada e bocejou. Tika arrastou uma cadeira para se sentar ao lado dele.
Vento Ligeiro se manteve vigia de Lua Dourada, que estava conversando
em voz baixa com Elistan, fazendo planos para os refugiados.
Apenas Laurana permaneceu de pé junto à janela, embora não hou-
vesse nada para ver. Os guardas aparentemente se cansaram de marchar
para cima e para baixo nas ruas e agora se amontoavam nas portas, tentando
se aquecer. Atrás dela, podia ouvir Tika e Caramon rirem juntos, baixinho.
Laurana olhou para eles. Falando baixo demais para ser ouvido, Caramon
parecia estar descrevendo uma batalha. Tika ouvia atentamente, os olhos
brilhando de admiração.
A jovem garçonete tivera muita prática na luta em sua jornada para o
sul para encontrar o Martelo de Kharas e, embora não fosse realmente ha-
bilidosa com uma espada, ela transformara a batida de escudo em uma arte.
Agora, ela usava sua armadura normalmente. Ainda era mal combinada,
mas ela continuou lhe adicionando itens, vasculhando os pedaços deixados
nos campos de batalha. A luz do sol reluzia em seu colete de cota de malha,
brilhando em seus cabelos ruivos. O rosto de Caramon estava animado e
relaxado enquanto conversava com a jovem. Eles não se tocavam, não com
os olhos dourados do gêmeo de Caramon neles, mas eles se inclinavam
muito próximos um do outro.
Laurana suspirou e se virou, sentindo-se muito solitária e, pensando
nas palavras de Raistlin, muito assustada.
Ela ouviu seu suspiro ecoar, mas não era um suspiro de arrependi-
mento. Era de irritação. Virando-se ligeiramente, ela olhou para Raistlin.
O mago fechara o grimório que ele estava tentando ler e se moveu para o
pouco de luz do sol que entrava pelo vidro. Precisava estudar seu grimório
diariamente. É a maldição dos magos, eles devem alocar seus feitiços em sua
memória muitas e muitas vezes, pois as palavras mágicas cintilam e morrem
como as faíscas de uma fogueira. Cada magia drena a força do mago, dei-

55
xando-o fisicamente enfraquecido até que esteja finalmente exausto e não
possa conjurar feitiços até descansar.
A força de Raistlin crescera desde o encontro dos companheiros em
Consolação, assim como seu poder. Ele dominara várias novas magias
ensinadas a ele por Fizban, o velho mago que morreu em Pax Tharkas.
Conforme seu poder crescia, também aumentavam as dúvidas de seus com-
panheiros. Ninguém tinha um motivo evidente para desconfiar dele. De
fato, sua magia salvou as vidas deles várias vezes. Mas havia algo inquietante
nele... Secreto, silencioso, reservado e solitário como uma ostra.
Acariciando a capa azul-escura do estranho grimório que adquirira
em Xak Tsaroth, Raistlin observou a rua. Seus olhos dourados, com suas
pupilas escuras e em forma de ampulheta, brilhavam friamente.
Embora Laurana não gostasse de falar com o mago, ela precisava saber!
O que ele quis dizer... com uma longa despedida?
— O que você vê quando olha para longe assim? — ela perguntou
suavemente, sentando-se ao lado dele, sentindo uma fraqueza súbita de
medo tomar conta.
— O que vejo? — ele repetiu baixinho. Havia muita dor e tristeza em
sua voz, não a amargura que estava acostumada a ouvir. — Vejo o tempo
afetando todas as coisas. A carne humana definha e morre diante dos meus
olhos. As flores nascem, apenas para desaparecer. As árvores soltam folhas
verdes, para nunca mais recuperá-las. Na minha visão, é sempre inverno,
sempre noite.
— E... isso aconteceu com você nas Torres da Alta Magia? — Laurana
perguntou, chocada além dos limites. — Por quê? Para quê?
Raistlin deu seu sorriso raro e torto. — Para me lembrar da minha
própria mortalidade. Me ensinar compaixão. — Sua voz diminuiu. — Eu
era orgulhoso e arrogante na minha juventude. O mais novo a fazer o teste,
eu ia mostrar a todos! — Seu punho frágil se fechou. — Ah, eu mostrei
a eles. Eles despedaçaram meu corpo e devoraram minha mente até que,
no fim, eu era apenas capaz de... — Ele parou abruptamente, seus olhos
passando para Caramon.
— De que? — Laurana perguntou, temendo saber, mas fascinada.
— Nada — sussurrou Raistlin, abaixando o olhar. — Estou proibido
de falar sobre isso.
Laurana viu as mãos dele tremerem. O suor surgia em sua testa. Sua
respiração ficou ofegante e ele começou a tossir. Sentindo-se culpada por

56
ter causado inadvertidamente tal angústia, ela corou e balançou a cabeça,
mordendo o lábio. — Eu... eu sinto muito ter lhe causado dor. Eu não
pretendia. — Confusa, ela olhou para baixo, deixando o cabelo cair para
frente para esconder seu rosto, um hábito de menina.
Raistlin se inclinou para frente quase inconscientemente, sua mão se
esticando, tremendo, para tocar o maravilhoso cabelo que parecia ter vida
própria, de tão vibrante e abundante. Então, vendo diante de seus olhos
sua própria carne morrendo, ele afastou a mão rapidamente e recostou em
sua cadeira, um sorriso amargo em seus lábios. O que Laurana não sabia,
nem poderia saber, era que, ao olhá-la, Raistlin via a única beleza que veria
em sua vida. Jovem, pelos padrões élficos, ela não era tocada pela morte ou
decadência, mesmo na visão amaldiçoada do mago.
Laurana não via nada disso. Estava ciente apenas que ele se moveu
um pouco. Ela quase se levantou e saiu, mas se sentia atraída por ele agora,
que ainda não havia respondido à sua pergunta. — Eu... eu quis dizer, você
pode ver o futuro? Tanis me contou que sua mãe era.... como eles dizem...
presciente? Sei que Tanis procura o seu conselho...
Raistlin olhou Laurana, pensativo. — O meio-elfo procura os meus
conselhos, não porque eu possa ver o futuro. Não posso. Não sou vidente.
Ele me procura porque posso pensar, algo que a maioria desses tolos parece
incapaz de fazer.
— Mas o que você disse. Alguns de nós podem não se ver de novo.
— Laurana olhou para ele com sinceridade. — Você deve ter previsto algo!
O que... eu preciso saber! Foi... Tanis?
Raistlin ponderou. Quando falou, foi mais para si do que para Laura-
na. — Eu não sei — sussurrou. — Nem sei porque eu disse isso. É só que...
por um instante... eu sabia... — ele pareceu se esforçar para lembrar e, de
repente, encolheu os ombros.
— Sabia o que? — Laurana persistiu.
— Nada. Minha imaginação extenuada, como o cavaleiro diria se
estivesse aqui. Então, Tanis contou sobre minha mãe? — disse, mudando
de assunto abruptamente.
Laurana, desapontada, mas esperando descobrir mais se continuasse
conversando com ele, anuiu. — Disse que ela possuía o dom da previsão.
Conseguia olhar para o futuro e ver imagens do que aconteceria.
— É verdade — Raistlin sussurrou, então sorriu sarcasticamente. —
Fez muito bem para ela. O primeiro homem com quem se casou era um

57
guerreiro belo da terra do norte. Sua paixão morreu em poucos meses e,
depois disso, eles deixaram a vida um do outro miserável. Minha mãe tinha
saúde frágil e era tomada por transes estranhos, dos quais ela não acordava
por horas. Eles eram pobres, vivendo do que seu marido conseguia ganhar
com sua espada. Embora fosse claramente de sangue nobre, ele nunca falou
de sua família. Não acredito que ele tenha dito a ela seu nome verdadeiro.
Os olhos de Raistlin se estreitaram. — Contudo, ele disse a Kitiara.
Tenho certeza. É por isso que ela viajou para o norte, para encontrar
sua família.
— Kitiara... — Laurana disse com uma voz tensa. Ela tocou no nome
como quem toca em um dente dolorido, ansiosa para entender mais sobre
essa humana que Tanis amava. — Então, aquele homem... o nobre guerrei-
ro... era o pai de Kitiara? — ela disse com uma voz rouca.
Raistlin lançou um olhar penetrante. — Sim — sussurrou. — Ela é
minha meio-irmã mais velha. Quase oito anos mais velha do que Caramon
e eu. Ela é muito parecida com o pai, acredito. Tão linda quanto ele era
bonito. Resoluta, impetuosa, combativa, forte e destemida. Seu pai a ensi-
nou a única coisa que sabia: a arte da guerra. Ele começou a fazer viagens
cada vez mais longas e, um dia, desapareceu de vez. Minha mãe convenceu
os Altos Seguidores a declará-lo como legalmente morto. Então, ela se
casou novamente com o homem que se tornou nosso pai. Era um homem
simples, um lenhador de profissão. Mais uma vez, sua visão não a serviu.
— Por quê? — Laurana perguntou gentilmente, levada pela história,
surpresa pelo mago, normalmente taciturno, ser tão volúvel, sem saber que
ele estava tirando mais dela ao simplesmente observar seu rosto expressivo
do que estava retribuindo.
— Meu nascimento e do meu irmão, por exemplo — disse Raistlin.
Então, dominado por um ataque de tosse, ele parou de falar e fez sinal para
seu irmão. — Caramon! É hora da minha bebida — disse com um sussurro
sibilante que atravessou a conversa mais alta. — Ou você se esqueceu de
mim no prazer da outra companhia?
Caramon ficou em silêncio no meio da risada. — Não, Raist! — disse,
cheio de culpa, se levantando com pressa do seu assento para pendurar uma
chaleira de água sobre o fogo. Desanimada, Tika abaixou a cabeça, não
querendo encontrar o olhar do mago.
Depois de olhar para ela por um momento, Raistlin voltou-se para
Laurana, que assistira a tudo com uma sensação fria na boca do estômago.

58
Ele começou a falar novamente como se não houvesse interrupção. — Mi-
nha mãe nunca se recuperou do parto. A parteira desistiu de mim e eu teria
morrido se não fosse por Kitiara. Ela costumava dizer que sua primeira
batalha foi contra a morte e eu era o prêmio. Ela nos criou. Minha mãe não
conseguia cuidar dos filhos e meu pai era forçado a trabalhar dia e noite para
nos manter alimentados. Ele morreu em um acidente quando Caramon e
eu éramos adolescentes. Minha mãe entrou em um de seus transes naquele
dia — a voz de Raistlin diminuiu — e nunca saiu. Ela morreu de inanição.
— Isso é terrível — Laurana murmurou, tremendo.
Raistlin não falou por um bom tempo, seus olhos estranhos observan-
do o céu frio e cinza. Então sua boca se torceu. — Isso me ensinou uma
lição valiosa... aprenda a controlar o poder. Nunca o deixe controlar você.
Laurana não parecia tê-lo ouvido. Suas mãos no colo se torceram ner-
vosamente. Era a oportunidade perfeita para fazer as perguntas que desejava
perguntar, mas isso significaria abrir mão de uma parte de seu eu interior
para esse homem que ela temia e desconfiava. Mas sua curiosidade, e seu
amor, eram grandes demais. Ela nunca percebeu que estava caindo em uma
armadilha sagaz. Raistlin se deleitava em descobrir os segredos das almas
das pessoas, sabendo que poderiam ser úteis.
— O que você fez então? — ela perguntou, engolindo o seco. —
Kit-Kitiara...
Tentando parecer natural, ela gaguejou no nome e corou de vergonha.
Raistlin observou a luta interna de Laurana com interesse. — Kitiara
já havia ido embora — ele respondeu. — Ela saiu de casa com quinze anos,
ganhando a vida com a espada. Ela é uma especialista, segundo Caramon,
e não teve problemas para encontrar trabalho como mercenária. Ah, ela
voltava de vez em quando, para ver como estávamos. Quando ficamos mais
velhos e habilidosos, ela nos levou junto. Foi quando Caramon e eu apren-
demos a lutar juntos... Eu usando minha magia, meu irmão, sua espada.
Então, depois que ela conheceu Tanis... — os olhos de Raistlin brilharam
com o desconforto de Laurana — ela viajou com a gente mais vezes.
— Viajou com quem? Onde vocês foram?
— Havia Sturm Brightblade, já sonhando com a cavalaria, o kender,
Tanis, Caramon e eu. Viajamos com Flint, antes de ele se aposentar da
forja. As estradas ficaram tão perigosas que Flint desistiu de viajar. E a essa
altura, aprendemos tudo o que podíamos com nossos amigos. Estávamos
ficando inquietos. Estava na hora de nos separarmos, foi o que disse Tanis.

59
— E você fizeram o ele disse? Ele era seu líder já naquela época? — Ela
olhou para trás para se lembrar dele como o conhecera antes de deixar Qua-
linost, sem barba e sem as rugas de cuidado e preocupação que via agora em
seu rosto. Mas, mesmo assim, ele era reservado e taciturno, atormentado
por seus sentimentos de pertencer a ambas as raças, e a nenhuma. Ela não
o entendera então. Só agora, depois de viver em um mundo de humanos,
era que começava.
— Dizem que ele tem as qualidades essenciais para a liderança: pensa
rápido, é inteligente e criativo. Mas a maioria de nós tem isso... em maior
ou menor grau. Por que os outros seguem Tanis? Sturm é de sangue nobre,
membro de uma ordem cujas raízes remontam a tempos ancestrais. Por que
obedece a um meio-elfo bastardo? E Vento Ligeiro? Ele desconfia de todos
que não sejam humanos e de metade dos que são. No entanto, ele e Lua
Dourada seguiriam Tanis até o Abismo e voltariam. Por quê?
— Eu me perguntei — Laurana começou — e acho que...
Mas Raistlin, a ignorando, respondeu sua própria pergunta. — Tanis
ouve seus sentimentos. Ele não os reprime, assim como o cavaleiro, ou os
esconde, como o homem das Planícies. Tanis percebe que, às vezes, um
líder deve pensar com o coração e não com a cabeça. — Raistlin olhou para
ela. — Lembre-se disso.
Laurana piscou, confusa por um momento. Então, sentindo no mago
um tom de superioridade que a irritava, ela disse de forma arrogante: —
Percebo que você se deixou de fora. Se você é tão inteligente e poderoso
quanto afirma, por que segue Tanis?
Os olhos de ampulheta de Raistlin estavam escuros e encapuzados.
Ele parou de falar quando Caramon trouxe uma xícara para o si e, com
cuidado, despejou a água da chaleira. O guerreiro olhou para Laurana, com
o rosto escuro, envergonhado e desconfortável como de costume, sempre
que seu irmão ficava assim.
Raistlin não pareceu notar. Puxando uma bolsa de sua mochila, ele
aspergiu algumas folhas verdes na água quente. Um cheiro acre e pungente
tomou conta a sala. — Eu não o sigo. — O jovem mago olhou para Laurana.
— Tanis e eu simplesmente viajamos na mesma direção. Por enquanto.

— Os Cavaleiros de Solamnia não são bem-vindos em nossa cidade


— disse o Senhor com firmeza, seu rosto sério. Seu olhar sombrio passou
pelo resto do grupo. — Nem os elfos, kenders, anões ou aqueles que viajam

60
em seu grupo. Entendo que entre vocês também está um mago, alguém que
usa os mantos vermelhos. Você usa armadura. Suas armas estão manchadas
de sangue e, rápida e prontamente, estará em suas mãos. Vocês obviamente
são combatentes habilidosos.
— Mercenários, sem dúvida, milorde — disse o condestável.
— Não somos mercenários — disse Sturm, ficando de pé diante da
bancada, com um porte orgulhoso e nobre. — Saímos das planícies do
norte de Abanassínia. Libertamos oitocentos homens, mulheres e crianças
do Senhor dos Dragões, Verminaard, em Pax Tharkas. Fugindo da ira dos
exércitos dracônicos, deixamos as pessoas escondidas em um vale nas mon-
tanhas e viajamos para o sul, na esperança de encontrar navios na cidade
lendária de Tarsis. Não sabíamos que não havia litoral, caso contrário, nem
nos incomodaríamos.
O Senhor franziu a testa. — Você diz que veio do norte? Isso é im-
possível. Ninguém jamais passou em segurança pelo reino montanhoso dos
anões em Thorbardin.
— Se conhece alguma coisa sobre os Cavaleiros de Solamnia, sabe
que preferimos morrer do que mentir... até mesmo para nossos inimigos
— disse Sturm. — Entramos no reino dos anões e conseguimos passar em
segurança após encontrar e devolver para eles o outrora perdido Martelo
de Kharas.
O Senhor se mexeu, desconfortável, olhando para o draconiano que
estava sentado atrás dele. — Eu sei um pouco sobre os cavaleiros — disse
com relutância. E, portanto, devo acreditar em sua história, embora pareça
mais uma história de ninar do que...
De repente, as portas se abriram e dois guardas entraram, arrastando
alguém entre eles. Eles empurraram os companheiros para o lado enquanto
jogavam a pessoa no chão. Era uma prisioneira. Coberta com véus, ela
estava vestida com saias longas e uma capa pesada. Por um momento, ficou
deitada no chão, como se estivesse muito cansada ou derrotada para se er-
guer. Então, parecendo fazer um esforço supremo de vontade, ela começou
a se levantar. Obviamente, ninguém a ajudaria. O Senhor olhou para ela,
seu rosto implacável e carrancudo. O draconiano atrás dele levantou-se e
olhou para ela com interesse. A mulher se esforçou, enredada em sua capa
e em suas longas saias esvoaçantes.
Então, Sturm apareceu ao lado dela.

61
O cavaleiro observara horrorizado, estarrecido com esse tratamento
insensível para uma mulher. Ele olhou para Tanis, viu o sempre cauteloso
meio-elfo balançar a cabeça, mas a visão da mulher fazendo um esforço
galante para se levantar provou ser demais para o cavaleiro. Ele deu um
passo à frente e encontrou uma alabarda diante de si.
— Me mate se quiser — disse o cavaleiro ao guarda — mas vou
ajudar esta dama.
O guarda piscou e recuou, seus olhos voltados para o Senhor em busca
de ordens. O Senhor balançou a cabeça levemente. Observando atenta-
mente, Tanis segurou o fôlego. Então, pensou ter visto o sorriso do Senhor,
coberto rapidamente com a mão.
— Minha senhora, permita-me ajudá-la — disse Sturm com a delica-
deza cortesia e antiquada há muito perdida no mundo. Suas mãos fortes a
levantaram gentilmente.
— É melhor você me deixar sozinha, senhor cavaleiro — disse a
mulher, suas palavras quase inaudíveis atrás de seu véu. Mas ao som da voz
dela, Tanis e Gilthanas arfaram suavemente, olhando um para o outro. —
Você não sabe o que faz — ela disse. — Você arrisca sua vida...
— É meu privilégio fazê-lo — Sturm disse, curvando-se. Então, ficou
perto dela, protetor, observando os guardas.
— É elfa silvanesti! — Gilthanas sussurrou para Tanis. — Sturm sabe?
— Claro que não — Tanis disse em voz baixa. — Como poderia? Eu
mal reconheci sotaque dela.
— O que ela poderia estar fazendo aqui? Silvanesti está bem longe...
— Eu... — Tanis começou, mas um dos guardas o empurrou pelas
costas. Ele ficou em silêncio assim que o Senhor começou a falar.
— Senhora Alhana — disse com uma voz fria — você foi avisada
para deixar esta cidade. Fui misericordioso da última vez que veio diante
de mim porque você estava em uma missão diplomática para seu povo, e
o protocolo ainda é honrado em Tarsis. Porém, eu disse que não deveria
esperar nossa ajuda, dei-lhe vinte e quatro horas para sua partida. Agora,
descubro que ainda está aqui. — Ele olhou para os guardas. — Qual é a
acusação?
— Tentando comprar mercenários, milorde — respondeu o con-
destável. — Ela foi apanhada em uma hospedaria perto da Velha Orla,
milorde. — O condestável deu a Sturm um olhar mordaz. — Foi bom

62
que ela não tenha se encontrado com esse grupo. É claro que ninguém em
Tarsis ajudaria uma elfa.
— Alhana — Tanis murmurou para si mesmo. Ele se aproximou de
Gilthanas. — Por que esse nome é familiar?
— Você ficou tanto tempo longe do seu povo que não reconhece o
nome? — o elfo respondeu suavemente em élfico. — Só havia uma entre
nossos primos silvanesti chamada Alhana. Alhana Brisestelar, filha do Ora-
dor das Estrelas, princesa de seu povo, governante quando seu pai morrer,
pois ela não tem irmãos.
— Alhana! — Tanis disse, as lembranças voltando. Os elfos se divi-
diram há centenas de anos, quando Kith-Kanan liderou muitos dos elfos
para a terra de Qualinosti após as amargas Guerras Fratricidas. Mas os
líderes élficos ainda mantinham contato da forma misteriosa dos elfos
que, dizem, podem ler mensagens ao vento e falar a língua da lua pratea-
da. Agora, ele se lembrava de Alhana; de todas as elfas, aquela considerada
como a mais bonita e distante quanto a lua prateada que brilhava durante
o seu nascimento.
O draconiano inclinou-se para conversar com o Senhor. Tanis viu o
rosto do homem ficar tenso e parecia que estava prestes a discordar, depois
mordeu os lábios e, suspirando, acenou com a cabeça. O draconiano se
fundiu novamente com as sombras.
— Você está presa, Senhora Alhana — disse o Senhor, com pesar.
Sturm deu um passo mais perto da mulher enquanto os guardas se aproxi-
maram dela. Sturm jogou a cabeça para trás e lançou a todos um olhar de
advertência. Ele parecia tão confiante e nobre, mesmo desarmado, que os
guardas hesitaram. Ainda assim, o Senhor dera uma ordem.
— É melhor você fazer alguma coisa — Flint resmungou. — Sou a
favor do cavalheirismo, mas há um momento e um lugar para isso, o que
não é este caso!
— Você tem alguma sugestão? — Tanis retrucou.
Flint não respondeu. Não havia nada que pudessem fazer e eles sabiam
disso. Sturm morreria antes de um dos guardas colocar a mão na mulher
novamente, mesmo que não tivesse ideia de quem ela era. Não importava.
Sentindo-se dilacerado pela frustração e admiração por seu amigo, Tanis
mediu a distância entre ele e o guarda mais próximo, sabendo que poderia
tirar de ação pelo menos um. Ele viu Gilthanas fechar os olhos, seus lábios se
movendo. O elfo sabia usar magia, embora raramente tratasse isso com serie-

63
dade. Vendo a expressão no rosto de Tanis, Flint soltou um suspiro e virou-se
para outro guarda, abaixando a cabeça com capacete como um aríete.
Então, de repente, o Senhor falou, sua voz irritada.
— Espere, cavaleiro! — disse com a autoridade que fora cultivada nele
por gerações. Reconhecendo isso, Sturm relaxou e Tanis soltou um suspiro
de alívio. — Eu não terei sangue derramado nesta câmara do Conselho. A
senhora desobedeceu a uma lei da terra, leis que, nos dias passados, você,
senhor cavaleiro, jurou defender. Mas concordo, não há razão para tratá-la
de forma desrespeitosa. Guardas, escoltem a senhora para a prisão, mas
com a mesma cortesia com que me tratam. E você, senhor cavaleiro, a
acompanhará, já que está tão interessado em seu bem-estar.
Tanis cutucou Gilthanas, que saiu de seu transe com um sobressalto.
— De fato, como Sturm disse, esse Senhor vem de uma linhagem
nobre e honrosa — sussurrou Tanis.
— Não vejo por que está tão satisfeito, meio-elfo. — Flint grunhiu ao
ouvi-los. — Primeiro, o kender nos leva a sermos acusados de incitar um
tumulto e depois desaparece. Agora, o cavaleiro nos coloca na prisão. Da
próxima vez, lembre-me de ficar com o mago. Pelo menos, ele sei que é louco!
Quando os guardas começaram a afastar os prisioneiros da bancada,
Alhana parecia estar procurando algo dentro das dobras de sua saia longa.
— Eu imploro um favor, senhor cavaleiro — disse ela para Sturm. —
Acredito que deixei cair alguma coisa. Uma ninharia, mas preciosa. Você
poderia olhar...
Sturm ajoelhou-se com rapidez e imediatamente viu onde o objeto es-
tava, cintilando no chão, escondido pelas dobras do vestido. Era um alfine-
te, na forma de estrela, brilhando com diamantes. Ele prendeu a respiração.
Uma ninharia! Seu valor deve ser incalculável. Não é de admirar que ela
não quisesse que fosse encontrada por esses guardas inúteis. Rapidamente,
ele o envolveu em seus dedos e fingiu olhar em volta. Finalmente, ainda
ajoelhado, ele olhou para a mulher.
Sturm perdeu o fôlego quando a mulher puxou o capuz e tirou o véu do
rosto. Pela primeira vez, olhos humanos viram o rosto da Alhana Brisestelar.
Muralasa, os elfos a chamavam, a Princesa da Noite. Seu cabelo, preto
e macio como o vento noturno, estava preso por uma rede tão fina quanto
uma teia de aranha, cintilando com pequenas joias como estrelas. Sua pele
tinha o tom pálido da lua prateada, seus olhos, o púrpura escuro e profundo
do céu noturno, seus lábios, a cor das sombras da lua vermelha.

64
O primeiro pensamento do cavaleiro foi agradecer a Paladine por já
estar de joelhos. O segundo foi que a morte seria um preço insignificante
a pagar para servi-la e a terceira que ele deveria dizer alguma coisa, mas
parecia ter esquecido as palavras de qualquer idioma conhecido.
— Obrigada por procurar, nobre cavaleiro — Alhana disse suavemente,
olhando fixamente nos olhos de Sturm. — Como eu disse, era uma ninharia.
Por favor, levante-se. Estou muito cansada e, já que parece que estamos
indo para o mesmo lugar, você poderia me fazer um grande favor me dando
sua ajuda.
— Sou seu para comandar — disse Sturm fervorosamente, se levan-
tando e colocando rapidamente a joia dentro do cinto. Ele estendeu o braço
e Alhana colocou a mão delgada e branca em seu antebraço. Seu braço
tremeu ao toque dela.
Para o cavaleiro, parecia que uma nuvem cobrira a luz das estrelas
quando ela colocou o véu novamente. Sturm viu Tanis entrar na fila
atrás deles, mas o cavaleiro estava tão arrebatado com o belo rosto
ardendo em sua memória que olhou diretamente para o meio-elfo sem
um lampejo de reconhecimento.
Tanis viu o rosto de Alhana e sentiu seu próprio coração se agitar com
sua beleza. Mas também viu o rosto de Sturm. Viu aquela beleza entrar no
coração do cavaleiro, causando mais dano do que a flecha envenenada de
um goblin. Pois este amor deverá se transformar em veneno, ele sabia. Os
Silvanesti eram uma raça orgulhosa e arrogante. Temendo a contaminação
e a perda de seu modo de vida, eles se recusaram a ter até mesmo o menor
contato com humanos. Assim, as Guerras Fratricidas foram travadas.
Não, pensou Tanis com tristeza, a própria lua prateada não estava mais
alta ou mais longe do alcance de Sturm. O meio-elfo suspirou. Isso era tudo
de que precisavam.

65
6
Cavaleiros de Solamnia.
Os óculos da visão da verdade de Tasslehoff.

uando os guardas levaram os prisioneiros do Tribunal de Justiça,


eles passaram por duas figuras paradas do lado de fora, nas sombras.
Ambas estavam tão cobertas com roupas que era difícil dizer a qual
raça pertenciam. Capuzes cobriam as cabeças, com panos enrolados em seus
rostos. Túnicas longas envolviam seus corpos. Até suas mãos estavam envoltas
em tiras brancas, como bandagens. Eles falaram juntos em voz baixa.
— Veja! — disse um deles, com grande animação. — Lá estão eles.
Combinam com as descrições.
— Não todos eles — disse o outro, com dúvida.
— Mas o meio-elfo, o anão, o cavaleiro! Estou dizendo, são eles! E eu
sei onde os outros estão — a figura acrescentou de forma orgulhosa. — Eu
perguntei a um dos guardas.
A outra figura mais alta avaliou, observando o grupo sendo conduzido
pela rua. — Você está certo. Devemos relatar isso à Senhora imediatamente.

66
— A figura encoberta virou-se, depois parou quando viu o outro hesitar.
— O que está esperando?
— Mas um de nós não deveria segui-los? Olhe para esses guardas
insignificantes. Você sabe que os prisioneiros tentarão escapar.
O outro riu de forma desagradável. — Claro que vão escapar. E nós
sabemos para onde irão... reencontrar seus amigos. — A figura encoberta
apertou os olhos no sol da tarde. — Além disso, não fará diferença alguma
em poucas horas. — A figura alta se afastou, a menor a seguindo com pressa.

Estava nevando quando os companheiros saíram do Tribunal de


Justiça. Desta vez, o condestável sabia que não deveria fazer os prisioneiros
marcharem pelas ruas principais da cidade. Ele os conduziu a um beco
escuro e sombrio que passava por trás do Tribunal de Justiça.
Tanis e Sturm estavam trocando olhares, Gilthanas e Flint estavam
tensos, esperando para atacar, quando o meio-elfo viu que as sombras no
beco começarem a se mover. Três figuras com capuzes e capas saltaram na
frente dos guardas, suas lâminas de aço cintilando sob a luz do sol.
O condestável colocou o apito nos lábios, mas não conseguiu produzir
nenhum som. Uma das figuras o deixou inconsciente com o punho de sua
espada, enquanto os outros dois correram para os guardas, que fugiram
imediatamente. As figuras encapuzadas encararam os companheiros.
— Quem são vocês? — Tanis perguntou, surpreso com sua liberdade
repentina. As figuras de capuz e capa o fizeram lembrar dos draconianos
encapuzados com quem lutaram fora de Consolação. Sturm puxou Alhana
para trás dele.
— Escapamos de um perigo apenas para encontrar um pior? — Tanis
exigiu. — Revelem seus rostos!
Mas um dos homens encapuzados se virou para Sturm, suas mãos
levantadas no ar. — Oth Tsarthon e Paran — disse ele.
Sturm arfou. — Est Tsarthai en Paranaith — respondeu, então se virou
para Tanis. — Cavaleiros de Solamnia — disse, apontando para os três
homens.
— Cavaleiros? — Tanis perguntou espantado. — Por quê...
— Não há tempo para explicar, Sturm Brightblade — disse um dos
cavaleiros no idioma comum, com um sotaque forte. — Os guardas volta-
rão em breve. Venha conosco.

67
— Não tão rápido! — Flint resmungou, com os pés firmemente
plantados na rua, as mãos quebrando a haste de uma alabarda de modo a se
adequar à sua baixa estatura. — Ou encontram tempo para dar explicações
ou eu não vou! Como vocês sabiam o nome do cavaleiro e como é possível
que estivessem esperando por nós...
— Ah, esqueçam dele! — zumbiu uma voz estridente das sombras. —
Deixem o corpo dele para alimentar os corvos. Não que eles se incomodem.
Existem poucos neste mundo que podem digerir um anão...
— Satisfeito? — Tanis se virou para Flint, que estava vermelho de raiva.
— Algum dia — prometeu o anão — vou matar esse kender.
Apitos soaram na rua atrás deles. Sem mais hesitação, os compa-
nheiros seguiram os cavaleiros através de becos tortuosos e infestados de
ratos. Dizendo que tinha negócios a tratar, Tas desapareceu antes que Tanis
pudesse segurá-lo. O meio-elfo percebeu que os cavaleiros não pareciam
surpresos com isso, nem tentaram impedir Tas. Contudo, eles se recusaram
a responder a qualquer pergunta, apenas continuaram apressando o grupo
até que entraram nas ruínas da velha cidade de Tarsis, a Bela.
Os cavaleiros pararam. Trouxeram os companheiros para uma parte da
cidade onde ninguém jamais viria. As ruas estavam quebradas e vazias, fazen-
do Tanis se lembrar bastante da cidade antiga de Xak Tsaroth. Pegando Sturm
pelo braço, os cavaleiros o levaram a uma distância curta de seus amigos e
começaram a debater em solâmnico, deixando os outros descansarem.
Encostado em uma construção, Tanis olhou em volta com interesse.
O que restava dos edifícios da rua era impressionante, muito mais bonito
que a cidade moderna. Ele viu que Tarsis, a Bela, realmente merecia seu
nome antes do Cataclismo. Agora, não havia nada além de enormes blocos
de granito espalhados. Pátios vastos estavam sufocados e cobertos de mato,
que amarronzava com os ventos cortantes do inverno.
Ele andou para se sentar em um banco com Gilthanas, que estava
conversando com Alhana. O elfo o apresentou.
— Alhana Brisestelar, Tanis Meio-Elfo — disse Gilthanas. — Tanis
viveu entre os qualinesti por muitos anos. Ele é o filho da esposa do meu tio.
Alhana afastou o véu do rosto e examinou Tanis com frieza. Filho da
esposa do meu tio era uma maneira educada de dizer que Tanis era ilegítimo,
caso contrário, Gilthanas o teria apresentado como o “filho do meu tio”. O
meio-elfo corou, a velha dor voltando forçada, doendo tanto agora quanto há
cinquenta anos. Ele se perguntou se algum dia estaria livre disso.

68
Coçando a barba, Tanis disse de forma áspera: — Minha mãe foi
estuprada por guerreiros humanos durante os anos de escuridão após o
Cataclismo. O Orador gentilmente me adotou depois da morte dela e me
criou como seu.
Os olhos escuros de Alhana ficaram mais escuros até se tornarem po-
ças da noite. Ela ergueu as sobrancelhas. — Você vê a necessidade de pedir
desculpas por sua herança? — perguntou em uma voz fria.
— N-não... — Tanis gaguejou, seu rosto ardendo. — Eu...
— Então não o faça — disse ela, virando-se dele em direção de Gilthanas.
— Você perguntou por que vim para Tarsis? Eu vim procurar ajuda.
Preciso voltar a Silvanesti para procurar meu pai.
— Voltar a Silvanesti? — Gilthanas repetiu. — Nós... meu povo não
sabia que os elfos silvanesti haviam deixado sua pátria ancestral. Não me
admira que perdemos contato...
— Sim — a voz de Alhana ficou triste. — O mal que os forçou, nossos
primos, a saírem de Qualinosti também chegou a nós. — Ela inclinou a
cabeça, depois olhou para cima, sua própria voz suave e baixa. — Por muito
tempo lutamos contra esse mal. Mas, no final, fomos forçados a fugir ou
perecer completamente. Meu pai enviou o povo, sob minha liderança, para
o sul de Ergoth. Ele ficou em Silvanesti para lutar contra o mal sozinho. Eu
me opus a essa decisão, mas ele disse que tinha o poder para impedir que
o mal destruísse nossa terra. Com o coração pesado, levei meu povo até a
segurança e lá eles permanecem. Mas voltei para procurar meu pai, porque
os dias foram longos e não ouvimos nenhuma novidade dele.
— Mas você não tinha guerreiros, senhora, para acompanhá-la em
uma jornada tão perigosa? — perguntou Tanis.
Virando-se, Alhana encarou Tanis como se estivesse surpresa por ele ter
se intrometido em sua conversa. No começo, parecia prestes a se recusar a res-
pondê-lo, então, olhando por mais tempo para seu rosto, ela mudou de ideia.
— Havia muitos combatentes que se ofereceram para me escoltar
— ela disse orgulhosa. — Mas quando disse que levei meu povo até a
segurança, falei precipitadamente. Não existe mais segurança neste mundo.
Os combatentes ficaram para trás, para proteger o povo. Eu vim para Tarsis
na esperança de encontrar guerreiros para viajar para Silvanesti comigo. Me
apresentei ao Senhor e ao Conselho, como exige o protocolo...
Tanis balançou a cabeça, franzindo a testa. — Isso foi estúpido —
disse sem rodeios. — Você deveria saber como eles se sentem sobre os

69
elfos, mesmo antes dos draconianos chegarem! Teve sorte que eles só a
mandaram sair da cidade.
O rosto pálido de Alhana ficou, se possível, ainda mais pálido. Seus
olhos escuros brilharam. — Eu fiz como o protocolo exige — ela respon-
deu, muito bem-criada para mostrar sua raiva além do tom frio em sua
voz. — Fazer o contrário seria como agir feito uma bárbara. Quando o
Senhor se recusou a me ajudar, eu disse a ele que pretendia procurar ajuda
por conta própria. Fazer menos não teria sido honrado.
Flint, que conseguira acompanhar apenas alguns pedaços da conversa
em élfico, cutucou Tanis. — Ela e o cavaleiro se darão muito bem — des-
denhou. — A menos que sua honra os mate primeiro.
Antes que Tanis pudesse responder, Sturm voltou ao grupo.
— Tanis — disse Sturm, empolgado — os cavaleiros encontraram
a biblioteca antiga! É por isso que estão aqui. Eles descobriram registros
em Palanthas dizendo que, no passado, o conhecimento sobre os dragões
era mantido na biblioteca aqui, em Tarsis. O Conselho dos Cavaleiros os
enviou para ver se a biblioteca sobreviveu.
Sturm fez um gesto para os cavaleiros se aproximarem. — Este é Brian
Donner, Cavaleiro da Espada — disse. — Aran Tallbow, Cavaleiro da Co-
roa, e Derek Crownguard, Cavaleiro da Rosa. — Os cavaleiros se curvaram.
— E este é Tanis Meio-Elfo, nosso líder — disse Sturm. O meio-elfo
viu Alhana começar a observá-lo com espanto, olhando para Sturm para
confirmar se ouvira corretamente.
Sturm apresentou Gilthanas e Flint, então ele se voltou para Alhana.
— A Senhora Alhana — começou, depois parou, envergonhado, perceben-
do que não sabia mais nada sobre ela.
— Alhana Brisestelar — completou Gilthanas — filha do Orador das
Estrelas. Princesa dos elfos silvanesti.
Os cavaleiros se curvaram novamente, mais baixo desta vez.
— Aceitem minha sincera gratidão pelo resgate — Alhana disse fria-
mente. O olhar dela passou por todo o grupo, mas permaneceu por mais
tempo em Sturm. Então, ela virou-se para Derek, que ela sabia ser o líder
por causa da sua Ordem da Rosa. — Você descobriu os registros que o
Conselho o enviou para encontrar?
Quando ela falou, Tanis examinou os cavaleiros, agora sem capuzes,
com interesse. Ele também sabia o suficiente para entender que o Conselho
dos Cavaleiros, o corpo regente dos cavaleiros solâmnicos, enviara os me-

70
lhores. Em particular, ele estudou Derek, o mais velho e de posto mais alto.
Poucos cavaleiros chegavam à Ordem da Rosa. Os testes eram perigosos e
difíceis e apenas cavaleiros de linhagem pura podiam pertencer a ela.
— Encontramos um livro, minha senhora — disse Derek — escrito
em um idioma antigo que não conseguimos entender. Havia imagens de
dragões, então tínhamos o plano de copiá-lo e retornar a Sancrist, onde
esperávamos que os estudiosos seriam capazes de traduzi-lo. Mas, em vez
disso, encontramos alguém que pode ler. O kender...
— Tasslehoff! — Flint explodiu.
O queixo de Tanis caiu. — Tasslehoff? — repetiu, incrédulo. — Ele
mal consegue ler o comum. Ele não conhece nenhum idioma antigo. O
único entre nós que possivelmente poderia traduzir uma língua antiga é
Raistlin.
Derek deu de ombros. — O kender tem um par de óculos que diz
serem “óculos mágicos da visão da verdade”. Ele os colocou e foi capaz de
ler o livro. Diz que...
— Eu posso imaginar o que diz! — Tanis repreendeu. — Histórias
sobre autômatos, anéis mágicos de teletransporte e plantas que vivem do ar.
Onde ele está? Vou ter uma boa conversa com Tasslehoff Burrfoot.
— Óculos mágicos da visão da verdade — resmungou Flint. — E eu
sou um anão tolo!
Os companheiros entraram em uma construção destruída. Escalando
pelos escombros, seguiram Derek através de um arco baixo. O cheiro de bolor e
mofo era forte. A escuridão era intensa depois do brilho do sol da tarde lá fora,
por um momento, todos ficaram cegos. Então, Derek acendeu uma tocha e eles
viram escadas estreitas e sinuosas que levavam para mais escuridão.
— A biblioteca foi construída abaixo do solo — explicou Derek.
— Provavelmente o único motivo pelo qual ela sobreviveu tão bem ao
Cataclismo.
Os companheiros desceram as escadas rapidamente e logo se viram
dentro de uma enorme sala. Tanis recuperou o fôlego e até os olhos de
Alhana se arregalaram na luz bruxuleante das tochas. A sala gigantesca es-
tava cheia, do teto ao chão, com prateleiras altas de madeira, estendendo-se
até onde os olhos podiam ver. Nas prateleiras, havia livros. Livros de todos
os tipos. Livros com encadernações de couro, encadernados em madeira,
encadernados no que pareciam ser folhas de alguma árvore exótica. Muitos
não estavam encadernados, eram simplesmente feixes de pergaminhos, pre-

71
sos com fitas pretas. Várias prateleiras haviam caído, derrubando os livros e
cobrindo o chão com pergaminhos até os tornozelos.
— Deve haver milhares! — Tanis disse admirado. — Como consegui-
ram encontrar um específico no meio disso?
Derek sacudiu a cabeça. — Não foi fácil — disse. — Passamos vários
dias aqui embaixo, procurando. Quando finalmente descobrimos, sentimos
mais desespero do que triunfo, pois era óbvio que o livro não podia ser mo-
vido. Quando tocamos as páginas, elas se desfizeram em pó. Temíamos que
precisaríamos passar muitas horas cansativas para copiá-lo. Mas o kender...
— Certo, o kender — Tanis disse, soturno. — Onde ele está?
— Bem aqui! — disse uma voz estridente.
Tanis olhou através da sala mal iluminada para ver uma vela acesa
em uma mesa. Sentado em uma cadeira alta de madeira, Tasslehoff estava
inclinado sobre um livro grosso. Quando os companheiros se aproximaram,
viram um par de óculos pequenos no nariz.
— Tudo bem, Tas — disse Tanis. — Onde você os pegou?
— Peguei o que? — o kender perguntou inocentemente. Ele viu os
olhos de Tanis se estreitarem e colocou a mão nos pequenos óculos de aros
de arame. — Ah, hum, esses? Eles estavam em uma bolsa... e, bem, se
quiser saber, eu encontrei no reino dos anões...
Flint gemeu e colocou a mão sobre o rosto.
— Eles estavam largados sobre uma mesa! — Tas protestou, vendo
Tanis fechar a expressão. — Não havia ninguém por perto. Achei que talvez
alguém os tivesse colocado no lugar errado. Eu só peguei para protegê-los.
Ainda bem. Algum ladrão poderia ter aparecido e roubado... e eles são muito
valiosos! Eu pretendia devolvê-los, mas depois disso ficamos tão ocupados,
com a luta contra anões sombrios e draconianos, e encontrando o Martelo,
que eu... meio que... esqueci que estava com eles. Quando me lembrei,
estávamos a quilômetros de distância dos anões, a caminho de Tarsis, e não
achei que você gostaria que eu voltasse só para devolvê-los, então...
— O que eles fazem? — Tanis interrompeu o kender, sabendo que eles
ficariam aqui até depois de amanhã se não o interrompesse.
— Eles são maravilhosos — Tas disse rapidamente, aliviado por Tanis
não gritar com ele. — Um dia, eu os deixei sobre um mapa. — Tas deu um
tapinha no seu estojo. — Eu olhei para baixo e o que aconteceu? Consegui
ler o que estava escrito no mapa através dos óculos! Certo, isso não parece
muito maravilhoso — Tas disse apressadamente, vendo Tanis começar a

72
franzir a testa novamente — mas era um mapa escrito em um idioma que
eu nunca consegui entender antes. Então eu experimentei em todos os
meus mapas e pude ler, Tanis! Todos! Até mesmo os muito, muito velhos!
— E você nunca mencionou isso para nós? — Sturm encarou Tas.
— Bem, o assunto nunca apareceu — Tas disse, se desculpando. —
Agora, se você tivesse me perguntado diretamente, “Tasslehoff, você tem
um par de óculos mágicos?”, eu teria dito a verdade na hora. Mas você
nunca o fez, Sturm Brightblade, então não olhe para mim assim. De qual-
quer forma, posso ler este livro antigo. Deixe-me dizer o que eu...
— Como você sabe que eles são mágicos e não apenas um dispositivo
mecânico dos anões? — Tanis perguntou, sentindo que Tas estava escon-
dendo algo.
Tas engoliu o seco. Esperava que Tanis não fizesse essa pergunta.
— Ahm — Tas gaguejou — eu... eu... acho que meio que, aconteceu
de, ahm, mencioná-los a Raistlin uma noite quando todos vocês estavam
ocupados fazendo alguma coisa. Ele me disse que podem ser mágicos. Para
descobrir, ele disse um daqueles feitiços estranhos e eles... ahm... começa-
ram a brilhar. Isso significava que estavam encantados. Ele me perguntou o
que eles faziam, eu demonstrei e ele disse que eles eram “óculos da visão da
verdade”. Os anões arcanos do passado os fizeram para ler livros escritos em
outras línguas e... — Tas parou.
— E? — Tanis continuou.
— E... ahm... grimórios de magia. — A voz de Tas era um sussurro.
— E o que mais Raistlin disse?
— Que, se eu tocasse em seus grimórios ou até mesmo olhasse para
eles de rabo de olho, ele me transformaria em um grilo e m-me e-engoliria
inteiro — gaguejou Tasslehoff. Ele olhou para Tanis com os olhos arregala-
dos. — Eu acreditei nele.
Tanis balançou a cabeça. Com certeza Raistlin faria uma ameaça ter-
rível o suficiente para saciar a curiosidade de um kender. — Mais alguma
coisa? — ele perguntou.
— Não, Tanis — Tas disse com inocência. Na verdade, Raistlin men-
cionou outra coisa sobre os óculos, mas Tas não conseguiu entender muito
bem. Algo sobre os óculos verem as coisas de forma muito real, o que não
fazia qualquer sentido, então ele achou que provavelmente não valeria a
pena falar disso. Ademais, Tanis já estava bastante zangado.
— Bem, o que você descobriu? — Tanis perguntou com relutância.

73
— Ah, Tanis, é tão interessante! — Tas disse, agradecido pelo término
da provação. Ele virou uma página cuidadosamente e, mesmo quando ele
fez isso, ela se dividiu e partiu sob seus pequenos dedos. Ele balançou a
cabeça, triste. — Isso acontece quase sempre. Mas você pode ver aqui — os
outros se inclinaram para olhar por baixo do dedo do kender — imagens de
dragões. Dragões azuis, dragões vermelhos, dragões negros, dragões verdes.
Não sabia que havia tantos. Agora, está vendo isso? — Ele virou outra
página. — Opa. Bem, você não pode ver agora, mas era uma bola de vidro
enorme. E, segundo o livro, se você tiver uma dessas bolas de vidro, poderá
assumir o controle dos dragões e eles farão o que você disser!
— Bola de vidro! — Flint fungou, depois espirrou. — Não acredite
nele, Tanis. Acho que a única coisa que esses óculos fizeram foi aumentar
suas histórias malucas.
— Eu estou dizendo a verdade! — Tas falou, indignado. — São cha-
mados de orbes do dragão e você pode perguntar a Raistlin sobre eles! Ele
deve saber porque, de acordo com isso, foram feitos pelos grandes magos
há muito tempo.
— Eu acredito em você — disse Tanis, sério, vendo que Tasslehoff
estava realmente chateado. — Mas receio que isso não nos ajudará muito.
Provavelmente todos foram destruídos no Cataclismo e não saberíamos
onde procurar de qualquer forma...
Sim, nós sabemos — Tas falou com animação. — Existe uma lista
aqui, de onde foram guardados. Veja... — Ele parou, inclinando a cabeça.
— Psiu — disse ele, ouvindo. Os outros ficaram em silêncio. Por um mo-
mento, não ouviram nada, então seus ouvidos captaram o que a audição
mais rápida do kender já havia detectado.
Tanis sentiu suas mãos ficarem frias; o gosto seco e amargo do medo
encheu sua boca. Agora, ele podia ouvir, ao longe, o som de centenas de
trombetas tocando, trombetas que todos já ouviram antes. As trombetas
de latão que anunciavam a aproximação dos exércitos draconianos... e a
aproximação dos dragões.
As trombetas da morte.

74
7
“... não estão destinados a se
encontrarem novamente neste mundo.”

s companheiros acabavam de chegar ao mercado quando a pri-


meira revoada de dragões atacou Tarsis.
O grupo se separou dos cavaleiros, uma despedida nada agradá-
vel. Os cavaleiros tentaram convencê-los a fugir com eles para as colinas.
Quando os companheiros recusaram, Derek exigiu que Tasslehoff os acom-
panhasse, já que apenas o kender sabia a localização dos orbes do dragão.
Tanis sabia que Tas simplesmente fugiria dos cavaleiros e, novamente, foi
forçado a recusar.
— Traga o kender, Sturm, e venha conosco — ordenou Derek,
ignorando Tanis.
— Não posso, senhor — respondeu Sturm, colocando a mão no braço
de Tanis. — Ele é meu líder e minha primeira lealdade é com meus amigos.
A voz de Derek ficou fria de raiva. — Se essa é sua decisão — ele
respondeu — não posso impedi-lo. Mas esta é uma marca escura contra
você, Sturm Brightblade. Lembre-se de que você não é um cavaleiro. Não
ainda. Reze para que eu não esteja lá quando a questão do seu título
chegar ao Conselho.
Sturm ficou pálido como a morte. Olhou de relance para Tanis, que
tentou esconder seu espanto com essa novidade surpreendente. Mas não
havia tempo para pensar nisso. O som das trombetas, berrando de modo
dissonante no ar frio, aproximava-se mais e mais a cada segundo. Os ca-
valeiros e os companheiros se separaram. Os cavaleiros se dirigiram para o
acampamento nas colinas, os companheiros voltaram para a cidade.
Eles encontraram as pessoas da cidade fora de suas casas, especulando
sobre os estranhos toques de trombetas que nunca ouviram antes e não
entendiam. Apenas um tarsiano ouviu e entendeu. O Senhor, na câmara
do conselho, levantou-se ao ouvir o som. Girando, ele virou-se para o
draconiano sentado nas sombras atrás dele.
— Você disse que seríamos poupados! — o Senhor falou com os
dentes cerrados. — Ainda estamos negociando...
— O Senhor dos Dragões se cansou de negociações — disse o dra-
coniano, sufocando um bocejo. — E a cidade será poupada... depois de
receber uma lição, é claro.
A cabeça do Senhor afundou em suas mãos. Os outros membros do
conselho, não compreendendo totalmente o que estava acontecendo, se en-
treolharam em consciência horrorizada quando viram lágrimas escorrerem
pelos dedos do Senhor.
Lá fora, dragões vermelhos eram visíveis nos céus, centenas deles.
Voando em grupos regimentados de três a cinco, suas asas brilhavam como
chamas vermelhas no sol poente. O povo de Tarsis sabia somente uma
coisa: a morte voava lá em cima.
Quando os dragões voaram baixo, fazendo suas primeiras passagens
sobre a cidade, o medo dracônico emanou deles, espalhando um pânico
mais mortal que o fogo. As pessoas tinham apenas um pensamento enquan-
to as sombras das asas bloqueavam a luz do dia... fugir.
Mas não havia como fugir.
Depois da primeira passagem, sabendo agora que não encontrariam
resistência, os dragões atacaram. Um após o outro, eles circularam, depois
desceram do céu com um tiro incandescente, seu sopro ardente engolfando
construção após a construção em chamas. Os incêndios espalhados criaram
suas próprias tempestades de vento. A fumaça sufocante tomou a rua,

76
transformando o crepúsculo em meia-noite. Cinzas caíram como uma
chuva negra. Gritos de terror mudaram para gritos de agonia enquanto as
pessoas morriam no abismo ardente que era Tarsis.
E enquanto os dragões atacavam, um mar de humanos enlouquecidos
pelo medo surgiu pelas ruas iluminadas pelas chamas. Poucos tinham uma
ideia clara para onde estavam indo. Alguns gritavam que estariam seguros
nas colinas, outros corriam pela antiga orla, outros ainda tentavam chegar
aos portões da cidade. Acima deles voavam os dragões, queimando como
queriam, matando por prazer.
O mar humano arrebentou sobre Tanis e os companheiros, os esma-
gando na rua, separando-os e empurrando contra prédios. A fumaça os
sufocava e feria seus olhos, as lágrimas os cegavam enquanto lutavam para
controlar o medo dracônico que ameaçava destruir sua razão.
O calor era tão intenso que construções inteiras explodiram. Tanis
pegou Gilthanas quando o elfo foi jogado para a lateral de um prédio.
Segurando-se nele, o meio-elfo só pôde assistir, impotente, enquanto o
resto de seus amigos era levado pela turba.
— Voltem para a Hospedaria! — Tanis gritou. — Vamos nos encon-
trar na Hospedaria! — Mas se eles ouviram ou não, não conseguia dizer. Só
podia acreditar que todos tentariam seguir nessa direção.
Sturm segurou Alhana em seus braços fortes, meio a carregando,
meio arrastando pelas ruas cheias de morte. Espiando através das cinzas,
ele tentou ver os outros, mas era inútil. Foi quando começou a batalha mais
desesperada que ele já lutara, esforçando-se para se manter em pé e carregar
Alhana enquanto as ondas terríveis de humanos se arrebentavam sobre eles.
Então, Alhana foi arrancada de seus braços pela multidão, cujas
botas pisoteavam tudo o que vivia. Sturm se jogou nela, empurrando
e batendo com seus braços encouraçado, e pegou os pulsos de Alhana.
Mortalmente pálida, ela tremia de medo. Ela se agarrou nas mãos dele
com toda a sua força e, finalmente, ele conseguiu puxá-la para perto. Uma
sombra passou sobre eles. Um dragão, urrando cruelmente, avançou sobre
a rua, fazendo ondas de homens, mulheres e crianças fugirem. Sturm se
abaixou em uma entrada, arrastando Alhana com ele, e protegeu-a com
seu corpo enquanto o dragão voava baixo. O fogo encheu a rua. Os gritos
dos moribundos eram dolorosos.

77
— Não olhe! — Sturm sussurrou para Alhana, pressionando-a contra
ele, com lágrimas escorrendo pelo próprio rosto. O dragão passou e, de re-
pente, as ruas estavam horríveis, insuportavelmente quietas. Nada se mexia.
— Vamos embora, enquanto podemos — disse Sturm, com a voz
trêmula. Agarrados um ao outro, os dois tropeçaram para fora da passagem,
seus sentidos entorpecidos, movendo-se apenas por instinto. Finalmente,
enjoados e atordoados pelo cheiro de carne queimada e fumaça, foram
forçados a procurar abrigo em outra passagem.
Por um momento, não conseguiam fazer nada além de se abraçar,
agradecidos pelo breve descanso, mas assombrados pelo conhecimento de
que, em segundos, deviam voltar às ruas mortais.
Alhana encostou a cabeça no peito de Sturm. A armadura antiga e
antiquada parecia fria contra sua pele. Sua superfície dura de metal era
reconfortante e, por baixo, ela podia sentir o coração dele batendo, rápido,
firme e reconfortante. Os braços que a abraçavam eram fortes, duros e
musculosos. A mão dele acariciava seu cabelo preto.
Alhana, a donzela casta de um povo severo e rígido, sabia há tempos
quando, onde e com quem se casaria. Ele era um elfo um marco de seu en-
tendimento que, em todos os anos desde que isso foi arranjado, eles nunca
se tocaram. Ele ficou para trás com o povo, enquanto Alhana voltou para
encontrar seu pai. Ela se perdera nesse mundo de humanos e seus sentidos
foram sacudidos com o choque. Detestava-os, mas era fascinada por eles.
Eles eram tão poderosos, suas emoções cruas e indomáveis. E justamente
quando pensou que os odiaria e desprezaria para sempre, um se diferenciou
dos outros.
Alhana olhou para o rosto em luto de Sturm e o viu marcado com
orgulho, nobreza, uma disciplina rígida e inflexível, esforço constante pela
perfeição... perfeição inatingível. E, mesmo assim, a tristeza profunda em
seus olhos. Alhana se sentiu atraída por esse homem, esse humano. Ce-
dendo a sua força, confortada por sua presença, ela sentiu um calor doce e
ardente a percorrê-la e, de repente, percebeu que estava mais em perigo por
causa disso do que pelo fogo de mil dragões.
— É melhor irmos — sussurrou Sturm gentilmente, mas, para sua
surpresa, Alhana afastou-se dele.
— Aqui nós nos separamos — ela disse, sua voz fria como o vento da
noite. — Devo retornar ao meu alojamento. Obrigada por me acompanhar.

78
— O que? — disse Sturm. — Ir sozinha? Isso é loucura. — Ele es-
tendeu a mão e agarrou o braço dela. — Não posso permitir... — A coisa
errada a dizer, ele percebeu, sentindo-a enrijecer. Ela não se moveu, mas
simplesmente o encarou imperiosamente até que ele a soltasse.
— Eu tenho meus amigos — disse ela — assim como você. Sua leal-
dade está com eles. Minha lealdade está com os meus. Temos que seguir
caminhos separados. — Sua voz vacilou diante do olhar de dor intensa no
rosto de Sturm, ainda molhado de lágrimas. Por um momento, Alhana não
conseguiu suportar e se perguntou se teria forças para continuar. Então,
pensou em seu povo... dependendo dela. E encontrou a força. — Agradeço
sua gentileza e sua ajuda, mas agora preciso ir, enquanto as ruas estão vazias.
Sturm olhou para ela, magoado e confuso. Então, seu rosto endureceu.
— Foi um prazer ser útil, Senhora Alhana. Mas você ainda está em perigo.
Permita-me levá-la até o seu alojamento, então não a incomodarei mais.
— Isso é completamente impossível — disse Alhana, cerrando os dentes
para manter a mandíbula firme. — Meu alojamento não está longe e meus
amigos esperam por mim. Temos uma forma de sair da cidade. Perdoe-me
por não o levar, mas nunca tenho certeza sobre confiar em humanos.
Os olhos castanhos de Sturm brilharam. De pé e perto, Alhana podia
sentir o corpo dele tremer. Mais uma vez, ela quase perdeu sua determinação.
— Eu sei onde você está hospedado — disse ela, engolindo em seco.
— Na Hospedaria do Dragão Vermelho. Talvez, se eu encontrar meus
amigos... nós possamos oferecer ajuda...
— Não se preocupe. — A voz de Sturm ecoou a frieza dela. — E
não me agradeça. Não fiz nada além do que o meu Código exigia de mim.
Adeus — ele disse e começou a se afastar.
Então, lembrando, ele se virou. Tirando o alfinete de diamante
cintilante de seu cinto, o colocou na mão de Alhana. — Aqui — disse.
Olhando em seus olhos escuros, ele viu, de repente, a dor que ela tentou
esconder. Sua voz suavizou, embora ele não pudesse entender. — Fico
feliz que você confiou esta joia a mim — ele disse gentilmente — mesmo
que por alguns momentos.
A elfa ficou observando a joia por um instante, depois começou a
tremer. Seu olhar se ergueu até os olhos de Sturm e ela não viu desprezo
neles, como esperava, mas compaixão. Mais uma vez, ela refletia sobre os
humanos. Alhana baixou a cabeça, incapaz de encontrar o olhar dele, e

79
pegou-o pela mão. Então, colocou a joia na palma da mão dele e fechou-lhe
os dedos sobre ela.
— Fique com isto — ela disse suavemente. — Quando olhar para
isso, pense em Alhana Brisestelar e saiba que, em algum lugar, ela pensa
em você.
Lágrimas repentinas inundaram os olhos do cavaleiro. Ele abaixou a
cabeça, incapaz de falar. Então, beijando a joia, colocou-a cuidadosamente
de volta no cinto e estendeu as mãos, mas Alhana recuou para a passagem,
seu rosto pálido se desviando.
— Por favor, vá — disse ela. Sturm ficou parado por um momento,
indeciso, mas não podia, pela honra, recusar-se a obedecer ao pedido dela.
O cavaleiro se virou e mergulhou de novo na rua atemorizante. Alhana o
observou da passagem por um momento, uma casca protetora endurecendo
ao redor dela. — Me perdoe, Sturm — sussurrou para si mesma. Então, ela
parou. — Não, não me perdoe — disse duramente. — Me agradeça.
Fechando os olhos, ela evocou uma imagem em sua mente e enviou
uma mensagem para a periferia da cidade, onde seus amigos esperavam
para tirá-la deste mundo de humanos. Recebendo sua resposta telepática,
Alhana suspirou e começou ansiosamente a examinar os céus cheios de
fumaça, esperando.

— Ah — Raistlin disse calmamente quando o toque da primeira


trombeta quebrava a quietude da tarde. — Eu avisei.
Vento Ligeiro lançou um olhar irritado para o mago, enquanto tenta-
va pensar no que fazer. Não havia problema em Tanis dizer para proteger o
grupo dos guardas da cidade, mas protegê-los dos exércitos de draconianos,
dos dragões! Os olhos escuros de Vento Ligeiro passaram pelo grupo. Tika
se levantou, com a mão na espada. A jovem era corajosa e firme, mas sem
habilidade. O homem das Planícies ainda podia ver as cicatrizes em sua
mão onde ela se cortara.
— O que foi? — Elistan perguntou, parecendo desnorteado.
— O Senhor dos Dragões, atacando a cidade — Vento Ligeiro
respondeu de forma grosseira, tentando pensar.
Ele ouviu um som estridente. Caramon estava se levantando, o guer-
reiro parecendo calmo e tranquilo. Que bom por isso! Mesmo que Vento
Ligeiro detestasse Raistlin, precisava admitir que o mago e seu irmão guer-
reiro combinavam aço e magia com eficácia. Ele também viu que Laurana

80
parecia serena e decidida, mas ela era uma elfa... e Vento Ligeiro nunca
aprendera a confiar nos elfos.
“Saiam da cidade, se não voltarmos”, Tanis dissera. Mas ele não previra
isso! Eles sairiam da cidade apenas para encontrar os exércitos dos Senhores
do Dragão nas planícies. Vento Ligeiro agora tinha uma excelente ideia de
quem estava os observando enquanto viajavam para esse lugar condenado.
Ele praguejou para si mesmo em sua própria língua, então, mesmo quando
os primeiros dragões voavam pela cidade, sentiu o braço de Lua Dourada ao
seu redor. Olhando para baixo, ele a viu sorrir, o sorriso da filha do Líder,
e viu a fé em seus olhos. Fé nos deuses e fé nele. Ele relaxou, seu breve
momento de pânico se foi.
Uma onda de choque atingiu o prédio. Eles podiam ouvir os gritos nas
ruas abaixo, o rugido dos incêndios.
— Temos que sair deste andar, de volta ao térreo — disse Vento Ligei-
ro. — Caramon, traga a espada do cavaleiro e as outras armas. Se Tanis e os
outros estiverem... — Ele parou, estava prestes a dizer “ainda vivos”, então
viu o rosto de Laurana. — Se Tanis e os outros escaparem, eles voltarão para
cá. Vamos esperar por eles.
— Decisão excelente! — sibilou o mago causticamente. — Especial-
mente porque não temos mais para onde ir!
Vento Ligeiro o ignorou. — Elistan, leve os outros para baixo. Cara-
mon e Raistlin, fiquem comigo por um momento. — Depois dos outros
saírem, ele falou rapidamente: — Pelo que vejo, nossa melhor chance é ficar
dentro da Hospedaria, fazer barricadas. As ruas serão mortais.
— Quanto tempo acha que podemos aguentar? — perguntou Caramon.
Vento Ligeiro balançou a cabeça. — Horas, talvez — disse brevemente.
Os irmãos olharam para ele, cada um deles pensando nos corpos
torturados que viram na aldeia de Qué-Shu, no que ouviram sobre a des-
truição de Consolação.
— Não podemos ser levados vivos — Raistlin sussurrou.
Vento Ligeiro respirou fundo. — Vamos aguentar o máximo que
pudermos — disse ele, sua voz tremendo um pouco — mas quando sou-
bermos que não vamos durar muito mais...
Ele parou, incapaz de continuar, a mão na faca, pensando no que
deveria fazer.
— Não será preciso — Raistlin disse suavemente. — Eu tenho ervas.
Um pouquinho de vinho em um copo. Muito rápido, indolor.

81
— Tem certeza? — Vento Ligeiro perguntou.
— Confie em mim — respondeu Raistlin. — Sou especialista na
arte. A arte do herbalismo — corrigiu suavemente, vendo o homem das
Planícies estremecer.
— Se eu estiver vivo — Vento Ligeiro disse baixinho — darei a ela, a
eles... e beberei eu mesmo. Se não estiver...
— Eu entendo. Pode confiar em mim — repetiu o mago.
— E Laurana? — perguntou Caramon. — Você conhece os elfos.
Ela não vai...
— Deixe isso comigo — Raistlin repetiu baixinho.
O homem das Planícies olhou para o mago, sentindo o horror raste-
jando sobre si. Raistlin parou diante dele friamente, com os braços cruzados
nas mangas do manto, o capuz puxado sobre a cabeça. Vento Ligeiro olhou
para sua adaga, considerando a alternativa. Não, ele não conseguiria fazer
isso. Não dessa maneira.
— Muito bem — disse ele, engolindo o seco. E fez uma pausa, temendo
descer e encarar os outros. Mas os sons da morte na rua estavam ficando mais
altos. Vento Ligeiro se virou abruptamente e deixou os irmãos sozinhos.
— Vou morrer lutando — Caramon disse para Raistlin, tentando
falar em um tom prático. Depois das primeiras palavras, no entanto, a voz
do grande guerreiro falhou. — Prometa-me, Raist, você vai beber essa coisa
se eu não... estiver lá...
— Não será preciso — Raistlin disse de forma simples. — Não tenho
a força para sobreviver a uma batalha dessa magnitude. Vou morrer dentro
da minha magia.

Tanis e Gilthanas abriram caminho entre a multidão, o meio-elfo mais


forte segurando o elfo enquanto empurravam, arranhavam, e forçavam as
massas em pânico. Repetidas vezes, eles se esconderam dos dragões. Gil-
thanas torceu o joelho, caiu em uma passagem e foi obrigado a mancar em
agonia, apoiando-se no ombro de Tanis.
O meio-elfo soltou uma prece de gratidão ao ver a Hospedaria do
Dragão Vermelho, uma prece que se transformou em uma praga quando
viu as formas reptilianas escuras surgindo na frente. Ele arrastou Gilthanas,
que estava tropeçando cegamente, exausto pela dor, de volta para uma
passagem recuada.
— Gilthanas! — Tanis gritou. — A Hospedaria! Está sob ataque!

82
Gilthanas ergueu os olhos vidrados e viu, sem compreender. Então,
aparentemente entendendo, suspirou e balançou a cabeça. – Laurana! —
engasgou e se forçou para frente, tentando cambalear para fora da passagem.
— Temos que chegar até eles. — E desabou nos braços de Tanis.
— Fique aqui — o meio-elfo disse, o ajudando a sentar. — Você não
consegue se mover. Vou tentar passar. Darei a volta no quarteirão e entrarei
por trás.
Tanis correu para frente, entrando e saindo de passagens, se escon-
dendo nos destroços. Ele estava a cerca de um quarteirão da hospedaria
quando ouviu um grito rouco. Virando-se para olhar, viu Flint gesticulando
freneticamente. Tanis atravessou a rua.
— O que foi? — ele perguntou.
— Por que você não está com os outros? — O meio-elfo parou. —
Oh, não — sussurrou.
O anão, com o rosto manchado de cinzas e marcado de lágrimas,
ajoelhou-se ao lado de Tasslehoff. O kender estava preso sob uma viga que
caíra na rua. O rosto de Tas, parecendo o de uma criança esperta, estava
pálido, a pele fria e úmida.
— Maldito kender cabeça de vento — Flint lastimou. — Tinha que ir
e deixar uma casa cair sobre ele. — As mãos do anão estavam machucadas
e sangrando por tentar levantar uma viga, que precisaria de três homens ou
um Caramon, para tirar o kender. Tanis pôs a mão no pescoço de Tas. Seu
batimento estava muito fraco.
— Fique com ele! — Tanis disse desnecessariamente. — Vou para a
Hospedaria. Eu trarei Caramon!
Flint o encarou, triste, depois olhou para a Hospedaria. Ambos ou-
viram os gritos dos draconianos, viram suas armas brilharem no clarão do
incêndio. Ocasionalmente, uma luz artificial de magia surgia na Hospeda-
ria... Raistlin. O anão balançou a cabeça. Sabia que Tanis era tão capaz de
voltar com Caramon quanto ele era capaz de voar.
Mas Flint conseguiu sorrir. — Claro, rapaz, ficarei com ele. Adeus,
Tanis.
Tanis engoliu em seco, tentou responder, depois desistiu e correu pela rua.

Raistlin, tossindo até que mal pudesse ficar de pé, limpou o sangue dos
lábios e tirou uma pequena bolsa de couro preto de dentro de seu manto.
Tinha apenas uma magia sobrando e a energia o suficiente para lançá-la.

83
Agora, com as mãos trêmulas de fadiga, ele tentou espalhar o conteúdo da
pequena bolsa em uma jarra de vinho que ele pedira para Caramon trazer
antes que a batalha começasse. Mas sua mão tremia violentamente e seus
espasmos de tosse o faziam se dobrar.
Então, ele sentiu outra mão agarrar a sua. Olhando para cima, ele viu
Laurana. Ela tirou a bolsa de seus dedos frágeis. Sua própria mão estava
manchada com o sangue verde-escuro draconiano.
— O que é isso? — ela perguntou.
— Ingredientes para uma magia. — O mago se engasgou. — Despeje
no vinho. — Laurana assentiu e colocou a mistura, conforme instruída. Ela
desapareceu instantaneamente.
— Não beba — o mago avisou quando o espasmo da tosse passou.
Laurana olhou para ele. — O que é?
— Uma poção para dormir — Raistlin sussurrou, seus olhos brilhando.
Laurana sorriu ironicamente. — Você não acha que conseguiremos
dormir esta noite?
— Não desse tipo — Raistlin respondeu, a encarando atentamente. —
Esta é de morte aparente. O batimento diminui até quase nada, a respiração
quase para, a pele fica fria e pálida, os membros enrijecem.
Laurana arregalou os olhos. — Por que... — ela começou.
— Para ser usado como último recurso. O inimigo pensa que você está
morto, deixa você no campo... se tiver sorte. Caso contrário...
— Caso contrário? — ela perguntou, seu rosto pálido.
— Bem, dizem que alguns despertarem em suas próprias piras fune-
rárias — Raistlin disse friamente. — Contudo, não acredito que isso vá
acontecer conosco.
Respirando mais facilmente, ele se sentou, abaixando involuntaria-
mente enquanto uma flecha disparada passava por cima e caía no chão atrás
dele. Ele viu a mão de Laurana tremer e percebeu que ela não estava tão
calma como se forçava a aparecer.
— Você pretende que nós tomemos isso? — ela perguntou.
— Isso nos salvará de sermos torturados pelos draconianos.
— Como sabe disso?
— Confie em mim — disse o mago com um leve sorriso.
Laurana olhou para ele e estremeceu. Distraidamente, ela limpou os
dedos manchados de sangue em sua armadura de couro. O sangue não saiu,

84
mas ela não percebeu. Uma flecha bateu ao seu lado. Ela sequer se assustou,
apenas olhou fixamente.
Caramon apareceu, tropeçando para fora da fumaça do salão comum
em chamas. Ele estava sangrando de uma ferida de flecha no ombro, seu
próprio sangue vermelho se misturando estranhamente com o sangue verde
de seu inimigo.
— Estão derrubando a porta da frente — ele disse, respirando pesada-
mente. Vento Ligeiro nos mandou de volta para cá.
— Escutem! — Raistlin avisou. — Esse não é o único lugar que
estão invadindo! — Houve um golpe despedaçante na porta que levava da
cozinha ao beco.
Prontos para se defender, Caramon e Laurana se viraram quando a
porta se despedaçou. Uma figura alta e escura entrou.
— Tanis! — Laurana gritou. Embainhando a arma, ela correu em
sua direção.
— Laurana! — Ele respirou. Pegando-a em seus braços, ele a abraçou,
quase soluçando em seu alívio. Então, Caramon lançou seus enormes bra-
ços ao redor dos dois.
— Como estão todos? — Tanis perguntou, quando conseguiu falar.
— Até agora, tudo bem — disse Caramon, olhando para trás de Tanis.
Seu rosto caiu quando viu que ele estava sozinho. — Onde está...
— Eu me perdi de Sturm — disse Tanis, cansado. — Flint e Tas estão
do outro lado da rua. O kender está preso sob uma viga. Gilthanas está a
quase dois quarteirões de distância. Ele está ferido — Tanis disse a Laurana.
— Não muito mal, mas não conseguiu avançar mais.
— Bem-vindo, Tanis — Raistlin sussurrou, tossindo. — Você chegou
a tempo de morrer com a gente.
Tanis olhou para a jarra, viu a bolsa preta perto dela e encarou Raistlin
em um choque súbito.
— Não — disse com firmeza. — Não vamos morrer. Pelo menos não
como... — ele parou bruscamente. — Junte todos.
Caramon se afastou, gritando na mais alta voz. Vento Ligeiro correu
para dentro do salão comum onde ele estava atirando as flechas dos inimi-
gos de volta para eles, as suas próprias tendo acabado há muito tempo. Os
outros o seguiram, sorrindo com esperança para Tanis.
A visão de sua fé nele enfureceu o meio-elfo. “Algum dia”, ele pensou,
“vou fracassar. Talvez eu já tenha”. Ele balançou a cabeça com raiva.

85
— Ouçam! — Ele gritou, tentando se fazer ouvir sobre o barulho
dos draconianos do lado de fora. — Podemos escapar pela parte de trás!
Apenas uma força pequena está atacando a Hospedaria. A parte principal
do exército ainda não está na cidade.
— Alguém está atrás de nós — Raistlin murmurou.
Tanis concordou. — Assim parece. Não temos muito tempo. Se con-
seguirmos chegar às colinas...
De repente ele ficou em silêncio, levantando a cabeça. Todos ficaram
em silêncio, ouvindo, reconhecendo o grito estridente, o rangido de asas de
couro gigantes, chegando cada vez mais perto.
— Protejam-se! — Vento Ligeiro gritou. Mas era tarde demais.
Houve um chiado estridente e um estrondo. A Hospedaria, de três
andares, construída com pedra e madeira, tremia como se fosse feita de
areia e gravetos. O ar explodiu com poeira e detritos. Chamas irromperam
do lado de fora. Acima deles, podiam ouvir o som da madeira se partindo
e quebrando, o ruído das tábuas caindo. A construção começou a desabar
sobre si mesma.
Os companheiros observavam atordoados, paralisados pela visão das
vigas gigantescas do teto estremecendo sob o esforço enquanto o telhado
desabava sobre os andares superiores.
— Saiam! — Tanis gritou. — O lugar todo vai...
A viga diretamente acima do meio-elfo emitiu um grande rangido,
depois se partiu e rachou. Segurando Laurana pela cintura, Tanis a atirou o
mais longe que pôde e viu Elistan, parado perto da frente da Hospedaria,
segurando-a nos braços.
Quando a viga enorme acima de Tanis cedeu com um tremendo
estalo, ele ouviu o mago gritar palavras estranhas. Então, ele estava caindo,
caindo na escuridão... e parecia que o mundo caia em cima dele.

Sturm virou a esquina para ver a Hospedaria do Dragão Vermelho


desmoronar em uma nuvem de chamas e fumaça enquanto um dragão
sobrevoava o céu. O coração do cavaleiro bateu descontroladamente com
pesar e medo.
Ele se enfiou em uma entrada, se escondendo nas sombras enquanto
alguns draconianos passavam, rindo e falando em seu idioma frio e gutural.
Aparentemente, eles presumiram que este trabalho estava terminado e
buscavam outra distração. Três outros, ele percebeu, vestidos em uniformes

86
azuis, não vermelhos, pareciam extremamente chateados com a destruição
da Hospedaria, sacudindo o punho contra o dragão vermelho no alto.
Sturm sentiu a fraqueza do desespero tomar conta. Ele se apoiou na
porta, observando os draconianos, imaginando o que fazer a seguir. Eles
ainda estavam lá? Talvez tivessem escapado. Então, seu coração deu um
salto doloroso. Ele viu algo branco de relance.
— Elistan! — ele gritou, vendo o clérigo emergir dos escombros, ar-
rastando alguém com ele. Os draconianos, com as espadas desembainhadas,
correram em direção ao clérigo, berrando em comum para ele se render.
Sturm gritou o desafio de um cavaleiro solâmnico para um inimigo e cor-
reu para fora da passagem. Os draconianos se viraram, consideravelmente
desconcertados ao ver o cavaleiro.
Sturm mal percebeu que outra figura estava correndo com ele. Olhan-
do para o lado, ele viu o brilho da luz do fogo refletido em um elmo de
metal e ouviu o anão rugindo. Então, de uma porta, ouviu palavras arcanas.
Gilthanas, incapaz de ficar em pé sem ajuda, se arrastou e apontou
para os draconianos, recitando sua magia. Dardos flamejantes saltaram de
suas mãos. Uma das criaturas caiu, segurando o peito em chamas. Flint
pulou sobre a outra, batendo em sua cabeça com uma pedra, enquanto
Sturm derrubou o outro draconiano com um soco. Sturm aparou Elistan
em seus braços quando o homem cambaleou para a frente. O clérigo estava
carregando uma mulher.
— Laurana! — Gilthanas gritou da porta.
Desnorteada e nauseada pela fumaça, a elfa ergueu os olhos vidrados.
— Gilthanas? — murmurou. Então, olhando para cima, ela viu o cavaleiro.
— Sturm — ela disse, confusa, apontando para trás vagamente. —
Sua espada, está aqui. Eu a vi...
De fato, Sturm viu um lampejo prateado, quase invisível por baixo
dos escombros. Sua espada e, ao lado dela, estava a espada de Tanis, a
lâmina élfica de Kith-Kanan. Afastando as pilhas de pedra, Sturm levantou
com reverência as espadas que jaziam como artefatos dentro de um túmulo
horrendo e gigantesco. O cavaleiro escutou em busca de movimentos,
chamados, choros. Havia apenas um silêncio terrível.
— Temos que sair daqui — disse ele lentamente, sem se mover. Olhou
para Elistan, que estava encarando os destroços, seu rosto mortalmente
pálido. — Os outros?

87
— Todos estavam lá — disse Elistan com uma voz trêmula. — E o
meio-elfo ...
— Tanis?
— Sim. Ele entrou pela porta dos fundos, pouco antes de o dragão
atacar a Hospedaria. Todos estavam juntos, bem no meio. Eu estava de pé
embaixo de uma passagem. Tanis viu a viga se quebrando. Ele jogou Laurana.
Eu a peguei, então o teto desabou sobre eles. Não há como eles terem...
— Eu não acredito! — Flint disse ferozmente, pulando nos escombros.
Sturm o agarrou e puxou de volta.
— Onde está Tas? — o cavaleiro perguntou ao anão com firmeza.
O rosto do anão caiu. — Preso sob uma viga — disse, com o rosto
cinzento de dor e tristeza. Ele agarrou seu cabelo, descontrolado, derru-
bando seu elmo. — Tenho que voltar para ele. Mas não posso deixá-los...
Caramon... — O anão começou a chorar, lágrimas escorrendo em sua
barba. — Esse touro grande e idiota! Preciso dele. Ele não pode fazer isso
comigo! Nem Tanis! — O anão praguejou. — Droga, eu preciso deles!
Sturm colocou a mão no ombro de Flint. — Volte para Tas. Ele
precisa de você agora. Draconianos estão perambulando pelas ruas. Esta-
remos todos...
Laurana gritou, um som aterrorizante e lamentável que perfurou
Sturm como uma lança. Virando-se, ele a segurou assim que ela começou a
correr para os destroços.
— Laurana! — ele gritou. — Veja! Veja bem! — Ele a sacudiu em sua
própria angústia. — Nada poderia estar vivo lá dentro!
— Você não sabe disso! — ela gritou em fúria, se afastando dele. Cain-
do de joelhos e com as mãos tentou levantar uma das pedras enegrecidas.
— Tanis! — gritou. A pedra era tão pesada que ela só conseguia movê-la
alguns centímetros.
Sturm assistia, deprimido, incerto sobre o que fazer. Então, teve sua
resposta. Trombetas! Mais e mais perto. Centenas, milhares de trombetas.
Os exércitos estavam invadindo. Ele olhou para Elistan, que assentiu com
tristeza. Os dois correram para Laurana.
— Minha querida — Elistan começou gentilmente — não há nada
que você possa fazer por eles. Os vivos precisam de você. Seu irmão está
ferido, assim como o kender. Os draconianos estão invadindo. Devemos
fugir agora e continuar lutando contra esses monstros horríveis ou gasta-

88
remos nossas vidas em um sofrimento inútil. Tanis deu a vida por você,
Laurana. Não deixe que isso seja um sacrifício desnecessário.
Laurana o encarou, seu rosto escurecido por fuligem e sujeira,
manchado de lágrimas e sangue. Ela ouviu as trombetas, ouviu Gilthanas
chamando, ouviu Flint gritando algo sobre Tasslehoff morrendo, ouviu as
palavras de Elistan. E, então, a chuva começou, caindo dos céus enquanto
o calor do fogo dracônico derretia a neve, transformando-a em água.
A chuva escorria pelo seu rosto, esfriando sua pele febril.
— Me ajude, Sturm — ela sussurrou pelos lábios quase entorpecidos
demais para moldar as palavras. Ele colocou o braço ao seu redor. Ela se
levantou, tonta, enjoada e abalada.
— Laurana! — seu irmão chamou. Elistan estava certo. Os vivos
precisavam dela. Ela deveria ir até ele. Embora preferisse se deitar nessa
pilha de pedras e morrer, ela deveria continuar. Era isso o que Tanis faria.
Eles precisavam dela. Ela deveria continuar.
— Adeus, Tanthalas — ela sussurrou.
A chuva aumentou, caindo suavemente, como se os próprios deuses
chorassem por Tarsis, a Bela.

A água pingava na sua cabeça. Era irritante, frio. Raistlin tentou rolar
para fora do caminho da água. Mas não conseguia se mexer. Havia um peso
em cima dele, o pressionando. Em pânico, ele tentou escapar desesperada-
mente. Enquanto uma onda de medo passava pelo seu corpo, ele recuperou
completamente a consciência. Com o conhecimento, o pânico desapareceu.
Raistlin estava no controle mais uma vez e, como fora ensinado, se forçou
a relaxar e estudar a situação.
Ele não conseguia ver nada. Estava intensamente escuro, então foi for-
çado a confiar em seus outros sentidos. Primeiro, precisava tirar esse peso.
Ele estava sendo sufocado e esmagado. Com cuidado, moveu seus braços.
Não havia dor, nada parecia quebrado. Estendendo a mão, ele tocou um
corpo. Caramon, pela armadura... e pelo cheiro. Ele suspirou. Ele deveria
saber. Usando toda a sua força, Raistlin empurrou seu irmão para o lado e
se arrastou de debaixo dele.
O mago respirou mais facilmente, limpando a água do rosto. Ele loca-
lizou o pescoço de seu irmão na escuridão e sentiu o batimento. Era forte,
a pele do homem estava quente, a respiração regular. Raistlin deitou-se no
chão, aliviado. Pelo menos, onde quer que estivesse, não estava sozinho.

89
Onde estava? Raistlin reconstruiu aqueles últimos momentos aterro-
rizantes. Lembrou-se da viga quebrando e de Tanis jogando Laurana para
fora. Lembrou de ter lançado uma magia, a última para qual tinha força
o suficiente para conseguir. A mágica percorreu seu corpo, criando em
torno de si e daqueles perto dele uma força capaz de protegê-los dos objetos
físicos. Ele se lembrou de Caramon se atirando em cima dele, a construção
desmoronando ao seu redor e uma sensação de estar caindo.
Caindo...
Ah, Raistlin entendeu. Devemos ter caído através do chão, no porão
da Hospedaria. Tateando pelo chão de pedra, o mago percebeu de repente
que estava encharcado. Finalmente, no entanto, encontrou o que estava
procurando, o Cajado de Magius. Seu cristal estava intacto. Apenas o fogo
dracônico poderia danificar o Cajado dado a ele por Par-Salian nas Torres
da Alta Magia.
— Shirak – Raistlin sussurrou e o Cajado se acendeu. Sentando-se, ele
olhou ao redor. Sim, estava certo. Eles estavam no porão da Hospedaria.
Garrafas quebradas de vinho derramavam seu conteúdo no chão. Barris de
cerveja foram partidos em dois. Não era em água que ele estava deitado.
O mago lançou a luz ao redor. Lá estavam Tanis, Vento Ligeiro, Lua
Dourada e Tika, todos amontoados perto de Caramon. “Eles parecem
bem”, pensou, ao fazer uma inspeção rápida. Em volta deles, havia detritos
espalhados. Metade da viga ficou inclinada sobre os escombros, repousando
no chão de pedra. Raistlin sorriu. Essa magia fez um bom trabalho. Mais
uma vez, estavam em dívida com ele.
Se não morrermos de frio, ele se lembrou amargamente. Seu corpo
estava tremendo, tanto que mal conseguia segurar o cajado. Ele começou a
tossir. Esta seria a sua morte. Eles precisavam sair.
— Tanis — ele chamou, estendendo a mão para balançar o meio-elfo.
Tanis estava deitado na beira do círculo mágico protetor de Raistlin.
Ele murmurou e se mexeu. Raistlin o sacudiu novamente. O meio-elfo
gritou, cobrindo reflexivamente a cabeça com o braço.
— Tanis, você está seguro — Raistlin sussurrou, tossindo. — Acorde.
— O que? — Tanis se sentou rígido, olhando em volta. — Onde... —
então, ele se lembrou. — Laurana?
— Se foi. — Raistlin deu de ombros. — Você a jogou para fora do
perigo...

90
— Sim... — Tanis disse, relaxando de volta. — E eu ouvi você dizer
palavras, mágicas...
— É por isso que não fomos esmagados. — Raistlin segurou as roupas
molhadas ao seu redor, tremendo, e se aproximou de Tanis, que olhava em
volta como se tivesse caído em uma lua.
— Onde em nome do Abismo...
— Estamos no porão da Hospedaria — disse o mago. — O chão
cedeu e nos derrubou aqui. — Tanis olhou para cima. — Por todos os
deuses — sussurrou em espanto.
— Sim — disse Raistlin, seu olhar seguindo o de Tanis. — Estamos
enterrados vivos.
Sob as ruínas da Hospedaria do Dragão Vermelho, os companheiros
fizeram um balanço de sua situação. Não parecia haver muita esperança.
Lua Dourada tratou seus ferimentos, que não eram graves, graças à magia
de Raistlin. Mas eles não tinham ideia de quanto tempo ficaram incons-
cientes ou o que estava acontecendo acima deles. Pior ainda, não tinham
ideia de como poderiam escapar.
Caramon tentou cuidadosamente mover algumas das rochas acima
de suas cabeças, mas toda a estrutura rangeu e chiou. Raistlin o lembrou
claramente que não tinha energia para lançar mais magias e Tanis disse
cansado ao grandalhão para deixar isso de lado. Eles se sentaram na água
que estava ficando mais funda o tempo todo.
Como Vento Ligeiro afirmou, parecia ser uma questão de o que os
mataria primeiro: falta de ar, congelar até a morte, a Hospedaria desabar
em cima deles ou se afogar.
— A gente podia gritar por socorro — sugeriu Tika, tentando manter
a voz firme.
— Adicione draconianos à lista, então — Raistlin retrucou. — São as
únicas criaturas que poderão ouvi-la.
O rosto de Tika ficou vermelho e ela passou a mão rapidamente pelos
olhos. Caramon lançou um olhar reprovador para o irmão, depois colocou
o braço em torno de Tika e a abraçou. Raistlin deu a ambos uma expressão
de desgosto.
— Não ouvi um som lá em cima — Tanis disse, intrigado. — Você
acha que os dragões e os exércitos... — ele parou, seu olhar se encontrando
com o de Caramon, os dois soldados balançando a cabeça lentamente em
uma compreensão súbita e sombria.

91
— O quê? — perguntou Lua Dourada, olhando para eles.
— Estamos atrás das linhas inimigas — disse Caramon. — Os exérci-
tos dos draconianos ocuparam a cidade. E provavelmente a terra por vários
quilômetros ao redor. Não há saída. E nenhum lugar para ir, mesmo se
houvesse uma saída.
Para enfatizar suas palavras, os companheiros ouviram sons acima
deles. Vozes draconianas guturais, que eles vieram a conhecer muito bem,
passaram por eles.
— Estou dizendo, é uma perda de tempo — lamentou outra voz, goblin
pelo som, falando em comum. — Não há ninguém vivo nesta bagunça.
— Diga isso ao Senhor dos Dragões, seus miseráveis devoradores de
cachorro — rosnou o draconiano. — Tenho certeza de que Vossa Senhoria
estará interessada pela sua opinião. Ou melhor, seu dragão estará interessa-
do. Você tem suas ordens. Agora cavem, todos vocês.
Havia sons de raspagem, sons de pedras sendo arrastadas para o lado.
Riachos de sujeira e poeira começaram a penetrar nas fendas. A viga grande
estremeceu levemente, mas segurou.
Os companheiros se entreolharam, quase prendendo a respiração,
cada um recordando os draconianos estranhos que atacaram a hospedaria.
— Alguém está atrás de nós — disse Raistlin.
— O que estamos procurando neste entulho? — resmungou um
goblin no idioma goblin. — Prata? Joias?
Tanis e Caramon, que falavam um pouco de goblin, se esforçaram
para ouvir.
— Nem — disse o primeiro goblin, que reclamou sobre as ordens. —
Espiões ou algo assim, procurados pessoalmente pelo Senhor dos Dragões
para interrogatório.
— Aqui? — perguntou o goblin, perplexo.
— Foi isso o que eu disse — rosnou seu companheiro. — Você viu
o que eu consegui. Os homens-lagarto disseram que eles ficaram presos
na Hospedaria, quando o dragão a atacou. Disseram que nenhum deles
escapou, e então o Senhor imagina que eles ainda devem estar aqui. Se me
perguntar... os dracos fizeram uma bagunça e agora temos que pagar pelos
erros deles.
Os sons da escavação e do movimento das rochas ficaram mais altos,
assim como o som das vozes dos goblins, ocasionalmente pontuadas por

92
uma ordem vigorosa na voz gutural dos draconianos. “Deve haver cinquen-
ta deles lá em cima!”, Tanis pensou atordoado.
Vento Ligeiro tirou silenciosamente a espada da água e começou a
secá-la. Com seu rosto normalmente alegre, um Caramon lúgubre soltou
Tika e alcançou sua espada. Como Tanis não tinha uma espada, Vento
Ligeiro jogou sua adaga para ele. Tika começou a sacar sua espada, mas
Tanis sacudiu a cabeça. Eles lutariam de perto e Tika precisava de muito
espaço. O meio-elfo olhou de forma inquisitiva para Raistlin.
O mago balançou a cabeça. — Vou tentar, Tanis — ele sussurrou.
— Mas estou muito cansado. Muito cansado. E não consigo pensar, não
consigo me concentrar. — Ele abaixou a cabeça, tremendo violentamente
em seu manto molhado. Estava fazendo todo o esforço para não tossir e
entregar sua posição, abafando seu engasgo na manga.
“Uma magia acabará com ele, se conseguir”, Tanis percebeu. “Ainda
assim, ele pode ter mais sorte do que o resto de nós. Pelo menos, não será
levado vivo.”
Os sons acima deles ficaram cada vez mais altos. Goblins são trabalha-
dores fortes e incansáveis. Eles queriam terminar esse trabalho rapidamente,
depois voltar a saquear Tarsis. Os companheiros esperaram abaixo, em si-
lêncio sombrio. Um fluxo quase constante de terra e pedras esmagadas caiu
sobre eles, junto com a água fresca da chuva. Eles agarraram suas armas. Era
apenas uma questão de minutos, talvez, antes de serem descobertos.
Então, de repente, havia novos sons. Eles ouviram os goblins gritarem
de medo, os draconianos gritando para eles, mandando-os voltar ao traba-
lho. Mas podiam ouvir os sons de pás e picaretas sendo jogados nas rochas
acima deles, depois as pragas dos draconianos enquanto tentavam impedir
o que aparentemente era uma revolta de goblins em grande escala.
E, acima do barulho dos goblins estridentes, ouviu-se um pio alto,
claro e estridente, que foi respondido por outro pio mais distante. Era
como o pio de uma águia, voando acima das planícies ao pôr do sol. Mas
esse pio estava bem acima deles.
Houve um grito... um draconiano. Em seguida, um som de arrancar...
como se o corpo da criatura estivesse sendo rasgado. Mais gritos, o impacto
do aço sendo puxado, outro pio e outra resposta... esta muito mais próxima.
— O que é isso? — Caramon perguntou, com os olhos arregalados.
— Não é um dragão. Parece... como se fosse uma ave de rapina gigantesca!

93
— Seja o que for, está deixando os draconianos em pedaços! — Lua
Dourada disse com admiração enquanto ouviam. Os gritos pararam
abruptamente, deixando um silêncio que era quase pior. Qual novo mal
substituiu o antigo?
Então veio o som de rochas e pedras, argamassa e madeira sendo le-
vantadas e jogadas para as ruas. O que estivesse lá em cima estava decidido
a alcançá-los!
— Já devorou todos os draconianos — sussurrou Caramon rispida-
mente — e agora está atrás de nós!
Tika ficou mortalmente branca, agarrando o braço de Caramon. Lua
Dourada engasgou baixinho e até mesmo Vento Ligeiro pareceu perder
parte de sua compostura estoica, olhando intensamente para cima.
— Caramon — Raistlin disse, tremendo — cale a boca!
Tanis sentiu-se inclinado a concordar com o mago. — Todos nós es-
tamos nos assustando com nad... — ele começou. De repente, houve uma
batida. Pedra e entulho, argamassa e madeira caíram ao redor deles. Eles
procuraram abrigo quando um enorme pé com garras mergulhou através
dos destroços, suas garras reluzindo à luz do cajado de Raistlin.
Procurando abrigo inutilmente sob as vigas quebradas ou os barris de
cerveja, os companheiros observaram maravilhados quando a gigantesca
garra se soltou dos escombros e se retirou, deixando para trás um buraco
amplo aberto.
Tudo ficou em silêncio. Por alguns instantes, nenhum dos compa-
nheiros se atreveu a se mexer. O silêncio permaneceu intacto.
— Esta é a nossa chance — Tanis sussurrou ruidosamente. — Cara-
mon, veja o que está lá em cima.
Mas o guerreiro já estava saindo de seu esconderijo, movendo-se pelo
chão coberto de detritos da melhor forma que podia. Vento Ligeiro seguiu
atrás, com a espada desembainhada.
— Nada — disse Caramon, intrigado, olhando para cima.
Tanis, sentindo-se nu sem a espada, aproximou-se para ficar debaixo
do buraco, olhando para cima. Então, para sua surpresa, uma figura escura
apareceu acima deles, uma silhueta contra o céu em chamas. Atrás da figura,
havia uma grande fera. Eles conseguiam distinguir a cabeça de uma águia
gigantesca, os olhos brilhando à luz da fogueira, o bico estranhamente
curvado reluzindo nas chamas.

94
Os companheiros recuaram, mas já era tarde demais. Obviamente, a
figura os viu. Ela se aproximou. Vento Ligeiro pensou, tarde demais, em
seu arco. Caramon puxou Tika para perto com uma mão, segurando sua
espada na outra.
A figura, no entanto, simplesmente se ajoelhou perto da borda do
buraco, tomando cuidado com o pé entre as pedras soltas, e removeu o
capuz que cobria sua cabeça.
— Nos encontramos novamente, Tanis Meio-Elfo — disse uma voz
tão fria, pura e distante quanto as estrelas.

95
8
Fuga de Tarsis.
A história dos orbes do dragão.

s dragões voaram com suas asas coriáceas sobre a cidade destruída


de Tarsis enquanto os exércitos draconianos a invadiam para
tomar posse. A tarefa dos dragões foi concluída. Logo, o Senhor
dos Dragões os chamaria de volta, os mantendo prontos para o próximo
ataque. Mas, por enquanto, podiam relaxar flutuando nas correntes de ar
superaquecidas que saíam da cidade em chamas, pegando ocasionalmente
humanos tolos o bastante para sair do esconderijo. Os dragões vermelhos
flutuavam no céu, se mantendo em suas revoadas bem organizadas, desli-
zando e mergulhando em uma dança da morte.
Agora, não existia poder sobre Krynn que pudesse detê-los. Eles
sabiam disso e exultaram em sua vitória. Mas, ocasionalmente, ocorria
algo para interromper a dança. Um líder da revoada, por exemplo, recebeu
um relatório de luta perto dos destroços de uma hospedaria. Um jovem
dragão vermelho, ele conduziu sua revoada para o local, resmungando para
si mesmo sobre a ineficiência dos comandantes das tropas. Porém, o que se
poderia esperar quando o Senhor dos Dragões era um robgoblin inchado
que não tinha coragem suficiente para assistir a tomada de uma cidade fraca
como Tarsis?
O vermelho suspirou, recordando os dias de glória quando Vermi-
naard os liderava pessoalmente, sentado nas costas de Pyros. Ele sim era
um Senhor dos Dragões! Balançou a cabeça, desconsolado. Ah, lá estava
a batalha. Ele podia ver claramente agora. Ordenando que sua revoada
permanecesse no ar, ele voou baixo para olhar melhor.
— Eu o ordeno! Pare!
O vermelho parou em seu voo, olhando para cima, espantado. A voz
era forte, clara e veio da figura de um Senhor dos Dragões. Mas o Senhor
dos Dragões certamente não era Toede! Este Senhor dos Dragões, embora
fortemente encapuzado e vestido com a máscara brilhante e armadura
de escamas de dragão dos Senhores, era humano, a julgar pela voz, não
um robgoblin. Mas de onde veio este Senhor dos Dragões? E por quê?
Pois, para surpresa do dragão vermelho, ele viu que o Senhor dos Montes
estava montado em um enorme dragão azul e era acompanhado por várias
revoadas de azuis.
— Qual é a sua ordem, Senhor? — o vermelho perguntou, sério.
— E com que direito você nos impede? Não tem nada da sua conta nesta
parte de Krynn.
— O destino da humanidade é da minha conta, seja nesta parte de
Krynn ou em outra — o Senhor dos Dragões respondeu. — E a força do
meu braço de espada me dá todo o direito que preciso para comandá-lo,
vermelho galante. Quanto à minha ordem, peço que capture esses seres hu-
manos lamentáveis, não os mate. Eles são procurados para interrogatório.
Traga-os para mim. Você será bem recompensado.
— Vejam! — falou uma jovem dragoa vermelha. — Grifos!
O Senhor dos Dragões soltou uma exclamação de espanto e desgosto.
Os dragões olharam para baixo e viram três grifos saindo da fumaça. Com
menos da metade do tamanho de um dragão vermelho, os grifos eram co-
nhecidos por sua ferocidade. Tropas draconianas se espalharam como cinzas
no vento diante das criaturas, cujas garras afiadas e bicos cortantes rasgavam
as cabeças dos homens-répteis que tiveram o azar de ficar no caminho.

97
O vermelho rosnou de ódio e se preparou para mergulhar, sua re-
voada com ele, mas o Senhor dos Dragões desceu na frente dele, fazendo
com que parasse.
— Digo que eles não devem ser mortos! — o Senhor dos Dragões
falou com gravidade.
— Mas estão fugindo! — o vermelho sibilou furiosamente.
— Deixe-os — o Senhor respondeu friamente. — Não irão longe. Eu
o retiro deste dever. Volte para o corpo principal. E se o idiota do Toede
disser algo, diga que o segredo de como ele perdeu o cajado de cristal azul
não morreu com Lorde Verminaard. A lembrança do Baixo Mestre Toede
continua viva, na minha mente, e se tornará conhecida por outros, se ele
ousar me desafiar!
O Senhor dos Dragões o saudou, então fez o grande dragão azul girar no
ar para voar rapidamente atrás dos grifos, cuja velocidade tremenda os permi-
tira escapar com seus cavaleiros para além dos portões da cidade. O vermelho
observou os azuis desaparecerem pelos céus noturnos em perseguição.
— Não devemos persegui-los também? — perguntou a fêmea vermelha.
— Não — o vermelho respondeu, pensativo, seus olhos ardentes
na figura do Senhor dos Dragões diminuindo à distância. — Eu não vou
irritar esse ai!

— Seus agradecimentos não são necessários, nem desejados — Alhana


Brisestelar interrompeu as palavras exaustas de Tanis no meio da frase. Os
companheiros atravessaram a chuva cortante nas costas de três grifos, agar-
rando seus pescoços emplumados com as mãos, olhando apreensivamente
para a cidade moribunda ficando rapidamente para baixo.
— E você pode não querer oferecê-los depois de me ouvir — Alhana
afirmou friamente, olhando para Tanis, montado atrás dela. — Eu os res-
gatei por meus próprios interesses. Preciso de combatentes para me ajudar
a encontrar meu pai. Voaremos para Silvanesti.
— Mas isso é impossível! — Tanis arfou. — Precisamos encontrar
nossos amigos! Voe para as colinas. Não podemos ir a Silvanesti, Alhana.
Existe muita coisa em jogo! Se pudermos encontrar esses orbes do dragão,
teremos a chance de destruir essas criaturas imundas e acabar com essa
guerra. Então, poderemos ir a Silvanesti...
— Vamos agora para Silvanesti — retrucou Alhana. — Você não
tem escolha neste caso, Meio-Elfo. Meus grifos obedecem apenas ao meu

98
comando. Eles o despedaçariam, como fizeram com os homens-dragões, se
eu desse a ordem.
— Algum dia, os elfos acordarão e descobrirão que são membros
de uma vasta família — disse Tanis, sua voz tremendo de raiva. — Não
poderão mais ser tratados como o filho mais velho e mimado que recebe
tudo, enquanto o resto de nós espera pelas migalhas.
— Presentes que recebemos dos deuses porque merecemos. Vocês,
humanos e meio-humanos — o desprezo em sua voz cortava como uma
adaga — tinham esses mesmos presentes e os jogaram fora em sua ganância
por mais. Somos capazes de lutar por nossa própria sobrevivência sem a sua
ajuda. Quanto à sua sobrevivência, isso pouco nos importa.
— Você parece disposta a aceitar nossa ajuda agora!
— Pela qual vocês serão bem recompensados — Alhana respondeu.
— Não há aço, nem joias suficientes em Silvanesti para nos pagar...
— Você procura os orbes do dragão — Alhana interrompeu. — Eu sei
onde está um deles. Está em Silvanesti.
Tanis piscou. Por um momento, não conseguiu pensar em nada para
dizer, mas a menção do orbe do dragão trouxe de volta pensamentos sobre
seu amigo. — Onde está Sturm? — ele perguntou a Alhana. — Da última
vez que o vi, ele estava com você.
— Eu não sei — ela respondeu. — Nós nos separamos. Ele estava
indo para a Hospedaria, para encontrá-lo. Eu chamei meus grifos até mim.
— Por que não o deixou levá-la até Silvanesti, se você precisava de
guerreiros?
— Isso não é da sua conta. — Alhana se virou de costas para Tanis,
que estava sentado, sem palavras, cansado demais para pensar com clareza.
Então, ele ouviu uma voz gritando, mal distinguível através do farfalhar de
penas das asas poderosas do grifo.
Era Caramon. O guerreiro estava gritando e apontando para trás. “O
que era agora?”, Tanis pensou cansado.
Eles deixaram para trás a fumaça e as nuvens de tempestade que
cobriam Tarsis, voando para o céu noturno claro. As estrelas brilhavam
acima deles, suas luzes cintilantes brilhando como diamantes, enfatizando
as lacunas escuras no céu noturno, onde as duas constelações seguiam em
sua trilha acima do mundo. As luas, prateada e vermelha, haviam se posto,
mas Tanis não precisava da luz delas para reconhecer as formas escuras que
cobriam as estrelas brilhantes.

99
— Dragões — disse para Alhana. — Nos seguindo.

Mais tarde, Tanis jamais conseguiu se lembrar claramente da fuga ater-


rorizante de Tarsis. Foram horas de um vento frio e cortante que fazia que
até mesmo a morte pelo sopro flamejante de um dragão parecesse atraente.
Foram horas de pânico, olhando para trás para ver as formas escuras se
aproximando; até que seus olhos lacrimejassem e as lágrimas congelaram
em suas bochechas, ainda assim incapazes de afastar o olhar. Foi parar ao
entardecer, esgotados pelo medo e pelo cansaço, para dormir em uma caver-
na em um penhasco alto. Foi acordar de madrugada só para ver, enquanto
subiam novamente pelo ar, as formas escuras e aladas ainda atrás deles.
Poucas criaturas vivas podem voar mais rápido do que o grifo de asas
de águia. Mas os dragões — dragões azuis, os primeiros que já tinham visto,
estavam sempre no horizonte, sempre perseguindo, não permitindo descanso
durante o dia, obrigando os companheiros a se esconderem à noite, quando
os grifos exaustos precisavam dormir. Havia pouca comida, apenas quith-
pa, um tipo de ração dura de roer de fruta seca que sustenta o corpo, mas
faz pouco para aliviar a fome, que Alhana levava e compartilhava. Mas até
mesmo Caramon estava cansado e desanimado demais para comer muito.
A única coisa que Tanis se lembrava vividamente ocorreu na segun-
da noite da sua jornada. Ele estava contando ao pequeno grupo reunido
em volta de uma fogueira, em uma caverna úmida e deprimente, sobre a
descoberta do kender na biblioteca de Tarsis. Com a menção dos orbes do
dragão, os olhos de Raistlin acenderam, seu rosto magro iluminou-se de
dentro por um brilho intenso e ansioso.
— Orbes do dragão? — ele repetiu baixinho.
— Achei que você poderia saber deles — disse Tanis. — O que são?
Raistlin não respondeu imediatamente. Enrolado tanto em sua capa
quanto na de seu irmão, ele ficava o mais perto possível do fogo, seu corpo
frágil ainda tremia com o frio. Os olhos dourados do mago olhavam para
Alhana, que estava um pouco distante do grupo, se dignando a comparti-
lhar a caverna, mas não a conversa. Agora, contudo, ela parecia ter virado
a cabeça, escutando.
— Você disse que há um orbe de dragão em Silvanesti — o mago sus-
surrou, olhando para Tanis. — Certamente, não é a mim que deve perguntar.
— Sei pouco sobre isso — disse Alhana, virando o rosto pálido para
a luz do fogo. — Nós o guardamos como uma relíquia de dias passados,

100
mais uma curiosidade do que qualquer outra coisa. Quem acreditaria que
os humanos mais uma vez acordariam esse mal e trariam os dragões de volta
para Krynn?
Antes que Raistlin pudesse responder, Vento Ligeiro falou com raiva.
— Você não tem provas de que foram os humanos!
Alhana lançou ao homem das Planícies um olhar imperioso. Ela não
respondeu, considerando que estaria abaixo dela discutir com um bárbaro.
Tanis suspirou. O homem da Planície se importava pouco com os
elfos. Foram necessários muitos dias até que ele confiasse em Tanis, mais
tempo ainda para Gilthanas e Laurana. Agora, logo que Vento Ligeiro pa-
recia ter superado seus preconceitos herdados, Alhana causara novas feridas
com seus preconceitos iguais.
— Muito bem, Raistlin — Tanis disse calmamente — diga o que você
sabe sobre os orbes do dragão.
— Traga minha bebida, Caramon — ordenou o mago. Levando o
copo de água quente como ordenado, Caramon o colocou diante de seu
irmão. Raistlin se apoiou em um cotovelo e misturou ervas na água. O odor
estranho e cáustico encheu o ar. Fazendo careta, Raistlin sorveu a mistura
amarga enquanto falava.
— Durante a Era dos Sonhos, quando aqueles da minha ordem eram
respeitados e reverenciados em Krynn, havia cinco Torres da Alta Magia. — A
voz do mago diminuiu, como se tivesse lembranças dolorosas. Seu irmão es-
tava sentado, olhando para o chão de pedra da caverna, seu rosto sério. Vendo
a sombra cair sobre os gêmeos, Tanis se perguntou de novo o que acontecera
dentro da Torre da Alta Magia para mudar suas vidas tão drasticamente. Era
inútil perguntar, ele sabia. Ambos foram proibidos de discutir isso.
Raistlin parou por um instante antes de continuar, então respirou
fundo. — Quando a Segunda Guerra dos Dragões começou, os maiores
da minha ordem se reuniram na maior das Torres: a Torre de Palanthas, e
criaram os orbes do dragão.
Os olhos de Raistlin perderam o foco, sua voz sussurrante parou por um
momento. Quando voltou a falar, era como se contasse um momento que
estava revivendo em sua mente. Até sua voz mudou, ficando mais forte, mais
profunda, mais clara. Ele não tossia mais. Caramon olhou para ele com espanto.
— Quando a lua prateada, Solinari, nasceu, aqueles de Mantos Bran-
cos entraram na câmara no topo da Torre . Então Lunitari apareceu no céu,
pingando sangue, e aqueles de Mantos Vermelhos entraram. Finalmente, o

101
disco preto, Nuitari, um buraco de escuridão entre as estrelas, pôde ser visto
por aqueles que o procuravam, e os Mantos Negros entraram na câmara.
— Foi um momento estranho na história, quando toda a inimiza-
de entre os Mantos foi suprimida. Isso aconteceria apenas mais uma vez
no mundo, quando os magos se uniram nas Batalhas Perdidas, mas esse
momento não podia ser previsto. Era suficiente para saber que, por en-
quanto, o grande mal precisa ser destruído. Por fim, vimos que o mal estava
empenhado em destruir toda a magia do mundo, de modo que apenas a
sua sobrevivesse! Alguns, que estavam entre os Mantos Negros, poderiam
ter tentado aliar-se a esse grande poder — Tanis viu os olhos de Raistlin
queimarem — ,mas logo perceberam que não seriam mestres dele, apenas
escravos. E então os orbes do dragão nasceram, em uma noite em que todas
as três luas estavam cheias no céu.
— Três luas? — Tanis perguntou baixinho, mas Raistlin não o ouviu
e continuou a falar na voz que não era sua.
— Uma magia grande e poderosa foi trabalhada naquela noite... tão
poderosa que poucos puderam resistir e entraram em colapso, suas forças
físicas e mentais drenadas. Mas, naquela manhã, cinco orbes de dragão es-
tavam em cima de pedestais, brilhando com luz, escurecidas com sombras.
Todos, exceto um, foram tirados de Palanthas e levados para cada uma das
outras quatro Torres. Lá, ajudaram a livrar o mundo da Rainha das Trevas.
O brilho febril desapareceu dos olhos de Raistlin. Seus ombros caíram,
sua voz ficou mais baixa e ele começou a tossir violentamente. Os outros o
observavam em silêncio ofegante.
Por fim, Tanis pigarreou. — O que você quer dizer com três luas?
A Raistlin olhou para cima, devagar. — Três luas? — sussurrou. —
Não sei nada sobre três luas. O que estávamos discutindo?
— Orbes de dragão. Você nos contou como eles foram criados. Como
você... — Tanis parou, vendo Raistlin afundar em seu palete.
— Eu não disse nada — Raistlin falou irritado. — Do que você
está falando?
Tanis olhou para os outros. Vento Ligeiro balançou a cabeça. Caramon
mordeu o lábio e desviou o olhar, o rosto marcado com preocupação.
— Estávamos falando dos orbes dos dragões — disse Lua Dourada.
— Você ia nos dizer o que você sabia sobre eles.
Raistlin limpou o sangue da boca. — Não sei muito — disse cansado,
encolhendo os ombros. — Os orbes dragão foram criados pelos altos magos.

102
Apenas o mais poderoso da minha ordem poderia usá-los. Diziam que um
grande mal viria para aqueles que não fossem poderosos e tentassem coman-
dar os orbes. Além disso, não sei nada. Todo o conhecimento sobre os orbes
pereceu durante as Batalhas Perdidas. Dizem que dois foram destruídos na
Queda das Torres da Alta Magia... Destruídos em vez de deixar a ralé ficar
com eles. O conhecimento sobre os outros três morreu com seus magos. —
Sua voz parou. Afundando de volta em seu palete, exausto, adormeceu.
— As Batalhas Perdidas, três luas, Raistlin falando com uma voz
estranha. Nada disso faz sentido — murmurou Tanis.
— Não acredito em nada disso! — Vento Ligeiro disse friamente. E
sacudiu as peles, preparando-se para dormir.
Tanis estava começando a seguir seu exemplo quando viu Alhana se
arrastar das sombras da caverna e se aproximar de Raistlin. Olhando para o
mago adormecido, suas mãos se torceram.
— Forte em magia! — ela sussurrou em uma voz cheia de medo. —
Meu pai!
Tanis olhou para ela com uma compreensão súbita.
— Você acha que seu pai tentou usar o orbe?
— Estou com medo — sussurrou Alhana, torcendo as mãos. — Ele
disse que poderia lutar sozinho contra o mal e mantê-lo fora de nossa terra.
Ele queria dizer... — Rapidamente, ela se abaixou perto de Raistlin. —
Acorde-o! — ela comandou, seus olhos negros chamejando. — Eu preciso
saber! Acorde-o e o faça dizer qual é o perigo!
Caramon a puxou de volta, gentilmente, mas com firmeza. Alhana
olhou para ele, seu rosto belo contorcido de medo e raiva, pareceu por um
momento que poderia atacá-lo, mas Tanis chegou ao lado dela e segurou
sua mão.
— Senhora Alhana — disse ele calmamente — não adiantaria
acordá-lo. Ele nos contou tudo o que sabe. Quanto àquela outra voz, ele
obviamente não se lembra de nada do que disse.
— Já vi isso acontecer com Raist antes — Caramon disse em voz
baixa — como se ele se tornasse outra pessoa. Mas isso sempre o deixa
exausto e ele nunca se lembra.
Alhana puxou sua mão da de Tanis, o rosto retomando a sua quietude fria
e pura de mármore. Ela virou-se e caminhou até a frente da caverna. Segurando
o cobertor que Vento Ligeiro pendurara para esconder a luz do fogo, ela quase
o derrubou quando o arremessou para o lado e espreitou o exterior.

103
— Ficarei na primeira vigia — Tanis disse a Caramon. — Vá dormir.
— Vou ficar com Raist por algum tempo — disse o grandão, colocan-
do seu palete ao lado de seu gêmeo frágil. Tanis seguiu Alhana para fora.
Os grifos dormiam profundamente, as cabeças afundadas nas penas
macias dos pescoços, as patas dianteiras com garras agarrando firmemente a
borda do penhasco. Por um momento, ele não conseguiu encontrar Alhana
na escuridão, depois a viu, encostada em uma pedra enorme, chorando
amargamente, com a cabeça enterrada nos braços.
A mulher orgulhosa de Silvanesti jamais o perdoaria se a visse fraca e
vulnerável. Tanis se escondeu atrás do cobertor.
— Ficarei de vigia! — ele falou em voz alta antes de sair novamen-
te. Erguendo o cobertor, ele viu, sem parecer, que Alhana se levantava e
enxugava o rosto com as mãos apressadamente. Ela virou as costas e ele
caminhou lentamente em sua direção, dando tempo para ela se recompor.
— A caverna estava sufocante — ela disse em voz baixa. — Eu não
aguentava. Tive que sair para respirar.
— Eu ficarei na primeira vigia — disse Tanis. Ele fez uma pausa,
depois acrescentou: — Você parece estar com medo de que seu pai tenha
tentado usar esse orbe do dragão. Certamente ele saberia a história. Se bem
me lembro do que sei do seu povo, ele usava magia.
— Ele sabia de onde o orbe veio — Alhana disse, sua voz tremendo
antes que pudesse recuperar o controle. — O jovem mago estava certo
quando falou das Batalhas Perdidas e da destruição das Torres. Mas estava
errado quando disse que os outros três orbes estavam perdidos. Um foi
levado a Silvanesti pelo meu pai, para proteção.
— O que foram as batalhas perdidas? — Tanis perguntou, apoiando-
se nas rochas ao lado de Alhana.
— Nenhuma tradição é mantida em Qualinost? — ela respondeu,
encarando Tanis com desprezo. — Como vocês se tornaram bárbaros desde
que se misturaram com os humanos!
— Digo que a culpa é minha — falou Tanis — pois eu não prestei
atenção suficiente ao Mestre do Conhecimento.
Alhana olhou para ele, suspeitando que estivesse sendo sarcástico.
Vendo o rosto sério dele e, principalmente, que não queria deixá-la sozinha,
decidiu responder a pergunta.
— À medida que Istar ascendia durante a Era do Poder para glórias
cada vez maiores, o Rei-Sacerdote de Istar e seus clérigos ficaram cada vez

104
mais invejosos do poder dos arcanos. Os clérigos já não viam a necessidade
de magia no mundo, temendo, claro, algo que não podiam controlar. Em-
bora respeitados, magos nunca foram muito confiáveis, mesmo aqueles
que usavam os mantos brancos. Era uma questão simples para os sacerdotes
incitarem o povo contra os magos. À medida que o mal aumentava com
o tempo, os sacerdotes colocavam a culpa nos arcanos. As Torres da Alta
Magia, onde os magos precisavam passar em seus testes finais e exaustivos,
eram onde os poderes dos magos descansavam. As Torres se tornaram
alvos naturais. Multidões as atacaram e foi como seu jovem amigo disse:
pela segunda vez em sua história, os Robes se uniram para defender seus
últimos bastiões de força.
— Mas como eles poderiam ter sido derrotados? — disse Tanis, incrédulo.
— Como pode perguntar isso, sabendo o que se passa com seu ami-
go mago? Ele é poderoso, mas precisa descansar. Mesmo os mais fortes
precisam de um tempo para renovar suas magias, alocá-las novamente na
memória. Até mesmo os mais velhos da ordem, magos cujo poder não era
visto em Krynn desde então, tinham que dormir e passar horas lendo seus
grimórios. E na época, como agora, a quantidade de magos era pequena.
Poucos ousam fazer os testes nas Torres da Alta Magia, sabendo que o
fracasso é a morte.
— Falha significa morte? — Tanis disse em voz baixa.
— Sim — respondeu Alhana. — Seu amigo é muito corajoso, por
ter feito o Teste tão jovem. Muito corajoso ou muito ambicioso. Ele nunca
contou a vocês?
— Não — murmurou Tanis. — Ele nunca fala sobre isso. Mas continue.
Alhana deu de ombros. — Quando ficou claro que a batalha estava
perdida, os próprios magos destruíram duas das Torres. As explosões devas-
taram o campo por quilômetros ao redor. Restavam apenas três, a Torre de
Istar, a Torre de Palanthas e a Torre de Wayreth. Mas a destruição terrível
das outras duas Torres assustou o Rei-Sacerdote. Ele concedeu aos arcanos
nas Torres de Istar e Palanthas a saída segura dessas cidades, se deixassem
as Torres intactas, pois os magos poderiam ter destruído as duas cidades,
como bem sabia o Rei-Sacerdote.
— E assim, os magos viajaram para a única Torre que nunca foi
ameaçada... a Torre de Wayreth nas Montanhas Kharolis. Em Wayreth, eles
cuidaram das suas feridas e alimentaram a pequena centelha de magia que
ainda resta no mundo. Os grimórios que não conseguiram levar consigo,

105
pois a quantidade de livros era vasta e muitos foram atados com magias de
proteção, foram dados à grande biblioteca de Palanthas e lá ainda permane-
cem, de acordo com as tradições do meu povo.
A lua de prata nascera, seu luar enfeitando sua filha com uma beleza que
tirava o fôlego de Tanis, mesmo quando a frieza dela penetrava seu coração.
— O que você sabe sobre uma terceira lua? — ele perguntou, olhando
para o céu noturno, tremendo. — Uma lua negra...
— Pouco — respondeu Alhana. — O mago retira o poder das luas: os
Mantos Brancos de Solinari, os Mantos Vermelhos de Lunitari. De acordo
com o folclore, existe uma lua que dá aos Mantos Negros o seu poder, mas
apenas eles sabem seu nome ou como encontrá-la no céu.
“Raistlin sabia seu nome”, Tanis pensou, “ou pelo menos aquela outra
voz sabia”. Mas não falou isso em voz alta.
— Como seu pai conseguiu o orbe do dragão?
— Meu pai, Lorac, era um aprendiz — Alhana respondeu suavemente,
virando o rosto para a lua prateada. — Ele viajou para a Torre de Alta Magia
em Istar para os testes, que ele realizou e sobreviveu. Foi lá que viu pela primeira
vez o orbe do dragão. — Ela ficou em silêncio por um momento. — Contarei o
que nunca contei a ninguém e o que ele nunca contou, exceto para mim. Direi
apenas porque você tem o direito de saber o que... o que esperar.
— Durante os testes, o orbe do dragão... — Alhana hesitou, parecen-
do procurar as palavras certas — falou com ele, em sua mente. Temia que
alguma calamidade terrível estivesse se aproximando. “Você não deve me
deixar aqui em Istar”, o orbe disse. “Se assim for, perecerei e o mundo estará
perdido”. Meu pai — poderíamos dizer que ele roubou o orbe do dragão,
embora tenha se visto como salvador dela.
— A Torre de Istar foi abandonada. O Rei-Sacerdote se mudou para lá
e a usou para seus próprios propósitos. Por fim, os magos deixaram a Torre
de Palanthas. — Alhana estremeceu. — Sua história é terrível. O regente
de Palanthas, um discípulo do Rei-Sacerdote, chegou à Torre para fechar
os portões... assim ele disse. Mas todos podiam ver seus olhos pairando
avidamente na bela Torre, pois as lendas das maravilhas no interior, tanto
justas quanto malignas, se espalhavam por toda a terra.
— O Mago do Branco fechou os portões delgados de ouro da Torre
e os trancou com uma chave de prata. O Regente estendeu a mão, ansioso
pela chave, quando um dos Mantos Negros apareceu em uma das janelas
do andar de cima.

106
— Os portões permanecerão fechados e os corredores vazios até o dia
em que o mestre do passado e do presente retorne com poder — gritou.
Então o mago maligno saltou, atirando-se aos portões. Quando os espinhos
perfuraram os mantos negros, ele lançou uma maldição sobre a Torre. Seu
sangue jorrou no chão, os portões de prata e dourados murcharam, retorce-
ram e ficaram escuros. A torre cintilante de branco e vermelho desvaneceu-
se em pedra cinza-gelo, seus minaretes negros desmoronando em pó.
— O Regente e o povo fugiram aterrorizados. Até hoje, ninguém se
atreveu a entrar na Torre de Palanthas... nem mesmo se aproximar de seus
portões. Foi depois da maldição da Torre que meu pai trouxe o orbe do
dragão para Silvanesti.
— Mas, com certeza, seu pai sabia algo sobre o orbe antes de pegá-lo
— Tanis persistiu. — Como usá-lo...
— Se sabia, ele não falou sobre isso — disse Alhana, cansada — pois
é tudo o que sei. Devo descansar agora. Boa noite — disse para Tanis sem
olhar para ele.
— Boa noite, Senhora Alhana — Tanis disse gentilmente. — Descan-
se tranquila esta noite. E não se preocupe. Seu pai é sábio e viveu muito.
Tenho certeza de que tudo está bem.
Alhana começou a passar sem dizer uma palavra, então, ouvindo a
simpatia na voz dele, ela hesitou.
— Embora tenha passado no Teste — ela disse tão suavemente que
Tanis teve que se aproximar para ouvir — ele não era tão poderoso em
sua magia quanto seu jovem amigo é agora. E se ele pensou que o orbe do
dragão era nossa única esperança, eu temo... — Sua voz falhou.
— Os anões têm um ditado. — Sentindo por um momento que
as barreiras entre eles foram baixadas, Tanis colocou o braço em volta
dos ombros esguios de Alhana e a abraçou. — “Os problemas tomados
emprestados serão pagos com juros acumulados na tristeza”. Não se preo-
cupe. Estamos com você.
Alhana não respondeu. Deixou-se ser consolada por um instante, em
seguida, escapou do abraço e caminhou até a entrada da caverna. Ali, parou
e olhou para trás.
— Você está preocupado com seus amigos — disse ela. — Não fique.
Eles fugiram da cidade e estão seguros. Embora o kender estivesse perto da
morte por um tempo, ele sobreviveu e agora eles viajam para a Muralha de
Gelo em busca de um orbe do dragão.

107
— Como sabe disso? — Tanis arfou.
— Eu já disse tudo que posso. — Alhana sacudiu a cabeça.
— Alhana! Como você sabe disso? — Tanis perguntou, sério
Com suas bochechas pálidas manchadas de rosa, Alhana murmurou:
— Eu dei ao cavaleiro uma Joia Estelar. Ele não conhece seu poder, claro,
nem como usá-lo. Não sei porquê eu a dei a ele, exceto...
— Exceto o que? — Tanis perguntou, espantado além do possível.
— Ele era tão galante, tão corajoso. Arriscou sua vida para me ajudar
e nem sabia quem eu era. Ele me ajudou porque eu estava com proble-
mas. E... — Os olhos dela brilharam. — E ele chorou quando os dragões
mataram as pessoas. Nunca vi um adulto chorar antes. Mesmo quando os
dragões vieram e nos expulsaram do nosso lar, não choramos. Acho que,
talvez, nos esquecemos de como fazer isso.
Então, como se percebendo que falara demais, ela puxou apressada-
mente o cobertor e entrou na caverna.
— Em nome dos deuses! — Tanis respirou. Uma Joia Estelar! Que
presente raro e inestimável! Um presente trocado por amantes élficos força-
dos a se separar, a joia cria um vínculo entre as almas. Assim, ligadas, elas
compartilham as emoções mais íntimas do ente querido e podem conceder
forças um ao outro em momentos de necessidade. Mas nunca antes, na
longa vida de Tanis, o meio-elfo ouviu falar de uma Joia Estelar sendo dada
a um humano. O que ela faria para um humano? Que tipo de efeito teria?
E Alhana... ela nunca poderia amar um humano, nunca retribuiria o amor.
Isso deve ser algum tipo de paixão cega. Ela esteve assustada, sozinha. Não,
isso só poderia terminar em tristeza, a menos que algo mudasse drastica-
mente entre os elfos ou dentro da própria Alhana.
Enquanto o coração de Tanis se expandia de alívio por saber que Lau-
rana e os outros estavam seguros, ele se contraía de medo e pesar por Sturm.

108
9
Silvanesti. Entrando no sonho.

o terceiro dia, eles continuaram sua jornada, voando para o sol


nascente. Aparentemente, despistaram os dragões, embora Tika,
vigiando a retaguarda, achasse que podia ver pontos negros no
horizonte. E, naquela tarde, quando o sol estava se pondo, se aproximaram
do rio conhecido como Thon-Thalas, o Rio do Senhor, que dividia o mun-
do exterior de Silvanesti.
Durante toda a sua vida, Tanis ouvira falar da maravilha e da beleza
do antigo Lar Élfico, embora os elfos de Qualinosti falassem disso sem
arrependimento. Não sentiam falta das maravilhas perdidas de Silvanesti,
pois essas próprias maravilhas se tornaram um símbolo das diferenças que
se desenvolveram entre a raça élfica.
Os elfos de Qualinosti viviam em harmonia com a natureza, desen-
volvendo e aprimorando sua beleza. Eles construíram suas casas entre os
álamos, magicamente dourando os troncos com prata e ouro. Construíram
suas habitações de quartzo-rosa cintilante e convidaram a natureza a morar
com eles.
Os Silvanesti, contudo, amavam a singularidade e a diversidade em
todos os objetos. Não vendo essa singularidade existir naturalmente, re-
formularam a natureza para se adequar ao seu ideal. Eles tinham paciência
e tinham tempo, pois o que eram séculos para os elfos cuja expectativa de
vida era medida nas centenas de anos?
E assim reformaram florestas inteiras, podando e cavando, forçando as
árvores e as flores em jardins fantásticos de beleza incrível.
Eles não “construíam” moradias, mas esculpiam e moldavam o már-
more que existia naturalmente em suas terras em formas tão estranhas e
maravilhosas que, nos anos antes das raças ficarem afastadas, artesãos anões
viajavam milhares de quilômetros para vê-las e, então, não podiam fazer
nada além de chorar pela beleza rara. E dizia-se que um humano que va-
gasse pelos jardins de Silvanesti jamais poderia sair — ficaria para sempre,
arrebatado, preso em um lindo sonho.
Apenas Tanis sabia disso tudo, por meio das lendas, claro, pois nenhum
Qualinesti colocara os pés em seu antigo lar desde as Guerras Fraticidas.
Acreditava-se que nenhum fora autorizado a entrar em Silvanesti por cem
anos antes disso.
— E as histórias? — Tanis perguntou a Alhana enquanto voavam
acima dos álamos nas costas dos grifos. — As histórias sobre humanos
presos pela beleza de Silvanesti, incapazes de partir? Meus amigos ousam
ir a esta terra?
Alhana olhou para ele.
— Eu sabia que os humanos eram fracos — disse ela com frieza —,
mas não achei que fossem tão fracos. É verdade que os humanos não entram
em Silvanesti, mas é porque os mantemos longe. Certamente não queremos
manter nenhum por lá. Se eu achasse que isso seria perigoso, não permitiria
que vocês entrassem em minha terra natal.
— Nem mesmo Sturm? — ele não pôde deixar de perguntar ironica-
mente, irritado com o tom mordaz dela.
Mas ele não estava preparado para a resposta. Alhana virou-se para en-
cará-lo, girando tão rápido que seus longos cabelos negros bateram em sua
pele. Seu rosto estava tão pálido de raiva que parecia translúcido e ele podia
ver as veias pulsando sob sua pele. Seus olhos escuros pareciam engoli-lo em
suas profundezas negras.

110
— Nunca fale sobre isso comigo! — disse com os dentes cerrados e os
lábios brancos. — Nunca fale sobre ele!
— Mas noite passada... — Tanis hesitou, surpreso, colocando a mão
na bochecha queimando.
— A noite passada nunca aconteceu — disse Alhana. — Eu estava
fraca, cansada, assustada. Como estava quando... quando conheci Sturm,
o cavaleiro. Me arrependo de falar dele com você. Me arrependo de contar
sobre a Joia Estelar.
— Você se arrepende de dá-la a ele? — perguntou Tanis.
— Eu me arrependo do dia em que coloquei os pés em Tarsis — disse
Alhana, com voz baixa e veemente. — Gostaria de nunca ter ido lá! Nunca!
— Ela virou-se abruptamente, deixando Tanis com pensamentos sombrios.

Os companheiros acabaram de chegar ao rio, à vista da alta Torre das


Estrelas, brilhando como um colar de pérolas que se retorcia ao sol, quando
os grifos repentinamente pararam seu voo. Olhando para a frente, Tanis
não viu sinal de perigo. Mas seus grifos continuavam a descer rapidamente.
De fato, parecia difícil acreditar que Silvanesti estivesse sob ataque.
Não havia colunas finas de fumaça de fogueira no ar, como seria se os
draconianos ocupassem o local. A terra não estava enegrecida e arruinada.
Ele podia ver, abaixo dele, o verde dos álamos que brilhavam à luz do
sol. Aqui e ali, os prédios de mármore pontilhavam a floresta com seu
esplendor branco.
— Não! — Alhana falou com os grifos em élfico. — Eu os ordeno!
Continuem! Preciso chegar à Torre!
Mas os grifos circulavam cada vez mais baixo, ignorando-a.
— O que foi? — perguntou Tanis. — Por que estamos parando?
Estamos vendo a torre. Qual o problema? — Ele olhou ao redor. — Não
vejo nada para se preocupar.
— Eles se recusam a continuar — disse Alhana, com o rosto preocu-
pado. — Eles não me dizem o porquê, só que devemos viajar sozinhos a
partir daqui. Não estou entendendo.
Tanis não gostou. Grifos eram conhecidos como criaturas ferozes e
independentes, mas, uma vez que sua lealdade era conquistada, serviam seus
mestres com devoção eterna. A realeza élfica de Silvanesti sempre domava
grifos para seu uso. Embora menores que os dragões, a velocidade dos grifos,
as garras afiadas, o bico cortante e as patas traseiras com garras de leão os

111
tornavam inimigos a serem respeitados. Existiam poucas coisas que eles
temessem em Krynn, assim Tanis ouvira. Ele lembrava de que esses grifos
voaram em Tarsis, através de revoadas de dragões, sem medo aparente.
Entretanto, agora os grifos estavam obviamente com medo. Eles
pousaram nas margens do rio, recusando todos os comandos irados e im-
periosos de Alhana para voar mais longe. Em vez disso, eles balançaram as
penas com mau humor e se recusaram a obedecer.
Por fim, não havia nada que os companheiros pudessem fazer além de
sair das costas dos grifos e descarregar seus suprimentos. Então as criaturas
aves-leoninas, com uma dignidade feroz e apologética, abriram as asas e
voaram para longe.
— Bem, é isso — disse Alhana seriamente, ignorando os olhares
raivosos que sentia. — Nós simplesmente teremos que andar, isso é tudo.
O caminho não está longe.
Os companheiros ficaram parados na margem do rio, olhando através
da água cintilante para a floresta além. Nenhum deles falava. Todos esta-
vam tensos, alertas, procurando problemas. Mas tudo o que viram eram os
álamos que reluziam nos últimos raios do pôr-do-sol. O rio murmurava
enquanto passava pela margem. Embora os álamos ainda estivessem verdes,
o silêncio do inverno cobria a terra.
— Achei que tinha dito que seu povo fugiu porque estava sob cerco
— Tanis disse finalmente para Alhana.
— Se esta terra está sob controle de dragões, eu sou um anão tolo! —
Caramon bufou.
— Nós estávamos! — Alhana respondeu, seus olhos examinando a
floresta iluminada pelo sol.
— Dragões tomaram conta dos céus, como em Tarsis! Os homens-
dragões entraram em nossa floresta amada, queimando, destruindo... —
Sua voz falhou.
Caramon aproximou de Vento Ligeiro e murmurou: — Uma missão
sem sentido!
O homem das Planícies fechou a cara.
— Se não for nada além disso, teremos sorte — disse ele, olhando para
a elfa. — Por que ela nos trouxe aqui? Talvez seja uma armadilha.
Caramon pensou nisso por um momento, então olhou desconfortavel-
mente para seu irmão, que não falara, movera ou tirara seus olhos estranhos
da floresta desde que os grifos saíram. O grande guerreiro afrouxou a espada

112
na bainha e deu um passo para mais perto de Tika. Quase acidentalmente,
parecia, suas mãos entrelaçaram. Tika lançou um olhar temeroso para
Raistlin, mas segurou em Caramon com força.
O mago apenas fitava fixamente a vastidão.
— Tanis! — Alhana disse de repente, se esquecendo em sua alegria e
colocando a mão em seu braço. — Talvez tenha funcionado! Talvez meu pai
os tenha derrotado e possamos voltar para casa! Ah, Tanis... — Ela tremeu
de animação. — Temos que atravessar o rio e descobrir! Venham! O píer da
balsa está depois da curva...
— Alhana, espere! — Tanis chamou, mas ela já estava correndo ao
longo da margem macia e gramada, suas saias longas e cheias esvoaçando ao
redor de seus tornozelos. — Alhana! Droga. Caramon e Vento Ligeiro, vão
atrás dela. Lua Dourada, tente colocar um pouco de juízo na cabeça dela.
Vento Ligeiro e Caramon trocaram olhares incômodos, mas fizeram
como Tanis ordenou, correndo ao longo da margem do rio atrás de Alhana.
Lua Dourada e Tika seguiram mais devagar.
— Quem sabe o que existe nesta floresta? — Tanis murmurou. —
Raistlin...
O mago não parecia ouvir. Tanis se aproximou. — Raistlin? — ele
repetiu, vendo o olhar abstrato do mago.
Raistlin olhou para ele sem expressão, como se estivesse acordando de
um sonho. Então, o mago ficou ciente de alguém conversando. Ele baixou
os olhos.
— O que foi, Raistlin? — perguntou Tanis. — O que você sente?
— Nada, Tanis — o mago respondeu.
Tanis piscou. — Nada? — repetiu.
— É como uma névoa impenetrável, uma parede em branco — Rais-
tlin sussurrou. — Não vejo nada, não sinto nada.
Tanis olhou para ele atentamente e, de repente, sabia que Raistlin
estava mentindo. Mas por quê? O mago devolveu o olhar do meio-elfo com
tranquilidade, até mesmo com um sorriso pequeno e retorcido em seus
lábios finos, como se soubesse que Tanis não acreditava nele, mas realmente
não se importava.
— Raistlin — disse Tanis baixinho -, suponha que o rei elfo Lorac
tenha tentado usar o orbe do dragão.... o que aconteceria?
O mago levantou os olhos para observar a floresta. — Você acha que
isso é possível? — ele perguntou.

113
— Sim — disse Tanis — pelo o que a pequena Alhana me disse,
durante os Testes na Torre da Alta Magia em Istar, um orbe do dragão falou
com Lorac, pedindo a ele para resgatá-lo do desastre iminente.
— E ele obedeceu? — Raistlin perguntou, sua voz suave como a água
murmurante do rio antigo.
— Sim. Ele o trouxe para Silvanesti.
— Então este é o orbe do dragão de Istar — Raistlin sussurrou. Seus
olhos se estreitaram, e então ele suspirou, um suspiro de saudade. — Não
sei nada sobre os orbes do dragão — ele observou friamente — exceto o que
eu disse a você. Mas sei disso, meio-elfo... nenhum de nós sairá de Silvanesti
ileso, se sairmos.
— O que você quer dizer? Que perigos existem lá dentro?
— O que importa qual perigo eu veja? — Raistlin perguntou, cruzan-
do as mãos nas mangas dos seus mantos vermelhos. — Devemos entrar em
Silvanesti. Você sabe disso tão bem quanto eu. Ou vai abrir mão da chance
de encontrar um orbe de dragão?
— Mas se você vê o perigo, nos conte! Poderíamos pelo menos entrar
preparados... — Tanis começou com raiva.
— Então preparem-se — Raistlin sussurrou suavemente, se virou e
começou a andar devagar ao longo da margem, atrás do irmão.

Os companheiros atravessaram o rio no exato momento em que


os últimos raios do sol cintilavam entre as folhas dos álamos na margem
oposta. E, então, a floresta lendária de Silvanesti foi gradualmente tomada
pela escuridão. As sombras da noite corriam entre os pés das árvores, como
a água escura fluindo sob a quilha da balsa.
Sua jornada era lenta. A balsa, um barco de fundo chato esculpido,
ligado a ambas as margens por um sistema complexo de cordas e polias,
parecia estar em boas condições, a princípio. Mas, assim que puseram os
pés a bordo e começaram a atravessar o rio antigo, descobriram que as
cordas estavam apodrecendo. O barco começou a se decompor diante de
seus olhos. O próprio rio pareceu mudar. Uma água marrom-avermelhada
penetrava no casco, maculada pelo leve cheiro de sangue.
Eles tinham acabado de sair do barco na margem oposta e estavam des-
carregando seus suprimentos quando as cordas desgastadas cederam e caíram.
A corrente levou a balsa rio abaixo em um instante. O crepúsculo de-
sapareceu nesse mesmo instante e a noite os engoliu. Embora o céu estivesse

114
claro, sem uma nuvem para estragar sua superfície escura, não havia estrelas
visíveis. Nem a lua vermelha, nem a prata nasceu. A única luz vinha do rio,
que parecia cintilar com um brilho doentio, como um carniçal.
— Raistlin, seu cajado — disse Tanis. Sua voz ecoou muito alta pela
floresta silenciosa. Até Caramon se encolheu.
— Shirak. — Raistlin falou a palavra de comando e o globo de cristal
na garra de dragão se acendeu. Mas era uma luz fria e pálida. A única coisa
que ela parecia iluminar eram os estranhos olhos de ampulheta do mago.
— Temos que entrar na floresta — Raistlin disse em uma voz abalada.
Virando-se, ele tropeçou em direção à vastidão escura.
Ninguém mais falou ou se mexeu. Eles ficaram na margem, com o
medo tomando conta de si. Não havia razão para isso, tudo era ainda mais
assustador porque era ilógico. O medo infiltrava-se neles vindo do chão. O
medo fluía através de seus membros, transformando as entranhas em água,
minando a força do coração e dos músculos, ingerindo o cérebro.
Medo de que? Não havia nada, nada ali! Nada a temer, mas todos eles
estavam mais apavorados com isso do que antes em suas vidas.
— Raistlin está certo. Nós... temos que... entrar na floresta... encon-
trar abrigo... — Tanis falou com esforço, seus dentes batendo. — S-sigam
Raistlin.
Tremendo, ele cambaleou para frente, sem saber se alguém o seguia,
sem se importar. Atrás, ele podia ouvir Tika choramingar e Lua Dourada
tentando orar através de lábios que não conseguiam formar palavras. Ouviu
Caramon gritando para seu irmão parar e Vento Ligeiro gritar de terror, mas
isso não importava. Ele precisava correr, sair daqui! Sua única orientação
era a luz do cajado de Raistlin.
Desesperadamente, ele tropeçou atrás do mago na floresta. Mas, quan-
do Tanis chegou às árvores, ele descobriu que sua força havia desaparecido.
Estava com muito medo para se mexer. Tremendo, caiu de joelhos, depois
se inclinou para frente, as mãos agarradas ao chão.
— Raistlin! — Sua garganta foi rasgada por um grito irregular.
Mas o mago não podia ajudar. A última coisa que Tanis viu foi a luz
do cajado de Raistlin caindo lentamente no chão, devagar, e mais devagar,
solto pela mão mole e aparentemente sem vida do jovem mago.

As árvores. As belas árvores de Silvanesti. Árvores moldadas e influen-


ciadas através dos séculos em bosques de maravilhas e encantamentos. Ao

115
redor de Tanis, estavam as árvores. Mas essas árvores agora se voltavam
contra seus mestres, se transformando em bosques vivos de horror. Uma luz
verde nociva era filtrada pelas folhas trêmulas.
Tanis observou apavorado. Ele vira muitas coisas estranhas e terríveis
em sua vida, mas nada como isto. Pensou que aquilo poderia enlouque-
cê-lo. Ele virou de um lado para outro, freneticamente, mas não havia
como escapar. Por todos os lados havia árvores. As árvores de Silvanesti...
Horrivelmente alteradas.
A alma de cada árvore ao redor dele parecia presa no tormento, apri-
sionada dentro do tronco. Os ramos torcidos da árvore eram os membros
de seu espírito, contorcidos em agonia. As raízes ávidas arranhavam o chão
em tentativas desesperadas de fugir. A seiva das árvores vivas fluía de enor-
mes cortes no tronco. O farfalhar de suas folhas era gritos de dor e terror.
As árvores de Silvanesti choravam sangue.
Tanis não tinha ideia de onde estava ou há quanto tempo estava aqui.
Lembrou que começara a andar em direção à Torre das Estrelas, podia vê-la
acima dos galhos dos álamos. Ele andou, andou e nada o impediu. Então,
ouviu o kender gritar de terror, como o grito de algum animal pequeno
sendo torturado. Virando-se, viu Tasslehoff apontando para as árvores.
Olhando horrorizado para as árvores, com o tempo compreendeu que Tas-
slehoff não deveria estar aqui. E lá estava Sturm, pálido de medo, Laurana,
chorando de desespero, e Flint, com os olhos arregalados e fixos.
Tanis abraçou Laurana e seus braços envolveram carne e sangue, mas
ainda assim sabia que ela não estava lá... mesmo enquanto ele a segurava.
Esse conhecimento era aterrorizante.
Então, enquanto estava no bosque que parecia uma prisão dos con-
denados, o horror aumentou. Animais saíram das árvores atormentadas e
caíram sobre os companheiros.
Tanis desembainhou a espada para revidar, mas a arma balançou em
sua mão trêmula e ele foi forçado a desviar os olhos, pois os animais vivos
foram distorcidos e deformados em aspectos hediondos da morte-vida.
Cavalgando entre as feras disformes, havia legiões de guerreiros elfos,
com suas feições de crânio horrendas de se ver. Nenhum olho brilhava nas
cavidades ocas de seus rostos, nenhuma carne cobria os ossos delicados de
suas mãos. Eles cavalgaram entre os companheiros com espadas ardentes
que tiravam o sangue vivo. Mas, quando uma arma os atingia, eles desapa-
reciam no nada.

116
As feridas que causaram, no entanto, eram reais. Caramon, lutando
contra um lobo com cobras crescendo em seu corpo, olhou para cima e viu
um dos guerreiros elfos caindo sobre ele, uma lança brilhante em sua mão
sem carne. Ele gritou em busca da ajuda do irmão.
Raistlin falou — Ast kiranann kair Soth-aran/Suh kali Jalaran. — Uma
bola de fogo lampejou das mãos do mago, explodindo diretamente sobre o
elfo... sem efeito. Sua lança, impulsionada por uma força incrível, perfurou a
armadura de Caramon, trespassando seu corpo, o pregando na árvore atrás.
O guerreiro elfo arrancou sua arma do ombro do grandalhão. Ca-
ramon caiu no chão, o sangue de sua vida se misturando com o sangue
da árvore. Raistlin, com uma fúria que o surpreendeu, tirou a adaga de
prata da tira de couro que usava escondida no braço e a atirou no elfo. A
lâmina penetrou no espírito morto-vivo e o guerreiro elfo desapareceu no
ar, com cavalo e tudo. No entanto, Caramon estava no chão, com o braço
pendurado em seu corpo apenas por uma tira fina de carne.
Lua Dourada se ajoelhou para curá-lo, mas ela se confundiu em suas
orações, sua fé falhando em meio ao horror.
— Me ajude, Mishakal! — Lua Dourada rezou. — Me ajude a
ajudar meu amigo.
A ferida terrível fechou. Embora o sangue ainda vazasse, escorrendo
pelo braço de Caramon, a morte se soltou do guerreiro. Raistlin se ajoelhou
ao lado do irmão e começou a falar com ele. Então, de repente, o mago
ficou em silêncio. Ele olhou além de Caramon, para as árvores, seus olhos
estranhos se arregalando com descrença.
— Você! — Raistlin sussurrou.
— Quem é? — Caramon perguntou fracamente, ouvindo horror
e medo na voz de Raistlin. O grandão olhou para a luz verde, mas não
conseguiu ver nada. — Está falando de quem?
Mas Raistlin, atento a outra conversa, não respondeu.
— Preciso da sua ajuda — o mago disse, sério. — Agora, como antes.
Caramon viu seu irmão esticar a mão, como se estivesse atravessando
uma grande lacuna, e foi consumido pelo medo sem saber o porquê.
— Não, Raist! — ele gritou, agarrando seu irmão em pânico. A mão
de Raistlin caiu.
— Nossa barganha continua. O que? Você quer mais? — Raistlin
ficou em silêncio por um momento, depois suspirou. — Diga!

117
Por longos momentos, o mago ouviu, absorvendo. Caramon, o obser-
vando com uma ansiedade amorosa, viu o rosto fino e de cor metálica do
irmão ficar pálido como a morte. Raistlin fechou os olhos, engolindo como
se estivesse bebendo a mistura amarga de ervas. Finalmente, abaixou a cabeça.
— Eu aceito.
Caramon gritou horrorizado ao ver os mantos de Raistlin, os mantos
vermelhos que marcavam sua neutralidade no mundo, começarem a se
aprofundar no vermelho, depois escurecerem até ficarem vermelho-sangue,
depois escurecerem mais... até o negro.
— Eu aceito isso — repetiu Raistlin, com mais calma — com o enten-
dimento de que o futuro pode ser mudado. O que devemos fazer?
Ele ouviu. Caramon apertou seu braço, gemendo em agonia.
— Como chegamos à Torre vivos? — Raistlin perguntou ao seu
instrutor invisível. Mais uma vez, ele prestou atenção com cuidado, depois
assentiu. — E eu receberei o que preciso? Muito bem. Adeus, então, vá em
paz, se tal coisa for possível para você em sua jornada sombria.
Raistlin levantou-se, seus mantos negros farfalhando ao seu redor.
Ignorando os soluços de Caramon e o suspiro aterrorizado de Lua Dourada
quando o viu, o mago foi em busca de Tanis. Ele encontrou o meio-elfo
encostado a uma árvore, lutando contra uma série de guerreiros elfos.
Calmamente, Raistlin enfiou a mão na bolsa e tirou um pedaço de
pelo de coelho e uma pequena haste de âmbar. Esfregando-os juntos na
palma da mão esquerda, ele estendeu a mão direita e falou. — Ast kiranann
kair Gadurm Sotharn/Suh kali Jalaran.
Relâmpagos foram disparados das pontas de seus dedos, percorrendo
o ar tingido de verde, atingindo os guerreiros elfos. Como antes, eles desa-
pareceram. Tanis tropeçou para trás, exausto.
Raistlin estava no centro de uma clareira de árvores distorcidas e
atormentadas.
— Reúnam-se ao meu redor! — o mago comandou seus companheiros.
Tanis hesitou. Guerreiros elfos pairavam nas margens da clareira.
Eles avançaram para atacar, mas Raistlin levantou a mão e eles pararam
como se batessem contra uma parede invisível.
— Venham ficar perto de mim. — Os companheiros ficaram surpre-
sos ao ouvir Raistlin falar, pela primeira vez desde seus testes, com uma voz
normal. – Depressa! — acrescentou — Eles não atacarão agora! Eles me
temem. Mas não posso segurá-los por muito tempo.

118
Tanis avançou, com o rosto pálido sob a barba ruiva, o sangue escor-
rendo de uma ferida na cabeça. Lua Dourada ajudou Caramon a cambalear
para frente. Ele agarrou seu braço sangrando enquanto seu rosto estava
contorcido de dor. Lentamente, um a um, os outros companheiros se apro-
ximaram. Por fim, apenas Sturm estava do lado de fora do círculo.
— Eu sempre soube que chegaria a isso — disse o cavaleiro lentamente.
— Morrerei antes de me colocar sob sua proteção, Raistlin.
Com isso, o cavaleiro se virou e entrou mais fundo na floresta. Tanis
viu o líder dos elfos mortos-vivos fazer um gesto, designando parte do
seu bando fantasmagórico para seguí-lo. O meio-elfo começou a avançar,
depois parou quando sentiu uma mão surpreendentemente forte segurando
seu braço.
— Deixe-o ir — disse o mago com seriedade — ou todos estaremos
perdidos. Tenho informações para transmitir e meu tempo é limitado. De-
vemos seguir nosso caminho através desta floresta até a Torre das Estrelas.
Devemos percorrer o caminho da morte, pois todas as criaturas hediondas
já concebidas nos sonhos tortuosos e torturados dos mortais surgirão para
nos deter. Mas saibam disso... nós caminhamos em um sonho, o pesadelo
de Lorac. E em nossos próprios pesadelos também. Visões do futuro podem
surgir para nos ajudar ou atrapalhar. Lembrem-se que, embora nossos cor-
pos estejam despertos, nossas mentes dormem. A morte existe apenas em
nossas mentes... a menos que acreditemos de outra forma.
— Então, por que não podemos acordar? — Tanis exigiu com raiva.
— Porque a crença de Lorac no sonho é muito forte e sua crença é
muito fraca. Quando você estiver firmemente convencido, sem dúvida, de
que isto é um sonho, você retornará à realidade.
— Se isso é verdade — disse Tanis — e você está convencido de que é
um sonho, por que não acorda?
— Talvez — Raistlin disse, sorrindo — eu prefira não o fazer.
— Eu não entendo! — Tanis gritou, amargamente frustrado.
— Você entenderá — Raistlin previu de modo assustador — ou
morrerá. Nesse caso, não importará mais.

119
10
Sonhos despertos. Visões futuras.

gnorando os olhares horrorizados de seus companheiros, Raistlin


caminhou até seu irmão, que segurava seu braço ensanguentado.
— Eu cuidarei dele — disse Raistlin para Lua Dourada, colocan-
do seu próprio braço dentro do manto negro em torno de seu gêmeo.
— Não — Caramon engasgou — você não é forte o suf... — Sua voz
falhou quando ele sentiu o braço de seu irmão apoiá-lo.
— Sou forte o suficiente agora, Caramon. — Raistlin disse suavemen-
te, sua gentileza enviando um arrepio através do corpo do guerreiro. — Se
apoie em mim, meu irmão.
Fraco de dor e medo, pela primeira vez em sua vida, Caramon se
apoiou em Raistlin. O mago o suportou quando, juntos, começaram a
caminhar pela floresta hedionda.
— O que está acontecendo, Raist? — Caramon perguntou engasgan-
do. — Por que você usa os Mantos Negros? E sua voz...
— Poupe seu fôlego, meu irmão — aconselhou Raistlin em voz baixa.
Os dois viajaram mais fundo na floresta e, das árvores, os guerreiros
elfos mortos-vivos os olhavam ameaçadoramente. Eles podiam ver o ódio
dos mortos pelos vivos, cintilando nas órbitas vazias. Mas ninguém ousou
atacar o mago de mantos negros. Caramon sentiu seu sangue espesso e
quente entre os dedos. Enquanto o observava pingar nas folhas mortas e
cobertas de limo sob seus pés, ficava cada vez mais fraco. Ele tinha a impres-
são febril de que a sombra escura de si ganhava força, enquanto ele perdia.

Tanis correu pela floresta, procurando Sturm. Ele o encontrou lutando


contra um grupo de guerreiros elfos brilhantes.
— É um sonho! — Tanis gritou para Sturm, que estocava e golpeava
as criaturas mortas-vivas. Sempre que ele atingia uma, ela desaparecia,
apenas para reaparecer novamente. O meio-elfo sacou a espada, correndo
para lutar ao lado de Sturm.
— Bah! — gritou o cavaleiro, depois ofegou de dor quando uma
flecha atingiu seu braço. A ferida não era profunda, porque a cota de malha
o protegia, mas sangrava livremente. — Isso é um sonho? — Sturm disse,
arrancando a haste manchada de sangue.
Tanis saltou na frente do cavaleiro, afastando seus inimigos até que
Sturm pudesse estancar o fluxo de sangue.
— Raistlin nos disse... — Tanis começou.
— Raistlin! Rá! Olhe os mantos dele, Tanis!
— Mas você está aqui! Em Silvanesti! — Tanis protestou, confuso.
Ele tinha a estranha sensação de que estava discutindo consigo mesmo. —
Alhana disse que você estava na Muralha de Gelo!
O cavaleiro deu de ombros. — Talvez eu tenha sido enviado para
ajudá-los.
“Tudo bem. É um sonho”, Tanis disse para si mesmo. “Eu vou acordar.”
Mas não houve mudança. Os elfos ainda estavam lá, ainda lutando.
Sturm deve estar certo. Raistlin mentiu. Assim como ele mentira antes de
entrar na floresta. Mas por quê? Para que fim?
Então, Tanis soube. O orbe do dragão!
— Temos que chegar à Torre antes de Raistlin! — Tanis gritou para
Sturm. — Eu sei o que o mago procura!
O cavaleiro não pôde fazer nada além de assentir. Parecia para Tanis que,
a partir de então, eles não fizeram nada além de lutar a cada centímetro de

121
terreno que ganharam. De tempos em tempos, os dois guerreiros forçavam
os elfos mortos-vivos a afastarem, apenas para serem atacados em números
cada vez maiores. O tempo passou, mas não tinham noção de sua passagem.
Em um momento, o sol brilhou através da névoa verde sufocante. Então, as
sombras da noite pairaram sobre a terra como as asas dos dragões.
Assim que a escuridão se aprofundou, Sturm e Tanis viram a Torre.
Construída de mármore, a Torre alta reluzia branca. Ela ficava sozinha
em uma clareira, alcançando os céus como um dedo esquelético saindo
da sepultura.
Ao verem a Torre, os dois homens começaram a correr. Embora fracos
e exaustos, nenhum dos dois queria ficar nessa floresta mortal depois do
anoitecer. Os guerreiros elfos, vendo suas presas escaparem, gritaram de
raiva e investiram atrás deles.
Tanis correu até parecer que seus pulmões explodiriam de dor. Sturm
passou na sua frente, golpeando os mortos-vivos que apareceram diante deles,
tentando bloquear seu caminho. Assim que Tanis se aproximou da Torre,
sentiu uma raiz de árvore se enroscar em sua bota. Ele caiu de cabeça no chão.
Tanis lutou freneticamente para se libertar, mas a raiz o segurou
rapidamente. Lutou, impotente, enquanto um elfo morto-vivo, com o
rosto contorcido grotescamente, erguia uma lança para atravessá-la pelo
seu corpo. De repente, os olhos do elfo se arregalaram, a lança caiu de seus
dedos nervosos quando uma espada perfurou seu corpo transparente. O
elfo desapareceu com um grito.
Tanis olhou para cima para ver quem salvara sua vida. Era uma guer-
reira estranha, estranha..., mas familiar. A guerreira tirou o elmo e Tanis
fitou os olhos castanhos claros!
— Kitiara! — ele engasgou em choque. — Você está aqui! Como?
Por quê?
— Ouvi dizer que você precisava de ajuda — Kit disse, seu sorriso
torto tão encantador quanto antes. — Parece que eu estava certa. — Ela
estendeu a mão. Ele a segurou, duvidando enquanto o ajudava a levantar.
Mas ela era de carne e osso. — Quem está lá na frente? Sturm? Maravilha!
Como nos velhos tempos! Vamos até a Torre? — perguntou a Tanis, rindo
da surpresa no rosto dele.

Vento Ligeiro lutava sozinho, combatendo legiões de guerreiros elfos


mortos-vivos. Ele sabia que não poderia durar muito mais. Então, ouviu

122
um chamado claro. Levantando os olhos, viu os membros da tribo Qué-
-Shu! Ele gritou de alegria. Mas, para seu horror, viu que apontavam suas
flechas para ele.
— Não! — gritou em Qué-Shu. — Vocês não me reconhecem? Eu...
Os guerreiros Qué-Shu responderam apenas com as cordas de seus
arcos. Vento Ligeiro sentiu a hastes e mais hastes emplumadas afundarem
em seu corpo.
— Você trouxe o cajado de cristal azul até nós! — Gritavam. — Sua
culpa! A destruição da nossa aldeia foi sua culpa!
— Eu não queria — ele sussurrou enquanto caía no chão. — Não
sabia. Me perdoem.

Tika golpeava e cortava seu caminho através de guerreiros elfos,


apenas para vê-los se transformar subitamente em draconianos! Seus olhos
reptilianos brilhavam vermelhos, suas línguas lambiam suas espadas. O
medo gelou a garçonete. Tropeçando, ela esbarrou em Sturm. Raivoso, o
cavaleiro virou-se mandando-a sair do caminho. Ela cambaleou para trás e
empurrou Flint. O anão impaciente a empurrou para o lado.
Cega por causa das lágrimas, tomada pelo pânico ao ver os draco-
nianos, que voltaram à batalha crescidos de seus próprios corpos mortos,
Tika perdeu o controle. Em seu pânico, ela golpeou descontroladamente
qualquer coisa que se movesse.
Apenas quando olhou para cima e viu Raistlin em pé diante dela em
seus mantos negros, ela voltou a si. O mago não disse nada, simplesmente
apontou para baixo. Flint jazia morto a seus pés, perfurado pela espada dela.
“Eu os trouxe até aqui”, pensou Flint. “Isto é minha responsabilidade.
Sou o mais velho. Vou tirá-los daqui.”
O anão levantou seu machado de batalha e bradou um desafio para os
guerreiros elfos diante dele. Mas eles apenas riram.
Furiosamente, Flint caminhou para a frente... apenas para se encon-
trar caminhando rigidamente. As articulações dos joelhos estavam inchadas
e doendo de forma abominável. Seus dedos retorcidos tremeram com uma
paralisia que o fez perder o controle do machado de batalha. Seu fôlego
ficou curto. E, então, Flint soube por que os elfos não estavam atacando:
estavam deixando a velhice acabar com ele.
Mesmo quando percebeu isso, Flint sentiu sua mente começar a vagar.
Sua visão ficou turva. Apalpando o bolso do colete, ele se perguntou onde

123
colocara aqueles óculos confusos. Uma forma apareceu diante dele, uma
forma familiar. Era Tika? Sem seus óculos, ele não podia ver...

Lua Dourada correu entre as árvores tortuosas e torturadas. Perdida e


sozinha, ela procurava desesperadamente por seus amigos. Ao longe, ouvia
Vento Ligeiro a chamando acima da colisão ressonante das espadas. Então,
ela ouviu o chamado dele ser interrompido em uma bolha de agonia. Ela
correu freneticamente para frente, abrindo caminho através dos arbustos,
até que suas mãos e rosto estavam sangrando. Finalmente, encontrou Vento
Ligeiro. O guerreiro jazia no chão, perfurado por muitas flechas... flechas
que ela reconheceu!
Correndo até seu lado, ela se ajoelhou. — Cure-o, Mishakal — ela
rezava, como rezava com tanta frequência.
Mas nada aconteceu. A cor não retornou ao rosto pálido de Vento
Ligeiro. Seus olhos permaneciam perdidos, olhando fixamente para o céu
tingido de verde.
— Por que você não responde? Cure-o! — Lua Dourada clamou aos
deuses. E, então, ela soube. — Não! — ela gritou. — Me castiguem! Eu
sou a única que duvidou. A única que questionou! Eu vi Tarsis destruída,
crianças morrendo em agonia! Como vocês puderam permitir isso? Eu
tento ter fé, mas não posso deixar de duvidar quando vejo tais horrores!
Não o castigue. — Chorando, ela se inclinou sobre o corpo sem vida do seu
marido. Não viu os guerreiros elfos se aproximando ao seu redor.

Fascinado pelas maravilhas horríveis à sua volta, Tasslehoff saiu do ca-


minho e depois descobriu que, de alguma forma, seus amigos conseguiram
perdê-lo. Os mortos-vivos não o incomodaram. Aqueles que se alimenta-
vam do medo não sentiam medo em seu corpo pequeno.
Por fim, depois de vagar aqui e ali por quase um dia, o kender chegou
às portas da Torre das Estrelas. Aqui, sua jornada despreocupada parou
subitamente, pois ele encontrou seus amigos... pelo menos um deles.
De costas para as portas fechadas, Tika lutava por sua vida contra
uma hoste de inimigos disformes, produzidos pelo pesadelo. Tas viu que,
se ela conseguisse entrar na Torre, estaria segura. Correndo para a frente,
seu corpo pequeno passando facilmente através do combate corporal, ele
chegou à porta e começou a examinar a trava enquanto Tika afastava os
elfos ao balançar descontroladamente sua espada.

124
— Depressa, Tas! — ela gritou sem fôlego.
Era uma trava fácil de abrir; com uma armadilha tão simplista para
protegê-la, Tas ficou surpreso que os elfos se incomodassem.
— Eu devo abrir esse cadeado em segundos — ele anunciou. Assim como
começou a trabalhar, no entanto, algo o bateu por trás, o fazendo se atrapalhar.
— Ei! — gritou irritado para Tika, se virando. — Seja um pouco mais
cuidadosa... — Ele parou, horrorizado. Tika estava aos seus pés, o sangue
fluindo em seus cachos vermelhos.
— Não, não Tika! — Tas sussurrou. Talvez ela só estivesse ferida! Tal-
vez, se ele a levasse para dentro da Torre, alguém poderia ajudá-la. Lágrimas
escureceram sua visão, suas mãos tremiam.
“Eu tenho que me apressar”, Tas pensou freneticamente. “Por que isso
não abre? É tão simples!” Furioso, forçou a fechadura.
Ele sentiu uma pequena picada no dedo assim que a trava clicou. A
porta da Torre começou a se abrir. Mas Tasslehoff apenas olhou para o
dedo, onde uma pequena mancha de sangue brilhava. Ele olhou de volta
para a fechadura, onde uma pequena agulha de ouro cintilava. Uma trava
simples, uma armadilha simples. Ele ativou as duas. E, quando os primeiros
efeitos do veneno surgiram com um calor terrível através de seu corpo, ele
olhou para baixo para ver que era tarde demais. Tika estava morta.

Raistlin e seu irmão atravessaram a floresta sem ferimentos. Caramon


assistia em um assombro crescente como Raistlin afastava as criaturas ma-
lignas que os atacavam, às vezes com façanhas mágicas incríveis, às vezes
por sua pura força de vontade.
Raistlin foi gentil, tranquilo e solícito. Caramon foi forçado a parar com
frequência no decorrer do dia. Ao entardecer, tudo o que Caramon podia
fazer era arrastar um pé na frente do outro, até mesmo se apoiando em seu
irmão. E, enquanto Caramon ficava mais fraco, Raistlin ficava mais forte.
Finalmente, quando as sombras da noite caíram, trazendo um final
misericordioso para o dia verde tortuoso, os gêmeos chegaram à Torre. Lá,
eles pararam. Caramon estava febril e com dor.
— Tenho que descansar, Raist — ele arfou. — Me coloque no chão.
— Certamente, meu irmão — Raistlin disse com gentileza. Ele ajudou
Caramon a se encostar na parede perolada da Torre e, depois, o fitou com
olhos frios e reluzentes.
— Adeus, Caramon — ele disse.

125
Caramon olhou para seu gêmeo, incrédulo. Nas sombras das árvores,
o guerreiro podia ver os elfos mortos-vivos, que os seguiam a distância, se
aproximando quando perceberam que o mago estava partindo.
— Raist — Caramon disse lentamente — você não pode me deixar
aqui! Não posso lutar contra eles. Não tenho forças! Eu preciso de você!
— Talvez... Mas sabe, meu irmão, eu não preciso mais de você. Eu
ganhei sua força. Agora, finalmente, sou como deveria ser, não fosse pelo
truque cruel da natureza... uma pessoa inteira.
Enquanto Caramon observava, sem entender, Raistlin se virou para sair.
— Raist!
O grito agoniado de Caramon o deteve. Raistlin parou e olhou de
volta para seu gêmeo, seus olhos dourados sendo tudo o que era visível nas
profundezas de seu capuz negro.
— Como é a sensação de estar fraco e com medo, meu irmão? — ele
perguntou baixinho. Virando-se, Raistlin foi até a entrada da Torre, onde
Tika e Tas jaziam mortos. Raistlin passou por cima do corpo do kender e
desapareceu na escuridão.

Chegando à Torre, Sturm, Tanis e Kitiara viram um corpo deitado


na grama, em sua base. Formas fantasmagóricas estavam começando a
cercá-lo, berrando e gritando, o cortando com suas espadas frias.
— Caramon! — Tanis gritou, deprimido.
— E onde está o irmão dele? — Sturm perguntou, com um olhar de
soslaio para Kitiara. — Deixou-o para morrer, sem dúvida.
Tanis balançou a cabeça enquanto avançavam para ajudar o guerreiro.
Empunhando suas espadas, Sturm e Kitiara mantinham os elfos afastados
enquanto Tanis se ajoelhava ao lado do guerreiro mortalmente ferido.
Caramon ergueu os olhos vidrados e encontrou Tanis, mal o reconhe-
cendo através da confusão sangrenta que obscurecia sua visão.
— Proteja Raistlin, Tanis... — Caramon engasgou com seu próprio
sangue — pois não estarei lá. Cuide dele.
— Cuidar de Raistlin? — Tanis repetiu furiosamente. — Ele o deixou
aqui, para morrer! — Tanis segurou Caramon em seus braços.
Caramon fechou os olhos, cansado. — Não, você está errado, Tanis.
Eu o mandei embora... — A cabeça do guerreiro tombou para frente.
As sombras da noite se fecharam sobre eles. Os elfos desapareceram.
Sturm e Kit chegaram ao lado do guerreiro morto.

126
— O que foi que eu disse? — Sturm perguntou de modo grosseiro.
— Pobre Caramon — sussurrou Kitiara, curvando-se perto dele. —
De alguma forma, sempre imaginei que terminaria assim. — Ela ficou em
silêncio por um instante, depois falou baixinho. — Então, meu pequeno
Raistlin ficou realmente poderoso — falou, quase para si mesma.
— Ao custo da vida do seu irmão!
Kitiara olhou para Tanis como se estivesse perplexa com o que queria
dizer. Então, dando de ombros, ela olhou para Caramon, que estava em
uma poça de seu próprio sangue. — Pobre garoto — disse suavemente.
Sturm cobriu o corpo de Caramon com seu manto e, então, procura-
ram a entrada da Torre.
— Tanis... — Sturm disse, apontando.
— Ah, não. Não Tas — Tanis murmurou. — E Tika.
O corpo do kender estava dentro da passagem, seus membros peque-
nos torcidos pelas convulsões do veneno. Perto dele estava a garçonete, seus
cachos vermelhos emaranhados de sangue. Tanis se ajoelhou ao lado deles.
Uma das bolsas do kender se abriu em sua agonia, seu conteúdo espalhado.
Tanis viu um brilho de ouro. Abaixando, pegou o anel de fabricação élfica,
esculpido na forma de folhas de hera. Sua visão ficou turva, lágrimas enche-
ram seus olhos quando cobriu o rosto com as mãos.
— Não há nada que possamos fazer, Tanis. — Sturm colocou a mão
no ombro do amigo. — Temos que continuar e acabar com isso. Se não
fizer mais nada, viverei para matar Raistlin.
“A morte está na mente. Isto é um sonho”, Tanis repetiu. Mas eram as
palavras de Raistlin que ele estava lembrando e vira o que o mago se tornara.
“Eu vou acordar”, ele pensou, colocando toda a força de sua vontade
para acreditar que era um sonho. Mas, quando abriu os olhos, o corpo do
kender ainda estava no chão.
Apertando o anel, Tanis seguiu Kit e Sturm até um corredor de már-
more úmido e coberto de lodo. Pinturas estavam penduradas em molduras
douradas sobre paredes de mármore. Vitrais altos deixavam entrar uma luz
sinistra e medonha. O corredor poderia ter sido bonito outrora, mas agora
até as pinturas nas paredes pareciam distorcidas, retratando visões horripi-
lantes da morte. Gradativamente, enquanto os três caminham, percebem
uma luz verde brilhante que emanava de uma sala no final do corredor.
Eles podiam sentir uma malevolência irradiando daquela luz verde,
batendo em seus rostos com o calor de um sol corrupto.

127
— O centro do mal — disse Tanis. A raiva encheu seu coração, junto
com tristeza e um desejo ardente de vingança. Ele começou a correr, mas o
ar manchado de verde parecia pressioná-lo, segurando-o até que cada passo
fosse um esforço.
Ao lado dele, Kitiara cambaleou. Tanis colocou seu braço ao redor
dela, embora mal pudesse encontrar forças para se mover. O rosto de Kit
estava encharcado de suor, o cabelo escuro enrolado emoldurando a testa
úmida. Seus olhos estavam arregalados de medo... a primeira vez que Tanis
a viu com medo. A respiração de Sturm ficou ofegante enquanto o cavaleiro
se forçava para frente, sobrecarregado por sua armadura.
No início, pareciam não fazer nenhum progresso. Então, lentamente,
perceberam que estavam avançando, aproximando-se cada vez mais da sala
iluminada de verde. Agora, sua luz brilhante era dolorosa para seus olhos
e o movimento cobrava um preço terrível. A exaustão tomava conta, os
músculos doíam, os pulmões queimavam.
Assim que Tanis percebeu que não poderia dar outro passo, ouviu
uma voz chamar seu nome. Erguendo a cabeça dolorida, ele viu Laurana
parada na frente dele, com a espada élfica na mão. O peso aparentemente
não a afetava pois ela correu até ele com um grito de alegria.
— Tanthalas! — Você está bem! Estive esperando...
Ela parou, seus olhos na mulher entrelaçada no braço de Tanis.
— Quem... — Laurana começou a perguntar e, de repente, de alguma
forma, ela soube. Era a humana, Kitiara. A mulher que Tanis amava. O
rosto de Laurana ficou branco, depois vermelho.
— Laurana... — começou a dizer, sentindo a confusão e a culpa
tomarem conta, se odiando por causar sua dor.
— Tanis! Sturm! — Kitiara gritou, apontando.
Abalados pelo medo em sua voz, todos se viraram, olhando para o
corredor de mármore iluminado de verde.
— Drakus Tsaro, deghnyah! — Sturm entoou em solâmnico.
No final do corredor, um gigantesco dragão verde surgiu. Era Ciano
Ruína Sangrenta, um dos maiores dragões de Krynn. Apenas a própria Gran-
de Vermelha era maior. Serpenteando a cabeça por uma porta, bloqueou a luz
verde ofuscante com seu corpo volumoso. Ciano sentiu o cheiro de aço, carne
humana e sangue élfico. Encarou o grupo com os olhos ardentes.
Eles não conseguiam se mover. Dominados pelo medo dracônico,
só podiam ficar de pé e observar enquanto o dragão arrebentava a porta,

128
quebrando a parede de mármore tão facilmente como se fosse lama cozida.
Com a boca aberta, Ciano se moveu pelo corredor.
Não havia nada que pudessem fazer. Suas armas pendiam das mãos
sem força. Seus pensamentos eram sobre morte. Mas, enquanto o dragão se
aproximava, uma figura escura se esgueirou das sombras mais profundas de
uma passagem oculta e parou diante deles, os encarando.
— Raistlin! — Sturm disse baixinho. — Por todos os deuses, você
pagará pela vida do seu irmão!
Esquecendo o dragão, lembrando apenas do corpo sem vida de Cara-
mon, o cavaleiro saltou em direção ao mago, com a espada erguida. Raistlin
apenas olhou para ele friamente.
— Mate-me, cavaleiro, e você condenará a si mesmo e aos outros com
a morte, pois através da minha magia, e apenas dela, você poderá derrotar
Ciano Ruína Sangrenta!
— Espere, Sturm! — Embora sua alma estivesse cheia de ódio, Tanis
sabia que o mago estava certo. Podia sentir o poder de Raistlin irradiar
através dos mantos negros. — Precisamos da ajuda dele.
— Não! — disse Sturm, sacudindo a cabeça e se afastando, quando
Raistlin se aproximou do grupo. — Eu disse antes... não dependerei da sua
proteção. Não agora. Adeus, Tanis.
Antes que qualquer pudesse detê-lo, Sturm passou por Raistlin em
direção a Ciano Ruína Sangrenta. A cabeça do grande dragão meneou de
um lado para o outro em antecipação ansiosa ao primeiro desafio ao seu
poder desde que conquistara Silvanesti.
Tanis segurou Raistlin: — Faça alguma coisa!
— O cavaleiro está no meu caminho. Qualquer que seja a magia que
eu conjure, também o destruirá — Raistlin respondeu.
— Sturm! — Tanis gritou, sua voz ecoando pesarosamente.
O cavaleiro hesitou. Ele estava ouvindo, mas não a voz de Tanis. O
que ele ouvia era o toque de um trompete, sua música fria como o ar das
montanhas nevadas de sua terra natal. Puro e nítido, o toque da trombeta
se erguia corajosamente acima da escuridão, da morte e do desespero,
penetrando em seu coração.
Sturm respondeu ao toque da trombeta com um grito de batalha ani-
mado. Ergueu a espada, a lâmina ancestral entrelaçada com o martim-pes-
cador e a rosa. O luar prateado atravessando uma janela quebrada tocou a
espada em um brilho branco puro que rasgou o ar verde nocivo.

129
Novamente, a trombeta soou e, novamente, Sturm respondeu, mas
desta vez sua voz vacilou, pois o toque da trombeta que ouviu mudara de
tom. Não era mais doce e pura, era um zurro áspero e estridente.
“Não!” Pensou Sturm em horror ao se aproximar do dragão. “Aquelas
eram as trombetas do inimigo!” Ele fora atraído para uma armadilha! Ago-
ra, ao seu redor, ele podia ver soldados draconianos, rastejando por trás do
dragão, rindo cruelmente de sua credulidade.
Sturm parou, segurando sua espada na mão que suava dentro da luva.
O dragão se ergueu acima dele, uma criatura invencível, cercada pelas
massas de suas tropas, babando e lambendo a papada.
O medo deu um nó no estômago de Sturm. Sua pele ficou fria e úmida.
O toque da trombeta soou pela terceira vez, terrível e maligna. Era o fim.
Tudo fora inútil. A morte e a derrota humilhante esperavam por ele. Com
o desespero crescendo, olhou ao redor. Onde estava Tanis? Ele precisava de
Tanis, mas não conseguia encontrá-lo. Desesperadamente, repetiu o código
dos cavaleiros, Minha Honra É Minha Vida, mas as palavras soavam vazias
em seus ouvidos. Ele não era um cavaleiro. O que o Código significava para
ele? Estava vivendo uma mentira! O braço da espada de Sturm vacilou,
depois abaixou. Sua espada caiu de sua mão e ele caiu de joelhos, tremendo
e chorando como uma criança, escondendo a cabeça do terror diante de si.
Com um golpe de suas garras cintilantes, Ciano Ruína Sangrenta
acabou com a vida de Sturm, empalando o corpo do cavaleiro em uma
pata manchada de sangue. Desdenhosamente, Ciano sacudiu o humano
miserável no chão enquanto os draconianos corriam aos gritos em direção
ao corpo ainda vivo do cavaleiro, com a intenção de cortá-lo em pedaços.
Mas eles encontraram o caminho bloqueado. Uma figura brilhante,
reluzindo prateada ao luar, correu até o corpo do cavaleiro. Abaixando
rapidamente, Laurana ergueu a espada de Sturm. Então, endireitando-se,
encarou os draconianos.
— Toquem nele e vocês morrerão — disse ela, através de suas lágrimas.
— Laurana! — Tanis gritou e tentou correr para ajudá-la. Mas os dra-
conianos saltaram em sua direção. Ele os atacou desesperadamente, tentando
chegar à elfa. Logo quando os superou, ouviu Kitiara chamar seu nome. Vi-
rando-se, ele a viu sendo repelida por quatro draconianos. O meio-elfo parou
em agonia, hesitando, e, naquele momento, Laurana caiu sobre o corpo de
Sturm, seu próprio corpo perfurado por espadas draconianas.

130
— Não! Laurana! — Tanis gritou. Começando a ir até ela, ouviu Kitiara
gritar novamente. Ele parou, virando-se. Agarrando sua cabeça, ele permane-
ceu indeciso e indefeso, forçado a observar quando Kitiara caía sob o inimigo.
O meio-elfo soluçou em frenesi, sentindo-se mergulhar na loucura,
ansioso pela morte para acabar com essa dor. Ele agarrou a espada mágica
de Kith-Kanan e correu em direção ao dragão, seu único pensamento sendo
matar e ser morto.
Mas Raistlin bloqueou seu caminho, de pé na frente do dragão como
um obelisco negro.
Tanis caiu no chão, sabendo que sua morte estava decidida. Segurando
o pequeno anel de ouro com firmeza na mão, esperou para morrer.
Então, ouviu o mago entoando palavras estranhas e poderosas. Ouviu o
dragão rugir de raiva. Os dois estavam lutando, mas Tanis não se importava.
De olhos bem fechados, ele obscureceu os sons ao redor dele, obscure-
ceu a vida. Apenas uma coisa permanecia real. O anel de ouro que segurava
firmemente em sua mão.
De repente, Tanis ficou extremamente consciente do anel que pressio-
nava a palma de sua mão: o metal estava frio, as bordas ásperas. Podia sentir
as folhas douradas de hera retorcidas cortando sua carne.
Tanis fechou a mão, apertando o anel. O ouro cortou sua carne, mais
profundamente. Dor... dor de verdade...
Estou sonhando!

Tanis abriu os olhos. O luar prateado de Solinari inundava a Torre,


misturado com os raios vermelhos de Lunitari. Ele estava deitado em um
chão de mármore frio. Sua mão estava apertada com tanta força que a dor o
acordou. Dor. O anel. O sonho! Lembrando-se do sonho, Tanis sentou-se
aterrorizado e olhou em volta. Mas o corredor estava vazio, exceto por outra
pessoa. Raistlin caiu contra uma parede, tossindo.
O meio-elfo se levantou cambaleante e caminhou trêmulo em direção
a Raistlin. Quando se aproximou, podia ver sangue nos lábios do mago.
O sangue brilhou vermelho na luz de Lunitari... tão vermelho quanto os
mantos que cobriam o corpo frágil e trêmulo de Raistlin.
O sonho. Tanis abriu a mão. Estava vazia.

131
11
O sonho acaba.
O pesadelo começa.

meio-elfo olhou em volta do corredor. Estava tão vazio quanto


sua mão. Os corpos de seus amigos não estavam lá. O dragão
desaparecera. O vento soprava através de uma parede quebrada,
sacudindo os mantos vermelhos de Raistlin sobre ele, espalhando folhas
mortas de álamo pelo chão. O meio-elfo se aproximou de Raistlin, pegando
o jovem mago em seus braços enquanto ele caía.
— Onde eles estão? — Tanis perguntou, sacudindo Raistlin. — Lau-
rana? Sturm? E os outros, seu irmão? Eles estão mortos? — Ele olhou em
volta. — E o dragão...
— O dragão se foi. O orbe mandou o dragão embora quando percebeu
que não poderia me derrotar. — Se afastando do aperto de Tanis, Raistlin
ficou sozinho, encolhido contra a parede de mármore. — Não poderia me
derrotar como eu estava. Uma criança poderia me derrotar agora — disse
amargamente. — Quanto aos outros — ele deu de ombros — eu não sei. —
Ele voltou os olhos estranhos para Tanis. — Você viveu, meio-elfo, porque
seu amor era forte. Eu vivi por causa da minha ambição. Nos apegamos à
realidade no meio do pesadelo. Quem pode dizer sobre os outros?
— Caramon está vivo, então — disse Tanis. — Por causa do amor
dele. Com seu último suspiro, ele me pediu para poupar sua vida. Me diga,
mago, esse futuro que disse que vimos é irreversível?
— Por que perguntar? — Raistlin disse cansado. — Você me mataria,
Tanis? Agora?
— Não sei — disse Tanis baixinho, pensando nas últimas palavras de
Caramon. — Talvez.
Raistlin sorriu amargamente. — Poupe sua energia — disse. — O fu-
turo muda enquanto estamos aqui, senão somos peças do jogo dos deuses,
não seus herdeiros, como nos foi prometido. Mas... — o mago se afastou
da parede — isso está longe de terminar. Temos que encontrar Lorac e o
orbe do dragão.
Raistlin se arrastou pelo corredor, apoiando-se pesadamente sobre o
Cajado de Magius, seu cristal iluminando a escuridão agora que a luz verde
se dissipara.
Luz verde. Tanis estava no corredor, perdido em confusão, tentando
acordar, tentando separar o sonho da realidade... pois o sonho parecia
muito mais real do que qualquer coisa agora. Ele olhou para a parede
quebrada. Certamente, havia um dragão? E uma luz verde cegante no final
do corredor? Mas o corredor estava escuro. A noite caíra. Era de manhã
quando começaram. As luas não haviam nascido, mas agora estavam cheias.
Quantas noites passaram? Quantos dias?
Então, Tanis ouviu uma voz estrondosa no outro extremo do corredor,
perto da passagem.
— Raist!
O mago parou, com os ombros caídos. Então, se virou devagar. —
Meu irmão — ele sussurrou.
Caramon, vivo e aparentemente ileso, ficou na porta, delineado contra
a noite estrelada. Ele encarou o seu gêmeo.
Então, Tanis ouviu Raistlin suspirar baixinho.
— Estou cansado, Caramon. — O mago tossiu e depois soltou um
suspiro ofegante. — E ainda há muito a ser feito antes que esse pesadelo
termine, antes que as três luas se ponham. — Raistlin estendeu seu braço
magro. — Preciso da sua ajuda, irmão.

133
Tanis ouviu Caramon soltar um soluço estremecido. O grandalhão
correu dentro da sala, com a espada batendo em sua coxa. Alcançando seu
irmão, ele colocou o braço ao seu redor.
Raistlin se apoiou no braço forte de Caramon. Juntos, os gêmeos ca-
minharam pelo corredor frio e atravessaram a parede quebrada em direção à
sala onde Tanis vira a luz verde e o dragão. Com o coração pesado de maus
pressentimentos, Tanis os seguiu.
Os três entraram no salão de audiências da Torre das Estrelas. Tanis
observou com curiosidade. Ouvira falar de sua beleza durante toda a sua
vida. A Torre do Sol em Qualinost foi construída em memória desta Torre,
a Torre das Estrelas. As duas eram parecidas, mas não iguais. Uma estava
cheia de luz, outra cheia de escuridão. Olhou em volta. A Torre se elevava
acima em espirais de mármore que reluziam com um brilho perolado. Fora
construída para capturar o luar, enquanto a Torre do Sol captava a luz diur-
na. Janelas esculpidas na Torre eram facetadas com gemas que capturavam e
ampliavam a luz das duas luas, Solinari e Lunitari, fazendo com que os raios
prateados e vermelhos dançassem na câmara. Mas, agora, as gemas estavam
quebradas. O luar que filtravam era distorcido, a prata transformando-se
no branco pálido de um cadáver, o vermelho em sangue.
Tremendo, Tanis olhou diretamente para o topo. Em Qualinost, havia
murais no teto, retratando o sol, as constelações e as duas luas. Mas aqui,
não havia nada além de um buraco esculpido no topo da torre. Através do
buraco, podia-se ver apenas a escuridão vazia. As estrelas não brilharam.
Era como se uma esfera preta perfeitamente redonda tivesse aparecido na
escuridão estrelada. Antes que pudesse refletir sobre o que isso pressagiava,
ele ouviu Raistlin falar baixinho e se virou.
Lá, nas sombras na frente da câmara de audiência, estava o pai de
Alhana, Lorac, o rei elfo. Seu corpo encolhido e cadavérico quase desapare-
cia em um enorme trono de pedra, esculpido com pássaros e animais. Devia
ter sido belo outrora, mas agora, as cabeças dos animais eram crânios.
Lorac estava sentado, imóvel, a cabeça jogada para trás, a boca larga em
um grito silencioso. Sua mão repousava sobre um globo de cristal redondo.
— Ele está vivo? — Tanis perguntou, horrorizado.
— Sim — respondeu Raistlin — infelizmente, para ele.
— O que há de errado com ele?
— Ele está vivendo um pesadelo — Raistlin respondeu, apontando
para a mão de Lorac. — Lá está o orbe do dragão. Aparentemente, ele

134
tentou assumir o controle. Mas não era forte o suficiente, então o orbe assu-
miu o controle dele. O orbe chamou Ciano Ruína Sangrenta para proteger
Silvanesti e o dragão decidiu destruí-la, sussurrando pesadelos nos ouvidos
de Lorac. A crença de Lorac no pesadelo era tão forte, sua empatia com sua
terra tão grande, que o pesadelo se tornou realidade. Assim, era o seu sonho
que vivenciamos quando entramos. Seu sonho... e o nosso próprio. Pois
também ficamos sob o controle do dragão quando entramos em Silvanesti.
— Você sabia que enfrentamos isso! — Tanis acusou, agarrando
Raistlin pelo ombro e o girando de frente. — Você sabia no que estávamos
entrando, lá nas margens do rio...
— Tanis — disse Caramon em advertência, retirando a mão do
meio-elfo. — Deixe-o em paz.
— Talvez — Raistlin disse, esfregando seu ombro, seus olhos estreitos. —
Talvez não. Não preciso revelar meu conhecimento ou a fonte dele para você!
Antes que pudesse responder, Tanis ouviu um gemido. Soava como se
viesse da base do trono. Lançando um olhar raivoso para Raistlin, Tanis se
virou rapidamente e olhou para as sombras. Com cautela, ele se aproximou,
com a espada em punho.
— Alhana! — A elfa estava agachada aos pés do pai, com a cabeça no
colo dele, chorando. Ela não parecia ouvir Tanis. Ele foi até ela. — Alhana
— disse gentilmente.
Ela o observou, sem reconhecimento.
— Alhana — disse novamente.
Ela piscou, então estremeceu, e agarrou a mão dele como se estivesse
segurando a realidade.
— Meio-Elfo! — ela sussurrou.
— Como você chegou aqui? O que aconteceu?
— Ouvi o mago dizer que era um sonho — Alhana respondeu, tre-
mendo com a lembrança — e eu... eu me recusei a acreditar no sonho. Eu
acordei, apenas para descobrir que o pesadelo era real! Minha linda terra
cheia de horrores! — Ela escondeu o rosto nas mãos. Tanis se ajoelhou ao
lado dela e a abraçou.
— Eu abri caminho até aqui. Demorou... dias. Através do pesadelo.
— Ela apertou Tanis com força. — Quando entrei na Torre, o dragão me
pegou. Ele me trouxe aqui, até o meu pai, pensando em fazer Lorac me
matar. Mas nem mesmo em seu pesadelo, meu pai poderia ferir sua própria
filha. Então, Ciano o torturou com visões do que faria comigo.

135
— E você? Você também as viu? — Tanis sussurrou, acariciando o
cabelo comprido e escuro da mulher com uma mão reconfortante.
Depois de um momento, Alhana falou. — Não foi tão ruim. Eu
sabia que não era nada além de um sonho. Mas para meu pobre pai, era a
realidade... — Ela começou a soluçar.
O meio-elfo fez um sinal para Caramon. — Leve Alhana para um
cômodo onde ela possa se deitar. Faremos o que for possível por seu pai.
— Eu ficarei bem, meu irmão — Raistlin disse em resposta ao olhar
de preocupação de Caramon. — Faça como Tanis diz.
— Venha, Alhana — Tanis insistiu, a ajudando a se levantar. Ela
cambaleou de cansaço. — Existe algum lugar onde possa descansar? Você
precisará da sua força.
No início, ela tentou discutir, então percebeu o quanto estava fraca. — Me
leve até o quarto do meu pai — disse ela. — Mostrarei o caminho. — Caramon
colocou o braço ao redor dela e, lentamente, começaram a sair da câmara.
Tanis se voltou para Lorac. Raistlin parou diante do rei elfo. Tanis
ouviu o mago falando em voz baixa para si mesmo.
— O que é isso? — o meio-elfo disse baixinho. — Ele está morto?
— Quem? — Raistlin se assustou, piscando. Viu Tanis olhando para
Lorac. — Ah, Lorac? Não, acredito que não. Ainda não.
Tanis percebeu que o mago estava olhando para o orbe do dragão.
— O orbe ainda está no controle? — Tanis perguntou, nervoso, seus
olhos no objeto que penaram tanto para encontrar.
O orbe do dragão era um globo de cristal enorme, com pelo menos
sessenta centímetros de diâmetro. Ele estava em um suporte de ouro que
fora esculpido com desenhos horríveis e distorcidos, espelhando a vida
tortuosa e atormentada de Silvanesti. Embora o orbe fosse possivelmente a
fonte da luz verde brilhante, agora havia apenas um brilho fraco, iridescente
e pulsante em seu coração.
As mãos de Raistlin pairaram sobre o globo, mas, Tanis notou, ele teve
o cuidado de não tocá-lo enquanto entoava as palavras mágicas. Uma leve
aura vermelha começou a cercar o globo. Tanis recuou.
— Não tema — Raistlin sussurrou, observando enquanto a aura
sumia. — É a minha magia. O globo está encantado... ainda. Sua magia
não morreu com a partida do dragão, como eu achava possível. Contudo,
ainda está no controle.
— Controle de Lorac?

136
— Controle de si mesmo. Ele libertou Lorac.
— Você fez isso? — Tanis murmurou. — Você o derrotou?
— O orbe não foi derrotado! — Raistlin disse bruscamente. — Com
ajuda, consegui derrotar o dragão. Percebendo que Ciano Ruína Sangrenta
estava perdendo, o orbe o mandou embora. Libertou Lorac porque não
podia mais usá-lo. Mas o orbe ainda é muito poderoso.
— Raistlin, me diga...
— Não tenho mais nada a dizer, Tanis. — O jovem mago tossiu. —
Preciso conservar minha energia.
“Raistlin recebeu a ajuda de quem? O que mais ele sabia sobre esse
orbe?” Tanis pensou. Abriu a boca para continuar o assunto, mas viu os
olhos dourados de Raistlin tremeluzirem e ficou em silêncio.
— Podemos libertar Lorac agora — Raistlin adicionou. Caminhando
até o rei elfo, ele gentilmente retirou a mão de Lorac do orbe do dragão,
depois colocou os dedos finos no pescoço de Lorac. — Ele vive. Por ora.
Seu batimento está fraco. Você pode se aproximar.
Tanis, com os olhos no orbe do dragão, recuou. Raistlin observou o
meio-elfo, satisfeito, depois acenou.
Com relutância, Tanis se aproximou. — Me diga mais uma coisa... o
orbe ainda pode ser útil para nós?
Raistlin ficou em silêncio por um bom tempo. Então, fracamente,
respondeu: — Sim, se tivermos coragem.
Lorac soltou um suspiro trêmulo, depois gritou, um grito agudo e de
lamento, horrível de se ouvir. Suas mãos, pouco mais que garras esqueléti-
cas, se reviraram e contorceram. Seus olhos estavam bem fechados. Tanis
tentou acalmá-lo, em vão. Lorac berrou até ficar sem fôlego.
— Pai! — Tanis ouviu Alhana chorar. Ela reapareceu na porta do salão
de audiências e empurrou Caramon para o lado. Correndo até seu pai,
ela agarrou suas mãos ossudas nas dela. Beijando suas mãos, ela chorou,
implorando para ele ficar em silêncio.
— Descanse, pai — repetiu várias vezes. — O pesadelo terminou. O
dragão foi embora. Você pode dormir, Pai!
Mas os gritos do homem continuaram.
— Em nome dos deuses! — Caramon disse ao se aproximar, seu rosto
pálido. — Eu não aguento mais isso.
— Pai! — Alhana implorou, o chamando repetidas vezes. Lentamente,
sua voz amada penetrou nos sonhos distorcidos que se demoravam na mente

137
torturada de Lorac. Lentamente, os gritos dele diminuíram até se tornarem
pouco mais do que gemidos horrorizados. Então, como se temesse o que
pudesse ver, ele abriu os olhos.
— Alhana, minha filha. Viva! — Ele levantou a mão trêmula para
tocar sua bochecha. — Não pode ser! Eu vi você morrer, Alhana. Vi você
morrer cem vezes, cada vez mais horrível que a anterior. Ele a matou,
Alhana. Queria que eu a matasse. Mas eu não consegui. Embora não saiba
por que, pois já matei muitos. — Então, ele percebeu Tanis. Seus olhos se
abriram, brilhando de ódio.
— Você! — Lorac rosnou, levantando-se da cadeira, as mãos retorcidas
agarrando-se aos lados do trono. — Você, meio-elfo! Eu o matei... ou tentei.
Preciso proteger Silvanesti! Eu o matei! Matei quem estava com você. — En-
tão, seus olhos passaram para Raistlin. O olhar de ódio foi substituído pelo de
medo. Tremendo, se afastou do mago. — Mas você, você eu não poderia matar!
A expressão de terror de Lorac mudou para confusão. — Não — ele
chorou. — Você não é ele! Seus mantos não são negros! Quem são vocês?
— Seus olhos se voltaram para Tanis. — E você? Você não é uma ameaça?
O que eu fiz? — Ele gemeu.
— Não, pai — Alhana implorou, o acalmando, acariciando seu rosto
febril. — Você precisa descansar agora. O pesadelo terminou. Silvanesti
está a salvo.
Caramon levantou Lorac em seus braços fortes e o levou para seus
aposentos. Alhana caminhou ao seu lado, a mão do pai segura na dela
com firmeza.
“A salvo”, Tanis pensou, olhando pelas janelas para as árvores ator-
mentadas. Embora os guerreiros elfos mortos-vivos não mais andassem
pela floresta, as formas torturadas que Lorac criara em seu pesadelo ainda
viviam. Contorcidas em agonia, as árvores ainda choravam sangue. Quem
vai morar aqui agora? Tanis se perguntou, com tristeza. Os elfos não retor-
narão. Coisas malignas entrarão nesta floresta escura e o pesadelo de Lorac
se tornará realidade.
Pensando na floresta do pesadelo, Tanis se perguntou onde estavam seus
outros amigos. Eles estavam bem? E se tivessem acreditado no pesadelo...
como Raistlin disse? Teriam realmente morrido? Com seu coração dolorido,
sabia que precisaria voltar para aquela floresta insana e procurar por eles.
Assim que o meio-elfo tentou forçar seu corpo cansado a entrar em
ação, seus amigos entraram na sala da Torre.

138
— Eu o matei! — Tika gritou ao avistar Tanis. Seus olhos estavam
arregalados de pesar e terror. — Não! Não me toque, Tanis. Você não sabe
o que eu fiz. Eu matei Flint! Eu não queria, Tanis, juro!
Quando Caramon entrou na sala, Tika se virou para ele, soluçando.
— Eu matei Flint, Caramon. Não chegue perto de mim!
— Calma — disse Caramon, a envolvendo suavemente em seus braços
grandes. — Foi um sonho, Tika. Isso é o que Raist diz. O anão nunca esteve
aqui. Calma. — Acariciando os cachos ruivos de Tika, ele a beijou. Tika se
agarrou a ele e Caramon a abraçou, cada um encontrando conforto com o
outro. Gradualmente, os soluços de Tika diminuíram.
— Meu amigo — disse Lua Dourada, estendendo os braços para
abraçar Tanis.
Vendo a expressão séria e sombria em seu rosto, o meio-elfo a abraçou
com força, olhando curioso para Vento Ligeiro. O que cada um deles sonhou?
Mas o homem das Planícies apenas balançou a cabeça, o rosto pálido e triste.
Então, ocorreu a Tanis que cada um deve ter vivido o seu próprio so-
nho e, de repente, ele se lembrou de Kitiara! Como ela fora real! E Laurana,
morrendo. Fechando os olhos, Tanis encostou a cabeça na de Lua Dourada.
Ele sentiu os braços fortes de Vento Ligeiro cercando os dois. O amor deles
o abençoou. O horror do sonho começou a diminuir.
E, então, Tanis teve um pensamento aterrorizante: “o sonho de Lorac
se tornou realidade! E o deles?”
Atrás dele, Tanis ouviu Raistlin começar a tossir. Agarrando seu peito,
o mago se abaixou nos degraus que levavam ao trono de Lorac. Tanis viu
Caramon, ainda segurando Tika, olhando para o irmão com preocupação.
Mas Raistlin ignorou seu irmão. Reunindo seus mantos ao seu redor, o
mago deitou-se no chão frio e fechou os olhos, exausto.
Suspirando, Caramon aproximou Tika ainda mais. Tanis observou sua
pequena sombra se tornar parte da maior de Caramon enquanto estavam
juntos, seus corpos delineados nos raios prateados e vermelhos distorcidos
do luar fraturado.
“Todos nós precisamos dormir”, pensou Tanis, sentindo seus
próprios olhos arderem. “No entanto, como podemos? Como podemos
dormir de novo?”

139
12
Visões compartilhadas.
A morte de Lorac.

or fim, eles dormiram. Aconchegados no chão de pedra da Torre


das Estrelas, eles ficaram tão próximos uns dos outros quanto
possível. Enquanto dormiam, outros despertavam em terras frias
e hostis, distantes de Silvanesti.
Laurana acordou primeiro. Saindo de um sono profundo com um
grito, ela não tinha ideia de onde estava, a princípio. Ela falou uma pala-
vra.... — Silvanesti!
Tremendo, Flint acordou para descobrir que seus dedos ainda se mo-
viam, as dores nas pernas não eram piores do que o normal.
Sturm acordou em pânico. Estremecido de medo, ele só conseguia
ficar agachado sob os cobertores, tremendo, por um bom tempo. Então,
ouviu algo fora de sua tenda. Assustado, com mão em sua espada, ele se
arrastou para frente e abriu a aba da tenda.
— Ah! — Laurana suspirou ao ver seu rosto abatido.
— Sinto muito — disse Sturm. — Eu não queria...— Então, viu que
ela estava tremendo tanto que ela mal podia segurar sua vela. — O que
foi? — ele perguntou, alarmado, a tirando do frio.
— Eu... eu sei que parece bobagem — disse Laurana ruborizada —
mas tive o sonho mais assustador e não consegui dormir.
Tremendo, ela permitiu que Sturm a levasse para dentro da tenda. A
chama dav vela lançava sombras ao redor da tenda. Sturm a tirou da sua
mão, com medo de que ela pudesse largá-la.
— Eu não queria acordá-lo, mas ouvi você gritar. E meu sonho era tão
real! Você estava nele... eu vi você...
— Como é Silvanesti? — Sturm interrompeu abruptamente.
Laurana olhou para ele. — Mas é onde sonhei que estávamos! Por que
perguntou? A menos que... você também sonhou com Silvanesti?!
Sturm se envolveu em seu manto, assentindo. — Eu... — ele come-
çou, então ouviu outro barulho do lado de fora. Desta vez, ele apenas abriu
a aba da tenda. — Entre, Flint — disse cansado.
O anão entrou, o rosto vermelho. Ele parecia envergonhado por
encontrar Laurana ali, no entanto, gaguejou e caminhou até que Laurana
sorriu para ele.
— Nós sabemos — disse ela. — Você teve um sonho. Silvanesti?
Flint tossiu, limpando a garganta e enxugando o rosto com a mão.
— Aparentemente, não sou o único? — perguntou, olhando estreitamente
para os outros debaixo de suas sobrancelhas espessas. — Imagino que vo-
cês... querem que eu conte com o que eu sonhei?
— Não! — Sturm disse apressadamente, seu rosto pálido. — Não,
não quero falar sobre isso... nunca!
— Nem eu — disse Laurana baixinho.
Hesitante, Flint deu um tapinha no ombro dela. — Fico feliz — disse
rispidamente. — Eu também não poderia falar sobre o meu. Só queria ver
se era um sonho. Parecia tão real que eu esperava encontrar vocês dois...
O anão parou. Houve um farfalhar do lado de fora, depois Tasslehoff
invadia a tenda animadamente, entrando pela aba.
— Ouvi vocês falando sobre um sonho? Eu nunca sonho, pelo menos
não que eu me lembre. Os Kender não o fazem, muito. Ah, imagino que
sonhemos. Até os animais sonham, mas... — Ele percebeu o olhar de Flint
e voltou rapidamente para o assunto original. — Bem! Eu tive o sonho
mais fantástico! Árvores chorando sangue. Elfos mortos horríveis, por aí,

141
matando pessoas! Raistlin vestindo mantos negros! Foi a coisa mais incrível!
E você estava lá, Sturm. Laurana e Flint. E todos morreram! Bem, quase
todo mundo. Raistlin não morreu. E havia um dragão verde...
Tasslehoff parou. O que havia de errado com seus amigos? Seus rostos
estavam mortalmente pálidos, os olhos arregalados. — D-dragão verde
— ele gaguejou. — Raistlin, vestido de preto. Eu mencionei isso? B-bem
apropriado, na verdade. O vermelho sempre fez com que ele parecesse meio
mal-humorado, se entendem o que quero dizer. Vocês não entendem. Bem,
acho que vou voltar para a cama. A não ser que vocês queiram ouvir mais?
— Ele olhou em volta, com esperança. Ninguém respondeu.
— Bem, boa noite — ele murmurou. Saindo da tenda precipitada-
mente, ele voltou para a cama, balançando a cabeça, intrigado. Qual era o
problema com todo mundo? Foi só um sonho...
Por um bom tempo, ninguém falou. Então, Flint suspirou.
— Não me importo de ter um pesadelo — o anão disse, mal-humo-
rado. — Mas me oponho a compartilhá-lo com um kender. Como vocês
acham que todos tivemos o mesmo sonho? E o que isto significa?
— Uma terra estranha, Silvanesti — Laurana disse. Pegando sua vela,
começou a sair. Então, olhou para trás. — Você... você acha que foi real?
Eles morreram, como vimos? — Tanis estava com aquela mulher humana?
Ela pensou, mas não perguntou em voz alta.
— Estamos aqui — disse Sturm. — Nós não morremos. Só podemos
acreditar que os outros também não. E... — ele fez uma pausa — parece
engraçado, mas, de alguma forma, sei que eles estão bem.
Laurana olhou para o cavaleiro atentamente por um momento, viu
seu rosto sério se acalmar depois que o choque inicial e o horror se dissipa-
ram. Ela se sentiu relaxar. Estendendo a mão, pegou a mão forte e esbelta
de Sturm e a apertou em silêncio. Então, ela se virou e saiu, voltando para
a noite estrelada.
O anão se levantou. — Bem, chega de sono. Vou fazer meu turno agora.
— Vou me juntar a você — disse Sturm, de pé e afivelando o cinto
da espada.
— Acho que nunca saberemos — disse Flint — por quê ou como
todos tivemos o mesmo sonho.
— Acho que não — concordou Sturm.
O anão saiu da tenda. Sturm começou a segui-lo, depois parou quando
seus olhos captaram um vislumbre de luz. Pensando que talvez um pouco

142
de pavio tivesse caído da vela de Laurana, ele se abaixou para apagá-lo,
apenas para descobrir que a joia que Alhana dera havia escorregado de seu
cinto e caído no chão. Ao pegá-la, percebeu que estava brilhando com sua
própria luz interior, algo que nunca tinha visto antes.
— Acho que não — Sturm repetiu, pensativo, virando a joia várias
vezes em sua mão.

A manhã apareceu em Silvanesti pela primeira vez em muitos meses


longos e terríveis. Mas apenas um ser viu isso. Observando da janela do
seu quarto, Lorac viu o sol nascer acima dos álamos reluzentes. Os outros,
esgotados, dormiam profundamente.
Alhana não saíra do lado de seu pai a noite toda. Mas o cansaço a
dominou e ela adormeceu sentada em sua cadeira. Lorac viu a luz pálida do
sol iluminar o rosto dela. Os longos cabelos negros caíam no rosto como
rachaduras no mármore branco. Sua pele estava rasgada por espinhos,
coberta de sangue seco. Ele viu a beleza, mas tal beleza estava desfigurada
pela arrogância. Ela era o epítome de seu povo. Virando-se para trás, olhou
para Silvanesti, mas não encontrou nenhum conforto ali. Uma névoa verde
e nociva ainda pairava, como se o próprio solo estivesse apodrecendo.
— Eu que fiz isso — ele disse para si mesmo, seus olhos demorando-
se nas árvores retorcidas e torturadas, nas feras lamentáveis disformes que
vagavam pela terra, buscando o fim de seu tormento.
Por mais de quatrocentos anos, Lorac viveu nesta terra. Ele a assistira
tomar forma e florescer sob suas mãos e as mãos de seu povo.
Houve momentos de dificuldade também. Lorac era um dos poucos
que ainda estava vivo em Krynn e lembrava do Cataclismo. Mas os elfos sil-
vanesti sobreviveram a isso muito melhor do que os outros no mundo... se
afastando das outras raças. Eles sabiam porquê os deuses antigos deixaram
Krynn, eles viram o mal na humanidade, embora não pudessem explicar
por que os clérigos élficos também desapareceram.
Os elfos de Silvanesti ouviram, é claro, através dos ventos, pássaros e
outros caminhos misteriosos, os sofrimentos de seus primos, os qualinesti,
após o Cataclismo. E, apesar de lamentar as histórias de roubos e assassina-
tos, os silvanesti se perguntaram: o que se poderia esperar, ao viver entre os
humanos? Eles se retiraram para a floresta, renunciando ao mundo exterior,
pouco se importando com o mundo exterior renunciando a eles.

143
Assim, Lorac achou impossível entender esse novo mal que tomava o
norte, ameaçando sua terra natal. Por que ele deveria incomodar os silva-
nesti? Ele se encontrou com os Senhores do Dragão, explicando a eles que
os silvanesti não trariam problemas. Os elfos acreditavam que todos tinham
o direito de viver sobre Krynn, cada um à sua maneira única, tanto os maus
quanto os bons. Ele falou e eles ouviram, a princípio, tudo parecia bem.
Então, chegou o dia em que Lorac percebeu que fora enganado, o dia em
que os céus entraram em erupção com dragões.
Apesar de tudo, os elfos não estavam despreparados. Lorac viveu
muito tempo esperando por isso. Navios esperavam para levar o povo para
a segurança. Lorac ordenou que partissem sob o comando de sua filha.
Então, quando ficou sozinho, ele desceu para as câmaras sob a Torre das
Estrelas, onde escondera o orbe do dragão.
Somente sua filha e os há muito perdidos clérigos élficos sabiam da
existência do orbe. Todos os outros no mundo acreditavam que ele fora
destruído no Cataclismo.
Lorac sentou-se ao lado dele, o observando por longos dias. Lembrou-
se das advertências dos Altos Magos, trazendo à mente tudo o que conseguia
lembrar sobre o orbe. Finalmente, embora plenamente consciente de que
não tinha ideia de como funcionava, Lorac decidiu que precisava usá-lo
para tentar salvar sua terra.
Ele se lembrou do globo vividamente, lembrou-se dele queimando
com uma luz verde rodopiante e fascinante que pulsava e se fortalecia
quando ele o encarava. E lembrou-se de saber, quase desde os primeiros
segundos em que repousara os dedos sobre o globo, que cometera um erro
terrível. Ele não tinha a força, nem o controle para comandar a magia. Mas
então, já era tarde demais. O orbe o capturou e o manteve fascinado. A
parte mais horrível de seu pesadelo era ser constantemente lembrado de que
estava sonhando, mas incapaz de se libertar.
E agora, o pesadelo se tornara realidade. Lorac inclinou a cabeça,
sentindo lágrimas amargas em sua boca. Então, sentiu mãos gentis em
seus ombros.
— Pai, não suporto ver você chorar. Afaste-se da janela. Venha para
a cama. A terra será linda mais uma vez com o tempo. Você ajudará a
moldá-la...
Mas Alhana não conseguia olhar pela janela sem estremecer. Lorac
sentiu-a tremer e sorriu, triste.

144
— Nosso povo voltará, Alhana? — Ele observou o verde que não era
o verde vibrante da vida, mas o da morte e decadência.
— Claro — disse rapidamente.
Lorac tocou levemente na mão dela. — Uma mentira, minha filha?
Desde quando elfos mentem um para o outro?
— Acho que talvez tenhamos mentido para nós mesmos — mur-
murou Alhana, recordando o que aprendera sobre o ensinamento de Lua
Dourada. — Os deuses antigos não abandonaram Krynn, pai. Uma clériga
de Mishakal, a Curandeira, viajou conosco e nos contou o que aprendera.
Eu... não queria acreditar, pai. Estava com inveja. Ela é humana, afinal de
contas, e por que os deuses deveriam ir até os humanos com essa esperança?
Mas agora entendo. Os deuses são sábios. Eles foram para os humanos por-
que nós não os aceitaríamos. Através da nossa dor, vivendo neste lugar de
desolação, aprenderemos, como você e eu aprendemos, que não podemos
mais viver no mundo e estar separados do mundo. Os elfos trabalharão para
reconstruir não apenas esta terra, mas todas as terras devastadas pelo mal.
Lorac ouviu. Seus olhos se voltaram da paisagem torturada para o
rosto de sua filha, pálido e radiante como a lua prateada, e estendeu a mão
para tocá-la.
— Você os trará de volta? Nosso povo?
— Sim, pai — prometeu, pegando sua mão fria e sem carne e seguran-
do-a com força. — Vamos trabalhar e nos esforçar. Vamos pedir perdão aos
deuses. Sairemos entre os povos de Krynn e ... — Lágrimas inundaram seus
olhos e sufocaram sua voz, pois ela viu que Lorac não podia mais ouvi-la.
Seus olhos escureceram e ele começou a afundar na cadeira.
— Eu me entrego à terra — ele sussurrou. — Enterre meu corpo no
solo, filha. Como minha vida trouxe essa maldição sobre ela, então, talvez,
minha morte traga sua bênção.
A mão de Lorac escorregou do aperto de sua filha. Seus olhos sem vida
olhavam para a terra atormentada de Silvanesti. Mas o olhar de horror em
seu rosto desapareceu, o deixando cheio de paz.
E Alhana não podia lamentar.

Naquela noite, os companheiros se prepararam para deixar Silvanesti.


Eles viajariam sob a cobertura da escuridão durante grande parte de sua
jornada para o norte, já que agora sabiam que os exércitos dracônicos
controlavam as terras pelas quais precisavam passar. Eles não tinham mapas

145
para guiá-los. Temiam confiar em mapas antigos, depois de sua experiência
com a cidade portuária sem litoral, Tarsis. Uma vez que os únicos mapas
que poderiam ser encontrados em Silvanesti datavam de milhares de anos.
Os companheiros decidiram viajar cegamente de Silvanesti para o norte,
com alguma esperança de descobrir um porto onde pudessem encontrar
passagem para Sancrist.
Viajaram leves, para que pudessem seguir rapidamente. Além disso,
havia pouco para levar. Os elfos deixaram sua terra sem comida e suprimen-
tos quando partiram.
O mago tomou posse do orbe do dragão, um encargo que ninguém
contestou. Inicialmente, Tanis se desesperou com a possibilidade de carre-
gar o cristal maciço com eles, que tinha quase 60 centímetros de diâmetro
e era extraordinariamente pesado. Mas, na noite antes de partirem, Alhana
se aproximou de Raistlin, com um pequeno saco em sua mão.
— Meu pai carregava o orbe neste saco. Eu sempre achei estranho,
considerando o tamanho da esfera, mas ele disse que o saco foi dado a ele
na Torre da Alta Magia. Talvez isso o ajude.
O mago estendeu a mão magra para segurá-lo, ansioso.
— Jistrah tagopar Ast moirparann Kini — ele murmurou e assistiu com
satisfação a bolsa comum começar a brilhar com uma pálida luz rosa.
— Sim, é encantado — sussurrou. Então, ele ergueu o olhar para
Caramon. — Vá e me traga o orbe.
Os olhos de Caramon se arregalaram de horror. — Nem por todo
tesouro deste mundo! — O grandalhão disse com um palavrão.
— Me traga o orbe! — Raistlin ordenou, encarando furiosamente seu
irmão, que ainda balançava a cabeça.
— Ah, não seja um tolo, Caramon! — Raistlin retrucou exaspera-
do. — O orbe não pode ferir aqueles que não tentam usá-lo. Acredite em
mim, meu querido irmão, você não tem o poder para controlar uma barata,
quanto mais um orbe do dragão!
— Mas isso pode me prender — Caramon protestou.
— Ora! Ele busca aqueles com... — Raistlin parou de repente.
— Sim? — Tanis disse calmamente. — Continue. Quem ele busca?
— Pessoas com inteligência — Raistlin rosnou. — Portanto, acredito
que os membros deste grupo estão seguros. Traga o orbe a mim, Caramon,
ou talvez você queira carregá-lo sozinho? Ou você, Meio-Elfo? Ou você,
clériga de Mishakal?

146
Caramon olhou desconfortavelmente para Tanis e o meio-elfo perce-
beu que o grandalhão buscava sua aprovação. Foi um movimento estranho
para o gêmeo, que sempre fez o que Raistlin ordenava sem questionar.
Tanis viu que ele não era o único que notou o apelo mudo de Cara-
mon. Os olhos de Raistlin brilharam de raiva.
Agora, mais do que nunca, Tanis sentia-se cauteloso com o mago,
desconfiando do poder estranho e crescente de Raistlin. “É ilógico””, ele
discutiu consigo mesmo. Uma reação a um pesadelo, nada mais”. Mas isso
não resolvia seu problema. O que ele deveria fazer com o orbe do dragão?
Na verdade, ele percebeu com tristeza que tinha pouca escolha.
— Raistlin é o único com o conhecimento e a habilidade e... vamos
encarar o fato... a coragem para lidar com essa coisa — disse Tanis de má
vontade. — Digo que ele deveria levá-lo, a menos que um de vocês queira
a responsabilidade.
Ninguém falou, embora Vento Ligeiro sacudisse a cabeça, franzindo as
sobrancelhas, sério. Tanis sabia que o homem das Planícies deixaria o orbe,
e Raistlin também, aqui em Silvanesti se tivesse escolha.
— Vá em frente, Caramon — disse Tanis. — Você é o único forte o
suficiente para levantá-lo.
Relutante, Caramon foi pegar o orbe em seu suporte dourado. Suas
mãos tremiam quando ele as estendeu para tocá-lo, mas, quando as colocou
sobre o orbe, nada aconteceu. O globo não mudou de aparência. Suspiran-
do aliviado, Caramon levantou o orbe, resmungando por causa do peso, e
o levou de volta para seu irmão, que segurava o saco aberto.
— Solte-o no saco — ordenou Raistlin.
— O que? — O queixo de Caramon caiu enquanto observava a esfera
gigante e a bolsa pequena nas mãos frágeis do mago. — Não posso, Raist!
Não vai caber! Vai quebrar!
O grandão ficou em silêncio enquanto os olhos de Raistlin queimavam
dourados à luz do dia.
— Não! Caramon, espere! — Tanis saltou para frente, mas desta vez
Caramon fez o que Raistlin ordenou. Lentamente, com os olhos fixos no
olhar intenso de seu irmão, Caramon soltou o orbe do dragão.
O orbe desapareceu!
— O que? Onde... — Tanis olhou para Raistlin, desconfiado.
— No saco — o mago respondeu calmamente, segurando a pequena
bolsa. — Veja por si mesmo, se não confia em mim.

147
Tanis olhou dentro da bolsa. O orbe estava dentro; era o verdadeiro
orbe do dragão, de fato. Ele não tinha dúvidas. Podia ver a névoa verde
rodopiante, como se uma vida fraca se agitasse por dentro. Deve ter en-
colhido, pensou admirado, mas o orbe parecia ser do mesmo tamanho de
sempre, dando a Tanis a impressão temerosa de que fora ele quem crescera.
Estremecido, Tanis recuou. Raistlin deu um puxão rápido no cordão
no topo da sacola, fechando-a. Então, os encarando com desconfiança,
ele colocou a bolsa dentro de seus mantos, a escondendo em um dos seus
numerosos bolsos ocultos, e começou a se afastar. Mas Tanis o deteve.
— As coisas nunca mais poderão ser as mesmas entre nós, poderão?
— o meio-elfo perguntou em voz baixa.
Raistlin olhou para ele por um momento e Tanis viu um breve lampejo
de arrependimento nos olhos do jovem mago, um desejo de confiança e
amizade, um retorno aos dias da juventude.
— Não — Raistlin sussurrou. — Mas esse foi o preço que paguei. —
Ele começou a tossir.
— Preço? Para quem? Para quê?
— Não me questione, meio-elfo. — Os ombros magros do mago se
curvaram com tosse. Caramon colocou seu braço ao redor de seu irmão e
Raistlin se apoiou em seu gêmeo. Quando se recuperou do espasmo, ergueu
os olhos dourados. — Não posso dar a resposta, Tanis, porque eu mesmo
não sei.
Então, inclinando a cabeça, ele deixou que Caramon o levasse para
descansar o que fosse possível antes da jornada.

— Gostaria que você reconsiderasse e nos deixasse ajudá-la nos ritos


funerários de seu pai — Tanis disse a Alhana enquanto estava na porta
da Torre das Estrelas para se despedir deles. — Um dia não fará diferença
para nós.
— Sim, por favor — Lua Dourada suplicou fervorosamente. — Sei
muito sobre isso, pois os costumes funerários de meu povo são semelhantes
aos seus, pelo que Tanis me disse. Eu era sacerdotisa na minha tribo e presidi
o envolvimento do corpo nos panos com especiarias que o preservarão...
— Não, meus amigos — disse Alhana com firmeza, seu rosto pálido.
— O desejo do meu pai era que eu... fizesse isso sozinha.
Isso não era verdade, mas Alhana sabia como essas pessoas ficariam
chocadas ao ver o corpo de seu pai sendo entregue ao chão... um costume

148
praticado apenas por goblins e outras criaturas malignas. O pensamento a
horrorizou. Involuntariamente, seu olhar foi atraído para a árvore retorcida
que deveria marcar seu túmulo, de pé sobre ele como uma terrível ave de
carniça. Rapidamente, ela desviou o olhar e sua voz falhou.
— Seu túmulo está... está preparado há muito tempo e eu mesma
tenho experiência com essas coisas. Não se preocupem comigo, por favor.
Tanis viu a agonia em seu rosto, mas não podia se recusar a honrar
seu pedido.
— Nós entendemos — disse Lua Dourada. Então, por impulso, a
mulher dos Qué-Shu abraçou a princesa élfica como teria abraçado uma
criança perdida e assustada. Alhana endureceu a princípio, depois relaxou
no abraço misericordioso de Lua Dourada.
— Fique em paz — sussurrou Lua Dourada, retirando o cabelo escuro
de Alhana do rosto dela. Então, a mulher das Planícies saiu.
— Depois de enterrar seu pai, o que fará? — Tanis perguntou enquanto
ele e Alhana estavam sozinhos nos degraus da Torre.
— Voltarei para o meu povo — respondeu Alhana, séria. — Os grifos
virão até mim, agora que o mal nesta terra se foi, e me levarão para Ergoth.
Faremos o que pudermos para ajudar a derrotar este mal e, depois, voltaremos
para casa.
Tanis olhou ao redor de Silvanesti. Horrível como estava durante o
dia, seus terrores à noite estavam além da descrição.
— Eu sei — disse Alhana em resposta aos seus pensamentos não
verbalizados. — Esta será nossa penitência.
Tanis ergueu as sobrancelhas com ceticismo, sabendo da luta que ela
tinha pela frente para conseguir que seu pessoal voltasse. Então, ele viu a
convicção no rosto de Alhana. Considerou que tinha chances equivalentes.
Sorrindo, ele mudou de assunto. — E você encontrará tempo para
ir a Sancrist? — perguntou. — Os cavaleiros ficariam honrados pela sua
presença. Um deles mais que os outros.
O rosto pálido de Alhana ficou vermelho. — Talvez — disse ela, mal
falando acima de um sussurro. — Não posso dizer ainda. Aprendi muitas
coisas sobre mim mesma. — Ela balançou a cabeça, suspirando. — Mas
ainda tenho muitas dúvidas.
— A dúvida que lhe aflige... é como amar um humano.
Alhana levantou a cabeça, seus olhos claros fitaram os de Tanis. — Ele
ficaria feliz, Tanis? Longe de sua terra natal, pois devo retornar a Silvanesti?

149
E eu poderia ser feliz, sabendo que devo vê-lo envelhecer e morrer enquanto
ainda estiver na minha juventude?
— Eu me fiz essas mesmas perguntas, Alhana — disse Tanis, pensando
com dor na decisão que tivera sobre Kitiara. — Se negarmos o amor que
nos é dado, se nos recusarmos a dar amor porque tememos a dor da perda,
então nossas vidas serão vazias e nossa perda será maior.
— Quando nos conhecemos pela primeira vez, me perguntei por que
essas pessoas seguem você, Tanis Meio-Elfo — disse Alhana suavemente. —
Agora entendo. Vou considerar suas palavras. Adeus, até o fim da jornada
da sua vida.
— Adeus, Alhana — Tanis respondeu, pegando a mão que ela estendeu.
Ele não encontrou mais nada a dizer, então, se virou e a deixou.
Mas não pôde deixar de pensar: “se sou tão sábio, por que minha vida
esta tão bagunçada?”.

Tanis se juntou aos companheiros na borda da floresta. Por um mo-


mento ficaram ali, relutantes em entrar na floresta de Silvanesti. Embora
soubessem que o mal desaparecera, o pensamento de viajar durante dias
na floresta retorcida e torturada era sombrio. Mas eles não tinham escolha.
Já sentiam o senso de urgência que os levara tão longe. O tempo passava
pela ampulheta e eles sabiam que não podiam deixar as areias se esgotarem,
embora não soubessem por quê.
— Venha, meu irmão — disse Raistlin finalmente. O mago liderou
o caminho até a floresta, o Cajado de Magius espalhando sua luz pálida
enquanto ele caminhava. Caramon o seguiu, com um suspiro. Um a um,
os outros foram na sequência. Apenas Tanis se virou para olhar para trás.
Eles não veriam as luas esta noite. A terra estava coberta por uma
escuridão pesada, como se também lamentasse a morte de Lorac. Alhana
estava na porta da Torre das Estrelas, seu corpo emoldurado pela Torre, que
brilhava à luz dos raios lunares capturados há muito tempo. Apenas o rosto
de Alhana estava visível nas sombras, como um fantasma prateado. Tanis
percebeu um vislumbre de movimento. Ela levantou a mão e houve um
breve clarão de pura luz branca — a Joia Estelar. E, então, ela sumiu.

150
LIVRO DOIS
história da jornada dos companheiros ao Castelo da Muralha de
Gelo e sua vitória sobre o maligno Senhor dos Dragões, Feal-thas,
tornou-se lenda entre os bárbaros do gelo que habitam aquela ter-
ra desolada. Ela ainda é contada pelo sacerdote da aldeia em noites longas
de inverno, quando atos heroicos são lembrados e canções são entoadas.

Canção do Aniquilador do Gelo


Fui eu que os trouxe de volta.
Meu nome é Raggart, digo a vocês.
A neve sobre a neve apaga os sinais de gelo
Sobre a neve, o sol sangra a brancura
Na luz fria, sempre insuportável.
E se eu não disser a vocês
A neve descerá sobre os feitos dos heróis
E sua força no meu canto
Ficará em um centro de freio, para nunca mais surgir
Nunca mais, como a respiração perdida se desfaz.

Sete eles eram, das terras quentes


(Fui eu quem os trouxe de volta)
Quatro espadachins jurados no norte
A dama elfa Laurana
O anão das banquisas de pedra
O kender de ossos pequenos como um falcão.
Cavalgando três lâminas, eles foram para o túnel
Para a garganta do único castelo.

Abaixo entre Thanoi, os antigos guardiões


Onde seus espadachins esculpiram o ar quente
Encontrando tendões, encontrando ossos
Enquanto os túneis derretiam em vermelho.
Descendo sobre o minotauro, sobre o urso de gelo
E as espadas sibilaram novamente
Brilhante no limite da loucura
O túnel na altura dos joelhos, nos braços
Nas garras, em coisas indescritíveis
Enquanto os espadachins desciam
O vapor brilhante congelando atrás deles.
Então, para as câmaras no coração do castelo
Onde Feal-thas aguardava, senhor de dragões e lobos
Blindado no branco que não é nada,
Que cobre o gelo enquanto o sol sangra a brancura.
E ele invocou os lobos, os ladrões de bebês
Quem se alimentavam no assassinato nos covis dos ancestrais.
Em torno dos heróis, um círculo de facas de desejo
Enquanto os lobos espreitavam, sob o olhar de seu mestre.

E Aran foi o primeiro a quebrar o círculo


Vento quente na garganta de Feal-thas
Derrubou e desfez
No embalo da caça aperfeiçoada.
Brian, o próximo, quando a espada do lobo soberano
O mandou em busca das terras quentes.
Tudo ficou congelado na roda de navalhas
Todos ficaram congelados, exceto por Laurana.
Cega em uma luz quente, piscando a coroa da mente
Onde a morte derrete em um sol poente
Ela pega o Aniquilador do Gelo
E sobre o fervor de lobos sobre o abate
Portando uma lâmina de gelo, portando a escuridão
Ela abriu a garganta do lobo soberano
E os lobos ficaram em silêncio quando a cabeça desabou.

O resto é curto no relato.


Destruindo os ovos, o ataque violento dos dragões
Um túnel de escamas e estrume
Seguidos na terrível despensa
Seguidos ainda, seguidos até o tesouro.
Lá, o orbe dançava azul, dançava branco
Inchado como um coração em seu batimento sem fim
(Eles me deixaram segurar, eu os trouxe de volta).
Fora do sangue do túnel, no sangue sob o gelo
Carregando seu próprio fardo incrível
Os jovens cavaleiros silenciosos e esfarrapados
Eles eram apenas cinco agora
Os últimos pequenos bolsos do kender salientes.
Meu nome é Raggart, digo a vocês.
Fui eu que os trouxe de volta.
1
A fuga da Muralha de Gelo.

velho anão estava morrendo.


Seus membros não o suportavam mais. Suas entranhas e seu
estômago se retorciam como cobras. Ondas de náusea se arre-
bentavam sobre ele. Não conseguia nem levantar sua cabeça do beliche. Ele
olhou para cima, para uma lâmpada a óleo balançando lentamente sobre
sua cabeça. A luz da lâmpada parecia estar diminuindo. “É isso”, pensou o
anão. “O fim. A escuridão está rastejando sobre meus olhos...”
Ele ouviu um barulho perto dele, um rangido de tábuas de madeira,
como se alguém se aproximasse dele silenciosamente. Com fraqueza, Flint
conseguiu virar a cabeça.
— Quem é? — ele resmungou.
— Tasslehoff — sussurrou uma voz solícita. Flint suspirou e estendeu
a mão nodosa. A mão de Tas se fechou sobre a dele.
— Ah, rapaz. Estou feliz que tenha chegado a tempo de dizer adeus —
disse o anão fracamente. — Estou morrendo, rapaz. Eu vou para Reorx...
— O quê? — perguntou Tas, inclinando-se mais perto.
— Reorx — repetiu o anão, irritado. — Estou indo para os braços
de Reorx.
— Não. Não estamos — disse Tas. — Estamos indo para Sancrist.
A menos que você queira dizer que é uma hospedaria. Vou perguntar ao
Sturm. Os Braços de Reorx. Hmmm...
— Reorx, o deus dos anões, sua mula! — Flint rugiu.
— Ah! — disse Tas, depois de um momento. — Esse Reorx.
— Escute, rapaz — disse Flint com mais calma, determinado a não
deixar ressentimentos para trás. — Quero que você fique com meu elmo.
Aquele que você me deu em Xak Tsaroth, com a juba do grifo.
— Quer mesmo? — Tas perguntou, impressionado. — Isso é muito
legal da sua parte, Flint, mas o que você vai usar no lugar de um elmo?
— Ah, rapaz, não vou precisar de um elmo para onde estou indo.
— Você pode precisar em Sancrist — Tas disse, com dúvida. — Derek
acha que os Senhores dos Dragões estão se preparando para lançar um
ataque em grande escala e acho que um elmo poderia ser útil...
— Não estou falando sobre Sancrist! — Flint rosnou, lutando para se
sentar. — Não vou precisar de um elmo porque estou morrendo!
— Eu quase morri uma vez — Tas disse de forma solene. Colocando
uma tigela fumegante sobre uma mesa, ele se acomodou confortavelmente
em uma cadeira para relatar sua história. — Foi daquela vez em Tarsis,
quando o dragão derrubou a construção em cima de mim. Elistan disse que
eu quase já era. Na verdade, não foram suas palavras exatas, mas ele disse
que foi apenas por causa da inter... interces... ah, a inter-alguma-coisa dos
deuses que estou aqui hoje.
Flint deu um gemido forte e caiu de volta na cama. — É pedir muito
— disse ele ao lampião que balançava acima de sua cabeça — que me
deixem morrer em paz... E não cercado de kenders!
— Ah, qual é. Você não está morrendo, você sabe — disse Tas. — Está
apenas enjoado.
— Estou morrendo — o anão disse teimosamente. — Fui infectado
com uma doença grave e agora estou morrendo. E que isso fique em suas
cabeças. Vocês me arrastaram para este barco maldito...
— Navio — interrompeu Tas.

157
— Barco! — repetiu Flint furiosamente. — Vocês me arrastaram para
este barco maldito, então me deixaram morrer de alguma doença terrível
em um quarto infestado de ratos...
— Poderíamos ter deixado você lá na Muralha de Gelo, você sabe,
com os homens-morsas e... — Tasslehoff parou.
Flint estava novamente se esforçando para se sentar, mas, dessa vez,
havia um olhar selvagem em seus olhos. O kender se levantou e começou a
caminhar em direção à porta. — Ahm, eu acho que é melhor eu ir. Só vim
até aqui para ver... ahm... se você queria comer alguma coisa. O cozinheiro
do navio fez algo que ele chama de sopa de ervilha verde...

Encolhida por causa vento no convés de proa, Laurana se assustou


ao ouvir o som mais aterrorizante vindo de baixo do convés, seguido pelo
barulho de louça quebrada. Ela olhou para Sturm, que estava de pé perto
dela. O cavaleiro sorriu.
— Flint — disse.
— Sim — disse Laurana preocupada. — Talvez eu devesse...
Ela foi interrompida pelo aparecimento de Tasslehoff, pingando sopa
de ervilha verde.
— Acho que Flint está se sentindo melhor — disse Tasslehoff de forma
solene. — Mas ele ainda não está pronto para comer.

A jornada da Muralha de Gelo foi rápida. Sua pequena embarcação


navegou bastante através das águas do mar, levada para o norte pelas cor-
rentes e pelos ventos fortes e frios que prevaleciam.
Os companheiros viajaram para a Muralha de Gelo onde, de acordo
com Tasslehoff, um orbe de dragão era mantido no Castelo da Muralha
de Gelo. Eles encontraram o orbe e derrotaram seu guardião maligno,
Feal-thas — um poderoso Senhor dos Dragões. Escapando da destruição
do castelo com a ajuda dos Bárbaros do Gelo, eles estavam agora em um
navio com destino a Sancrist. Embora o precioso orbe do dragão estivesse
guardado em segurança em um baú abaixo do convés, os horrores de sua
jornada para a Muralha de Gelo ainda atormentavam seus sonhos à noite.
Mas os pesadelos da Muralha de Gelo não eram nada comparados
com aquele sonho estranho e vívido que experimentaram há pouco mais de
um mês. Ninguém falava sobre ele, mas ocasionalmente Laurana via uma

158
expressão de medo e solidão, incomum em Sturm, que a fazia pensar que
ele também estaria se lembrando do sonho.
Tirando isso, o grupo estava de bom humor, exceto o anão, que fora
arrastado para o navio e ficara imediatamente enjoado. A jornada até a Mu-
ralha de Gelo foi uma vitória inquestionável. Junto com o orbe do dragão,
eles levaram consigo a haste quebrada de uma arma antiga, que acreditam
ser uma lança do dragão. E carregavam algo mais importante, embora não
percebessem no momento em que encontraram...

Acompanhados por Derek Crownguard e os outros dois jovens cavalei-


ros que se juntaram a eles em Tarsis, os companheiros estavam procurando
o orbe do dragão no Castelo da Muralha de Gelo. A busca não havia cor-
rido bem. Eles lutaram repetidas vezes contra os malignos homens-morsa,
lobos de inverno e ursos. Os companheiros começaram a pensar que talvez
tivessem vindo aqui à toa, mas Tas jurava o livro que havia lido em Tarsis
dizia que havia um orbe aqui. Então, continuaram procurando.
Foi durante a busca que eles tiveram uma visão surpreendente: um
dragão enorme, com mais de doze metros de comprimento, sua pele de
prata cintilante, completamente envolto em uma parede de gelo. As asas
do dragão estavam abertas, prontas para voar. A expressão do dragão era
feroz, mas sua cabeça era nobre e ele não inspirava o medo e o ódio que
eles se lembravam de sentir ao redor dos dragões vermelhos. Em vez disso,
sentiram uma tristeza grande e esmagadora por essa criatura magnífica.
Mas o mais estranho para eles era o fato de que este dragão tinha um
cavaleiro! Eles tinham visto os Senhores do Dragão montarem seus dragões,
mas este homem parecia, por sua antiga armadura, ter sido um Cavaleiro de
Solamnia! Sua mão enluvada segurava firmemente a haste quebrada do que
devia ser uma lança grande.
— Por que um cavaleiro de Solamnia estaria montando um dragão?
— Laurana perguntou, pensando nos Senhores dos Dragões.
— Houve cavaleiros que se voltaram para o mal — lorde Derek Cro-
wnguard disse duramente. — Embora me envergonhe admitir isso.
— Não sinto mal algum aqui — disse Elistan. — Só uma grande
tristeza. Eu me pergunto como eles morreram. Não vejo feridas...
— Isso parece familiar — interrompeu Tasslehoff, franzindo a testa. —
Como uma pintura. Um cavaleiro montado em um dragão de prata. Eu vi...
— Ora! — Flint debochou. — Você viu um elefante peludo...

159
— Estou falando sério — Tas protestou.
— Onde foi, Tas? — Laurana perguntou gentilmente, vendo uma
expressão magoada no rosto do kender. — Você consegue se lembrar?
— Eu acho que... — Os olhos de Tasslehoff perderam o foco. — Isso
me lembra de Pax Tharkas e Fizban...
— Fizban! — Flint explodiu. — Aquele mago velho era mais louco
que Raistlin, se é que isso é possível.
— Não sei do que Tas está falando — disse Sturm, olhando pensativo
para o dragão e seu cavaleiro. — Mas lembro da minha mãe me dizendo
que Huma cavalgou um Dragão de Prata, carregando a Lança do Dragão,
em sua batalha final.
— E eu lembro de minha mãe me dizendo para deixar docinhos para
o Ancião vestido de branco que vinha ao nosso castelo em na época de Yule
— zombou Derek. — Não, isso é sem dúvida algum Cavaleiro renegado,
escravizado pelo mal.
Derek e os outros dois jovens cavaleiros se viraram para sair, mas o
resto permaneceu, olhando para a figura no dragão.
— Você está certo, Sturm. Isso é uma lança do dragão — Tas disse
melancolicamente. — Não sei como eu sei, mas tenho certeza disso.
— Você viu no livro em Tarsis? — Sturm perguntou, trocando olhares
com Laurana, cada um deles pensando que a seriedade do kender era inco-
mum, até mesmo assustadora.
Tas deu de ombros. — Não sei — disse em voz baixa. — Sinto muito.
— Talvez devêssemos a levar conosco — sugeriu Laurana, inquieta.
— Não faria nenhum mal.
— Venha conosco, Brightblade! — A voz de Derek voltou até eles,
ecoando severamente. — Os thanoi podem ter nos perdido no momento,
mas logo descobrirão nossa trilha.
— Como podemos pegá-la? — Sturm perguntou, ignorando a ordem
de Derek. — Está envolta em gelo com pelo menos um metro de espessura!
— Eu posso — disse Gilthanas.
Saltando para o enorme penhasco de gelo que se formou em volta
do dragão e seu cavaleiro, o elfo encontrou um apoio e começou a subir
o monumento. Da asa congelada do dragão, ele conseguiu rastejar nas
mãos e joelhos até chegar à lança, presa na mão do cavaleiro. Gilthanas
pressionou a mão contra a parede de gelo que cobria a lança e falou a
estranha linguagem da magia.

160
Um brilho vermelho se espalhou da mão do elfo para o gelo, o der-
retendo rapidamente. Em instantes, ele conseguiu colocar sua mão pelo
buraco para agarrar a lança. Mas ela estava presa firmemente na mão do
cavaleiro morto.
Gilthanas puxou e até tentou soltar os dedos da mão congelados. Por
fim, ele não suportou mais o frio do gelo e se jogou, tremendo, de volta ao
chão. — Não tem jeito — ele disse. — Ela está presa firmemente.
— Quebre os dedos — sugeriu Tas, tentando ser útil.
Sturm silenciou o kender com um olhar furioso. — Eu não profanarei
seu corpo — ele retrucou. — Talvez possamos deslizar a lança para fora da
mão dele. Vou tentar...
— Não vai adiantar — disse Gilthanas à sua irmã enquanto observavam
Sturm subir a lateral do gelo. — É como se a lança fosse parte da mão. Eu...
O elfo parou.
Quando Sturm colocou a mão no buraco no gelo e segurou a lança,
a figura do cavaleiro com gelo pareceu mover-se um pouco, apenas ligeira-
mente. Sua mão rígida e congelada relaxou seu aperto na lança quebrada.
Sturm quase caiu em sua surpresa, e, soltando a arma apressada-
mente, se afastou ao longo da asa coberta de gelo do dragão.
— Ele está dando-a para você — gritou Laurana. — Vá em frente,
Sturm! Pegue! Você não entende? Ele está dando para outro cavaleiro.
— Algo que não sou — disse Sturm amargamente. — Mas talvez isso
seja uma indicação. Talvez seja maligna. — Hesitante, ele deslizou de volta
para o buraco e agarrou a lança mais uma vez. A mão dura do cavaleiro morto
relaxou o aperto. Segurando a arma quebrada, Sturm a retirou cuidadosa-
mente do gelo. Ele pulou de volta ao chão e ficou olhando para a haste antiga.
— Isso foi espetacular! — Tas disse, maravilhado. — Flint, você viu o
cadáver ganhar vida?
— Não! — retrucou o anão. — E nem você. Vamos sair daqui —
acrescentou ele, tremendo.
Então, Derek apareceu. — Eu dei uma ordem, Sturm Brightblade!
Por que o atraso? — O rosto de Derek escureceu de raiva ao ver a lança.
— Eu pedi que ele a pegasse para mim — disse Laurana, sua voz tão
fria quanto a parede de gelo atrás dela. Tomando a lança, ela começou a
envolvê-la rapidamente em um manto de pele de sua mochila.
Derek olhou para ela com raiva por um momento, então se curvou
rigidamente e se virou.

161
— Cavaleiros mortos, cavaleiros vivos, eu não sei quem é pior —
resmungou Flint, agarrando Tas e o arrastando atrás de Derek.
— E se for uma arma do mal? — Sturm perguntou a Laurana em voz
baixa, enquanto percorriam os corredores gélidos do castelo.
Laurana olhou para trás uma última vez, para o cavaleiro morto mon-
tado no dragão. O sol frio e pálido do sul estava se pondo, a luz lançando
sombras aquosas sobre os cadáveres, dando um aspecto sinistro. Enquanto
observava, ela pensou ter visto o corpo afundar sem vida.
— Você acredita na história de Huma? — Laurana perguntou baixinho.
— Não sei mais em que acreditar — disse Sturm, a amargura endu-
recendo sua voz. — Tudo costumava ser claro. Eu acreditava na história de
Huma. Minha mãe me ensinou como a verdade. Então, fui a Solamnia. —
Ele fez uma pausa, como se não estivesse disposto a continuar. Finalmente,
vendo o rosto de Laurana cheio de interesse e compaixão, engoliu o seco e
continuou. — Nunca contei isso a ninguém, nem mesmo a Tanis. Quando
voltei para minha terra natal, descobri que a Cavalaria não era a ordem de
homens honrados e abnegados que minha mãe descrevera. Estava repleta
de intrigas políticas. Os melhores homens eram como Derek, honrados,
mas rígidos e inflexíveis, se importando pouco com aqueles que consideram
seus inferiores. O pior... — Ele balançou a cabeça. — Quando falei de
Huma, eles riram. Um cavaleiro itinerante, eles o chamavam. De acordo
com a história deles, foi expulso da ordem por desobedecer a suas leis.
Huma vagou pelo campo, eles disseram, agradando os camponeses, que
assim começaram a criar lendas sobre ele.
— Mas ele realmente existiu? — Laurana persistiu, entristecida pela
dor no rosto de Sturm.
— Ah, sim. Disso não há dúvidas. Os registros que sobreviveram
ao Cataclismo listam seu nome entre as ordens inferiores dos cavaleiros.
Mas a história do Dragão de Prata, a Batalha Final, até a própria Lança
do Dragão... ninguém acredita mais. Como Derek diz, não há provas. O
túmulo de Huma, de acordo com a lenda, era uma estrutura imponente...
uma das maravilhas do mundo. Mas não é possível encontrar alguém que já
tenha o visto. Tudo o que temos são histórias para crianças, como Raistlin
diria. — Sturm colocou a mão no rosto, cobrindo os olhos, e soltou um
suspiro profundo e estremecido.
— Sabe — ele disse em voz baixa — nunca pensei que diria isso, mas
sinto falta de Raistlin. Sinto falta de todos eles. Sinto como se uma parte de

162
mim tivesse sido cortada e foi assim que me senti quando estava em Solam-
nia. Foi por isso que voltei, em vez de esperar e completar os testes para o
meu título de cavaleiro. Essas pessoas, meus amigos, estavam fazendo mais
para combater o mal no mundo do que todos os Cavaleiros perfilados. Até
mesmo Raistlin. Ele poderia nos dizer o que tudo isso significa. — Sturm
apontou para o cavaleiro coberto de gelo. — Se estivesse aqui. Se Tanis
estivesse aqui... — Sturm não conseguiu continuar.
— Sim — disse Laurana, baixinho. — Se Tanis estivesse aqui...
Lembrando-se de sua tristeza, muito maior do que a dele, Sturm se
aproximou de Laurana e a abraçou. Os dois ficaram parados por um mo-
mento, cada um consolado por suas perdas pela presença do outro. Então,
a voz de Derek voltou para eles, repreendendo-os por ficarem para trás.
E agora, a lança partida, embrulhada no manto de pele de Laurana,
estava no baú com o orbe do dragão e a Exterminadora de Dragões, a
espada de Tanis, que Laurana e Sturm tinham carregado com eles de Tarsis.
Ao lado do baú, estavam os corpos dos dois cavaleiros jovens, que haviam
dado suas vidas em defesa do grupo e que estavam sendo levados de volta
para serem enterrados em sua terra natal.
O vento forte do sul, soprando rápido e frio das geleiras, impulsionou
o navio através do Mar de Sirrion. O capitão disse que, se os ventos duras-
sem, eles conseguiriam chegar a Sancrist em dois dias.
— Ergoth do Sul fica naquela direção. — O capitão disse a Elistan,
apontando para boreste. — Nós chegaremos à extremidade sul. Neste anoi-
tecer, você verá a Ilha de Cristyne. Então, com um bom vento, estaremos
em Sancrist. Uma coisa estranha sobre Ergoth do Sul — acrescentou o
capitão, olhando para Laurana — dizem que está cheia de elfos, embora eu
não tenha estado lá para saber se isso é verdade.
— Elfos! — disse Laurana avidamente, avançando para ficar ao lado
do capitão, o vento matutino chicoteando seu manto.
— Fugiram da sua terra natal, foi o que ouvi — continuou o capitão.
— Expulsos pelos exércitos dracônicos.
— Talvez seja o nosso povo! — Laurana disse, agarrando Gilthanas,
que estava ao lado dela. Ela olhou para a proa do navio atentamente, como
se quisesse que a terra aparecesse.
— É mais provável que sejam os silvanesti — disse Gilthanas. — Na
verdade, acho que a Senhora Alhana pode ter mencionado algo sobre Er-
goth. Você se lembra, Sturm?

163
— Não — o cavaleiro respondeu abruptamente. Virando-se e cami-
nhando até bombordo do navio, ele se encostou no corrimão, observando
através do mar cor-de-rosa. Laurana o viu puxar algo de seu cinto e passar
seus dedos amorosamente. Houve um clarão luminoso, quando o objeto
captou os raios do sol, depois o colocou de volta no cinto. Sua cabeça se
curvou. Laurana começou a ir até ele quando de repente parou, tendo um
vislumbre de movimento.
— Que tipo de nuvem estranha é aquela ao sul?
O capitão virou-se imediatamente, tirando a luneta do bolso da
parca de pele e a colocando no olho. — Envie um homem ao alto — disse
ao seu imediato.
Em instantes, um marinheiro estava subindo o cordame. Agarrando-
se às alturas estonteantes do mastro com um braço, ele olhou para o sul
através da luneta.
— Você consegue ver? — o capitão chamou no alto.
— Não, capitão — berrou o homem. — Se é uma nuvem, é como
nenhuma que eu vi antes.
— Eu vou olhar! — Tasslehoff se voluntariou ansiosamente. O kender
começou a subir as cordas tão habilmente quanto o marinheiro. Chegando
ao mastro, ele se agarrou ao cordame perto do homem e olhou para o sul.
Certamente parecia ser uma nuvem. Era enorme, branca e parecia estar
flutuando acima da água. Mas estava se movendo muito mais rapidamente
que qualquer outra nuvem no céu e...
Tasslehoff engasgou. — Me empresta isso — ele pediu, estendendo a
mão para a luneta do vigia. Relutante, o homem a entregou. Tas a colocou no
olho, depois gemeu baixinho. — Minha nossa — ele murmurou. Abaixando a
luneta, ele a fechou com um estalo e a enfiou distraidamente em sua túnica. O
marinheiro o pegou pelo colarinho quando estava prestes a deslizar para baixo.
— O que? — Tas disse assustado. — Ah! Isso é seu? Desculpa. —
Dando um tapinha melancólico na luneta, ele a devolveu ao marinheiro.
Tas deslizou habilmente pelas cordas, pousou suavemente no convés e
correu até Sturm.
— É um dragão — ele relatou sem fôlego.

164
2
A Dragoa Branca.
Capturados!

nome da dragoa era Aguaneve. Era um dragoa branca, uma


espécie menor que os outros dragões que moravam em Krynn.
Nascidos e criados nas regiões árticas, esses dragões conseguiam
resistir ao frio extremo e controlavam as regiões do sul de Ansalon.
Por causa do seu tamanho menor, os dragões brancos eram os alados
mais rápidos de toda a raça dracônica. Os Senhores do Dragão costumavam
usá-los para missões de reconhecimento. Assim, Aguaneve estava longe
de seu covil na Muralha de Gelo quando os companheiros entraram em
busca do orbe do dragão. A Rainha das Trevas recebera um relato de que
Silvanesti fora invadida por um grupo de aventureiros. De alguma forma,
eles conseguiram derrotar Ciano Ruína Sangrenta e supostamente estavam
com um orbe do dragão.
A Rainha das Trevas imaginou que poderiam estar viajando através
das Planícies de Poeira, ao longo da Estrada do Rei, que era a rota terrestre
mais direta para Sancrist, onde os Cavaleiros de Solamnia supostamente
estavam tentando se reagrupar. A Rainha ordenou que Aguaneve e sua
revoada de dragões brancos se dirigissem para o norte, rumo às Planícies
da Poeira, agora sob uma manta espessa e pesada de neve compactada, e
encontrassem o orbe.
Vendo a neve brilhando embaixo dela, Aguaneve duvidava muito se
até os humanos seriam tolos o suficiente para tentar atravessar a vastidão.
Mas ela tinha suas ordens e as seguiu. Dispersando seu voo, vasculhou cada
centímetro da terra das fronteiras de Silvanesti, a leste, até as Montanhas
Kharolis, a oeste. Alguns de seus dragões voaram para o norte até a Nova
Costa, que era controlada pelos azuis.
Os dragões se encontraram para informar que não viram sinal de seres
vivos nas Planícies quando Aguaneve recebeu a notícia de que o perigo
marchara pela porta dos fundos enquanto ela observava a da frente.
Furiosa, Aguaneve voou de volta, mas chegou tarde demais. Feal-thas
estava morto, o orbe do dragão desaparecera. Mas seus aliados homens-
morsas, os thanoi, conseguiram descrever o grupo que cometera esse ato
hediondo. Até apontaram a direção em que seu navio navegara, embora
houvesse apenas uma direção em que qualquer navio pudesse navegar a
partir da Muralha de Gelo... para o norte.
Aguaneve relatou a perda do orbe do dragão para sua Rainha das
Trevas, que ficou intensamente irritada e assustada. Agora, havia dois orbes
faltando! Embora estivesse segura no conhecimento de que sua força para
o mal era a mais forte em Krynn, a Rainha das Trevas tinha uma certeza
incômoda de que as forças do bem ainda andavam pela terra. Um deles
pode ser forte e sábio o suficiente para descobrir o segredo do orbe.
Portanto, Aguaneve foi ordenada a encontrar o orbe e trazê-lo de volta
não para a Muralha de Gelo, mas para a própria Rainha. Sob nenhuma
circunstância, a dragoa deveria perdê-lo ou permitir que fosse perdido. Os
orbes eram inteligentes e imbuídos de um forte senso de sobrevivência.
Assim, eles viveram todo esse tempo, quando até mesmo aqueles que os
criaram estavam mortos.
Aguaneve disparou sobre o Mar de Sirrion, suas fortes asas brancas,
levando-a rapidamente até ver o navio. Mas, agora, estava diante um pro-
blema intelectual interessante e não estava preparada para lidar com isso.
Talvez por causa da consanguinidade necessária para criar um réptil
que possa tolerar o clima frio, os dragões brancos são os mais baixos em

166
inteligência entre os dragões. Aguaneve nunca precisou pensar muito sozi-
nha. Feal-thas sempre dizia a ela o que fazer. Como consequência, ela ficou
consideravelmente perplexa com seu problema atual enquanto circulava o
navio: como ela conseguiria o orbe?
No começo, ela planejara congelar o navio com seu sopro gélido.
Então, percebeu que isso simplesmente envolveria o orbe em um bloco
congelado de madeira, dificultando extremamente a sua remoção. Também
havia grandes chances do navio afundar antes que ela pudesse destruí-lo.
E, se conseguisse despedaçar o navio, o orbe poderia afundar. O navio era
pesado demais para ela levantar com garras e voar para a terra. Aguaneve
circulou a embarcação e ponderou, enquanto, lá embaixo, podia ver os
humanos lamentáveis correndo como ratos assustados.
A dragoa branca pensou em enviar outra mensagem telepática para
sua Rainha, pedindo ajuda. Mas Aguaneve hesitou em lembrar a rainha
vingativa de sua presença ou de sua ignorância. A dragoa seguiu o navio
o dia todo, pairando acima dele, ponderando. Flutuando facilmente nas
correntes de vento, ela deixou seu medo dracônico agitar os seres humanos
em um frenesi de pânico. Então, assim que o sol estava se pondo, Aguaneve
teve uma ideia. Sem parar para pensar, ela agiu imediatamente.

O relato de Tasslehoff sobre o dragão branco que seguia o navio gerou


ondas de terror na tripulação. Eles se armaram com alfanjes e se prepararam
para lutar contra a fera o quanto pudessem, embora todos soubessem como
essa luta terminaria. Gilthanas e Laurana, ambos arqueiros habilidosos,
colocavam flechas em seus arcos. Sturm e Derek seguravam o escudo e a
espada. Tasslehoff agarrou seu hoopak. Flint tentou sair da cama, mas não
conseguia nem ficar de pé. Elistan estava calmo, rezando para Paladine.
— Tenho mais fé na minha espada do que naquele velho e seu deus
— Derek disse a Sturm.
— Os Cavaleiros sempre honraram Paladine — disse Sturm em
resposta.
— Eu honro... a memória dele — disse Derek. — Acho essa conversa
sobre o “retorno” de Paladine perturbadora, Brightblade. E assim o Conse-
lho achará, quando souber disso. Você faria bem em considerar isso quando
surgir a questão do seu título de cavaleiro.
Sturm mordeu o lábio, engolindo sua resposta furiosa como um
remédio amargo.

167
Longos minutos se passaram. Todos os olhos estavam na criatura de asas
brancas voando acima. Mas eles não podiam fazer nada e, assim, esperaram.
E esperaram. E esperaram. A dragoa não atacou.
Ela circulava acima deles interminavelmente, sua sombra cruzando e
entrecruzando o convés com regularidade monótona e arrepiante. Os mari-
nheiros, que estavam preparados para lutar sem questionar, logo começaram
a resmungar entre si enquanto a espera se tornava insuportável. Para piorar
a situação, a dragoa parecia estar sugando o vento, pois as velas tremulavam
e caíam sem vida. O navio perdeu seu impulso gracioso e começou a ter
dificuldades na água. Nuvens de tempestade se reuniram no horizonte do
norte e vagarosamente flutuaram sobre a água, lançando um manto sobre
o mar brilhante.
Laurana finalmente abaixou o arco e esfregou os músculos doloridos
das costas e dos ombros. Seus olhos, ofuscados de olhar para o sol, estavam
borrados e lacrimosos.
— Coloque-os em um bote salva-vidas e jogue-os à deriva — ela ouviu
um velho marinheiro grisalho sugerir a um companheiro, em uma voz que
pretendia levar a cabo. — Talvez a grande fera nos deixe ir. São eles que ela
procura, não nós.
“Ela nem mesmo está atrás de nós”, Laurana pensou desconfortável.
“É provavelmente do orbe do dragão. É por isso que ela não atacou.” Mas
Laurana não podia contar isso, nem para o capitão. O orbe do dragão
precisava ser mantido em segredo.
A tarde continuou e a dragoa ainda circulava como uma ave marinha
horrível. O capitão estava ficando cada vez mais irritado. Não só ele tinha
uma dragoa para enfrentar, mas também a probabilidade de um motim.
Perto da hora do jantar, ele mandou os companheiros para abaixo do convés.
Derek e Sturm se recusaram e parecia que as coisas poderiam ficar fora
de controle quando... — Terra à vista, ao largo da proa a boreste!
— Ergoth do Sul — disse o capitão, sério. — A corrente está nos
levando para as rochas. — Ele olhou para a dragoa circulando. — Se um
vento não vier logo, vamos bater nelas.
Naquele momento, a dragoa parou de circular. Ela pairou por um
momento, depois subiu. Os marinheiros celebraram, pensando que ela
estava indo embora. Mas Laurana sabia bem, lembrando-se de Tarsis.
— Ela vai mergulhar! — gritou. — Ela vai atacar!

168
— Para baixo! — Sturm gritou e os marinheiros, depois de um olhar
hesitante para o céu, começaram a correr para as escotilhas. O capitão
correu para o timão.
— Para abaixo — ele ordenou ao timoneiro, assumindo o comando.
— Você não pode ficar aqui em cima! — Sturm gritou. Saindo da
escotilha, ele correu de volta para o capitão. — Ela vai te matar!
— Vamos afundar se eu não ficar — o capitão gritou com raiva.
— Vamos afundar se você estiver morto! — disse Sturm. Cerrando o
punho, ele acertou o capitão no queixo e o arrastou para baixo.
Laurana desceu as escadas, com Gilthanas atrás dela. O elfo esperou
até Sturm trazer o capitão inconsciente para baixo, então fechou a porta
da escotilha.
Naquele momento, a dragoa atingiu o navio com uma explosão que
quase destruiu a embarcação. O navio se inclinou precariamente. Todos,
até o mais tarimbado marinheiro, perderam o equilíbrio e deslizaram uns
contra os outros nos aposentos lotados abaixo do convés. Flint rolou no
chão, praguejando.
— Agora é a hora de orar ao seu deus — disse Derek a Elistan.
— Eu estou — Elistan respondeu friamente, ajudando o anão.
Laurana, agarrada a um poste, esperou com medo pela luz alaranjada,
o calor, as chamas. Em vez disso, houve um frio súbito e cortante que lhe
tirou o fôlego e gelou seu sangue. Ela podia ouvir, acima dela, o cordame es-
talar e romper, o bater das velas cessar. Então, quando olhou para cima, viu
a geada branca começar a passar entre as rachaduras no convés de madeira.
— Os dragões brancos não sopram chamas! — Laurana disse, espan-
tada. — Eles sopram gelo! Elistan! Suas orações foram atendidas!
— Ora! Bem que poderia ser chama — disse o capitão, sacudindo a
cabeça e esfregando o queixo. — O gelo vai nos congelar.
— Um dragão soprando gelo! — Tas disse melancolicamente. —
Como eu queria ver!
— O que vai acontecer? — Laurana perguntou, enquanto o navio
lentamente se endireitava, rangendo e gemendo.
— Estamos indefesos — rosnou o capitão. — O cordame vai partir
sob o peso do gelo, arrastando as velas para baixo. O mastro vai quebrar
como uma árvore em uma tempestade de gelo. Sem direção, a corrente o
arremessará nas pedras e isso será o fim. Não há nada que possamos fazer!

169
— Nós poderíamos atirar nela quando ela passar — disse Gilthanas.
Mas Sturm sacudiu a cabeça, empurrando a escotilha.
— Deve haver um palmo de gelo em cima disso — relatou o cavaleiro.
— Estamos presos.
É assim que a dragoa vai pegar o orbe, Laurana pensou miseravelmen-
te. Ela vai encalhar o navio, nos matar, depois recuperar o orbe quando não
houver perigo de afundar no oceano.
— Outra rajada dessa nos mandará para o fundo — previu o capi-
tão, mas não houve outra rajada como a primeira. A próxima rajada foi
mais suave e todos perceberam que a dragoa estava usando o sopro para
jogá-los para a costa.

Era um plano excelente, um que deixava Aguaneve bem orgulhosa.


Ela deslizou atrás do navio, deixando a correnteza e a maré levá-lo para a
praia, dando uma pequena baforada de vez em quando. Apenas quando
percebeu as pedras pontiagudas saindo da água iluminada pela lua foi que
a dragoa, de repente, viu a falha em seu esquema. Então, a luz da lua se foi
varrida pelas nuvens de tempestade, e a dragoa não podia ver mais nada.
Estava mais escuro que a alma de sua Rainha.
A dragoa amaldiçoou as nuvens de tempestade, tão bem adaptadas aos
objetivos dos Senhores dos Dragões no norte. Mas as nuvens trabalharam
contra ela quando bloquearam as duas luas. Aguaneve podia ouvir os sons
dos estalos e rachaduras da madeira estilhaçada quando o navio atingiu
as rochas. Podia até ouvir os lamentos e gritos dos marinheiros, mas não
conseguia ver! Mergulhando sobre a água, ela esperava envolver as criaturas
miseráveis no gelo até a luz do dia. Então, ela ouviu outro som mais assus-
tador na escuridão... o som das cordas de arco.
Uma flecha passou assobiando por sua cabeça. Outra rasgou a mem-
brana frágil de sua asa. Gritando de dor, Aguaneve levantou-se de seu
mergulho. Deve haver elfos lá embaixo, percebeu com fúria! Mais flechas
passaram por ela. Malditos elfos! Com a sua visão, a considerariam um alvo
fácil, especialmente com uma asa machucada.
Sentindo sua força diminuir, a dragoa decidiu retornar à Muralha de
Gelo. Estava cansada de voar o dia todo e a ferida da flecha doía abomina-
velmente. É verdade que ela teria que relatar outro fracasso para a Rainha
das Trevas, mas, como ela passou a pensar, não era um fracasso tão grande,
afinal. Ela impedira que o orbe do dragão chegasse a Sancrist e demoliu o

170
navio. Sabia a localização do orbe. A Rainha, com sua vasta rede de espiões
em Ergoth, poderia recuperá-lo facilmente.
Tranquilizada, a dragoa branca voou para o sul, viajando devagar.
De manhã, ela chegou ao seu lar na vasta geleira. Após seu relatório, que
foi moderadamente bem recebido, Aguaneve conseguiu deslizar para sua
caverna de gelo e cuidar de sua asa ferida.
— Ela se foi! — exclamou Gilthanas, espantado.
— É claro — disse Derek, exausto, enquanto ajudava a salvar os su-
primentos possíveis do navio naufragado. — A visão dela não é páreo para
sua visão élfica. Além disso, você a atingiu uma vez.
— Laurana a atingiu, não eu — disse Gilthanas, sorrindo para sua
irmã, que estava em terra, com o arco na mão.
Derek bufou em dúvida. Arrumando cuidadosamente a caixa que
carregava, o cavaleiro recuou para a água. Uma figura surgindo da escuridão
o deteve.
— Não adianta, Derek — disse Sturm. — O navio afundou.
Sturm carregava Flint nas costas. Ao vê-lo cambaleando de cansaço,
Laurana correu de volta para a água para ajudá-lo. Entre eles, levaram o anão
para a praia e o estenderam na areia. Fora do mar, os sons de madeira rachada
tinham cessado, substituídos agora pela interminável quebra das ondas.
Então houve um som de respingos, Tasslehoff correu pela praia atrás
deles, seus dentes batendo, mas seu sorriso estava tão aberto quanto antes.
Ele era seguido pelo capitão, sendo ajudado por Elistan.
— E os corpos dos meus homens? — Derek exigiu, no momento em
que viu o capitão. — Onde eles estão?
— Tivemos coisas mais importantes para transportar — disse Elistan
seriamente. — Coisas necessárias para os vivos, como comida e armas.
— Muitos outros bons homens encontraram seu lar derradeiro sob as
ondas. Os seus não serão os primeiros, nem os últimos, creio eu, o que é
uma pena — acrescentou o capitão.
Derek parecia prestes a falar, mas o capitão, com pesar e exaustão em
seus olhos, disse: — Eu deixei seis dos meus homens lá esta noite, senhor.
Ao contrário dos seus, eles estavam vivos quando começamos esta viagem.
Para não falar do fato de que meu navio e meu sustento também está lá
embaixo. Eu não consideraria falar mais nada, se é que me entende. Senhor.
— Sinto muito pela sua perda, capitão — respondeu Derek rigida-
mente. — E eu elogio você e sua tripulação por tudo que tentaram fazer.

171
O capitão resmungou alguma coisa e ficou olhando sem rumo pela
praia, como se estivesse perdido.
— Enviamos seus homens para o norte ao longo da costa, capitão —
disse Laurana, apontando. — Existe abrigo lá, dentro daquelas árvores.
Como se confirmar suas palavras, uma luz brilhante se acendeu, a luz
de uma enorme fogueira.
— Tolos! — Derek blasfemou amargamente. — Eles trarão o dragão
de volta para nós.
— É isso ou morrer de frio — disse o capitão de forma severa por
cima do ombro. — Faça sua escolha, senhor cavaleiro. Pouco importa para
mim. — Ele desapareceu na escuridão.
Sturm se esticou e gemeu, tentando aliviar os músculos frios e com
câimbras. Flint estava encolhido em sofrimento, tremendo, de modo que
as fivelas da sua armadura chacoalhavam.
Inclinando-se para colocar sua capa ao redor dele, Laurana percebeu
de repente como estava fria.
Na excitação de tentar escapar do navio e lutar contra a dragoa, ela
esquecera o frio. Nem conseguia se lembrar, na verdade, dos detalhes da
sua fuga. Ela se lembrou de ter chegado à praia, vendo a dragoa mergu-
lhando neles. Se lembrou de mexer no arco com os dedos dormentes e
trêmulos. Se perguntou como alguém tivera presença de espírito para
salvar alguma coisa...
— O orbe do dragão! — disse com medo.
— Aqui, neste baú — respondeu Derek. — Junto com a lança e aque-
la espada élfica que você chama de Exterminadora de Dragões. E agora,
suponho, devemos aproveitar o fogo...
— Eu acho que não. — Uma voz estranha falou da escuridão enquan-
to tochas acesas brilhavam ao redor deles, os cegando.
Os companheiros se assustaram e imediatamente sacaram suas armas,
reunindo-se ao redor do anão indefeso. Mas Laurana, após um instante de
medo, olhou para os rostos à luz das tochas.
— Esperem! — ela gritou. — Estes são o nosso povo! São elfos!
— Silvanesti! — Gilthanas disse cordialmente. Deixando cair o arco
no chão, ele avançou em direção ao elfo que falara. — Nós viajamos muito
através da escuridão — disse ele em élfico, com as mãos estendidas. — Fico
feliz em vê-lo, meu irm...

172
Ele nunca terminou sua saudação antiga. O líder do grupo élfico
deu um passo à frente e bateu a ponta do bastão no rosto de Gilthanas, o
jogando na areia, inconsciente.
Sturm e Derek imediatamente levantaram suas espadas, ficando de
costas um para o outro. O aço brilhou entre os elfos.
— Parem! — Laurana gritou em élfico. Ajoelhada ao lado do seu
irmão, ela jogou para trás o capuz de sua capa para que a luz caísse sobre
seu rosto. — Somos seus primos. Qualinesti! Esses humanos são cavaleiros
de Solamnia!
— Nós sabemos muito bem quem são vocês! — O líder elfo cuspiu
as palavras. — Espiões qualinesti! E não achamos incomum que viajem
na companhia de humanos. Seu sangue está poluído há muito tempo.
Leve-os — ele disse, fazendo um sinal para seus homens. — Se não vierem
pacificamente, façam o que for preciso. E descubra o que eles querem dizer
com esse orbe de dragão que mencionaram.
Os elfos andaram para frente.
— Não! — Derek gritou, pulando para ficar diante do baú. — Sturm,
eles não devem ficar com o orbe!
Sturm já dera a saudação do Cavaleiro a um inimigo e avançava, com
a espada desembainhada.
— Parece que eles vão lutar. Que assim seja — o líder dos elfos disse,
levantando sua arma.
— Estou dizendo, isso é loucura! — Laurana berrou com raiva. Ela se
jogou entre as lâminas de espada em movimento. Os elfos pararam, incer-
tos. Sturm a agarrou para arrastá-la de volta, mas ela se soltou da sua mão.
— Goblins e draconianos, em todo o seu mal hediondo, não se rebaixam
lutando entre si — sua voz tremia de raiva — enquanto nós, elfos, a antiga
encarnação do bem, tentamos nos matar! Vejam! — Ela segurou a tampa do
baú com uma mão e o abriu. — Aqui temos a esperança do mundo! Um orbe
do dragão, adquirido com um grande risco na Muralha de Gelo. Nosso navio
está naufragado nas águas ali. Nós afastamos a dragoa que tentava recuperar
este orbe. E, depois de tudo isso, encontramos nosso maior perigo entre nosso
próprio povo! Se isso for verdade, se tivermos decaído tanto, então nos mate
agora e, eu juro, nenhuma pessoa neste grupo tentará te deter.
Sem entender élfico, Sturm observou por um momento, depois viu
os elfos abaixarem suas armas. “Bem, seja o que for que ela disse, parece
ter funcionado.” Relutantemente, ele embainhou sua arma. Depois de um

173
momento de hesitação, Derek abaixou a espada, mas não a colocou de volta
na bainha.
— Vamos considerar a sua história — o líder elfo falou no idioma co-
mum. Então, ele parou quando gritos e brados foram ouvidos da praia. Os
companheiros viram sombras escuras se aproximarem da fogueira. O elfo
olhou naquela direção, esperou um momento até que tudo estivesse quieto,
depois voltou para o grupo. Ele olhou particularmente para Laurana, que
estava debruçada sobre o irmão. — Podemos ter agido precipitadamente,
mas depois de viver aqui, você entenderá.
— Eu nunca entenderei isso! — Laurana disse, com lágrimas sufocando
sua voz.
Um elfo apareceu da escuridão: — Humanos, senhor. — Laurana o
ouviu relatar em élfico. — Marinheiros, pela aparência. Disseram que seu
navio foi atacado por um dragão e destruído nas rochas.
— Verificação?
— Encontramos pedaços de destroços flutuando na costa. Podemos
procurar pela manhã. Os humanos estão molhados, com poucos recursos
e meio afogados. Não ofereceram resistência. Não acho que eles mentiram.
O líder dos elfos se virou para Laurana: — Sua história parece ser
verdade — disse ele, falando mais uma vez em comum. — Meus homens
relatam que os humanos que capturaram são marinheiros. Não se preocupe
com eles. Nós os levaremos como prisioneiros, é claro. Não podemos deixar
humanos vagando pela ilha com todos os nossos outros problemas. Mas
vamos cuidar bem deles. Não somos goblins — ele acrescentou, sério. —
Me desculpe por ter atacado seu amigo...
— Irmão — Laurana respondeu. — E o filho mais novo do Orador
dos Sóis. Sou Lauralanthalasa e este é Gilthanas. Somos da casa real de
Qualinosti.
Para ela, pareceu que o elfo ficou pálido com a notícia, mas ele recu-
perou a compostura imediatamente: — Seu irmão será bem cuidado. Vou
chamar uma curandeira...
— Não precisamos da sua curandeira! — Laurana disse. — Este ho-
mem — ela apontou para Elistan — é um clérigo de Paladine. Ele ajudará
meu irmão...
— Um humano? — o elfo perguntou firmemente.
— Sim, humano! — Laurana gritou impaciente. — Elfos atacaram
meu irmão! Eu procuro os humanos para curá-lo. Elistan...

174
O clérigo começou a avançar, mas, a um sinal de seu líder, vários elfos
rapidamente o agarraram e prenderam seus braços para atrás. Sturm tentou
ir em seu auxílio, mas Elistan o deteve com um olhar, observando Laurana
de relance. Sturm recuou, entendendo a advertência silenciosa dele. Suas
vidas dependiam dela.
— Soltem-no! — Laurana exigiu. — Deixe-o cuidar do meu irmão!
— Acho essa notícia de um clérigo de Paladine impossível acreditar,
Senhora Laurana — disse o líder dos elfos. — Todos sabem que os clérigos
desapareceram de Krynn quando os deuses se afastaram de nós. Não sei
quem é esse charlatão ou como ele a enganou para acreditar nele, mas não
vamos permitir que ele coloque suas mãos humanas sobre um elfo!
— Mesmo um elfo que é um inimigo? — ela gritou furiosamente.
— Mesmo que o elfo tenha matado meu pai — disse o elfo, em tom
sério. — E agora, Senhora Laurana, preciso falar com você em particular e
tentar explicar o que está acontecendo em Ergoth do Sul.
Vendo Laurana hesitar, Elistan falou: — Vá, minha querida. Você é a
única que pode nos salvar agora. Eu ficarei perto de Gilthanas.
— Muito bem — disse Laurana, ficando de pé. De rosto pálido, ela se
afastou com o líder dos elfos.
— Eu não gosto disso — disse Derek, franzindo a testa. — Ela contou
sobre o orbe do dragão, algo que não deveria ter feito.
— Nos ouviram falando sobre ele — disse Sturm, cansado.
— Sim, mas ela contou onde estava! Eu não confio nela, nem no povo
dela. Quem sabe que tipo de acordos estão fazendo? — Derek acrescentou.
— É isso! — ranhou uma voz.
Ambos os homens se espantaram ao ver Flint cambaleando em pé. Seus
dentes ainda batiam, mas uma luz fria cintilava em seus olhos quando ele
encarou Derek. — Eu... eu m-me cansei de v-você, S-Senhor Todo P-pode-
roso. — O anão cerrou os dentes para parar de tremer o suficiente para falar.
Sturm começou a intervir, mas o anão o empurrou para o lado para
confrontar Derek. Era uma visão ridícula, uma que Sturm frequentemente
se lembrava com um sorriso, a guardando para compartilhar com Tanis. O
anão, com sua longa barba branca molhada e desgrenhada, a água pingando
de suas roupas formando poças a seus pés, ficava quase no mesmo nível
da fivela do cinto de Derek, repreendendo o alto e orgulhoso cavaleiro
solâmnico como poderia ter repreendido Tasslehoff.

175
— Vocês, cavaleiros, viveram envoltos em metal por tanto tempo que
seus cérebros viraram mingau! — O anão debochou. — Se é que vocês já
tiveram cérebro algum dia, o que duvido. Eu vi aquela garota crescer de
uma coisinha para a mulher linda que é agora. E eu digo que não há uma
pessoa mais corajosa e nobre em Krynn. O que o irrita é que ela acabou de
salvar sua pele. E você não pode lidar com isso!
O rosto de Derek ficou vermelho escuro sob a luz da tocha.
— Não preciso de anões nem elfos me defendendo — começou Derek
com raiva, quando Laurana voltou correndo, os olhos brilhando.
— Como se não houvesse mal o suficiente — ela murmurou através
dos lábios apertados — eu o encontro se formando entre os meus próprios
parentes!
— O que está acontecendo? — perguntou Sturm.
— A situação é esta: agora, existem três raças de elfos vivendo em
Ergoth do Sul...
— Três raças? — interrompeu Tasslehoff, olhando para Laurana com
interesse. — Qual é a terceira raça? De onde eles vieram? Posso vê-los? Eu
nunca ouvi...
Laurana chegou ao limite: — Tas — disse ela, com a voz tensa. — Vá
ficar com Gilthanas. E peça a Elistan para vir aqui.
— Mas...
Sturm deu um empurrão no kender: — Vá! — ele ordenou.
Magoado, Tasslehoff seguiu desconsolado até onde Gilthanas ainda
estava deitado. O kender caiu na areia, fazendo beiço. Elistan deu uma
tapinha gentil nele enquanto se juntava aos outros.
— Os keganesti, conhecidos como elfos selvagens no idioma comum,
são a terceira raça — prosseguiu Laurana. — Eles lutaram conosco durante
as Guerras Fratricidas. Em troca de sua lealdade, Kith-Kanan concedeu as
montanhas de Ergoth... isso foi antes de Qualinesti e Ergoth serem sepa-
rados pelo Cataclismo. Não me surpreende que vocês nunca ouviram falar
dos Elfos Selvagens. Eles são um povo reservado e evitam o contato. Uma
vez chamados de Elfos da Fronteira, são combatentes ferozes e serviram
bem a Kith-Kanan, mas não têm apreço pelas cidades. Eles se misturaram
com druidas e aprenderam suas tradições. Trouxeram de volta os caminhos
dos elfos ancestrais. Meu povo os considera bárbaros... assim como seu
povo considera os habitantes das Planícies bárbaros.

176
— Há alguns meses, quando os silvanesti foram expulsos de sua
antiga terra natal, eles fugiram para cá, buscando permissão dos keganesti
para morarem temporariamente em Ergoth. Então veio o meu povo, os
qualinesti, do outro lado do mar. E assim eles se encontraram, finalmente,
parentes que ficaram separados por centenas de anos.
— Não consigo ver a relevância — Derek interrompeu.
— Você verá — disse, respirando fundo. — Pois suas vidas dependem
de entender o que está acontecendo nesta ilha triste. — Sua voz falhou.
Elistan se aproximou dela e colocou o braço ao redor dela, reconfortante.
— Tudo começou pacificamente. Afinal, os dois primos exilados
tinham muito em comum... ambos foram expulsos de seus lares amados
pelo mal no mundo. Eles estabeleceram casas na Ilha... os silvanesti na costa
ocidental, os qualinesti na oriental, separados por um estreito conhecido
como Thon-Tsalarian, que significa o “Rio dos Mortos” em keganesti. Os
keganesti vivem na região montanhosa, ao norte do rio.
— Por um tempo, houve até alguma tentativa de estabelecer amizade
entre os silvanesti e os qualinesti. E foi aí que o problema começou. Pois
esses elfos não poderiam se encontrar, mesmo depois de centenas de anos,
sem que os ódios e mal-entendidos antigos começassem a surgir. — Laura-
na fechou os olhos por um instante. — O Rio dos Mortos poderia muito
bem ser conhecido como Thon-Tsalaroth... “Rio da Morte”.
— Calma, moça — disse Flint, tocando sua mão. — Os anões tam-
bém sabem disso. Você viu como eu fui tratado em Thorbardin... um anão
da colina entre anões da montanha. De todos os ódios, aqueles entre as
famílias são os mais cruéis.
— Ainda não houve mortes, mas os anciões ficaram tão chocados com
a ideia do que poderia acontecer... elfos matando seus próprios parentes...
que eles decretaram que ninguém pode cruzar o estreito sob pena de prisão
— continuou Laurana. — E é aqui que estamos. Nenhum lado confia
no outro. Houve até acusações de traição para os Senhores dos Dragões!
Espiões foram capturados dos dois lados.
— Isso explica por que nos atacaram — murmurou Elistan.
— E sobre os kag... kag... — Sturm gaguejou a palavra élfica desconhecida.
— Keganesti — Laurana suspirou, cansada. — Eles, que nos permiti-
ram compartilhar sua terra natal, tiveram o pior tratamento. Os keganesti
sempre foram pobres em riqueza material. Pobres pelos nossos padrões,
embora não pelos deles. Eles vivem nas florestas e montanhas, tirando o

177
que precisam da terra. São coletores, caçadores. Não cultivam plantações,
não forjam metal. Quando chegamos, nosso povo parecia rico para eles
com nossas joias de ouro e armas de aço. Muitos de seus jovens vieram até
os qualinesti e os silvanesti, procurando aprender os segredos de fazer ouro,
prata... e aço.
Laurana mordeu o lábio, o rosto endurecido.
— Digo para minha vergonha que meu povo se aproveitou da pobreza
dos Elfos Selvagens. Os keganesti trabalham como escravos entre nós. E, por
causa disso, os anciões keganesti se tornam mais selvagens e bélicos ao verem
seus jovens serem levados embora e seu modo ancestral de vida ser ameaçado.
— Laurana! — chamou Tasslehoff.
Ela se virou. — Veja — ela disse para Elistan em voz baixa. — Lá está um
deles agora. — O clérigo seguiu seu olhar para ver uma jovem ágil (pelo menos
ele supôs que era uma jovem de cabelos compridos, pois ela vestia roupas mas-
culinas) se ajoelhar ao lado de Gilthanas e acariciar sua testa. O elfo se mexeu
ao seu toque, gemendo de dor. A keganesti enfiou a mão em uma bolsa ao seu
lado e começou a misturar algo em um pequeno copo de barro.
— O que ela está fazendo? — Elistan perguntou.
— Ela é aparentemente a “curandeira” que chamaram — disse Lau-
rana, observando a menina de perto. — Os keganesti são conhecidos por
suas habilidades druídicas.
“Elfo selvagem era um nome adequado”, Elistan decidiu, estudando
a garota atentamente. Ele certamente nunca vira um ser inteligente em
Krynn de aparência tão selvagem. Ela estava vestida com calças de couro
enfiadas em botas de couro. Uma camisa, obviamente jogada fora por al-
gum elfo, pendia de seus ombros. Ela era pálida e muito magra, desnutrida.
Seu cabelo emaranhado estava tão imundo que era impossível distinguir
sua cor. Mas a mão que tocou Gilthanas era esbelta e bem formada. A
preocupação e a compaixão por ele eram evidentes em seu rosto gentil.
— Bem — disse Sturm — o que devemos fazer no meio de tudo isso?
— Os silvanesti concordaram em nos escoltar até meu povo — disse
Laurana, com o rosto corado. Evidentemente, isso havia sido um ponto em
uma contenda amarga. — No início, eles insistiram para que fôssemos até
seus anciãos, mas eu disse que não iria a lugar algum sem primeiro saudar
meu pai e discutir o assunto com ele. Não havia muito o que pudessem
dizer sobre isso. — Laurana sorriu levemente, embora houvesse um toque
de amargura em sua voz. — Entre todos os parentes, uma filha é ligada à

178
casa de seu pai até que ela atinja a maioridade. Me manter aqui, contra
a minha vontade, seria visto como sequestro e causaria uma hostilidade
aberta. Nenhum lado está pronto para isso.
— Estão nos deixando ir, embora saibam que temos o orbe do dragão?
— Derek perguntou, espantado.
— Eles não estão nos deixando ir — Laurana disse bruscamente. —
Eu disse que eles estão nos escoltando para o meu povo.
— Mas há um posto avançado solâmnico no norte — argumentou
Derek. — Lá, poderíamos conseguir um navio para nos levar a Sancrist...
— Você nunca viveria para chegar a essas árvores se tentasse escapar
— disse Flint, espirrando violentamente.
— Ele está certo — disse Laurana. — Precisamos ir aos qualinesti e
convencer meu pai a nos ajudar a levar o orbe até Sancrist. — Uma peque-
na linha escura apareceu entre suas sobrancelhas, o que avisava a Sturm
que ela não acreditava que seria tão fácil quanto parecia. — E agora, já
conversamos por tempo suficiente. Eles me deram permissão para explicar
as coisas para vocês, mas estão ficando inquietos para partirem. Preciso ver
Gilthanas. Estamos de acordo?
Laurana examinou cada cavaleiro com um olhar que não buscava
tanto aprovação, apenas esperava um reconhecimento de sua liderança.
Por um momento, ela parecia tanto com Tanis na posição firme de sua
mandíbula e na deliberação calma e constante em seus olhos que Sturm
sorriu. Mas Derek não estava sorrindo. Ele estava furioso e frustrado, ainda
mais porque sabia que não havia nada que pudesse fazer.
Por fim, no entanto, ele resmungou em uma resposta murmurada que
imaginava que eles deveriam aproveitar o máximo possível e se aproximou
furtivamente para pegar o baú. Flint e Sturm o seguiram, o anão espirrando
até quase cair.
Laurana caminhou de volta para seu irmão, movendo-se silenciosa-
mente pela areia em suas botas de couro macio. Mas a elfa selvagem a ouviu
se aproximar. Erguendo a cabeça, ela deu a Laurana um olhar de medo e
rastejou para trás como um animal que se encolhe ao ver um homem. Mas
Tas, que estivera conversando com ela em uma mistura estranha de comum
e élfico, segurou gentilmente o braço da elfa selvagem.
— Não vá embora — disse o kender alegremente. — Esta é a irmã
do elfo. Veja, Laurana. Gilthanas está acordando. Deve ser aquela coisa de
lama que ela colocou na sua testa. Eu poderia jurar que ele ficaria apagado

179
por dias. — Tas se levantou. — Laurana, esta é minha amiga... qual você
disse que era seu nome?
A garota, com os olhos no chão, tremia violentamente. Suas mãos
pegaram porções de areia, depois as soltaram novamente. Ela murmurou
algo que nenhum deles podia ouvir.
— O que foi, criança? — Laurana perguntou com uma voz tão doce
e gentil que a garota levantou os olhos timidamente.
— Silvart — ela disse em voz baixa.
— Isso significa “cabelos prateados” no idioma keganesti, não é? —
Laurana perguntou. Se ajoelhando ao lado de Gilthanas, ela o ajudou a se
sentar. Atordoado, ele colocou a mão no rosto, onde a menina passara uma
pasta grossa sobre a bochecha sangrando.
— Não toque — Silvart avisou, apertando sua mão sobre a de Gil-
thanas rapidamente. — Isso vai te fazer bem. — Ela falava comum, não de
maneira grosseira, mas clara e concisa.
Gilthanas gemeu de dor, fechando os olhos e deixando sua mão cair.
Silvart olhou para ele em profunda preocupação. Ela começou a acariciar
seu rosto, então, olhando rapidamente para Laurana, retirou apressada-
mente a mão e começou a se levantar.
— Espere — disse Laurana. — Espere, Silvart.
A garota congelou como um coelho, encarando Laurana com tanto
medo em seus olhos grandes que Laurana foi tomada pela vergonha.
— Não tenha medo. Quero agradecer por cuidar do meu irmão.
Tasslehoff está certo. Eu achava que sua lesão era grave, mas você o ajudou.
Por favor, fique com ele, se quiser.
Silvart olhou para o chão. — Eu ficarei com ele, senhora, se tal for seu
comando.
— Não é meu comando, Silvart — disse Laurana. — É meu desejo.
E meu nome é Laurana.
Silvart levantou os olhos. — Então ficarei com ele de bom grado,
sen... Laurana, se esse é o seu desejo. — Ela abaixou a cabeça e eles mal
conseguiram ouvir suas palavras. — Meu nome verdadeiro, Silvara, signifi-
ca cabelos prateados. Silvart é como eles me chamam. — Ela olhou para os
guerreiros silvanesti, depois seus olhos voltaram para Laurana. — Por favor,
quero que você me chame de Silvara.
Os elfos silvanesti trouxeram uma maca improvisada que construíram
com um cobertor e galhos de árvores. Eles levantaram o elfo, de forma

180
delicada, na maca. Silvara andou ao lado dele. Tasslehoff andou perto dela,
ainda tagarelando, feliz por encontrar alguém que ainda não ouvira suas
histórias. Laurana e Elistan caminharam do outro lado de Gilthanas. Lau-
rana segurou a mão dele na dela, o observando carinhosamente. Atrás deles
vinha Derek, seu rosto escuro e sombreado, o baú com o orbe do dragão em
seu ombro. Atrás deles, marchava uma guarda dos elfos silvanesti.
O dia estava apenas começando a amanhecer, cinza e sombrio,
quando chegaram à linha de árvores ao longo da costa. Flint estremeceu.
Virando a cabeça, ele olhou para o mar. — O que foi que Derek disse sobre
um... um navio para Sancrist?
— Receio que sim — respondeu Sturm. — Também é uma ilha.
— E temos que ir até lá?
— Sim.
— Para usar o orbe do dragão? Nós não sabemos nada sobre isso!
— Os Cavaleiros aprenderão — disse Sturm em voz baixa. — O
futuro do mundo depende disso.
— Unf! — O anão espirrou. Lançando um olhar aterrorizado para as
águas escuras da noite, ele balançou a cabeça, triste. — Tudo o que sei é que
me afoguei duas vezes, fiquei acometido de uma doença mortal...
— Você estava enjoado.
— Acometido com uma doença mortal — repetiu Flint em voz alta
— e naufraguei. Marque minhas palavras, Sturm Brightblade... barcos dão
azar para nós. Não tivemos nada além de problemas desde que pisamos
naquele maldito barco no Lago Cristalmir. Foi lá que o mago enlouquecido
viu que as constelações desaparecerem e nossa sorte só piorou desde então.
Enquanto continuarmos confiando nos barcos, será de mal a pior.
Sturm sorriu enquanto observava o anão pisar forte na areia. Mas
seu sorriso se transformou em um suspiro. “Gostaria que fosse tudo tão
simples”, pensou o cavaleiro.

181
3
O Orador dos Sóis.
A decisão de Laurana.

Orador dos Sóis, líder dos elfos qualinesti, estava sentado no


abrigo rude de madeira e lama que os elfos keganesti construíram
como seu domicílio. Ele o considerava rudimentar, os keganesti a
consideravam uma habitação maravilhosamente grande e bem trabalhada,
adequada para cinco ou seis famílias. De fato, eles pretendiam que fosse
usada assim e ficaram chocados quando o Orador declarou que ela mal era
adequada para suas necessidades e se mudou com sua esposa... sozinhos.
Claro, o que os keganesti não sabiam era que a casa do Orador no
exílio se tornou a sede central de todos os negócios dos qualinesti. Os guar-
das cerimoniais assumiram exatamente as mesmas posições que tinham nos
salões esculpidos do palácio em Qualinost. O Orador realizava audiências
no mesmo horário e da mesma maneira cortês, exceto que seu teto era uma
cúpula coberta de lama e palha em vez de um mosaico brilhante e suas
paredes de madeira em vez de quartzo de cristal.
O Orador se sentava com toda a pompa todos os dias, a filha da irmã
de sua esposa ao seu lado atuando como escriba. Ele usava as mesmas vestes,
conduzia os negócios com a mesma desenvoltura fria. Mas havia diferenças.
O Orador mudara dramaticamente nos últimos meses. Contudo, não havia
ninguém nos qualinesti que se surpreendera com isso. O Orador enviara
seu filho mais novo em uma missão que muitos consideravam suicida. Pior,
sua amada filha fugira para perseguir seu amante meio-elfo. O Orador
esperava nunca mais ver nenhum desses filhos.
Ele poderia ter aceitado a perda de seu filho, Gilthanas. Afinal, foi
um ato heroico e nobre. O jovem levara um grupo de aventureiros para as
minas de Pax Tharkas para libertar os humanos aprisionados lá e afastar os
exércitos draconianos ameaçando Qualinesti. Este plano foi um sucesso...
um sucesso inesperado. Os exércitos draconianos foram chamados de volta
a Pax Tharkas, dando aos elfos tempo para fugir para as costas ocidentais de
suas terras e de lá para Ergoth do Sul.
No entanto, o Orador não poderia aceitar a perda de sua filha... ou
sua desonra.
Era o filho mais velho do orador, Porthios, que explicara friamente
o assunto depois de ser descoberto que Laurana estava desaparecida. Ela
fugira atrás do seu amigo de infância... Tanis Meio-Elfo. O Orador estava
deprimido, consumido pela tristeza. Como ela pôde fazer isso? Como ela
pôde trazer desgraça à sua família? Uma princesa do seu povo, perseguindo
um mestiço bastardo!
A fuga de Laurana apagou a luz do sol para o pai dela. Felizmente, a
necessidade de liderar seu povo deu forças para continuar. Mas houve mo-
mentos em que o Orador se perguntava, qual era a necessidade? Ele poderia
se aposentar, entregar o trono para o filho mais velho. Porthios controlava
quase tudo mesmo, se submetendo a seu pai em tudo o que era apropriado,
mas tomando a maioria das decisões sozinho. O jovem elfo, sério além da sua
idade, estava se mostrando um excelente líder, embora alguns o consideras-
sem duro demais em suas relações com os silvanesti e os keganesti.
O Orador estava entre estes, o que foi a principal razão pela qual ele
não entregou tudo para Porthios. Ocasionalmente, ele tentava mostrar a
seu filho mais velho que a moderação e a paciência obtinham mais vitórias
do que ameaças e o balançar de espadas. Mas Porthios acreditava que seu
pai era mole e sentimental. Os silvanesti, com sua rígida estrutura de castas,
mal consideravam os qualinesti como parte da raça élfica, e viam os kega-

183
nesti como uma subraça de elfos, assim como os anões tolos eram vistos
como uma subraça dos anões. Porthios acreditava firmemente, embora não
dissesse ao pai, que isso deveria terminar em derramamento de sangue.
Suas visões eram compartilhadas no outro lado do Thon-Tsalarian
por um senhor teimoso de sangue frio chamado Quinath que, segundo
rumores, era o prometido da Princesa Alhana Brisestelar. Agora, Lorde
Quinath era o líder dos silvanesti em sua ausência inexplicável e foram ele e
Porthios quem dividiram a ilha entre as duas nações dos elfos em conflito,
desconsiderando inteiramente a terceira raça.
As fronteiras foram comunicadas de forma paternalista aos keganesti,
como se poderia comunicar a um cão que não é para entrar na cozinha. Co-
nhecidos por seus temperamentos voláteis, os keganesti ficaram indignados
ao encontrar sua terra sendo dividida e parcelada. A caça já estava ficando
ruim. Os animais dos quais os elfos selvagens dependiam para sua sobrevi-
vência estavam sendo exterminados em grande número para alimentar os
refugiados. Como Laurana dissera, o Rio dos Mortos poderia, a qualquer
momento, ficar vermelho de sangue e seu nome mudaria tragicamente.
E, então, o Orador se encontrou vivendo em um acampamento arma-
do. Mas, se ele se entristecia com esse fato, isso se perdeu em tantas lutas
que acabou ficando dormente. Nada o movia. Ele se retirou para sua casa
de barro e permitiu que Porthios cuidasse mais e mais.
O Orador levantou cedo na manhã em que os companheiros chega-
ram ao que agora se chamava Qualin-Mori. Ele sempre se levantava cedo.
Não tanto porque tinha muito a fazer, mas porque já passara a maior parte
da noite olhando para o teto. Fazia anotações para as reuniões do dia com
os Chefes das Casas — uma tarefa insatisfatória, já que os Chefes das Casas
não podiam fazer nada além de reclamar, quando ouviu um tumulto fora
de sua residência.
O coração do Orador apertou. E agora? Ele se perguntou com medo.
Parecia que esses alarmes vinham uma ou duas vezes por dia. Porthios
provavelmente pegara alguns jovens qualinesti e silvanesti esquentados
atacando ou lutando. Ele continuou escrevendo, esperando que o tumul-
to diminuísse. Mas, em vez disso, aumentou, chegando cada vez mais
perto. O Orador só poderia supor que algo mais sério tivesse acontecido.
E não pela primeira vez, se perguntou o que faria se os elfos fossem para
a guerra novamente.

184
Soltando a pena, ele se envolveu em seus mantos de estado e esperou
com pavor. Lá fora, ouviu os guardas entrarem em alerta. Ouviu a voz de
Porthios pronunciar os direitos tradicionais de quem deseja entrar, já que
era antes da hora. O Orador olhou com medo para a porta que levava aos
seus aposentos privados, temendo que sua esposa pudesse ser perturbada.
Ela estava com problemas de saúde desde a partida de Qualinesti. Tremen-
do, ele se levantou, assumindo o olhar severo e frio que se acostumou a
colocar como quem coloca uma roupa, e pediu para que entrassem.
Um dos guardas abriu a porta, obviamente com a intenção de anun-
ciar alguém. Mas as palavras falharam e, antes que pudesse falar, uma figura
alta e esbelta, vestida com um pesado manto de pele com capuz, passou
pelo guarda e correu em direção ao Orador. Assustado, vendo apenas que a
figura estava armada com espada e arco, o Orador recuou em alerta.
A figura jogou para trás o capuz de seu manto. O Orador viu cabelos
cor de mel fluindo ao redor do rosto de uma mulher... um rosto notável,
mesmo entre os elfos, por sua beleza delicada.
— Pai! — ela gritou, então Laurana estava em seus braços.

O retorno de Gilthanas, há muito tempo lamentado por seu povo,


foi a ocasião da maior celebração a ser realizada pelos qualinesti desde a
noite em que os companheiros foram festejados antes de partirem para o
Sla-Mori.
Gilthanas havia se recuperado o suficiente de suas feridas para poder
assistir às festividades. Uma pequena cicatriz em sua bochecha era o único
sinal da sua lesão. Laurana e seus amigos se impressionaram, pois viram o
golpe terrível desferido pelo elfo silvanesti. Mas quando Laurana mencio-
nou isso a seu pai, o Orador apenas deu de ombros e disse que os keganesti
fizeram amizade com druidas que viviam nas florestas e provavelmente
aprenderam muito sobre a arte da cura com eles.
Isso frustrou Laurana, que sabia da raridade dos verdadeiros poderes
de cura em Krynn. Ansiava por discuti-los com Elistan, mas o clérigo ficou
enclausurado durante horas com seu pai, que logo ficou impressionado
com os verdadeiros poderes clericais do homem.
Laurana ficou satisfeita ao ver seu pai aceitar Elistan, se lembrando
de como o Orador tratara Lua Dourada quando esta foi pela primeira vez
para Qualinesti usando o medalhão de Mishakal, a Deusa da Cura. Mas
Laurana sentia falta de seu sábio mentor. Embora estivesse muito feliz por

185
estar no seu lar, começava a perceber que, para ela, seu lar mudara e nunca
mais seria o mesmo.
Todos pareciam muito felizes em vê-la, mas a tratavam com a mesma
cortesia que deram a Derek e Sturm, Flint e Tas. Ela era uma forasteira. Até
mesmo os modos de seus pais estavam frios e distantes depois da recepção
emocional inicial. Ela poderia não ter pensado nisso, se eles não estivessem
tão cuidadosos em relação a Gilthanas. Por que a diferença? Laurana não
conseguia entender. Restou ao irmão mais velho, Porthios, abrir seus olhos.
O incidente começou no banquete.
— Você vai achar nossas vidas aqui muito diferentes das nossas vi-
das em Qualinesti — seu pai disse a seu irmão naquela noite, quando se
sentaram no banquete realizado dentro da casa, em um grande salão de
toras construído pelos keganesti. — Mas logo se acostumará com isso. —
Virando-se para Laurana, falou formalmente. — Ficaria feliz em tê-la de
volta em seu antigo lugar como minha escriba, mas sei que estará ocupada
com outras coisas em nossa família.
Laurana ficou surpresa. Ela não pretendia ficar, claro, mas se ressentia
de ter sido substituída no papel tradicional da filha na casa real. Também se
ressentia do fato de que, embora tivesse conversado com o pai sobre levar o
orbe a Sancrist, ele aparentemente a ignorara.
— Orador — ela falou lentamente, tentando esconder a irritação em
sua voz. — Eu disse. Não podemos ficar. Você não está ouvindo a mim
e a Elistan? Descobrimos o orbe do dragão! Agora temos os meios para
controlar os dragões e acabar com essa guerra! Precisamos levar o orbe
para Sancrist...
— Pare, Laurana! — seu pai disse bruscamente, trocando olhares com
Porthios. Seu irmão a olhou severamente. — Você não sabe nada do que
você fala, Laurana. O orbe do dragão é realmente um grande prêmio e,
portanto, não deve ser discutido aqui. Quanto a levar a Sancrist, isso está
fora de questão.
— Peço perdão, senhor — disse Derek, se levantando e curvando.
— Mas você não tem opinião neste assunto. O orbe do dragão não é seu.
Eu fui enviado pelo Conselho dos Cavaleiros para recuperar um orbe de
dragão, se possível. Eu consegui e pretendo levá-lo de volta, como me foi
ordenado. Você não tem o direito de me impedir.

186
— Não tenho? — os olhos do Orador brilharam com raiva. — Meu
filho, Gilthanas, o trouxe para esta terra que nós, os qualinesti, declaramos
ser nossa pátria no exílio. Isso faz com que seja nosso por direito.
— Eu nunca reivindiquei isso, pai — Gilthanas disse, corando quan-
do sentiu os olhos dos companheiros se voltarem para ele. — Não é meu.
Pertence a todos nós...
Porthios lançou um olhar furioso ao seu irmão mais novo. Gilthanas
gaguejou e, depois, ficou em silêncio.
— Se alguém deve reivindicá-lo, é Laurana — Flint Forjardente falou,
nem um pouco intimidado pelos olhares dos elfos. — Porque foi ela quem
matou Feal-thas, o maligno elfo mago.
— Se for dela — disse o Orador em uma voz mais antiga do que suas
centenas de anos — então é minha por direito. Pois ela não tem idade, o
que é dela é meu, pois eu sou seu pai. Essa é a lei élfica e a lei dos anões
também, se não me engano.
O rosto de Flint ficou vermelho. Ele abriu a boca para responder, mas
Tasslehoff bateu nele.
— Não é estranho? — observou o kender alegremente, tendo perdido
o conteúdo sério da conversa. — De acordo com a lei kender, se existe uma
lei kender, todo mundo é dono de tudo.
(Isso era bem verdade. A atitude casual dos kenders em relação às
posses dos outros se estendia às suas. Nada em uma casa de kender per-
manecia lá por muito tempo, a menos que fosse pregado no chão. Algum
vizinho certamente entraria, admiraria e sairia distraidamente com ele.
Uma herança familiar entre kenders era definida como qualquer coisa que
permanecesse em uma casa por mais de três semanas.)
Ninguém mais falou depois disso. Flint chutou Tas embaixo da mesa e
o kender se encolheu em um silêncio ferido que durou até descobrir que seu
vizinho, um elfo, fora chamado para fora da mesa, deixando sua bolsa para
trás. Vasculhar as posses do elfo manteve o kender feliz e ocupado durante
o resto da refeição.
Flint, que normalmente teria ficado de olho em Tas, não percebeu
isso, concentrado em outras preocupações. Era óbvio que haveria proble-
mas. Derek ficou furioso. Apenas o código rígido dos Cavaleiros o manteve
sentado à mesa. Laurana se sentou em silêncio, sem comer. Seu rosto estava
pálido sob a pele bronzeada e ela estava fazendo pequenos orifícios com o
garfo na toalha de mesa finamente tecida. Flint cutucou Sturm.

187
— Achamos que tirar o orbe do dragão da Muralha de Gelo fosse
difícil — o anão disse em voz baixa. — Só precisávamos escapar de um
bruxo maluco e de alguns homens-morsa. Agora estamos cercados por três
nações de elfos!
— Teremos que argumentar com eles — disse Sturm em voz baixa.
— Argumentar! — O anão debochou. — Duas pedras teriam uma
chance melhor de argumentar uma com a outra!
Isso provou ser o caso. A pedido do Orador, os companheiros perma-
neceram sentados depois que os outros elfos saíram, após o jantar. Gilthanas
e sua irmã estavam sentados lado a lado, com os rostos tensos e preocupados
quando Derek se levantou diante do Orador para “argumentar” com ele.
— O orbe é nosso — afirmou Derek com frieza. — Você não tem
nenhum direito a ele. Certamente não pertence à sua filha ou ao seu filho.
Eles viajaram comigo apenas por minha cortesia, depois que eu os resgatei
da destruição de Tarsis. Estou feliz por poder acompanhá-los de volta à sua
terra natal e agradeço sua hospitalidade. Mas vou embora amanhã para
Sancrist, levando o orbe comigo.
Porthios levantou-se para enfrentar Derek:
— O kender pode dizer que o orbe do dragão é dele. Não importa.
— O elfo falou com uma voz suave e educada que deslizou pelo ar da noite
como uma faca. — O orbe está em mãos élficas agora e aqui ficará. Você
acha que somos tolos o suficiente para deixar que este prêmio seja levado
pelos humanos para causar mais problemas neste mundo?
— Mais problemas! — O rosto de Derek ficou vermelho. — Você
percebe o problema em que este mundo está agora? Os dragões expulsaram
vocês de sua terra natal. Estão se aproximando da nossa terra agora! Ao
contrário de vocês, não pretendemos fugir. Vamos ficar e lutar! Este orbe
pode ser nossa única esperança...
— Você tem a minha permissão para voltar para sua terra natal e ser
tostado, eu não me importo — Porthios devolveu. — Foram vocês huma-
nos que despertaram esse mal ancestral. É apropriado que lutem contra
isso. Os Senhores dos Dragões já têm o que querem de nós. Sem dúvida,
nos deixarão em paz. Aqui, em Ergoth, o orbe será mantido em segurança.
— Tolo! — Derek bateu com o punho na mesa. — Os Senhores dos
Dragões têm apenas um pensamento, que é conquistar toda Ansalon! Isso
inclui esta ilha miserável! Você pode estar seguro aqui por um tempo, mas
se cairmos, vocês também cairão!

188
— Você sabe que ele fala a verdade, pai — Laurana disse, muito ousa-
da. As elfas não compareciam às reuniões de guerra, muito menos falavam.
Estava presente apenas por causa de seu envolvimento único. Levantando-
se, ela enfrentou seu irmão, que a encarou com desaprovação. — Porthios,
nosso pai nos disse em Qualinosti que o Senhor dos Dragões queria não só
nossas terras, mas também o extermínio de nossa raça! Já esqueceu?
— Ora! Era um Senhor dos Dragões, Verminaard. Ele está morto...
— Sim, por nossa causa! — gritou Laurana com raiva — Não por você!
— Laurana! — O Orador dos Sóis se levantou com toda a sua altura,
mais alto até do que seu filho mais velho. Sua presença se elevou sobre
todos. — Você se esquece, jovem. Você não tem o direito de falar com
seu irmão mais velho assim. Nós enfrentamos nossos perigos próprios na
jornada. Ele se lembrou de seu dever e sua responsabilidade, assim como
Gilthanas. Não saíram correndo atrás de um meio-elfo bastardo como uma
descarada, uma humana va... — O Orador parou abruptamente.
Laurana ficou branca até os lábios. Ela vacilou, segurando a mesa em
busca de apoio. Gilthanas se levantou rapidamente, aproximando-se, mas
ela o afastou. — Pai — ela disse em uma voz que não reconheceu como sua
própria — o que você estava prestes a dizer?
— Vamos embora, Laurana — implorou Gilthanas. — Ele não quis
dizer isso. Vamos conversar de manhã.
O Orador não disse nada, seu rosto cinzento e frio.
— Você estava prestes a dizer “humana vadia” — Laurana disse suave-
mente, suas palavras caindo como alfinetes nos nervos esticados.
— Vá para o seu alojamento, Laurana — o Orador ordenou com
voz firme.
— Então é isso que você pensa de mim — Laurana sussurrou, sua
garganta se contraindo. — É por isso que todos olham e param de falar
quando me aproximo. Humana vadia.
— Irmã, faça o que seu pai ordena — disse Porthios. — Quanto ao que
pensamos de você... você causou isso a si mesma. O que esperava? Olhe para
você, Laurana! Está vestida como um homem. Porta com orgulho uma espa-
da manchada de sangue. Fala sobre suas “aventuras”! Viajando com homens
como estes, humanos e anões! Passando as noites com eles. Passando as noites
com seu amante mestiço. Onde ele está? Ele se cansou de você e...
A luz do fogo ardeu diante dos olhos de Laurana. Seu calor varreu seu
corpo, para ser substituído por um frio terrível. Ela não podia ver nada e se

189
lembrava apenas de uma sensação horrível de cair. Vozes vieram para ela de
uma grande distância, rostos distorcidos curvados sobre ela.
— Laurana, minha filha...
Então, nada.

— Senhora...
— O que? Onde estou? Quem é? Eu... não consigo ver! Me ajude!
— Pronto, senhora. Pegue minha mão. Calma. Estou aqui. Sou eu,
Silvara. Lembra?
Laurana sentiu mãos gentis tomarem a sua enquanto se sentava.
— Você consegue beber isso, senhora?
Uma taça foi colocada em seus lábios. Laurana tomou um gole, sabo-
reando a água limpa e fria. Ela a agarrou e bebeu ansiosamente, sentindo-a
esfriar seu sangue febril. A força retornou e ela descobriu que podia ver
novamente. Uma pequena vela queimava ao lado da cama. Ela estava em
seu quarto, na casa do pai. Suas roupas estavam em um banco de madeira
rude, seu cinto de espada e bainha estavam perto, sua mochila no chão.
Em uma mesa, em frente à cama, estava uma cuidadora, com a cabeça nos
braços, dormindo profundamente.
Laurana se virou para Silvara que, vendo a pergunta em seus olhos,
levou o dedo aos lábios.
— Fale baixinho — respondeu a elfa selvagem. — Oh, não por ela —
Silvara olhou para a cuidadora — ela dormirá em paz por muitas, muitas
horas antes que o efeito da poção passe. Mas existem outros na casa que
podem estar acordados. Se sente melhor?
— Sim — respondeu Laurana, confusa. — Eu não me lembro...
— Você desmaiou — respondeu Silvara. — Eu os ouvi falando sobre
isso quando a carregaram para cá. Seu pai está realmente triste. Ele nunca
quis dizer aquelas coisas. Só que você o magoou tão terrivelmente...
— Como você ouviu?
— Eu estava me escondendo, nas sombras do canto. Uma coisa fácil
para o meu povo fazer. A velha cuidadora disse que você estava bem, só pre-
cisava descansar e eles saíram. Quando ela foi buscar um cobertor, coloquei
o suco do sono em seu chá.
— Por quê? — Laurana perguntou. Olhando para a menina de perto,
Laurana viu que a elfa selvagem devia ser uma mulher bonita... ou seria se
as camadas de sujeira e imundice fossem removidas.

190
Ciente do escrutínio de Laurana, Silvara corou de vergonha. — Eu...
eu fugi dos silvanesti, senhora, quando os levaram até o outro lado do rio.
— Laurana. Por favor, menina, me chame de Laurana.
— Laurana — corrigiu Silvara, corando. — Eu... eu vim pedir para eu
levar você comigo quando partir.
— Partir? — Laurana disse. — Eu não vou... — Ela parou.
— Você não vai? — Silvara perguntou gentilmente.
— Eu... Eu não sei — Laurana disse, confusa.
— Eu posso ajudar — Silvara disse ansiosamente. — Conheço o
caminho através das montanhas para chegar ao posto avançado dos Cava-
leiros, onde os navios com asas de pássaros navegam. Vou ajudá-los a fugir.
— Por que faria isso por nós? — Laurana perguntou. — Me desculpe,
Silvara. Não quero suspeitar... Mas você não nos conhece e o que está fazendo
é muito perigoso. Certamente você poderia escapar mais facilmente sozinha.
— Eu sei que vocês carregam o orbe do dragão — Silvara sussurrou.
— Como você sabe sobre o orbe? — Laurana perguntou, surpresa.
— Ouvi os silvanesti falando, depois que deixaram vocês no rio.
— E você sabia o que era? Como?
— Meu... povo tem histórias... sobre ele — disse Silvara, torcendo as
mãos. — Eu... eu sei que é importante acabar com essa guerra. Seu povo
e os elfos silvestres voltarão para suas casas e deixarão os keganesti viverem
em paz. Tem este motivo e... — Silvara ficou em silêncio por um momento,
então falou tão baixo que Laurana mal podia ouvi-la. — Você é a primeira
pessoa que conhecia o significado do meu nome.
Laurana olhou para ela, intrigada. A garota parecia sincera. Mas Laura-
na não acreditava nela. Por que arriscaria a vida para ajudá-los? Talvez fosse
uma espiã dos silvanesti, enviada para pegar o orbe? Parecia improvável,
mas coisas mais estranhas...
Laurana colocou a cabeça entre as mãos, tentando pensar. “Poderiam
confiar em Silvara, pelo menos o suficiente para tirá-los daqui? Aparen-
temente, não tinham escolha. Se fossem para as montanhas, teriam que
passar pelas terras dos keganesti. A ajuda de Silvara seria inestimável.”
— Preciso falar com Elistan — disse Laurana. — Você pode trazê-lo
até aqui?
— Não é preciso, Laurana — respondeu Silvara. — Ele estava espe-
rando você despertar, lá fora.
— E os outros? Onde está o resto dos meus amigos?

191
— O Senhor Gilthanas está dentro da casa de seu pai, claro. — Era a
imaginação de Laurana ou a bochecha pálida de Silvara corou quando ela
disse esse nome? — Os outros receberam “quartos de hóspedes”.
— Sim — disse Laurana, séria — posso imaginar.
Silvara saiu do lado dela. Movendo-se silenciosamente pela sala, ela foi
até a porta, a abriu e fez um sinal.
— Laurana?
— Elistan! — Ela jogou os braços ao redor do clérigo. Deitando a
cabeça no seu peito, Laurana fechou os olhos, sentindo os braços fortes a
abraçando com ternura. Tudo ficaria bem agora, ela sabia. Elistan assumirá
o comando. Ele saberá o que fazer.
— Está se sentindo melhor? — perguntou o clérigo. — Seu pai...
— Sim, eu sei — Laurana o interrompeu. Ela sentia uma dor estranha
em seu coração sempre que seu pai era mencionado. — Você precisa deci-
dir o que vamos fazer, Elistan. Silvara se ofereceu para nos ajudar a fugir.
Poderíamos pegar o orbe e partir hoje à noite.
— Se é isso que deve fazer, minha querida, então não deve perder mais
tempo — disse Elistan, sentado ao lado dela em uma cadeira.
Laurana piscou. Estendendo a mão, ela agarrou o braço dele. — Elistan,
o que quer dizer? Você precisa vir conosco...
— Não, Laurana — disse Elistan, segurando a mão dela com força.
— Se fizer isso, você terá que partir por conta própria. Eu procurei a
ajuda de Paladine e devo ficar aqui com os elfos. Acredito que, se ficar,
poderei convencer seu pai de que sou um clérigo dos deuses verdadeiros.
Se eu partir, ele sempre acreditará que eu sou um charlatão, como seu
irmão me rotula.
— E o orbe do dragão?
— Isso é com você, Laurana. Os elfos estão errados nisso. Espero que,
com o tempo, passem a entender. Mas não temos séculos para conversar
sobre isso. Acho que você deveria levar o orbe para Sancrist.
— Eu? — Laurana ofegou. — Não posso!
— Minha querida — disse Elistan com firmeza — você precisa
entender que, se tomar essa decisão, o fardo da liderança estará sobre
você. Sturm e Derek estão muito envolvidos em sua própria briga e, além
disso, são humanos. Você estará lidando com elfos, seu próprio povo e os
keganesti. Gilthanas toma o partido do seu pai. Você é a única que tem a
chance de sucesso.

192
— Mas não sou capaz...
— Você é mais capaz do que se dá crédito, Laurana. Talvez tudo o que
passou até agora a tenha preparando para isso. Você não deve perder mais
tempo. Adeus, minha querida. — Elistan se levantou e pôs a mão na cabeça
dela. — Que as bênçãos de Paladine, e a minha, vão com você.
— Elistan! — Laurana sussurrou, mas o clérigo se foi. Silvara fechou
a porta silenciosamente.
Laurana desabou de volta em sua cama, tentando pensar. ‘Elistan está
certo, claro. O orbe do dragão não pode ficar aqui. E, se vamos fugir, deve
ser hoje à noite. Mas tudo está acontecendo tão rápido! E tudo depende de
mim! Posso confiar em Silvara? Mas por que perguntar? Ela é a única pessoa
que pode nos guiar. Então, tudo o que tenho que fazer é pegar o orbe, a
lança e libertar meus amigos. Eu sei como chegar ao orbe e à lança. Mas aos
meus amigos...”
Laurana soube, de repente, o que faria. Ela percebeu que estava plane-
jando isso no fundo de sua mente enquanto conversava com Elistan.
“Isso vai me comprometer”, ela pensou. “Não haverá como voltar atrás.
Roubando o orbe do dragão, fugindo de noite, para uma nação estranha e
hostil. Além disso, existe o Gilthanas. Passamos por muita coisa juntos para
eu deixá-lo para trás. Mas ele ficará chocado com a ideia de roubar o orbe e
fugir. E, se decidir não ir comigo, ele nos trairia?”
Laurana fechou os olhos por um momento. Ela colou a cabeça sobre
os joelhos, cansada. “Tanis”, ela pensou, “onde você está? O que devo fazer?
Por que depende de mim? Eu não queria isso.”
E então, sentada ali, Laurana se lembrou de ter visto um cansaço e
tristeza no rosto de Tanis que se espelhavam no dela. “Talvez ele tenha se
perguntado essas mesmas coisas. Todas as vezes que achei que era tão forte,
talvez ele se sentisse tão perdido e assustado quanto eu. Certamente, ele se
sentiu abandonado por seu povo. E dependíamos dele, quer ele nos quisesse
ou não. Mas ele aceitou. Ele fez o que ele acreditava ser certo.”
“Assim como eu devo fazer.”
Discretamente, se recusando a pensar mais, Laurana levantou a cabeça
e acenou para que Silvara se aproximasse.

Sturm andava de um lado para o outro na cabana rude que lhes fora
designada, incapaz de dormir. O anão estava deitado em uma cama, ron-
cando alto. Do outro lado da sala, Tasslehoff estava enrolado como uma

193
bola de angústia, acorrentado pelo pé à cabeceira da cama. Sturm suspirou.
Em mais quantos problemas eles poderiam entrar?
A noite fora de mal a pior. Depois de Laurana ter desmaiado, Sturm
fizera tudo para conter o anão enfurecido. Flint prometeu arrancar
membro a membro de Porthios. Derek afirmou que se considerava um
prisioneiro mantido pelo inimigo e, como tal, era seu dever tentar escapar.
Depois, ele traria os Cavaleiros para recuperar o orbe do dragão à força.
Derek foi imediatamente escoltado pelos guardas. Justo quando Sturm
conseguiu acalmar Flint, um elfo apareceu do nada e acusou Tasslehoff de
roubar sua bolsa.
Agora eles estavam sendo mantidos sob guarda dupla, “convidados”
do Orador dos Sóis.
— Você precisa ficar andando assim? — Derek perguntou friamente.
— Por quê? Estou o mantendo acordado? — retrucou Sturm.
— Claro que não. Somente os tolos poderiam dormir nessas circuns-
tâncias. Você está quebrando minha concen...
— Shhh! — Sturm disse, levantando a mão em advertência.
Derek ficou instantaneamente em silêncio. Sturm fez um gesto. O
cavaleiro mais velho se juntou a ele no centro da sala, onde estava olhando
para o teto. A casa de madeira era retangular, com uma porta, duas janelas
e uma área para fogueira no centro do piso. Um buraco no telhado fornecia
a ventilação.
Foi através desse buraco que Sturm ouviu o som estranho que chamou
sua atenção. Era um som de arrastar, raspar. As vigas de madeira no teto
rangiam como se algo pesado rastejasse sobre elas.
— Um animal selvagem de algum tipo — Derek murmurou. — E
estamos sem armas!
— Não — disse Sturm, ouvindo atentamente. — Não está rosnando.
Está se movendo muito silenciosamente, como se não quisesse ser ouvido
ou visto. O que esses guardas estão fazendo lá fora?
Derek foi até a janela e olhou para fora. — Sentados ao redor de uma
fogueira. Dois estão dormindo. Não estão muito preocupados conosco,
estão? — perguntou amargamente.
— Por que deveriam? — Sturm disse, mantendo os olhos no teto. —
Há alguns milhares de elfos ao som de um sussurro. O que...
Sturm recuou em alarme quando as estrelas que ele observava através
do buraco foram repentinamente bloqueadas por uma massa escura e

194
disforme. Ele baixou a mão rapidamente e pegou um tronco fumegante da
fogueira, o segurando na extremidade, como um porrete.
— Sturm! Sturm Brightblade! — disse a massa disforme.
Sturm olhou, tentando lembrar a voz. Era familiar. Memórias de
Consolação inundaram sua mente. — Theros! — ele engasgou. — Theros
Dobraferro! O que está fazendo aqui? A última vez que o vi, você estava
perto da morte no reino dos elfos!
O enorme ferreiro de Consolação se esforçou para descer pela aber-
tura no teto, trazendo parte do telhado com ele. Aterrissou pesadamente,
acordando o anão, que se sentou e olhou, com os olhos turvos, a aparição
no centro da cabana.
— O que... — o anão se assustou, procurando por seu machado de
batalha que não estava mais ao seu lado.
— Silêncio! — o ferreiro ordenou. — Não há tempo para perguntas.
A Senhora Laurana me mandou libertar vocês. Vamos encontrá-la na flo-
resta, fora do acampamento. Depressa! Temos apenas algumas horas antes
do amanhecer e devemos estar do outro lado do rio até lá. — Theros foi até
Tasslehoff, que tentava se libertar, sem sucesso. — Bem, mestre ladrão, vejo
que alguém o pegou.
— Eu não sou ladrão! — Tas falou, indignado. — Você me conhece
melhor que isso, Theros. Aquela bolsa foi colocada em mim...
O ferreiro deu uma risadinha. Segurando a corrente em suas mãos, ele
deu uma puxada repentina e a partiu. Contudo, Tasslehoff nem percebeu.
Ele estava olhando para os braços do ferreiro. Um braço, o esquerdo, era es-
curo, da cor da pele do ferreiro. Mas o outro braço, o direito, era brilhante,
de prata brilhante!
— Theros — Tas disse em uma voz abafada. — Seu braço...
— Perguntas depois, ladrãozinho — o ferreiro disse seriamente. —
Agora, vamos nos mover rápido e em silêncio.
— Do outro lado do rio — Flint gemeu, balançando a cabeça. —
Mais barcos. Mais barcos...

— Eu quero ver o Orador — Laurana disse ao guarda na porta do


quarto de seu pai.
— Está tarde — disse o guarda. — O Orador está dormindo.
Laurana retirou o capuz. O guarda se curvou. — Me perdoe, Princesa.
Eu não a reconheci.

195
Ele olhou de relance para Silvara, desconfiado. — Quem é esta
com você?
— Minha criada. Eu não viajaria sozinha à noite.
— Não, claro que não — o guarda disse apressadamente enquanto
abria a porta. — Siga em frente. O quarto dele é o terceiro no corredor, à
sua direita.
— Obrigada — Laurana respondeu e passou pelo guarda. Abafada
em uma capa volumosa, Silvara passou suavemente atrás dela.
— O baú está no quarto dele, ao pé da cama — Laurana sussurrou
para Silvara. — Tem certeza de que pode carregar o orbe do dragão? É
grande e muito pesado.
— Não é tão grande assim — Silvara murmurou, olhando perplexa
para Laurana. — É quase assim... — Ela fez um gesto com as mãos, apro-
ximadamente a forma de uma bola de criança.
— Não — disse Laurana franzindo a testa. — Você não o viu. Tem
quase sessenta centímetros de diâmetro. É por isso que fiz você usar essa
capa longa.
Silvara olhou para ela, intrigada. Laurana deu de ombros. — Bem, não
podemos ficar aqui discutindo. Vamos pensar em algo quando chegar a hora.
As duas andaram pelo corredor, silenciosamente como os kender, até
chegarem ao quarto.
Prendendo a respiração, temendo que até mesmo seu batimento
cardíaco estivesse alto demais, Laurana forçou a porta. Ela abriu com um
rangido que a fez cerrar os dentes. Ao lado dela, Silvara tremeu de medo.
Uma figura na cama se mexeu e virou... sua mãe. Laurana viu o pai, mesmo
dormindo, estendendo a mão para a acariciar de forma tranquilizante.
Lágrimas esmaeceram os olhos de Laurana. Apertando seus lábios resoluta-
mente, ela agarrou a mão de Silvara e passou para dentro do quarto.
O baú estava aos pés da cama do pai. Ele estava trancado, mas todos
os companheiros carregavam uma cópia da pequena chave de prata. Rapi-
damente, Laurana abriu o baú e levantou a tampa. Então, ela quase caiu em
seu espanto. O orbe do dragão estava lá, ainda brilhando com a luz branca e
azul suave. Mas não era o mesmo orbe! Ou se fosse, havia encolhido! Como
Silvara disse, agora não era mais do que o tamanho de uma bola de criança!
Laurana estendeu a mão para pegá-lo. Ainda era pesado, mas ela podia
levantá-lo facilmente. Agarrando cautelosamente, com a mão tremendo,

196
o levantou da caixa e entregou a Silvara. A elfa selvagem imediatamente o
escondeu embaixo da capa.
Laurana pegou a haste de madeira da lança do dragão partida,
imaginando, ao fazê-lo, por que se deu ao trabalho de pegar a velha
arma quebrada.
“Eu a peguei porque o cavaleiro entregou a Sturm”, ela pensou. “Que-
ria que ficasse com ele.”
Na no fundo do baú estava a espada de Tanis, a Exterminadora de
Dragões, entregue por Kith-Kanan. Laurana olhou da espada para a lança
do dragão. Não posso carregar os dois, ela pensou, e começou a colocar a
lança de volta. Mas Silvara a segurou.
— O que está fazendo? — Sua boca formou as palavras, seus olhos
brilharam. — Pegue! Leve também!
Laurana olhou para a garota com espanto. Então, apressadamente, ela
pegou a lança, a escondeu sob o manto e fechou cuidadosamente o baú,
deixando a espada dentro. Assim que a tampa deixou seus dedos frios, seu
pai rolou para a cama, meio sentado.
— O que? Quem está aí? — ele perguntou, começando a afastar o
sono em seu alerta.
Laurana sentiu Silvara tremer e agarrou a mão da garota tranquiliza-
doramente, a advertindo para ficar em silêncio.
— Sou eu, Pai — ela disse com uma voz fraca. — Laurana. Eu... eu
queria... dizer que sinto muito, Pai. E peço que me perdoe.
— Ah, Laurana. — O Orador se deitou em seus travesseiros, fechando
os olhos. — Eu a perdoo, minha filha. Agora, volte para sua cama. Vamos
conversar de manhã.
Laurana esperou até que sua respiração se tornasse quieta e regular.
Então, ela tirou Silvara da sala, segurando a lança do dragão firmemente
sob sua capa.

— Quem vem lá? — falou baixinho uma voz humana em élfico.


— Quem pergunta? — respondeu uma voz élfica nítida.
— Gilthanas? É você?
— Theros! Meu amigo! — O jovem elfo saiu rapidamente das som-
bras para abraçar o ferreiro humano. Por um momento, Gilthanas ficou
tão comovido que não conseguiu falar. Então, assustado, ele se afastou
do abraço de urso do ferreiro. — Theros! Você tem dois braços! Mas os

197
draconianos em Consolação cortam seu braço direito! Você teria morrido
se Lua Dourada não tivesse o curado.
— Você se lembra do que aquele Baixo Mestre porco me contou? —
Theros perguntou com sua voz forte e profunda, sussurrando baixinho. —
“A única maneira de você conseguir um novo braço, ferreiro, é você mesmo
forjar um!” Bem, eu fiz exatamente isso! A história das minhas aventuras
para encontrar o braço de prata que uso agora é longa...
— E não é para contar agora — resmungou outra voz atrás dele. — A
menos que você queira pedir a alguns milhares de elfos para ouvi-la conosco.
— Então você conseguiu escapar, Gilthanas — disse a voz de Derek,
das sombras. — Você trouxe o orbe do dragão?
— Eu não escapei — Gilthanas respondeu friamente. — Eu saí da casa
do meu pai para acompanhar minha irmã e Silvara, sua criada, através da
escuridão. Pegar o orbe é ideia da minha irmã, não minha. Ainda há tempo
para reconsiderar essa loucura, Laurana. — Gilthanas se virou para ela. —
Devolva o orbe. Não deixe que as palavras apressadas de Porthios afastem
seu bom senso. Se mantivermos o orbe aqui, podemos usá-lo para defender
nosso povo. Podemos descobrir como funciona, temos arcanos entre nós.
— Vamos nos entregar agora aos guardas agora! Então, poderemos
dormir um pouco em um lugar quente! — As palavras de Flint saíram com
nuvens frias explosivas.
— Dê o alarme agora, elfo, ou nos deixe ir. Pelo menos, nos dê tempo
antes de nos trair — disse Derek.
— Não tenho intenção de trair vocês — declarou Gilthanas com raiva.
Ignorando os outros, ele se virou mais uma vez para sua irmã. — Laurana?
— Estou decidida sobre esta ação — ela respondeu lentamente. —
Pensei bem sobre isso e acredito que estamos fazendo a coisa certa. Assim
como Elistan. Silvara nos guiará pelas montanhas...
— Eu também conheço as montanhas — disse Theros. — Tive pouco
a fazer por aqui, mas andei por elas. E vocês precisarão de mim para passar
pelos guardas.
— Então, estamos resolvidos.
— Muito bem. — Gilthanas suspirou. — Eu vou com vocês. Se eu
ficar para trás, Porthios sempre suspeitaria de minha cumplicidade.
— Ótimo!— retrucou Flint. — Podemos fugir agora? Ou precisamos
acordar mais alguém?

198
— Por aqui — disse Theros. — Os guardas estão acostumados com
minhas caminhadas noturnas. Fiquem nas sombras e me deixem falar. —
Descendo, ele segurou Tasslehoff pela gola de seu casaco pesado de peles
e tirou o kender do chão para encará-lo diretamente nos olhos. — Estou
falando com você, ladrãozinho — disse o ferreiro, em tom sério.
— Sim, Theros — o kender respondeu humildemente, contorcendo-
se na mão prateada do homem até que o ferreiro o colocou no chão. Um
tanto abalado, Tas reajustou suas bolsas e tentou recuperar sua dignidade
ferida.
Os companheiros seguiram o ferreiro alto e negro pelos arredores do
acampamento élfico silencioso, se movendo o mais silenciosamente possível
para dois cavaleiros e um anão com armaduras. Para Laurana, eles eram tão
barulhentos quanto uma festa de casamento. Ela mordeu o lábio para ficar
em silêncio enquanto os cavaleiros batiam e sacudiam na escuridão e Flint
tropeçava em cada raiz e pisava em todas as poças.
Mas os elfos estavam envoltos em sua complacência como se ela fosse
um cobertor macio e felpudo. Eles fugiram do perigo em segurança. Nin-
guém acreditava que os encontraria novamente. E assim eles dormiram,
enquanto os companheiros escapavam pela noite.
Carregando o orbe do dragão, Silvara sentiu o cristal frio ficar quente
enquanto o segurava junto ao corpo, o sentindo vibrar e pulsar com vida.
— O que eu devo fazer? — ela sussurrou para si mesma distraidamente
em keganesti, tropeçando quase cegamente na escuridão. — Isso veio para
mim! Por quê? Eu não entendo? O que eu devo fazer?

199
4
Rio dos Mortos.
A lenda da Dragoa de Prata.

noite estava calma e fria. Nuvens de tempestade bloqueavam a


luz das luas e estrelas. Não havia chuva nem vento, apenas uma
sensação opressiva de espera. Laurana sentia que toda a natureza
estava alerta, cautelosa, com medo. E atrás dela, os elfos dormiam, envoltos
em uma teia de seus próprios medos e ódios. Que horrível criatura alada
sairia desse casulo, ela se perguntou.
Os companheiros não tiveram dificuldade em passar pelos guardas
elfos. Reconhecendo Theros, os guardas se levantaram e conversaram ami-
gavelmente com ele, enquanto os outros esgueiravam pela floresta ao redor
deles. Eles chegaram ao rio na primeira luz fria do amanhecer.
— E como vamos atravessar? — o anão perguntou, olhando para a
água melancolicamente. — Eu não gosto muito de barcos, mas é melhor
do que nadar.
— Isso não deve ser um problema. — Theros virou-se para Laurana.
— Pergunte à sua amiguinha — acenando para Silvara.
Surpresa, Laurana olhou para a elfa selvagem, assim como os outros.
Envergonhada por tantos olhos sobre ela, Silvara corou profundamente,
baixando a cabeça. — Kargai Sargaron está certo — ela murmurou. —
Esperem aqui, nas sombras das árvores.
Ela os deixou e correu levemente até a margem do rio, com uma graça
selvagem e livre, encantadora de assistir. Laurana notou que o olhar de
Gilthanas, em particular, permanecia na elfa selvagem.
Silvara levou os dedos aos lábios e assobiou, como o chamado de um
pássaro. Ela esperou um momento, depois repetiu o assobio três vezes. Em
poucos minutos, sua chamada foi atendida, ecoando pela água da margem
oposta do rio.
Satisfeita, Silvara retornou ao grupo. Laurana viu que, embora Silvara
falasse com Theros, os olhos da garota foram atraídos para Gilthanas. Ao
ver que ele estava a observando, ela corou e olhou rapidamente de volta
para Theros.
— Kargai Sargaron — ela disse apressadamente — meu povo está
vindo, mas você deveria estar comigo para encontrá-los e explicar as coisas.
— Os olhos azuis de Silvara foram para Sturm e Derek, Laurana podia
vê-los claramente sob luz da manhã. A elfa selvagem balançou a cabeça
ligeiramente. — Eles não ficarão felizes em trazer esses humanos para a
nossa terra, nem esses elfos, receio — disse ela, com um olhar de desculpas
para Laurana e Gilthanas.
— Vou falar com eles — disse Theros. Olhando através do lago, ele
acenou. — Lá vêm eles.
Laurana viu duas formas escuras deslizando pelo rio cinza-celeste. Os
keganesti devem manter uma vigia constante, percebeu. Eles reconheceram
o chamado de Silvara. Estranho... que uma escrava tenha essa liberdade.
Se a fuga foi tão fácil, por que Silvara ficava entre os silvanesti? Não fazia
nenhum sentido... a menos que escapar não fosse seu propósito.
— O que significa “Kargai Sargaron”? — ela perguntou abrupta-
mente a Theros.
— Aquele do Braço de Prata — respondeu Theros, sorrindo.
— Eles parecem confiar em você.
— Sim. Eu disse que passo boa parte do meu tempo vagando. Isso
não é bem verdade. Eu passo muito tempo entre o povo de Silvara. — O

201
rosto escuro do ferreiro fechou em uma carranca. — Sem querer desrespei-
tar, dama elfa, mas você não tem ideia das dificuldades que seu povo está
causando a esses selvagens: atirando na caça ou a afastando, escravizando os
jovens com ouro, prata e aço. — Theros soltou um suspiro irritado. — Eu
fiz o que pude. Mostrei a eles como forjar armas e ferramentas de caça. Mas
temo que o inverno será longo e difícil. A caça já está se tornando escassa.
Se ficarem entre morrer de fome ou matar seus parentes élficos...
— Talvez, se eu ficasse — Laurana murmurou — poderia ajudar...
— Então, ela percebeu que isso era ridículo. O que ela poderia fazer? Nem
sequer fora aceita por seu próprio povo!
— Você não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo — disse
Sturm. — Os elfos devem resolver seus problemas, Laurana. Você está
fazendo a coisa certa.
— Eu sei — disse ela, suspirando. Ela virou a cabeça, olhando para
trás, em direção ao acampamento dos qualinesti. — Eu era como eles,
Sturm — disse tremendo. — Meu lindo mundo minúsculo girou em torno
de mim por tanto tempo que pensei ser o centro do universo. Fui atrás de
Tanis porque eu tinha certeza que poderia fazê-lo me amar. Por que ele não
deveria? Todo mundo amava. Então, descobri que o mundo não girava em
torno de mim. Nem se importava comigo! Eu vi o sofrimento e a morte.
Fui forçada a matar — ela olhou para as mãos — ou ser morta. Vi o amor
verdadeiro. Amor como o de Vento Ligeiro e Lua Dourada, amor que estava
disposto a sacrificar tudo... até a própria vida. Me senti muito mesquinha
e muito pequena. E agora, é assim que meu povo me parece. Mesquinho e
pequeno. Costumava pensar que eles eram perfeitos, mas agora eu entendo
como Tanis se sentia... e por que ele partiu.
Os barcos dos keganesti chegaram à margem. Silvara e Theros desce-
ram para conversar com os elfos que os remavam. Com um gesto de Theros,
os companheiros saíram das sombras das árvores e pararam na margem,
com mãos bem longe de suas armas, para que os keganesti pudessem vê-las.
No começo, parecia não haver esperança. Os elfos conversavam em sua
estranha e rude versão do élfico que Laurana tinha dificuldade em acompa-
nhar. Aparentemente, eles se recusaram a ter qualquer relação com o grupo.
Então, os toques de trombeta soaram da floresta atrás deles. Gilthanas
e Laurana se olharam alarmados. Olhando para trás, Theros apontou o dedo
de prata para o grupo com urgência, depois bateu no peito, aparentemente
dando sua palavra que responderia pelos companheiros. As trombetas

202
soaram novamente. Silvara acrescentou seus próprios apelos. Finalmente,
os keganesti concordaram, embora com uma falta de entusiasmo evidente.
Os companheiros correram para a água, todos conscientes de que sua
ausência fora descoberta e que a perseguição começara. Um a um, todos
eles entraram com cuidado nos barcos que não passavam de troncos ocos
de árvores. Quer dizer, todos, exceto Flint, que gemeu e se jogou no chão,
balançando a cabeça e resmungando no idioma anão. Sturm o olhou com
preocupação, temendo uma repetição do incidente no Cristalmir, quando
o anão se recusou terminantemente a colocar os pés num barco. Foi Tas-
slehoff, no entanto, que empurrou, puxou e finalmente colocou o anão
resmungão em pé.
— Ainda vamos transformar você em um marinheiro — o kender
disse alegremente, cutucando Flint nas costas com seu hoopak.
— Não vão não! E pare de me cutucar com essa coisa! — o anão
rosnou. Chegando à beira da água, ele parou, mexendo nervosamente em
um pedaço de madeira. Tas entrou em um barco e ficou esperando com
expectativa e sua mão estendida.
— Caramba, Flint, entre no barco! — Theros ordenou.
— Só me diga uma coisa — disse o anão, engolindo em seco. — Por
que eles o chamam de “Rio dos Mortos”?”
— Você verá em breve — resmungou Theros. Estendendo a mão
negra forte, ele arrancou o anão da margem e o jogou como um saco de
batatas no assento. — Vamos embora — disse o ferreiro aos elfos selvagens,
que não precisavam de ordens. Seus remos de madeira já estavam batendo
profundamente na água.
O barco de madeira pegou a corrente e flutuou rapidamente rio abaixo,
indo para o oeste. As margens envoltas em árvores praticamente passavam
voando e os companheiros se amontoaram nos barcos quando o vento frio
cortou seus rostos e tirou seu fôlego. Eles não viam sinais de vida ao longo
da costa sul, onde os qualinesti estavam morando. Mas Laurana captou
vislumbres de figuras sombrias e agitadas, entrando e saindo das árvores
na costa norte. Percebeu, então, que os keganesti não eram tão ingênuos
quanto pareciam... Eles estavam observando atentamente seus primos.
Ela se perguntou quantos dos keganesti vivendo como escravos eram, na
verdade, espiões. Seus olhos foram para Silvara.
A corrente os levou rapidamente a uma bifurcação no rio, onde dois
riachos se juntavam. Um fluía do norte, o outro, o riacho em que viajavam,

203
fluía em sua direção do leste. Ambos se fundiram em um rio largo, escoando
para o mar ao sul. De repente, Theros apontou.
— Lá, anão, está a sua resposta — ele disse solenemente.
Descendo a vertente do rio que fluía do norte, havia outro barco.
A princípio, eles acharam que ele se soltara das suas amarras, porque não
podiam ver ninguém lá dentro. Então, viram que ele estava muito baixo na
água para estar vazio. Os elfos selvagens desaceleraram seus próprios barcos,
os levando para a água rasa, mantendo-se firmes, as cabeças curvadas em
um respeito silencioso.
E então, Laurana soube.
— Um barco funerário — ela murmurou.
— Sim — disse Theros, observando com olhos tristes. O barco passou,
levado para perto deles pela correnteza. Dentro, podiam ver o corpo de um
elfo selvagem jovem, um guerreiro a julgar por sua armadura de couro cru.
Suas mãos, cruzadas sobre o peito, seguravam uma espada de ferro com
dedos frios. Um arco e uma aljava com flechas estavam ao seu lado. Seus
olhos estavam fechados no sono tranquilo, do qual nunca mais acordaria.
— Agora você sabe por que é chamado de Thon-Tsalarian, o Rio dos
Mortos — Silvara disse em sua voz baixa e musical. — Durante séculos,
meu povo devolveu os mortos ao mar, de onde nascemos. Este costume
antigo do meu povo se tornou um ponto amargo de discórdia entre os
keganesti e nossos primos. — Seus olhos foram para Gilthanas.— Seu povo
considera isso uma profanação do rio. Tentam nos obrigar a parar.
— Algum dia, o corpo que flutua rio abaixo será qualinesti, ou silvanes-
ti, com uma flecha keganesti no peito — previu Theros. — E então, haverá
guerra.
— Acho que todos os elfos terão um inimigo muito mais mortal para
enfrentar — disse Sturm, balançando a cabeça. — Vejam! — Ele apontou.
Aos pés do guerreiro morto estava um escudo, o escudo do inimigo
contra quem ele morrera lutando. Reconhecendo o símbolo sujo traçado
no escudo surrado, Laurana prendeu a respiração.
— Draconiano!
A jornada até o Thon-Tsalarian foi longa e árdua, pois o rio corria
rápido e forte. Até mesmo Tas recebeu um remo para ajudar a remar, mas
ele prontamente o perdeu no mar, depois quase se jogou de cabeça para ten-
tar recuperá-lo. Pegando Tas pelo cinto, Derek o arrastou de volta quando

204
os keganesti indicaram pela linguagem de sinais que, se ele causasse mais
problemas, o jogariam para fora.
Tasslehoff logo ficou entediado e sentou olhando para o lado, na
esperança de ver um peixe.
— Que estranho! — o kender disse de repente. Se abaixando, colocou
a mão pequena na água. — Olha — disse animado. Sua mão estava coberta
de uma prata fina que brilhava na luz do amanhecer. — A água brilha!
Olha, Flint — ele chamou o anão no outro barco. — Olhe para a água...
— Não vou — disse o anão através dos dentes batendo. Flint remava,
sério, embora houvesse alguma dúvida quanto à sua eficácia. Se recusava
a olhar para a água e, consequentemente, estava fora de ritmo em relação
aos outros.
— Você está certo, Kenderken — Silvara disse, sorrindo. — Na ver-
dade, os silvanesti chamavam o rio de Thon-Sargon, que significa “Estrada
de Prata”. Que pena você ter vindo aqui com um clima tão ruim. Quando
a lua prateada está em sua plenitude, o rio se transforma em prata derretida
e é realmente belo.
— Por quê? O que causa isso? — perguntou o kender, estudando sua
mão cintilante com prazer.
— Ninguém sabe, embora haja uma lenda entre o meu povo... —
Silvara ficou em silêncio abruptamente, seu rosto corou.
— Que lenda? — Gilthanas perguntou. O elfo se sentou de frente
para Silvara, que estava na proa do barco. Sua remada não era muito melhor
que a de Flint e Gilthanas estava muito mais interessado no rosto de Silvara
do que em seu trabalho. Toda vez que Silvara olhava para cima, descobria
que ele a estava observando. Ela ficou mais confusa e perturbada com o
passar das horas.
— Certamente você não está interessado — ela disse, olhando através
da água cinza-prateada, tentando evitar o olhar de Gilthanas. — É uma
história de criança sobre Huma...
— Huma! — Sturm disse de onde estava sentado, atrás de Gilthanas,
seus remos rápidos e fortes compensando a inépcia do elfo e do anão. —
Conte sua lenda sobre Huma, elfa selvagem.
— Sim, conte sua lenda — Gilthanas repetiu, sorrindo.
— Muito bem — ela disse, corando. Limpando a garganta, come-
çou. — De acordo com os keganesti, nos últimos dias das terríveis guerras
dos dragões, Huma viajou pela terra, procurando ajudar o povo. Mas ele

205
percebeu, para sua tristeza, que não tinha o poder de impedir a desolação e
a destruição dos dragões. Ele orou aos deuses por uma resposta. — Silvara
olhou para Sturm, que assentiu com a cabeça solenemente.
— Verdade — disse o cavaleiro. — E Paladine respondeu sua oração,
enviando o Cervo Branco. Mas onde isso o levou, ninguém sabe.
— Meu povo sabe — Silvara disse em voz baixa — porque o Cervo
levou Huma, depois de muitas provações e perigos, a um bosque tranquilo,
aqui, na terra de Ergoth. No bosque, ele conheceu uma mulher bonita e
virtuosa, que aliviou sua dor. Huma se apaixonou por ela e ela por ele. Mas
ela recusou suas promessas de amor por muitos meses. Finalmente, incapaz
de negar o fogo ardente dentro de si, a mulher retribuiu o amor de Huma. A
felicidade deles era como o luar prateado em uma noite de escuridão terrível.
Silvara ficou em silêncio por um momento, seus olhos olhando para
longe. Distraidamente, ela se abaixou para tocar o tecido grosso do manto
que cobria o orbe do dragão que jazia a seus pés.
— Continue — Gilthanas pediu. O elfo desistira de todo o fingi-
mento de remar e ficou quieto, encantado com os belos olhos de Silvara
e sua voz musical.
Silvara suspirou. Soltando o tecido de suas mãos, ela olhou para a água
na floresta sombria. — A alegria deles foi breve — ela disse suavemente. —
Pois a mulher tinha um segredo terrível... ela não nasceu de uma mulher,
mas de uma dragoa. Apenas sua magia a mantinha na forma de mulher.
Mas ela não podia mais mentir para Huma. Ela o amava demais. Com
medo, ela revelou a Huma o que era, aparecendo diante dele uma noite em
sua forma verdadeira... a de uma dragoa de prata. Esperava que ele a odiasse
e até a destruísse, pois sua dor era tão grande que ela não queria viver. Mas,
olhando para a criatura radiante e magnífica diante dele, o cavaleiro viu
dentro dos olhos dela o nobre espírito da mulher que amava. Sua magia a
retornou para a forma de mulher e ela rezou para Paladine que concedesse
sua forma de mulher para sempre. Ela desistiria de sua magia e da longevi-
dade dos dragões para viver no mundo com Huma.
Silvara fechou os olhos, o rosto tenso de dor. Gilthanas, a observando,
perguntou por que ela estava tão afetada por essa lenda. Estendendo a mão,
ele tocou a dela. Ela se assustou como um animal selvagem, recuando tão
de repente que o barco balançou.
— Me desculpe — disse Gilthanas. — Não queria assustá-la. O que
aconteceu? Qual foi a resposta de Paladine?

206
Silvara respirou fundo. — Paladine concedeu seu desejo, com uma
condição terrível. Ele mostrou o futuro a ambos. Se continuasse sendo uma
dragoa, ela e Huma receberiam a Lança do Dragão e o poder para derrotar
os dragões malignos. Caso se tornasse mortal, ela e Huma viveriam juntos
como marido e mulher, mas os dragões malignos permaneceriam na terra
para sempre. Huma jurou que desistiria de tudo, seu título de cavaleiro, sua
honra, para permanecer com ela. Mas ela viu a luz morrer em seus olhos
enquanto falava e, chorando, sabia a resposta que deveria dar. Os dragões
malignos não poderiam permanecer no mundo. E dizem que o rio de prata
foi formado pelas lágrimas derramadas pela dragoa quando Huma a deixou
para encontrar a Lança do Dragão.
— Bela história. Meio triste — disse Tasslehoff, bocejando. — O
velho Huma voltou? A história tem um final feliz?
— A história de Huma não termina feliz — disse Sturm, franzindo a
testa para o kender. — Mas ele morreu da forma mais gloriosa em batalha,
derrotando o líder dos dragões, embora ele mesmo tivesse sofrido uma lesão
mortal. Ouvi dizer, entretanto — acrescentou o cavaleiro pensativo — que
ele cavalgou para a batalha em um Dragão de Prata.
— E nós vimos um cavaleiro em um dragão de prata na Muralha de
Gelo — Tas disse vividamente. — Ele deu a Sturm a...
O cavaleiro deu uma cutucada rápida nas costas do kender. Tarde
demais, Tas lembrou que era para ser segredo.
— Eu não sei sobre um Dragão de Prata — disse Silvara, dando de
ombros. — Meu povo sabe pouco sobre Huma. Afinal de contas, ele era
um humano. Acho que contam essa lenda apenas porque é sobre o rio que
amam, o rio que leva seus mortos.
Neste ponto, um dos keganesti apontou para Gilthanas e disse algo de
forma veemente para Silvara. Gilthanas olhou para ela, sem entender. A elfa
sorriu. — Ele pergunta se você é um elfo importante demais para remar,
porque... se você for... ele permitirá que vossa senhoria nade.
Gilthanas sorriu para ela, seu rosto corando. Rapidamente, pegou o
remo e começou a trabalhar.
Apesar de todos os seus esforços (e até o final do dia, até mesmo
Tasslehoff estava remando novamente), a jornada rio acima era lenta e
desgastante. No momento em que eles chegaram em terra, seus músculos
doíam com a tensão, suas mãos estavam sangrando e empoladas. Tudo o
que puderam fazer foi arrastar os barcos para terra e ajudar a escondê-los.

207
— Você acha que nos livramos da perseguição? — Laurana perguntou
a Theros, cansada.
— Isso responde à sua pergunta? — Ele apontou rio abaixo.
No crepúsculo profundo, Laurana mal conseguia distinguir várias
formas escuras sobre a água. Ainda estavam muito abaixo do rio, mas es-
tava claro para Laurana que haveria pouco descanso para os companheiros
naquela noite. Contudo, um dos keganesti falou com Theros, apontando
para rio abaixo. O ferreiro assentiu.
— Não se preocupem. Estamos a salvo até de manhã. Ele disse que eles
também precisarão chegar em terra. Ninguém ousa viajar pelo rio à noite. Nem
mesmo os keganesti, que conhecem cada curva e cada obstáculo. Ele disse que
acamparemos aqui, perto do rio. Criaturas estranhas andam pela floresta à noi-
te... homens com cabeças de lagartos. Amanhã, viajaremos pela água o máximo
que pudermos, mas em breve teremos que sair do rio e seguir pela terra.
— Pergunte se o povo dele vai impedir que os qualinesti nos persigam
se entrarmos em sua terra — disse Sturm a Theros.
Theros se virou para o elfo keganesti, falando a língua élfica desajei-
tado, mas bem o suficiente para ser entendido. O elfo keganesti balançou
a cabeça. Ele era uma criatura selvagem, de aparência bárbara. Laurana
podia ver porque seu povo achava que eles estavam a apenas um passo
dos animais. Seu rosto revelava traços de ancestralidade humana distante.
Embora não tivesse barba (o sangue élfico corria muito puramente nas veias
dos keganesti para permitir isso), o elfo fez Laurana lembrar vividamente
de Tanis com sua maneira rápida e decisiva de falar, sua constituição forte e
musculosa e seus gestos enfáticos. Tomada pelas lembranças, ela se afastou.
Theros traduziu: — Ele disse que os qualinesti devem seguir o proto-
colo e pedir permissão aos anciãos para entrar nas terras keganesti atrás de
vocês. Os anciãos provavelmente concederão permissão, talvez até ofereçam
ajuda. Eles não querem humanos no sul do Ergoth mais do que seus primos.
De fato — Theros acrescentou lentamente — ele deixou claro que a única
razão pela qual ele e seus amigos estão nos ajudando agora é para retribuir
os favores que eu fiz no passado e ajudar Silvara.
Laurana olhou para a garota. Silvara estava na margem do rio, conver-
sando com Gilthanas.
Theros viu o rosto de Laurana endurecer. Olhando para a elfa selvagem
e o elfo nobre, ele adivinhou seus pensamentos.

208
— É estranho ver o ciúme no rosto daquela que... segundo rumores...
fugiu para se tornar amante do meu amigo Tanis, o meio-elfo — observou
Theros. — Pensei que você fosse diferente do seu povo, Laurana.
— Não é isso! — ela disse enfaticamente, sentindo sua pele quei-
mar. — Não sou amante de Tanis. Não que isso faça alguma diferença. Eu
simplesmente não confio na garota. Ela está... bem... ansiosa demais para
nos ajudar, se é que isso faz algum sentido.
— Seu irmão pode ter algo a ver com isso.
— Ele é um elfo nobre... — Laurana começou com raiva. Então,
percebendo o que estava prestes a dizer, ela se interrompeu. Em vez disso,
ela perguntou — O que você sabe sobre Silvara?
— Pouco — respondeu Theros, encarando Laurana com um olhar
desapontado que a deixou irada. — Sei que ela é respeitada e amada por seu
povo, especialmente por suas habilidades de cura.
— E suas habilidades de espionagem? — Laurana perguntou friamente.
— Essas pessoas estão lutando por sua própria sobrevivência. Elas
fazem o que devem — disse Theros, com firmeza. — Foi um ótimo discurso
aquele que você fez na praia, Laurana. Eu quase acreditei.
O ferreiro foi ajudar os keganesti a esconder os barcos. Zangada e
envergonhada, Laurana mordeu o lábio, frustrada. Theros estava certo?
Ela estava com ciúmes da atenção de Gilthanas? Considerava Silvara
indigna dele? Era como Gilthanas sempre considerara Tanis, com certeza.
Isso era diferente?
“Escute seus sentimentos”, Raistlin disse a ela. Era fácil falar, mas
primeiro ela precisava entender seus sentimentos! O amor dela por Tanis
não a ensinou nada?
Sim, Laurana decidiu finalmente, limpando a mente. Ela quis dizer o
que dissera para Theros. Se havia algo sobre Silvara que ela não confiava,
não tinha nada a ver com o fato de Gilthanas estar atraído pela garota. Era
algo indefinível. Laurana lamentava que Theros a tivesse entendido mal,
mas aceitaria o conselho de Raistlin e confiaria em seus instintos.
Ela ficaria de olho em Silvara.

209
5
Silvara.

mbora todos os músculos do corpo de Gilthanas gritassem por


descanso e pensar em como estava na hora de se arrastar para o
seu saco de dormir, o elfo ficou acordado, olhando para o céu.
Nuvens de tempestade espessas ainda pairavam no alto, mas uma brisa mar-
cada com o ar salgado soprava do oeste, as desfazendo. De vez em quando,
ele vislumbrava as estrelas e, assim que a lua vermelha cintilava no céu,
como uma chama de vela, ela era apagada pelas nuvens.
O elfo tentou ficar confortável, virando e girando até que seu saco de
dormir estivesse uma bagunça, então ele teve que se sentar para se soltar.
Finalmente desistiu, decidindo que era impossível dormir no chão duro
e congelado.
Nenhum dos outros companheiros parecia ter problemas, percebeu
amargamente. Laurana estava dormindo profundamente, sua bochecha
descansando em sua mão, como era seu hábito desde a infância. “Como
ela estava agindo de forma estranha ultimamente”, pensou Gilthanas. “Mas
então, imaginou que dificilmente poderia culpá-la. Ela desistira de tudo para
fazer o que achava certo e levar o orbe para Sancrist. Seu pai poderia aceitá-la
de volta à família uma vez, mas, agora, ela era uma pária para sempre.”
Gilthanas suspirou. “E quanto a si mesmo? Ele queria manter o orbe
em Qualin-Mori. Acreditava que seu pai estava certo... Ou não?”
“Aparentemente não, já que estou aqui, disse Gilthanas a si mesmo.
Pelos deuses, seus valores estavam ficando tão confusos quanto os de Lau-
rana! Primeiro, seu ódio por Tanis, um ódio que nutria de maneira justa há
anos, estava começando a diminuir, substituído por admiração, até mesmo
afeição. Depois, sentia seu ódio por outras raças começando a morrer. Ele
conhecera poucos elfos tão nobres ou abnegados quanto o humano Sturm
Brightblade. E, embora não gostasse de Raistlin, ele invejava a habilidade
do jovem mago.” Era algo que Gilthanas, um amador na arte da magia,
nunca teve a paciência ou a coragem de adquirir. Por fim, teve que admitir
que até gostava do kender e do velho anão rabugento. Mas nunca pensou
que se apaixonaria por uma elfa selvagem.
— Está bem! — Gilthanas disse em voz alta. — Eu admito. Eu a
amo! — Mas era amor, ele se perguntava, ou simplesmente atração física.
Com isso, ele sorriu, pensando em Silvara com seu rosto sujo, seu cabelo
imundo, suas roupas esfarrapadas. “O olho da minha alma deve estar vendo
com mais clareza do que a minha cabeça”, pensou, olhando com carinho
para o saco de dormir dela.
Para seu espanto, ele viu que estava vazio! Assustado, Gilthanas olhou
rapidamente ao redor do acampamento. Eles não ousaram acender uma
fogueira. Não apenas os qualinesti estavam atrás deles, mas Theros falara
sobre grupos de draconianos vagando pela terra.
Pensando nisso, Gilthanas se levantou rapidamente e começou a
procurar Silvara. Ele se moveu silenciosamente, na esperança de evitar as
perguntas de Sturm e Derek, que estavam de vigia. Um pensamento súbito
e arrepiante passou pela sua cabeça. Com pressa, ele procurou o orbe do
dragão. Mas ainda estava onde Silvara o colocara. Ao lado, estava a haste
quebrada da lança do dragão.
Gilthanas respirou com mais facilidade. Então, suas orelhas rápidas
captaram o som da água respingando. Ouvindo com cuidado, determinou
que não era um peixe ou uma ave noturna mergulhando para caçar no rio.
O elfo olhou para Derek e Sturm. Os dois ficaram longe um do outro em

211
uma rocha que dava vista para o acampamento. Gilthanas podia ouvi-los
discutindo entre si em sussurros ferozes. O elfo se afastou do acampamento,
se dirigindo até o som de água que respingava suavemente.
Gilthanas atravessou a floresta escura, sem fazer mais ruído do que as
sombras da própria noite fariam. Ocasionalmente, ele vislumbrava o rio
brilhando fracamente através das árvores. Então, chegou a um lugar onde
a água, fluindo entre as rochas, era represada em uma pequena lagoa. Lá,
Gilthanas parou e seu coração quase parou de bater. Ele encontrara Silvara.
Um círculo escuro de árvores estava nitidamente delineado contra
as nuvens em movimento. O silêncio da noite era quebrado apenas pelos
murmúrios gentis do rio de prata, que caíram sobre degraus de pedra na
lagoa, e pelos sons que chamaram a atenção de Gilthanas. Agora, ele sabia
o que eram.
Silvara estava tomando banho. Alheia ao frio no ar, a elfa estava sub-
mersa na água. Suas roupas estavam espalhadas na margem, ao lado de um
cobertor desgastado. Apenas seus ombros e braços eram perceptíveis à visão
élfica de Gilthanas. Sua cabeça estava jogada para trás enquanto lavava o ca-
belo comprido que se arrastava atrás dela, flutuando como uma teia escura
na lagoa ainda mais escura. O elfo prendeu a respiração, observando-a. Ele
sabia que deveria sair, mas ficou preso ali, arrebatado.
Então, as nuvens se abriram. Solinari, a lua prateada, embora apenas
meio cheia, ardia no céu noturno com um brilho frio. A água da lagoa se
transformou em prata derretida. Silvara se levantou da lagoa. A água pra-
teada brilhava em sua pele, em seus cabelos prateados, escorria em regatos
brilhantes pelo corpo que estava pintado pelo luar de prata. Sua beleza
atingiu o coração de Gilthanas com uma dor tão intensa que ele engasgou.
Silvara se assustou, olhando em volta aterrorizada. Sua graça aban-
donada e selvagem acrescentava tanto à sua beleza que Gilthanas, embora
desejasse falar com ela de modo tranquilizador, não conseguia forçar as
palavras além da dor em seu peito.
Silvara correu da água para a margem onde as roupas dela estavam.
Mas não tocou nelas. Em vez disso, enfiou a mão em um bolso. Agarrando
uma faca, ela se virou, pronta para se defender.
Gilthanas podia ver seu corpo tremendo sob o luar prateado, lem-
brando-o vividamente de uma corça que encurralara depois de uma longa
caçada. Os olhos da criatura brilhavam com o mesmo medo que agora via
nos olhos luminosos de Silvara. A elfa selvagem olhava em volta, aterroriza-

212
da. “Por que ela não me vê?” Gilthanas se perguntou brevemente, sentindo
o olhar dela passar várias vezes. Com a visão élfica, ele deveria aparecer para
ela como um...
De repente, Silvara se virou, começando a fugir do perigo que podia
sentir, mas não conseguia enxergar.
Gilthanas sentiu sua voz liberta. — Não! Espere, Silvara! Não tenha
medo. Sou eu, Gilthanas. — Falou com firmeza, ainda que em voz baixa...
como falara com a corça encurralada. — Você não deveria estar sozinha, é
perigoso...
Silvara fez uma pausa, meio parada sob a luz prateada, meio se pro-
tegendo nas sombras, os músculos tensos, prontos para saltar. Gilthanas
seguiu seu instinto de caçador, andando devagar, continuando a falar, a
detendo com a voz firme e os olhos.
— Você não deveria estar aqui sozinha. Vou ficar com você. Eu queria
mesmo falar com você. Quero que me escute por um momento. Preciso
falar com você, Silvara. Também não quero ficar sozinho aqui. Não me
deixe, Silvara. Tanta coisa já me deixou neste mundo. Não vá...
Falando de forma suave, contínua, Gilthanas se moveu com passos
leves e deliberados em direção a Silvara até que ele a viu dar um passo para
trás. Erguendo as mãos, ele se sentou rapidamente em uma pedra na beira
da lagoa, mantendo a água entre eles. Silvara parou, o observando. Não fez
nenhum movimento para se vestir, aparentemente decidindo que a defesa
era mais importante que a modéstia. Ela ainda segurava a faca na mão.
Gilthanas admirou sua determinação, embora ele estivesse envergo-
nhado por sua nudez. Qualquer elfa bem-nascida teria já teria desmaiado.
Ele sabia que deveria desviar os olhos, mas estava muito impressionado com
sua beleza. Seu sangue queimava. Com esforço, continuou falando, sem
ao menos saber o que dizia. Apenas com o tempo ele percebeu que estava
falando os pensamentos mais íntimos de seu coração.
— Silvara, o que estou fazendo aqui? Meu pai precisa de mim, meu
povo precisa de mim. Mas aqui estou eu, quebrando a lei do meu senhor.
Meu povo está no exílio. Achei a única coisa que poderia ajudá-los, um
orbe de dragão, mas agora eu arrisco a minha vida tirando isso do meu
povo para dar aos humanos e ajudá-los em sua guerra! Não é nem minha
guerra, não é a guerra do meu povo. — Gilthanas se inclinou para ela com
sinceridade, notando que ela não tirara os olhos dele. — Por que, Silvara?
Por que causei essa desonra para mim? Por que fiz isso ao meu povo?

213
Ele segurou o fôlego. Silvara olhou para a escuridão e a segurança
da floresta, depois olhou para ele. “Ela vai fugir”, pensou com o coração
acelerado. Então, lentamente, Silvara baixou a faca. Havia tanta tristeza e
lamento nos olhos dela que, finalmente, Gilthanas desviou o olhar, enver-
gonhado de si mesmo.
— Silvara — ele começou engasgando — me perdoe. Não queria
envolvê-la no meu problema. Eu não entendo o que devo fazer. Eu só sei...
— ... que deve fazer isso — Silvara terminou para ele.
Gilthanas olhou para cima. Silvara se cobriu com o cobertor rasgado.
Esse esforço modesto serviu apenas para acender as chamas de seu desejo.
Seus cabelos prateados, caindo abaixo da cintura, brilhavam ao luar. O
cobertor eclipsava sua pele prateada.
Gilthanas se levantou lentamente e começou a caminhar ao longo da
margem em sua direção. Ela ainda estava à beira da segurança da floresta.
Ele ainda podia sentir seu medo encolhido. Mas ela largara a faca.
— Silvara — ele disse — o que eu fiz é contra todos os costumes
élficos. Quando minha irmã me contou sobre sua trama para roubar o orbe,
deveria ter ido diretamente para o meu pai. Deveria ter soado o alarme.
Deveria ter pego o orbe eu mesmo...
Silvara deu um passo em direção a ele, ainda segurando o cobertor ao
redor de si. — Por que não fez isso? — ela perguntou em voz baixa.
Gilthanas estava se aproximando dos degraus de pedra no extremo
norte da lagoa. A água que fluía sobre eles formava uma cortina de prata ao
luar. — Porque sei que o meu povo está errado. Laurana está certa. Sturm
está certo. Levar o orbe para os humanos está certo! Devemos lutar nesta
guerra. Meu povo está errado, suas leis, seus costumes estão errados. Eu sei
disso... no meu coração! Mas não posso fazer minha cabeça acreditar. Isso
me atormenta...
Silvara andou devagar ao longo da borda da lagoa. Também estava se
aproximando da cortina prateada de água do lado oposto.
— Eu entendo — ela disse suavemente. — Meu próprio… povo não
entende o que eu faço ou porque faço. Mas eu entendo. Eu sei o que é certo
e acredito nisso.
— Eu a invejo, Silvara — Gilthanas sussurrou.
Gilthanas se aproximou da maior pedra, uma ilha plana na água bri-
lhante em cascata. Silvara, com seu cabelo molhado caindo sobre ela como
um vestido de prata, estava a poucos metros dele agora.

214
— Silvara — disse Gilthanas, com a voz trêmula — havia outro mo-
tivo pelo qual deixei meu povo. Você sabe o que é.
Ele estendeu a mão virada para cima na direção dela.
Silvara recuou, sacudindo a cabeça. Sua respiração ficou mais rápida.
Gilthanas deu outro passo para mais perto. — Silvara, eu te amo —
ele disse suavemente. — Você parece tão sozinha, tão sozinha quanto eu.
Por favor, Silvara, você nunca estará sozinha novamente. Eu juro...
De forma hesitante, Silvara levantou a mão até a dele. Com um
movimento repentino, Gilthanas agarrou seu braço e a puxou pela água.
Pegando-a quando tropeçou, ele a ergueu na rocha ao lado dele.
A corça selvagem percebeu tarde demais que estava presa. Não pelos
braços do homem, pois ela poderia facilmente ter se libertado de seu abra-
ço. Foi o amor dela por esse homem que a prendeu. Que seu amor por ela,
profundo e terno, selou seu destino. Ele também estava preso.
Gilthanas podia sentir seu corpo tremendo, mas sabia agora, enquanto
a olhava nos olhos, que ela tremia de paixão, não de medo. Segurando
o rosto dela em suas mãos, ele a beijou carinhosamente. Silvara ainda
segurava o cobertor ao redor de seu corpo com uma mão, mas ele sentiu
a outra mão dela se fechar sobre a sua. Seus lábios eram suaves e ansiosos.
Então, Gilthanas provou uma lágrima salgada em seus lábios. Ele recuou,
espantado ao vê-la chorando.
— Silvara, não. Eu sinto muito... — Ele a soltou.
— Não! — ela sussurrou, sua voz rouca. — Minhas lágrimas não
são porque estou com medo do seu amor. São apenas para mim. Você não
pode entender.
Estendendo os braços, ela colocou timidamente uma mão em volta
do pescoço dele e o puxou para perto. E então, quando a beijou, sentiu a
outra mão dela, a que segurava o cobertor ao redor de seu corpo, subindo
para acariciar seu rosto.
O cobertor de Silvara deslizou despercebido para o riacho e foi carre-
gado pela água prateada.

215
6
Perseguição. Um plano desesperado.

o dia seguinte, os companheiros foram forçados a abandonar os


barcos, tendo chegado às cabeceiras do rio, de onde descia pelas
montanhas. Lá, a água era rasa e espumosa, branca das corredeiras
caindo à frente. Muitos barcos dos keganesti estavam dispostos na margem.
Arrastando seus barcos para terra firme, os companheiros foram recebidos
por um grupo de elfos keganesti saindo da floresta. Eles carregavam consigo
os corpos de dois jovens guerreiros elfos. Alguns sacaram armas e atacariam
se Theros Dobraferro e Silvara não se apressassem em falar com eles.
Os dois falaram longamente com os keganesti, enquanto os com-
panheiros mantinham uma vigia inquieta rio abaixo. Embora estivessem
acordados antes do amanhecer, começando a jornada no momento em que
os keganesti sentiam que era seguro viajar pela água veloz, eles viram, mais
de uma vez, os barcos negros que os perseguiam.
Quando Theros voltou, seu rosto escuro estava lúgubre. Silvara estava
vermelha de raiva.
— Meu povo não fará nada para nos ajudar — relatou Silvara. — Eles
foram atacados por homens-lagartos duas vezes nos últimos dois dias. Cul-
pam os humanos pela vinda desse novo mal que, dizem eles, os trouxeram
aqui em um navio de asas brancas...
— Isso é ridículo! — Laurana retrucou. — Theros, você não explicou
a eles sobre esses draconianos?
— Eu tentei — disse o ferreiro. — Mas receio que as provas sejam
contra vocês. Os keganesti viram a dragoa branca acima do navio, mas apa-
rentemente não viram vocês afastá-la. De qualquer forma, eles finalmente
concordaram em nos deixar passar por suas terras, mas não darão ajuda.
Silvara e eu prometemos nossas vidas pelo seu bom comportamento.
— O que os draconianos estão fazendo aqui? — Laurana perguntou,
com as lembranças a assombrando. — É um exército? Ergoth do Sul está
sendo invadida? Se assim for, talvez devêssemos voltar...
— Não, acho que não — disse Theros pensativo. — Se os exércitos
dos Senhores dos Dragões estivessem prontos para tomar esta ilha, eles o
fariam com revoadas de dragões e milhares de tropas. Estas parecem ser
patrulhas pequenas enviadas para fazer com que esta situação ruim fique
ainda pior. Os Senhores dos Dragões provavelmente esperam que os elfos
os poupem do trabalho de uma guerra, destruindo uns ao outros primeiro.
— O Alto Comando dos Dragões não está pronto para atacar Ergoth
— disse Derek. — Eles ainda não têm uma influência forte no norte. Mas
é só uma questão de tempo. É por isso que é imperativo que levemos o orbe
do dragão para Sancrist e convoquemos uma reunião do Conselho da Pedra
Branca para determinar o que fazer com ele.
Reunindo seus suprimentos, os companheiros partiram para o planal-
to. Silvara os conduziu por uma trilha ao lado do rio de prata que corria
das colinas. Podiam sentir os olhares hostis dos keganesti seguindo-os, fora
de vista.
A terra começou a ficar elevada quase imediatamente. Theros logo dis-
se que eles tinham viajado para regiões onde nunca estivera antes. Cabia a
Silvara guiá-los. Laurana não estava totalmente satisfeita com essa situação.
Imaginou que alguma coisa acontecera entre seu irmão e a garota quando
os viu compartilharem um sorriso doce e secreto.

217
Silvara encontrara tempo para trocar de roupa, entre o seu povo. Ago-
ra, ela estava vestida como uma mulher keganesti, com uma túnica longa de
couro sobre calças de couro, coberta por um manto de pele pesado. Com o
cabelo lavado e penteado, todos podiam ver o porquê recebera seu nome.
Com uma estranha cor metálica prateada, seu cabelo fluía do topo de sua
testa, caindo sobre os ombros em uma beleza radiante.
Silvara provou ser uma guia extraordinária, fazendo-os avançar em um
ritmo rápido. Ela e Gilthanas caminhavam lado a lado, conversando em
élfico. Pouco antes do pôr do sol, chegaram a uma caverna.
— Aqui podemos passar a noite — disse Silvara. — Acredito que dei-
xamos a perseguição para atrás. Poucos conhecem essas montanhas tão bem
quanto eu. Mas não ouso acender uma fogueira. Receio que o jantar será frio.
Esgotados pela subida do dia, eles comeram uma refeição triste e
depois fizeram suas camas na caverna. Amontoados em seus cobertores e
em cada peça de roupa que possuíam, os companheiros dormiram de forma
irregular. Eles prepararam a vigia, Laurana e Silvara insistindo em revezar.
A noite passou em silêncio. O único som que ouviram foi o vento uivando
entre as rochas.
Mas, na manhã seguinte, Tasslehoff se espremeu por uma fenda na
entrada oculta da caverna para dar uma olhada e voltou correndo para
dentro de repente. Colocando o dedo nos lábios, Tas fez sinal para eles
o seguirem até lá fora. Theros empurrou para o lado a pedra enorme que
rolaram pela entrada da caverna e os companheiros se aproximaram de Tas.
Ele os levou a uma parada a menos de seis metros da caverna e apontou
sério para a neve branca.
Eram pegadas, frescas o suficiente para que a neve que soprava à
deriva não as tivesse coberto. Os rastros leves e delicados não penetraram
profundamente na neve. Ninguém falou. Não havia necessidade. Todos
reconheceram o contorno nítido e claro das botas élficas.
— Eles devem ter passado por nós à noite — disse Silvara. — Mas é
melhor não ficarmos aqui por mais tempo. Logo, descobrirão que perderam
a trilha e a seguirão de volta. Temos que ir embora.
— Não vejo como isso fará muita diferença — resmungou Flint em
desgosto. Ele apontou para seus próprios rastros, altamente visíveis. Então,
olhou para o céu azul claro. — Podemos simplesmente sentar e esperar
por eles. Economizar tempo e não nos incomodar. Não há como esconder
nossa trilha!

218
— Pode ser que não possamos esconder nossa trilha — disse Theros
— mas talvez possamos ganhar alguns quilômetros à frente eles.
— Talvez — repetiu Derek, sério. Estendendo a mão, ele afrouxou a
espada na bainha e voltou para a caverna.
Laurana pegou o braço de Sturm. — Não deve haver derramamento
de sangue! — ela sussurrou freneticamente, alarmada pela ação de Derek.
O cavaleiro balançou a cabeça enquanto seguiam os outros. — Não
podemos permitir que seu povo nos impeça de levar o orbe para Sancrist.
— Eu sei! — Laurana disse em voz baixa. Inclinando a cabeça, ela
entrou na caverna em angústia silenciosa.
Os outros ficaram prontos em instantes. Então, Derek se levantou,
raivoso na porta, observando Laurana com impaciência.
— Vão em frente — ela disse a ele, sem vontade de deixá-lo vê-la
chorar. — Logo estarei com vocês.
Derek saiu imediatamente. Theros, Sturm e os outros se arrastaram
mais devagar, olhando desconfortáveis para Laurana.
— Vão em frente. — Ela gesticulou. Precisava de um momento para
ficar sozinha. Mas tudo o que conseguia pensar era na mão de Derek em
sua espada. — Não! — ela disse a si mesma severamente. — Não vou lutar
contra o meu povo. O dia que isso acontecer é o dia em que os dragões
vencerão. Renunciarei à minha própria espada primeiro...
Ela ouviu movimento atrás de si. Girando, com a mão indo reflexiva-
mente para a espada, Laurana parou.
— Silvara? — ela disse em espanto, vendo a garota nas sombras. —
Pensei que você tivesse ido. O que está fazendo?
Laurana caminhou rapidamente para onde Silvara estava ajoelhada
na escuridão, suas mãos ocupadas com algo no chão da caverna. A elfa
selvagem se levantou rapidamente.
— N-nada — Silvara murmurou. — Apenas juntando minhas coisas.
Atrás de Silvara, no chão frio da caverna, Laurana pensou ter visto
o orbe do dragão, sua superfície de cristal brilhando com uma estranha
luz giratória. Mas, antes que pudesse olhar mais de perto, Silvara baixou
rapidamente o manto sobre o orbe. Ao fazê-lo, Laurana notou que ela
continuava em frente ao que estivesse mexendo no chão.
— Venha, Laurana — disse Silvara — devemos nos apressar. Me
desculpe se eu fui lenta...

219
— Em um instante — Laurana disse, séria. Ela começou a passar pela
elfa selvagem. A mão de Silvara a agarrou.
— Temos que correr! — ela disse e havia uma pontada de determina-
ção em sua voz baixa. Seu aperto no braço de Laurana era doloroso, mesmo
através da camada grossa do manto pesado.
— Me solte — disse Laurana com frieza, olhando para a garota, seus
olhos verdes sem medo, nem raiva. Silvara deixou a mão cair, abaixando os
olhos.
Laurana caminhou até o fundo da caverna rasa. No entanto, olhando
para baixo, não conseguia ver nada que fizesse algum sentido. Havia um
emaranhado de galhos e cascas e madeira carbonizada, algumas pedras, mas
era tudo. Se era um sinal, era desajeitado. Laurana chutou com a bota, espa-
lhando as pedras e gravetos. Então, ela se virou e pegou o braço de Silvara.
— Pronto — disse Laurana, falando em tons equilibrados e baixos.
— Qualquer mensagem que você deixou para seus amigos será difícil de ler.
Laurana estava preparada para quase qualquer reação da garota... raiva,
vergonha por ter sido descoberta. Esperava até mesmo que ela atacasse. Mas
Silvara começou a tremer. Enquanto olhava para Laurana, seus olhos esta-
vam suplicantes, quase tristes. Por um momento, Silvara tentou falar, mas
não conseguiu. Balançando a cabeça, ela se soltou do aperto de Laurana e
correu para fora.
— Depressa, Laurana! — Theros chamou rispidamente.
— Estou indo! — ela respondeu, olhando para a sujeira no chão da
caverna. Pensou em demorar um pouco mais para investigar, mas sabia que
não podia perder tempo.
“Talvez eu esteja desconfiando demais da garota e sem motivo”, Lau-
rana pensou com um suspiro quando saiu correndo da caverna. Então, a
meio caminho da trilha, ela parou tão abruptamente que Theros, andando
na retaguarda, bateu nela. Ele pegou o braço dela, a firmando.
— Você está bem? — ele perguntou.
— S-sim — respondeu Laurana, apenas o ouvindo pela metade.
— Você parece pálida. Viu alguma coisa?
— Não. Estou bem — Laurana disse apressadamente e começou a subir
o penhasco novamente, escorregando na neve. Como ela fora uma tola!
Como todos foram tolos! Mais uma vez, ela podia ver claramente em
sua mente Silvara se levantando, deixando cair seu manto sobre o orbe do
dragão. O orbe do dragão que estava brilhando com uma luz estranha!

220
Ela começou a perguntar a Silvara sobre o orbe quando, de repente,
seus pensamentos foram interrompidos. Uma flecha zuniu no ar e bateu em
uma árvore perto da cabeça de Derek.
— Elfos! Brightblade, ataque! — gritou o cavaleiro, desembainhan-
do a espada.
— Não! — Laurana correu para frente, agarrando o braço da espada.
— Não vamos lutar! Não haverá morte!
— Você está louca! — gritou Derek. Soltando furiosamente do aperto
de Laurana, ele a empurrou para trás, em Sturm.
Outra flecha voou.
— Ela está certa! — Silvara implorou, correndo de volta. — Não pode-
mos lutar contra eles. Temos que chegar à passagem! Lá, poderemos detê-los.
Outra flecha, quase perdida, atingiu o colete de cota de malha que
Derek usava sobre a túnica de couro. Ele a afastou, irritado.
— Não estão mirando para matar — acrescentou Laurana. — Se
estivessem, você já estaria morto. Temos que correr. De qualquer forma,
não podemos lutar aqui. — Ela apontou a floresta densa. — Podemos
defender melhor na passagem.
— Baixe sua espada, Derek — disse Sturm, puxando sua espada. —
Ou você lutará comigo primeiro.
— Você é um covarde, Brightblade! — Derek gritou, sua voz tremen-
do de fúria. — Você está fugindo do inimigo!
— Não — respondeu Sturm com frieza — estou fugindo dos meus
amigos. — O cavaleiro manteve a espada desembainhada. — Siga em
frente, Crownguard, ou os elfos descobrirão que chegaram tarde demais
para fazê-lo prisioneiro.
Outra flecha voou, parando em uma árvore perto de Derek. Com o
rosto marcado pela fúria, o cavaleiro embainhou a espada e, se virando,
seguiu pela trilha. Mas não antes de lançar a Sturm um olhar de inimizade
tão intensa que Laurana estremeceu.
— Sturm... — ela começou, mas ele só a agarrou pelo cotovelo e a
empurrou para frente rápido demais para falar. Eles subiram rapidamente.
Atrás dela, podia ouvir Theros abrindo caminho pela neve, ocasionalmente
parando para jogar um pedregulho para trás. Logo, parecia que toda a
lateral da montanha descia pela trilha íngreme e as flechas cessaram.
— Mas é apenas temporário — o ferreiro bufou, alcançando Sturm e
Laurana. — Isso não vai detê-los por muito tempo.

221
Laurana não podia responder. Seus pulmões estavam em chamas.
Estrelas azuis e douradas explodiram diante de seus olhos. Ela não foi a
única a sofrer. A respiração de Sturm raspava em sua garganta. Seu aperto
no braço dela estava fraco e sua mão tremia. Até o ferreiro forte bufava
como um cavalo sem fôlego. Ao redor de um pedregulho, encontraram o
anão de joelhos, com Tasslehoff tentando levantá-lo, em vão.
— Preciso... descansar... — disse Laurana com a garganta doendo. Ela
começou a se sentar, mas mãos fortes a agarraram.
— Não! — Silvara disse com urgência. — Aqui não! Apenas mais
alguns metros! Vamos! Continuem!
A elfa selvagem arrastou Laurana para frente. Ela notou vagamente
Sturm ajudando Flint a se levantar, o anão gemendo e xingando. Theros e
Sturm arrastaram o anão pela trilha entre eles. Tasslehoff tropeçava atrás,
cansado demais até para falar.
Finalmente, chegaram ao topo da passagem. Laurana caiu na neve,
além de se importar com o acontecia com ela. O resto desabou ao lado dela,
todos, exceto Silvara, que estava olhando para abaixo deles.
“Onde ela consegue a força?” Laurana pensou através de uma névoa
sombria de dor. Mas estava exausta demais para questionar. No momento,
ela estava cansada demais para se importar se os elfos a encontrariam ou
não. Silvara se virou para eles.
— Temos que nos separar — disse de forma decisiva.
Laurana a encarou, sem entender.
— Não — começou Gilthanas tentando se levantar, sem sucesso.
— Me escutem! — Silvara disse com urgência, se ajoelhando. — Os
elfos estão muito perto. Vão nos pegar com certeza, então precisaremos
lutar ou nos render.
— Lutar — Derek murmurou selvagemente.
— Existe uma maneira melhor — Silvara sussurrou. — Você, cavaleiro,
deve levar o orbe do dragão para Sancrist sozinho! Vamos atrair a perseguição.
Por um momento, ninguém falou. Todos olhavam silenciosamente
para Silvara, considerando essa nova possibilidade. Derek levantou a cabe-
ça, os olhos brilhando. Laurana lançou um olhar de alerta para Sturm.
— Não acho que uma pessoa deva ser encarregada de uma responsa-
bilidade tão grande — disse Sturm, com a respiração entrecortada. — Dois
devem ir... pelo menos.
— Quer dizer, você mesmo, Brightblade? — Derek perguntou com raiva.

222
— Sim, claro, se alguém deve ir — disse Laurana — deve ser Sturm.
— Posso desenhar um mapa através das montanhas — Silvara disse
ansiosamente. — O caminho não é difícil. O posto avançado dos cavaleiros
fica apenas a dois dias de jornada daqui.
— Mas não podemos voar — protestou Sturm. — E nossos rastros?
Certamente, os elfos verão que nos separamos.
— Uma avalanche — sugeriu Silvara. — Theros jogando as pedras atrás
de nós me deu a ideia. — Ela olhou para cima. Eles seguiram o olhar. Picos
cobertos de neve se elevavam acima deles, a neve pairando sobre as bordas.
— Posso causar uma avalanche com a minha magia — disse Gilthanas
lentamente. — Isso apagará as trilhas de todos.
— Não totalmente — advertiu Silvara. — Devemos permitir que a
nossa seja encontrada novamente... embora não de forma muito óbvia.
Afinal, queremos que eles nos sigam.
— Mas para aonde vamos? — perguntou Laurana. — Não pretendo
vagar sem rumo pelo mato.
— Eu... eu sei de um lugar. — Silvara vacilou, seu olhar caindo no
chão. — É secreto, conhecido apenas pelo meu povo. Levarei vocês até
lá. — Ela juntou as mãos. — Por favor, devemos nos apressar. Não há
muito tempo!
— Vou levar o orbe para Sancrist — disse Derek — e irei sozinho.
Sturm deveria ir com o seu grupo. Vocês precisarão de um guerreiro.
— Temos guerreiros — disse Laurana. — Theros, meu irmão, o anão.
Eu mesma tenho experiência em batalha...
— E eu — falou Tasslehoff.
— E o kender — Laurana acrescentou, séria. — Além disso, isso não
se transformará em derramamento de sangue. — Seus olhos viram o rosto
perturbado de Sturm e imaginou o que ele estava pensando. Sua voz se
abrandou. — A decisão depende de Sturm, claro. Ele deve fazer o que achar
melhor, mas acho que deveria acompanhar Derek.
— Eu concordo — resmungou Flint. — Afinal de contas, não somos
nós que estaremos em perigo. Estaremos mais seguros sem o orbe do dra-
gão. É o orbe que os elfos querem.
— Sim — concordou Silvara, sua voz suave. — Estaremos mais segu-
ros sem o orbe. É você quem estará em perigo.
— Então meu caminho é claro — disse Sturm. — Eu vou com Derek.
— E se eu mandar você ficar? — Derek exigiu.

223
— Você não tem autoridade sobre mim — disse Sturm, com os olhos
castanhos escuros. — Esqueceu? Não sou um cavaleiro.
Houve um silêncio profundo e doloroso. Derek encarou Sturm
com atenção.
— Não. — ele disse — E se depender de mim, nunca será!
Sturm se encolheu, como se Derek tivesse desferido um golpe físico.
Então ele se levantou, suspirando pesadamente.
Derek já começara a juntar seus equipamentos. Sturm se movia mais
devagar, pegando seu saco de dormir com uma reflexão deliberada. Laurana
se levantou e foi até Sturm.
— Aqui — ela disse, pegando em sua mochila. — Vocês precisarão
de comida...
— Você poderia vir conosco — Sturm disse em voz baixa enquanto ela
dividia seus suprimentos. — Tanis sabe que íamos a Sancrist. Ele também
irá, se possível.
— Você está certo — Laurana disse, seus olhos brilhando. — Talvez
seja uma boa ideia... — Então, seus olhos foram para Silvara. A elfa selva-
gem segurava o orbe do dragão, ainda envolto em sua capa. Os olhos de
Silvara estavam fechados, quase como se estivesse se comunicando com
algum espírito invisível. Suspirando, Laurana sacudiu a cabeça. — Não,
tenho que ficar com ela, Sturm — disse em voz baixa. — Algo não está
certo. Eu não entendo... — ela parou, incapaz de articular seus pensamen-
tos. — E quanto a Derek? — ela perguntou, em vez disso. — Por que ele
insiste tanto em ir sozinho? O anão está certo sobre o perigo. Se os elfos o
capturarem, sem nós, não hesitarão em matá-lo.
O rosto de Sturm estava tenso, amargo. — Precisa perguntar? Lorde
Derek Crownguard retorna sozinho de perigos aterrorizantes, levando com
ele o cobiçado orbe do dragão... — Sturm deu de ombros.
— Mas há muita coisa em jogo — protestou Laurana.
— Você está certa, Laurana — Sturm disse duramente. — Há muita
coisa em jogo. Mais do que sabe... A liderança dos Cavaleiros de Solamnia.
Não posso explicar agora...
— Venha, Brightblade, se é que você vem! — Derek rosnou.
Sturm pegou a comida, a guardando na mochila. — Adeus, Laurana
— ele disse, se curvando para ela com a galanteria calma que marcava todas
as suas ações.
— Adeus, Sturm, meu amigo — ela sussurrou, abraçando o cavaleiro.

224
Ele a segurou forte e, então, a beijou suavemente na testa.
— Daremos o orbe para os sábios estudarem. O Conselho da Pedra
Branca se reunirá em breve — ele disse. — Os elfos serão convidados a
participar, já que são membros consultivos. Você deve ir para Sancrist o
mais rápido possível, Laurana. Sua presença será necessária.
— Estarei lá, se os deuses quiserem — disse Laurana, seus olhos
indo para Silvara, que estava entregando o orbe do dragão a Derek. Uma
expressão de alívio inenarrável revelou-se no rosto de Silvara quando Derek
se virou para partir.
Sturm disse adeus, então seguiu na neve atrás de Derek. Os compa-
nheiros viram um clarão quando seu escudo refletiu o sol.
De repente, Laurana deu um passo à frente. — Esperem! — ela cho-
rou. — Tenho que impedi-los. Também precisam levar a lança do dragão.
— Não! — Silvara gritou, correndo para bloquear o caminho de Laurana.
Com raiva, Laurana estendeu a mão para afastar a garota, depois viu o
rosto de Silvara e sua mão parou.
— O que você está fazendo, Silvara? — Laurana perguntou. — Por
que você os mandou embora? Por que estava tão ansiosa para nos separar?
Por que dar a eles a esfera e não a lança...
Silvara não respondeu. Ela simplesmente encolheu os ombros e olhou
para Laurana com os olhos mais azuis que a meia-noite. Laurana sentiu sua
vontade sendo drenada por aqueles olhos azuis, muito azuis. Ela parecia
terrivelmente com Raistlin.
Gilthanas também olhou para Silvara com uma expressão perplexa
e preocupada. Theros ficou sério e austero, olhando para Laurana como
se começasse a compartilhar suas dúvidas. Mas não foram capazes de se
mover. Estavam completamente sob o controle de Silvara..., mas o que ela
fez com eles? Só podiam ficar de pé olhando para a elfa selvagem enquanto
ela andava calmamente até onde Laurana cansada deixara cair sua mochila.
Curvando-se, Silvara desembrulhou o pedaço quebrado de madeira lascada.
Então, ela o levantou no ar.
A luz do sol brilhou no cabelo prateado de Silvara, imitando o clarão
do escudo de Sturm.
— A lança do dragão fica comigo — disse Silvara. Olhando rapida-
mente ao redor do grupo encantado, ela acrescentou — Assim como vocês.

225
7
Jornada sombria.

trás deles, a neve retumbava e caía sobre a lateral da montanha.


Cascateando como lençóis brancos, bloqueando e sufocando a
passagem, obliterando a presença deles. Os ecos do trovão mágico
de Gilthanas ainda ressoavam no ar ou, talvez, fosse o estrondo das rochas
que desciam pelas encostas. Não era possível ter certeza.
Liderados por Silvara, os companheiros percorreram as trilhas para o
leste devagar e com cautela, andando onde era rochoso, evitando os trechos
nevados, se possível. Eles pisavam nos passos uns do outros para que os
elfos perseguidores nunca soubessem ao certo quantos havia em seu grupo.
Estavam tão cuidadosos, de fato, que Laurana ficou preocupada.
— Lembre-se, queremos que eles nos encontrem — ela disse a Silvara
enquanto se esgueiravam pelo topo de um desfiladeiro rochoso.
— Não fique chateada. Eles não terão problemas em nos encontrar
— respondeu Silvara.
— O que lhe dá tanta certeza? — Laurana começou a perguntar, depois
escorregou e caiu de joelhos. Gilthanas a ajudou a se levantar. Fazendo uma
careta de dor, ela olhou para Silvara em silêncio. Nenhum deles, incluindo
Theros, confiava na mudança repentina que ocorrera com a elfa selvagem des-
de que se separaram dos cavaleiros. Mas não tinham escolha senão segui-la.
— Porque eles sabem o nosso destino — respondeu Silvara. — Você
foi esperta em pensar que eu deixei um sinal para eles na caverna. Eu
deixei. Felizmente, você não encontrou. Abaixo dos bastões que você tão
gentilmente espalhou por mim, desenhei um mapa grosseiro. Quando eles
encontrarem, vão pensar que eu desenhei para mostrar o nosso destino.
Você fez com que parecesse mais realista, Laurana. — Sua voz era desafia-
dora até que ela encontrasse os olhos de Gilthanas.
O elfo se afastou dela, seu rosto sério. Silvara vacilou. Sua voz se tornou
suplicante. — Eu fiz isso por um motivo, um bom motivo. Soube então,
quando eu vi os rastros, que teríamos que nos separar. Vocês precisam
acreditar em mim!
— E o orbe do dragão? O que estava fazendo com ele? — Laurana
exigiu.
— N-nada — gaguejou Silvara. — Você precisa confiar em mim!
— Não vejo porque — Laurana respondeu friamente.
— Não fiz nenhum mal a você... — Silvara começou.
— A menos que você tenha enviado os cavaleiros e o orbe do dragão
para uma armadilha mortal! — Laurana gritou.
— Não! — Silvara torceu as mãos. — Não mandei! Acreditem em
mim. Eles ficarão seguros. Esse foi meu plano o tempo todo. Nada deve
acontecer ao orbe do dragão. Acima de tudo, ele não deve cair nas mãos
dos elfos. É por isso que eu o mandei embora. É por isso que ajudei vocês a
escaparem! — Ela olhou ao redor, parecendo cheirar o ar como um animal.
— Vamos! Perdemos tempo demais.
— Se é que iremos com você! — Gilthanas disse bruscamente. — O
que você sabe sobre o orbe do dragão?
— Não me pergunte! — A voz de Silvara ficou subitamente profunda
e cheia de tristeza. Seus olhos azuis olhavam para Gilthanas com tanto
amor que ele não suportava encará-la. Ele balançou a cabeça, evitando seu
olhar. Silvara segurou o braço dele. — Por favor, shalori, amado, confie
em mim! Lembre-se do que falamos, na lagoa. Disse que tinha que fazer
essas coisas... desafiar seu povo, se tornar um pária, por causa do que você

227
acreditava no fundo do seu coração. Eu disse que entendia, que tinha que
fazer o mesmo. Você não acreditou em mim?
Gilthanas ficou de cabeça baixa por um momento. — Eu acreditei
em você — ele disse suavemente. Estendendo a mão, ele a puxou para ele,
beijando seu cabelo prateado. — Nós vamos com você. Vamos, Laurana.
— Com os braços ao redor um do outro, os dois se arrastaram pela neve.
Laurana olhou inexpressivamente para os outros. Eles evitavam seu
olhar. Então, Theros se aproximou dela.
— Vivi neste mundo por quase cinquenta anos, jovem — disse ele
gentilmente. — Não muito tempo para vocês, elfos, eu sei. Mas nós, hu-
manos, vivemos esses anos, não os deixamos apenas passar. E vou dizer...
aquela garota ama seu irmão de forma tão verdadeira quanto eu já vi uma
mulher amar um homem. E ele a ama. Tal amor não pode ser para o mal.
Apenas pelo amor deles, eu os seguiria até o covil de um dragão.
O ferreiro seguiu os dois.
— Para o bem dos meus pés frios, eu os seguiria até o covil de um dra-
gão, se ele aquecesse meus dedos! — Flint pisou forte no chão. — Venha,
vamos. — Agarrando o kender, ele arrastou Tas ao lado do ferreiro.
Laurana permaneceu em pé, sozinha. Que ela os seguiria estava deci-
dido. Não tinha escolha. Ela queria confiar nas palavras de Theros. Outrora,
teria acreditado que o mundo era assim. Mas, agora, sabia que muito do
que acreditara era falso. Por que não o amor?
Tudo o que ela podia ver em sua mente eram as cores rodopiantes do
orbe do dragão.

Os companheiros viajaram para o leste, para a escuridão da noite.


Descendo da passagem na montanha alta, eles acharam o ar mais fácil de
respirar. As rochas congeladas deram lugar a pinheiros esparsos, depois a
floresta se fechou ao redor deles mais uma vez. Por fim, Silvara os levou de
forma confiante a um vale envolto por névoa.
A elfa selvagem não parecia mais se importar em cobrir seus rastros.
Tudo o que a preocupava agora era a velocidade. Ela forçou o grupo, como
se estivesse disputando corrida com o sol através do céu. Quando a noite
caiu, eles afundaram na escuridão arborizada, cansados demais até para
comer. Mas Silvara permitiu apenas algumas horas de sono inquieto e
dolorido. Quando as luas nasceram, a prata e a vermelha se aproximando
de sua plenitude, ela instigou os companheiros.

228
Quando alguém questionava, cansado, por que se apressavam, ela
apenas respondia: — Eles estão perto. Estão muito perto.
Cada um presumia que ela se referia aos elfos, embora Laurana há
muito tivesse perdido a sensação das formas escuras que os seguiam.
A alvorada despontou, mas a luz era filtrada através de uma névoa
tão grossa que Tasslehoff pensou que poderia pegar um punhado dela e
guardá-la em uma de suas bolsas. Os companheiros caminhavam perto uns
dos outros, até de mãos dadas para evitar serem separados. O ar ficou mais
quente. Eles tiraram suas capas molhadas e pesadas enquanto tropeçavam
em uma trilha que parecia se materializar sob seus pés, saída da neblina.
Silvara caminhava diante deles. A luz fraca que brilhava em seus cabelos
prateados era a única orientação.
Finalmente, o solo ficou nivelado sob seus pés, as árvores se abriram
e eles caminharam sobre a grama macia, marrom com o inverno. Embora
nenhum deles pudesse ver mais do que alguns metros no nevoeiro cinzento,
tiveram a impressão de que estavam em uma grande clareira.
— Este é o Vale do Refúgio Brumado — disse Silvara em resposta
às suas perguntas. — Há muitos anos, antes do Cataclismo, era um dos
lugares mais bonitos de Krynn... assim meu povo conta.
— Ainda pode ser lindo — resmungou Flint — se pudéssemos ver
através dessa névoa confusa.
— Não — disse Silvara com tristeza. — Como muitas coisas neste
mundo, a beleza do Refúgio Brumado desapareceu. No passado, a forta-
leza de Refúgio Brumado despontava acima da névoa, como se flutuasse
sobre uma nuvem. O sol nascente coloria as névoas de rosa pela manhã, as
queimava ao meio-dia, para que os pináculos altos da fortaleza pudessem
ser vistos a quilômetros de distância. À noite, a névoa voltava a cobrir a
fortaleza como um cobertor. À noite, as luas prateada e vermelha brilhavam
nas névoas com uma luz cintilante. Peregrinos vinham de todas as partes de
Krynn... — Silvara parou abruptamente. — Acamparemos aqui esta noite.
— Que peregrinos? — Laurana perguntou, deixando a mochila cair.
Silvara deu de ombros. — Eu não sei — disse ela, desviando o rosto.
— É apenas uma lenda do meu povo. Talvez nem seja verdade. Certamente
ninguém vem aqui agora.
“Ela está mentindo”, Laurana pensou, mas não disse nada. Estava
cansada demais para se importar. E mesmo a voz baixa e suave de Silvara
parecia anormalmente alta e dissonante na quietude sinistra. Os compa-

229
nheiros abriram seus cobertores em silêncio. Também comeram em silên-
cio, beliscando sem apetite as frutas secas em suas mochilas. Até o kender
estava desanimado. O nevoeiro era opressivo, pesando sobre eles. A única
coisa que conseguiam ouvir era um gotejamento constante de água sobre o
tapete de folhas mortas no piso da floresta abaixo.
— Durmam agora — Silvara disse baixinho, abrindo o cobertor perto
de Gilthanas — porque quando a lua prateada se aproximar do zênite,
devemos partir.
— Que diferença isso fará? — O kender bocejou. — Não podemos
ver de qualquer forma.
— Mesmo assim, devemos ir. Eu acordarei vocês.
— Quando voltarmos de Sancrist... depois do Conselho da Pedra
Branca... poderemos nos casar — disse Gilthanas baixinho para Silvara
enquanto estavam deitados juntos, envoltos em seu cobertor.
A garota se mexeu em seus braços. Ele sentiu seu cabelo macio roçar
na bochecha. Mas ela não respondeu.
— Não se preocupe com meu pai — disse Gilthanas, sorrindo,
acariciando o lindo cabelo que brilhava, mesmo na escuridão. — Ele
ficará sério e implacável por um tempo, mas eu sou o irmão mais novo,
ninguém se importa com o que acontece comigo. Porthios vai reclamar,
se enfurecer e seguir em frente. Mas vamos ignorá-lo. Não temos que
viver com meu povo. Não tenho certeza de como me encaixaria com o
seu, mas eu poderia aprender. Eu sou bom com um arco. E eu gostaria
que nossos filhos crescessem na natureza, livres e felizes... o que... Silvara,
por que?... você está chorando!
Gilthanas a abraçou enquanto ela enterrava o rosto em seu ombro,
soluçando amargamente. — Calma, calma — ele sussurrou suavemente,
sorrindo na escuridão. As mulheres eram criaturas engraçadas. Ele se
perguntou o que dissera. — Calma, Silvara — ele murmurou. — Tudo
ficará bem. — E Gilthanas adormeceu, sonhando com crianças de cabelos
prateados correndo na floresta verde.

— Chegou a hora. Devemos partir.


Laurana sentiu uma mão em seu ombro, a sacudindo. Assustada, ela
acordou de um sonho vago e assustador que não conseguia lembrar para
encontrar a elfa selvagem ajoelhada acima dela.
— Vou acordar os outros — disse Silvara, e desapareceu.

230
Sentindo-se mais cansada do que se não tivesse dormido, Laurana
arrumou suas coisas por reflexo e ficou esperando, tremendo na escuridão.
Ao lado dela, ouviu o gemido do anão. O ar úmido estava fazendo suas
articulações doerem bastante. Essa jornada foi dura para Flint, Laurana
percebeu. Afinal, ele tinha o que... quase cento e cinquenta anos de idade?
Uma idade respeitável para um anão. Seu rosto perdera parte de sua cor du-
rante a doença na viagem. Seus lábios, quase invisíveis sob a barba, tinham
um tom azulado e, ocasionalmente, ele pressionava a mão contra o peito.
Mas sempre insistia que estava bem e os acompanhava na trilha.
— Tudo pronto! — gritou Tas. Sua voz estridente ecoou estranhamen-
te no nevoeiro e ele teve a sensação nítida de que perturbara alguma coisa.
— Me desculpem — ele disse, se encolhendo. – Puxa! — ele murmurou
para Flint. — É como estar em um templo.
— Apenas cale a boca e comece a se mexer! — o anão retrucou.
Uma tocha acendeu. Os companheiros se assustaram com a luz repen-
tina e ofuscante que Silvara segurava.
— Precisamos ter uma luz — disse ela antes que qualquer um pudesse
protestar. — Não temam. O vale em que estamos está fechado. Há muito
tempo, havia duas entradas: uma levava a terras humanas onde os cavaleiros
tinham seu posto avançado, a outra levava para o leste, nas terras dos ogros.
As duas passagens foram perdidas durante o Cataclismo. Não precisamos
ter medo. Eu guiei vocês por um caminho conhecido apenas por mim.
— E pelo seu povo — Laurana a lembrou bruscamente.
— Sim... meu povo ... — Silvara disse e Laurana ficou surpresa ao ver
a garota ficar pálida.
— Para onde está nos levando? — Laurana insistiu.
— Você verá. Estaremos lá em uma hora.
Os companheiros se entreolharam e todos olharam para Laurana.
“Maldição!”, ela pensou. — Não olhem para mim em busca de respos-
tas! — ela disse com raiva. — O que querem fazer? Ficar aqui fora? Perdidos
no nevoeiro...
— Não vou trair vocês! — Silvara murmurou desanimada. — Por
favor, apenas confiem em mim um pouco mais.
— Vá em frente — disse Laurana, cansada. — Nós vamos seguir.
O nevoeiro parecia se fechar em torno deles mais densamente, até que
tudo o que mantinha a escuridão longe era a luz da tocha de Silvara.

231
Ninguém tinha ideia da direção para que viajaram. A paisagem não
mudava. Eles andaram pela grama alta. Não havia árvores.
Ocasionalmente, uma pedra grande surgia da escuridão, mas era tudo.
Não havia sinal de pássaros noturnos ou animais. Havia uma sensação de
urgência que aumentava à medida que caminhavam até que todos sentiram
e apressaram os passos, se mantendo sempre à luz da tocha.
Então, de repente e sem aviso, Silvara parou.
— Chegamos — ela disse, segurando a tocha no alto. A luz da tocha
perfurou o nevoeiro. Todos podiam ver algo sombrio além. A princípio, era
algo tão fantasmagórico se materializando do nevoeiro que os companhei-
ros não conseguiam reconhecê-lo.
Silvara se aproximou. Eles a seguiram, curiosos, com medo.
Então o silêncio da noite foi interrompido por sons borbulhantes,
como água fervendo em uma chaleira gigante. O nevoeiro ficou mais denso,
o ar estava quente e sufocante.
— Fontes termais! — disse Theros com uma compreensão súbita. —
Claro, isso explica a neblina constante. E essa forma escura...
— A ponte que as atravessa — Silvara respondeu, iluminando com a
tocha sobre o que podiam ver que era uma ponte de pedra reluzente que
atravessava a água fervente nos riachos abaixo deles, enchendo o ar da noite
com sua névoa quente e ondulante.
— Temos que atravessar isso! — Flint exclamou, olhando com horror
para a água escura e fervente. — Temos que atravessar...
— É chamada de Ponte da Passagem — disse Silvara.
A única resposta do anão foi engolir em seco.
A Ponte da Passagem era um arco de mármore branco puro, longo
e liso. Em suas laterais, esculpidas em um relevo vívido, colunas longas
de cavaleiros caminhavam simbolicamente pelos riachos borbulhantes. O
vão era tão alto que eles não conseguiam ver o topo através das névoas
rodopiantes. E era velha, tão velha que Flint, tocando reverentemente a
rocha desgastada com a mão, não conseguiu reconhecer o artesanato. Não
era anão, élfico, humano. Quem fizera um trabalho tão maravilhoso?
Então, ele percebeu que não havia corrimãos, nada além do próprio
vão de mármore, liso e cintilante, com a névoa subindo constantemente das
fontes borbulhantes abaixo.
— Não podemos atravessar isso — disse Laurana com a voz trêmula.
— E agora estamos presos...

232
— Podemos atravessar — disse Silvara. — Porque fomos convocados.
— Convocados? — Laurana repetiu exasperada. — Pelo quê? Onde?
— Esperem — ordenou Silvara.
Eles esperaram. Não havia mais nada para fazer. Cada um ficou olhan-
do ao redor à luz da tocha, mas viram apenas a névoa subindo dos riachos,
ouvindo apenas a água gorgolejante.
— É o momento de Solinari — Silvara disse de repente, e, balançando
o braço, jogou a tocha na água.
A escuridão os engoliu. Involuntariamente, eles se aproximaram. Silvara
parecia ter desaparecido com a luz. Gilthanas chamou, mas ela não respondeu.
Então, a névoa se transformou em prata cintilante. Eles podiam ver
novamente e, agora, podiam ver Silvara, um contorno escuro e sombrio
contra a névoa prateada. Ela estava ao pé da ponte, olhando para o céu.
Lentamente, ergueu as mãos e, lentamente, as névoas se abriram. Olhando
para cima, os companheiros viram as névoas se abrirem como dedos longos
e graciosos para revelar a lua prateada, cheia e brilhante no céu estrelado.
Silvara falava palavras estranhas e o luar caía sobre ela, a banhando
em sua luz. A luz da lua irradiava sobre as águas borbulhantes, as tornando
vivas, dançando com prata. Ela brilhava sobre a ponte de mármore, dando
vida aos cavaleiros que passavam a eternidade atravessando o riacho.
Mas não foram essas visões belas que fizeram com que os companheiros
dessem as mãos ou se abraçassem. A luz da lua na água não fez Flint repetir
o nome de Reorx na mais reverente oração que já proferiu, ou fez com que
Laurana apoiasse a cabeça no ombro do irmão, com os olhos escurecidos
pelas lágrimas súbitas, ou que Gilthanas a abraçasse firmemente, tomado
por um sentimento de medo, admiração e reverência.
Erguendo-se acima deles, tão alto que sua cabeça poderia ter rasgado
uma lua do céu, estava a figura de um dragão, esculpida em uma montanha
de rocha, brilhando prateada ao luar.
— Onde estamos? — Laurana perguntou em voz baixa. — Que lugar
é este?
— Quando vocês atravessarem a Ponte da Passagem, estarão diante do
Monumento do Dragão de Prata — respondeu Silvara em voz baixa. — Ele
guarda a Tumba de Huma, Cavaleiro de Solamnia.

233
8
A Tumba de Huma.

ob a luz de Solinari, a Ponte da Passagem cruzando os riachos


borbulhantes do Vale do Refúgio Brumado cintilava como péro-
las brilhantes em uma corrente de prata.
— Não tenham medo — Silvara disse novamente. — A travessia é
difícil apenas para aqueles que desejam entrar na Tumba para fins malignos.
Mas os companheiros ainda não estavam convencidos. Com medo,
eles subiram os degraus que os levavam até a ponte. Então, hesitantes,
pisaram no arco de mármore que se elevava diante deles, brilhando com
o vapor das fontes. Silvara atravessou primeiro, andando levemente e com
facilidade. O resto a seguiu com mais cautela, se mantendo no centro da
extensão de mármore.
Na frente deles, do outro lado da ponte, se agigantava o Monumento
do Dragão. Embora soubessem que deviam ver onde pisavam, seus olhos
pareciam constantemente atraídos para ele. Muitas vezes, foram forçados
a parar e olhar com admiração, enquanto, abaixo deles, as fontes quentes
ferviam e fumegavam.
— Por que... aposto que a água é tão quente que é possível cozinhar
carne nela! — disse Tasslehoff. Deitado de bruços, ele espiou pela borda da
parte mais alta da ponte em arco.
— V-vou a-apostar que e-ela p-ode c-cozinhar você — gaguejou o
anão, aterrorizado, rastejando sobre as mãos e os joelhos.
— Olha, Flint! Veja. Tenho um pedaço de carne na minha mochila.
Vou pegar uma corda e vamos o abaixar na água...
— Ande logo! — Flint rugiu. Tas suspirou e fechou a bolsa.
— Não é divertido levar você para lugar nenhum — ele reclamou e
deslizou pelo outro lado da extensão, seguindo seus instintos.
Mas, para o resto dos companheiros, foi uma viagem aterrorizante e
todos suspiraram em alívio sincero quando desceram da ponte de mármore
para o chão.
Nenhum deles falara com Silvara enquanto atravessavam, suas mentes
estavam ocupadas demais com a travessia da Ponte da Passagem. Mas, quan-
do chegaram ao outro lado, Laurana foi a primeira a fazer lhe perguntas.
— Por que você nos trouxe aqui?
— Ainda não confia em mim? — Silvara perguntou tristemente.
Laurana hesitou. Seu olhar foi mais uma vez para o enorme dragão de
pedra, cuja cabeça estava coroada de estrelas. A boca de pedra estava aberta
em um grito silencioso e os olhos de pedra encaravam ferozmente. As asas
de pedra foram esculpidas dos lados da montanha. Uma garra de pedra se
estendia, tão grande quanto os troncos de cem copadeiras.
— Você mandou o orbe do dragão embora, depois nos trouxe a um
monumento dedicado a um dragão! — Laurana disse depois de um mo-
mento, sua voz tremendo. — O que devo pensar? E nos traz para este lugar
que você chama de Tumba de Huma. Nem sabemos se Huma viveu ou se
era uma lenda. O que existe para provar que este é o seu lugar de descanso?
O corpo dele está lá dentro?
— N-não — Silvara vacilou. — Seu corpo desapareceu, assim como...
— Assim como o que?
— Assim como a lança que ele carregava, a Lança do Dragão que
usou para destruir a Dragoa de Todas as Cores e de Nenhuma. — Silvara
suspirou e abaixou a cabeça. — Entrem — ela implorou — e descansem
esta noite. De manhã, tudo será esclarecido, prometo.

235
— Eu não acho... — Laurana começou.
— Nós vamos entrar! — disse Gilthanas com firmeza. — Você está
se comportando como uma criança mimada, Laurana! Por que Silvara nos
levaria ao perigo? Certamente, se houvesse um dragão morando aqui, todos
em Ergoth saberiam! Ele poderia ter destruído todos na ilha há muito tempo.
Não sinto nenhum mal sobre este lugar, apenas uma paz grande e ancestral.
E é um esconderijo perfeito! Logo, os elfos receberão notícias de que o orbe
chegou a Sancrist em segurança. Eles desistirão da busca e poderemos sair.
Não é verdade, Silvara? Não é por isso que você nos trouxe aqui?
— Sim — Silvara disse suavemente. — E-esse era o meu plano. Agora,
venham, venham depressa, enquanto a lua prateada ainda brilha. Pois só
podemos entrar neste momento.
Com sua mão segurando a de Silvara, Gilthanas entrou na névoa
prateada cintilante. Tas saltou à frente deles, suas bolsas balançando.
Flint e Theros seguiram mais devagar, e Laurana mais devagar ainda.
Seus medos não foram amenizados pela explicação superficial de Gilthanas,
nem pela concordância relutante de Silvara. Mas não havia outro lugar para
ir e, como admitiu, ela estava intensamente curiosa.
A grama do outro lado da ponte era macia e plana com as nuvens
fumegantes de umidade, mas o chão começou a subir quando se aproxi-
maram do corpo do dragão esculpido no penhasco. De repente, a voz de
Tasslehoff flutuou de volta para eles da névoa, de onde ele correra muito à
frente do grupo.
— Raistlin! — eles o ouviram gritar em voz estrangulada. — Ele se
transformou em um gigante!
— O kender ficou louco — disse Flint com satisfação sombria. — Eu
sempre soube que disso...
Correndo para a frente, os companheiros encontraram Tas pulando
para cima e para baixo, apontando. Eles pararam ao seu lado, ofegando.
— Pela barba de Reorx! — Disse Flint com admiração. — É Raistlin!
Afastando-se da névoa rodopiante, se elevando a quase três metros no ar,
havia uma estátua de pedra esculpida em uma semelhança perfeita ao jovem
mago. Precisa em todos os detalhes, ela captou até mesmo sua expressão
cínica e amarga e os olhos esculpidos com suas pupilas de ampulheta.
— E ali está Caramon! — Tas gritou.
A poucos metros de distância havia outra estátua, desta vez na forma
de gêmeo guerreiro do mago.

236
— E Tanis ... — Laurana sussurrou com medo. — Que magia
maligna é esta?
— Não é maligna — disse Silvara — a menos que você traga o mal para
este lugar. Nesse caso, você veria os rostos de seus piores inimigos dentro das
estátuas de pedra. O horror e o medo que eles geram não permitiriam que você
passe. Mas você vê apenas seus amigos e, assim, poderá passar em segurança.
— Não contaria Raistlin exatamente entre meus amigos — mur-
murou Flint.
— Nem eu — disse Laurana. Tremendo, ela passou hesitante pela
imagem fria do mago. Os mantos de obsidiana dele mago brilhavam negros
à luz das luas. Laurana se lembrava vividamente do pesadelo de Silvanesti
e estremeceu ao entrar no que via agora ser um anel de estátuas de pedra...
cada uma delas exibindo uma semelhança impressionante, quase assusta-
dora, com seus amigos. Dentro daquele anel silencioso de pedra, havia um
pequeno templo.
A construção retangular simples sobressaia do nevoeiro a partir de
uma base octogonal de degraus brilhantes. Ela também era feita de obsidia-
na e a estrutura negra brilhava, úmida com a neblina perpétua. Parecia que
cada feição fora esculpida há apenas alguns dias. Nenhum sinal de desgaste
estragava as linhas nítidas e limpas da escultura. Seus cavaleiros, cada um
carregando a lança do dragão, ainda investiam contra monstros enormes.
Dragões gritavam silenciosamente na morte congelada, perfurados pelas
hastes longas e delicadas.
— Dentro deste templo, o corpo de Huma foi colocado — Silvara
disse baixinho enquanto os levava escada acima.
As portas de bronze se abriram com dobradiças silenciosas ao toque
de Silvara. Os companheiros pararam incertos nas escadas que rodeavam o
templo de colunas. Mas, como Gilthanas dissera, eles não podiam sentir o
mal vindo desse lugar. Laurana se lembrou vivamente da Tumba da Guarda
Real no Sla-Mori e do terror gerado pelos guardas mortos-vivos deixados
para vigiar eternamente o rei morto, Kith-Kanan. Neste templo, no entan-
to, ela sentia apenas tristeza e perda, abrandadas pelo conhecimento de uma
grande vitória... uma batalha vencida a um custo terrível, mas trazendo
consigo a paz eterna e o doce descanso.
Laurana sentiu seu fardo aliviar, seu coração ficou mais leve. Sua pró-
pria tristeza e perda pareciam menores aqui. Ela se lembrou de suas próprias

237
vitórias e triunfos. Um por um, todos os companheiros entraram na tumba.
As portas de bronze se fecharam atrás deles, os deixando na escuridão total.
Então, a luz se acendeu. Silvara segurava uma tocha na mão, aparente-
mente tirada da parede. Laurana se perguntou brevemente como conseguira
acendê-la. Mas a questão trivial deixou sua mente enquanto ela olhava ao
redor da tumba com admiração.
Estava vazia, exceto por um caixão esculpido em obsidiana que ficava
no centro da sala. Imagens esculpidas de cavaleiros sustentavam o esquife,
mas o corpo do cavaleiro que supostamente deveria ter descansado nele
desaparecera. Um escudo antigo estava na base e uma espada, semelhante
a de Sturm, estava perto do escudo. Os companheiros olhavam para esses
artefatos em silêncio. Falar parecia uma profanação à serenidade triste do
lugar e ninguém os tocou, nem mesmo Tasslehoff.
— Queria que Sturm estivesse aqui — murmurou Laurana, olhando
em volta, com lágrimas nos olhos. — Este deve ser o lugar de descanso de
Huma... mas...
Ela não conseguia explicar a sensação crescente de mal-estar que
tomava conta. Não era medo, era mais a sensação que sentiu ao entrar no
vale... uma sensação de urgência.
Silvara acendeu mais tochas ao longo da parede e os companheiros
passaram pelo esquife, olhando ao redor da tumba com curiosidade. Não
era grande. O esquife ficava no centro e bancos de pedra se alinhavam nas
paredes, supostamente para os presentes descansarem enquanto prestavam
seus respeitos. No final, havia um pequeno altar de pedra. Esculpidos em
sua superfície, estavam os símbolos das ordens dos Cavaleiros: a coroa, a
rosa, o martim-pescador. Pétalas de rosas e ervas secas estavam espalhadas
no topo, sua fragrância ainda se prolongando docemente no ar depois de
centenas de anos. Abaixo do altar, afundada no chão de pedra, havia uma
grande placa de ferro.
Quando Laurana olhou curiosamente para esta placa, Theros se apro-
ximou para ficar ao seu lado.
— O que você acha que é isso? — ela perguntou. — Um poço?
— Vamos ver — resmungou o ferreiro. Curvando-se, ele levantou o
anel em cima da placa com sua mão prateada enorme e puxou. No começo,
nada aconteceu. Theros colocou as duas mãos no anel e levantou com todas
as suas forças. A placa de ferro soltou um grande chiado e deslizou pelo
chão com um som de raspagem agudo que os fez rangerem os dentes.

238
— O que você fez? — Silvara, que estava de pé perto do túmulo, o
observando com tristeza, se virou para os encarar.
Theros levantou em espanto com o som estridente de sua voz. Laura-
na recuou involuntariamente do buraco aberto no chão. Ambos olharam
para Silvara.
— Não cheguem perto disso! — Silvara avisou, sua voz tremendo. —
Se afastem! É perigoso!
— Como sabe disso? — Laurana disse friamente, se recuperando. —
Ninguém vem aqui há centenas de anos. Ou vem?
— Não! — Silvara disse mordendo o lábio. — E-eu conheço pelas...
lendas do meu povo...
Ignorando a garota, Laurana foi até a beira do buraco e olhou para
dentro. Estava escuro. Mesmo segurando a tocha que Flint trouxe da pare-
de, ela não conseguia ver nada lá embaixo. Um odor leve de mofo saía do
buraco, mas isso foi tudo.
— Não acho que seja um poço — disse Tas, se aproximando para ver.
— Fiquem longe disso! Por favor! — Silvara implorou.
— Ela está certa, ladrãozinho! — Theros pegou Tas e o afastou do
buraco. — Se você cair lá, pode parar do outro lado do mundo.
— Sério? — perguntou Tasslehoff, sem fôlego. — Eu realmente
cairia do outro lado, Theros? Me pergunto, como seria? Haveria pessoas
lá? Como nós?
— Não como kenders, espero! — Flint resmungou. — Ou todos já
estariam mortos de idiotice. Além disso, todo mundo sabe que o mundo
repousa na Bigorna de Reorx. Aqueles que caem do outro lado ficam presos
entre seus golpes de martelo com o mundo ainda sendo forjado. Pessoas
do outro lado, francamente! — Ele bufou enquanto observava Theros, sem
sucesso, tentar colocar a placa de volta. Tasslehoff ainda estava olhando para
ele com curiosidade. Por fim, Theros foi forçado a desistir, mas olhou para
o kender até Tas soltar um suspiro e se afastar para o esquife de pedra, para
ver com olhos ansiosos o escudo e a espada.
Flint puxou a manga de Laurana.
— O que foi? — ela perguntou distraidamente, seus pensamentos em
outro lugar.
— Eu conheço trabalhos em pedra — o anão disse baixinho — e há
algo de estranho nisso tudo. — Ele fez uma pausa, olhando para ver se

239
Laurana poderia rir. Mas ela estava prestando muita atenção. — A tumba e
as estátuas construídas do lado de fora são obra dos homens. São antigas...
— Antigas o suficiente para serem a tumba de Huma? — Laurana
interrompeu.
— Cada uma delas. — O anão assentiu enfaticamente. — Mas a gran-
de fera lá fora — apontou na direção do enorme dragão de pedra — nunca
foi construído pelas mãos dos homens, elfos ou anões.
Laurana piscou, sem entender.
— E ainda é mais velha — disse o anão, sua voz ficando rouca. — Tão
velha que deixa isso tudo — ele acenou com a mão para tumba — moderno.
Laurana começou a entender. Vendo seus olhos se arregalarem, Flint
balançou a cabeça lenta e solenemente.
— Nenhuma mão de seres que caminham sobre Krynn com duas
pernas esculpiu a lateral daquele penhasco — ele disse.
— Deve ter sido uma criatura com força incrível — Laurana murmurou.
— Uma criatura enorme...
— Com asas...
— Com asas — Laurana murmurou.
De repente, ela parou de falar, seu sangue gelou de medo quando
ouviu palavras sendo cantadas, palavras que reconheceu como a linguagem
estranha de magia.
— Não! — Virando-se, ela levantou a mão instintivamente para se
proteger do feitiço, sabendo que isso era fútil.
Silvara estava ao lado do altar, esmagando as pétalas de rosa na mão,
cantando baixinho.
Laurana lutou contra a sonolência encantada que se tomou conta
dela. Ela caiu de joelhos, se amaldiçoando por ser tola, segurando no banco
de pedra em busca de apoio. Mas isso não adiantou. Erguendo os olhos
vidrados pelo sono, viu Theros tombar e Gilthanas cair no chão. Ao lado
dela, o anão estava roncando mesmo antes de sua cabeça bater no banco.
Laurana ouviu um clangor, o som de um escudo batendo no chão,
então, o ar se encheu com a fragrância de rosas.

240
9
A surpreendente descoberta do kender.

asslehoff ouviu Silvara cantando. Reconhecendo as palavras de


uma magia, ele reagiu instintivamente, agarrou o escudo que
estava no esquife e puxou. O escudo pesado caiu em cima dele,
batendo no chão com um estrondo, achatando o kender. O escudo cobriu
Tas completamente.
Ele ficou deitado embaixo até ouvir Silvara terminar seu canto. Mesmo
assim, esperou alguns instantes para ver se iria se transformar em um sapo,
pegar fogo ou alguma coisa assim. Nada aconteceu... para sua decepção.
Ele não conseguia nem ouvir Silvara. Finalmente, deitado e cada vez mais
entediado na escuridão do chão de pedra fria, Tas se esgueirou por baixo do
escudo pesado com o silêncio de uma pena caindo.
Todos os seus amigos estavam dormindo! Então essa foi a magia que
ela lançou. Mas onde estava Silvara? Saiu para buscar um monstro horrível
para voltar e os devorar?
Com muita cautela, Tas levantou a cabeça e espiou por cima do
esquife. Para seu espanto, viu Silvara agachada no chão, perto da entrada
da tumba. Enquanto Tas observava, ela balançava para frente e para trás,
soltando pequenos sons gemidos.
— Como posso continuar com isso? — Tas a ouviu dizer para si
mesma. — Eu os trouxe aqui. Não é o suficiente? Não! — Ela balançou a
cabeça em aflição.
— Não, eu mandei o orbe embora. Não sabem como usá-lo. Preciso
quebrar o juramento. É como você disse, irmã... a escolha é minha. Mas é
difícil! Eu o amo...
Chorando, murmurando para si mesma como se estivesse possuída,
Silvara afundou o rosto nos joelhos. O kender de coração terno nunca
vira tal tristeza e desejava consolá-la. Então, percebeu que o que ela estava
falando não parecia bom. “A escolha é difícil, quebre o juramento...”
“Não”, Tas pensou, “é melhor eu encontrar uma saída antes que ela
perceba que sua magia não funcionou comigo.”
Mas Silvara bloqueava a entrada da tumba. Ele poderia tentar se
esgueirar... Tas sacudiu a cabeça. Muito arriscado.
O buraco! Ele se animou. Queria examiná-lo com mais cuidado de
qualquer maneira. Ele só esperava que a tampa ainda estivesse fora.
O kender foi na ponta dos pés ao redor do esquife até chegar ao altar.
Lá estava o buraco, ainda aberto. Theros estava deitado ao lado dele, dor-
mindo, a cabeça apoiada no braço de prata. Olhando de volta para Silvara,
Tas se esgueirou silenciosamente para a borda.
Certamente seria um lugar melhor para se esconder do que onde
estava agora. Não havia escadas, mas ele podia ver alças na parede. Um
kender hábil como ele não deveria ter problemas para descer. Talvez levasse
para fora. De repente, Tas ouviu um barulho atrás dele. Silvara suspirando
e se mexendo...
Sem outro pensamento, Tas se abaixou silenciosamente no buraco e
começou a descer. As paredes estavam escorregadias com umidade e musgo,
as alças estavam afastadas. “Construídas para humanos”, pensou irritado.
“Ninguém nunca considerava as pessoas pequenas!”
Ele estava tão preocupado que não percebeu as gemas até que estivesse
praticamente em cima delas.
— Pela Barba de Reorx! — ele praguejou. (Ele gostava dessa expres-
são, a tomando emprestado de Flint.) Seis lindas joias, cada uma tão grande

242
quanto uma mão, estavam espaçadas em um anel horizontal ao redor das
paredes do poço. Estavam cobertas de musgo, mas Tas podia ver de relance
como eram valiosas.
— Mas por que alguém colocaria joias tão maravilhosas aqui? — ele
perguntou em voz alta. — Aposto que foi algum ladrão. Se eu puder sol-
tá-las, vou devolvê-las ao seu dono legítimo. — Sua mão se fechou sobre
uma joia.
Uma tremenda rajada de vento encheu o poço, puxando o kender da
parede tão facilmente quanto um vendaval de inverno arranca uma folha de
uma árvore. Caindo, Tas olhou para trás, vendo a luz no topo do poço ficar
cada vez menor. Ele se perguntou brevemente quão grande era o Martelo
de Reorx e, então, parou de cair.
Por um momento, o vento o revirava. Então, mudou de direção, o
soprando de lado. “Eu não vou para o outro lado do mundo no fim das
contas”, ele pensou triste. Suspirando, navegou por outro túnel. Então, de
repente, sentiu que começava a subir! Um grande vento estava o jogando
poço acima! Foi uma sensação incomum, bastante estimulante. Instintiva-
mente, ele abriu os braços para ver se conseguia tocar nas laterais de onde
quer que estivesse. Ao estender os braços, notou que subia mais rápido,
carregado levemente para cima em correntes rápidas de ar.
“Talvez eu esteja morto”, Tas pensou. “Estou morto e agora sou mais
leve que o ar. Como posso saber?” Colocando os braços para baixo, ele
apalpou freneticamente suas bolsas. Ele não tinha certeza. O kender tinha
ideias muito vagas sobre a vida após a morte, mas tinha a sensação de que
não o deixariam levar suas coisas consigo. Não, tudo estava lá. Tas soltou
um suspiro de alívio que se transformou em aflição quando se descobriu
desacelerando e até começando a cair!
“O que?” Ele pensou descontroladamente, então percebeu que tinha
puxado os dois braços para perto de seu corpo. Rapidamente, esticou os
braços novamente e, de fato, começou a subir. Convencido de que não
estava morto, ele se entregou a desfrutar do voo.
Abanando as mãos, o kender rolou de costas no ar e olhou para cima,
para ver aonde estava indo.
Ah, havia uma luz muito acima dele, ficando cada vez mais brilhante.
Agora, ele podia ver que estava em um poço, mas era muito mais longo que
aquele em qual caíra.

243
— Espere até que Flint ouvir sobre isso! — disse desejosamente.
Então, teve um vislumbre de seis joias, como as que vira no outro poço. O
vento rápido começou a diminuir.
Assim que decidiu que poderia realmente gostar de voar como um
modo de vida, Tas chegou ao topo do poço. As correntes de ar o seguravam
no nível do chão de pedra de uma câmara iluminada por tochas. Tas esperou
um momento para ver se poderia começar a voar de novo e até balançou
um pouco os braços para ajudar, mas nada aconteceu. Aparentemente, seu
voo havia terminado.
“Eu poderia explorar enquanto estou aqui em cima”, o kender pensou
com um suspiro. Saltando das correntes de ar, ele pousou levemente no
chão de pedra, depois começou a olhar em volta.
Várias tochas ardiam nas paredes, iluminando a câmara com um
brilho branco radiante. Esta sala era certamente muito maior que a tumba!
Ele estava parado aos pés de uma escadaria grande e curva. Os ladrilhos
imensos de cada degrau, assim como todas as outras pedras da sala, eram
de um branco puro, muito diferente da pedra escura da tumba. A escadaria
se curvava para a direita, conduzindo ao que parecia ser outro nível da
câmara. Acima dele, podia ver um corrimão com vista para as escadas,
aparentemente havia algum tipo de varanda lá em cima. Quase quebrando
o pescoço tentando ver, Tas pensou que poderia distinguir os redemoinhos
e manchas de cores brilhantes cintilando à luz de tochas da parede oposta.
“Quem acendeu as tochas?”, ele se perguntou. “Que lugar é este? Parte
da tumba de Huma? Ou eu voei para a Montanha do Dragão? Quem mora
aqui? Essas tochas não se acenderam sozinhas!”
Naquele pensamento, só por segurança, Tas enfiou a mão na túnica e
tirou sua pequena faca. Segurando-a na mão, ele subiu as grandes escadas e
saiu para a varanda. Era uma câmara enorme, mas podia ver pouco na luz
cintilante das tochas. Pilares gigantescos suportavam o teto maciço acima.
Outra escadaria grande subia deste nível da varanda para outro andar. Tas se
virou, se encostando no corrimão para olhar as paredes atrás de si.
— Pela barba de Reorx! — ele disse baixinho. — Olha só!
Era uma pintura. Um mural, para ser mais preciso. Começava do
outro lado, onde Tas estava, na cabeceira da escada, e se estendia ao redor da
sacada, metro a metro de cor brilhante. O kender não era muito interessado
em obras de arte, mas não conseguia se lembrar de ter visto algo tão bonito.

244
Ou conseguia? De alguma forma, parecia familiar. Sim, quanto mais ele
olhava, mais pensava que o vira antes.
Tas estudou a pintura, tentando lembrar. Na parede em frente, havia
uma cena horrível de dragões de todas as cores e descrições descendo sobre a
terra. Cidades ardiam em chamas, como Tarsis, construções desmoronadas,
pessoas fugindo. Era uma visão terrível e o kender passou apressado por ela.
Ele continuou caminhando ao longo da varanda, seus olhos na pintu-
ra. Ele acabara de chegar à parte central do mural quando engasgou.
— A Montanha do Dragão! É isso... lá, na parede! — sussurrou para
si mesmo e ficou surpreso ao ouvir seu sussurro ecoando de volta para ele.
Olhando ao redor apressadamente, se aproximou da outra extremidade
da sacada. Inclinando-se sobre o parapeito, ele olhou a pintura de perto.
De fato, mostrava a Montanha do Dragão, onde ele estava agora. Só que
mostrava uma vista da montanha como se alguma espada gigante a tivesse
cortado ao meio, na vertical!
— Que maravilha! — O kender que amava mapas suspirou. — Claro
— disse ele. — É um mapa! E é onde estou! Eu subi pela montanha. —
Ele olhou ao redor da sala em uma compreensão repentina. — Estou na
garganta do dragão. É por isso que esta sala tem uma forma tão engraçada.
— Ele voltou para o mapa. — Aqui está a pintura na parede e a varanda
onde estou de pé. E os pilares... — Ele se virou completamente. — Sim,
lá está a grande escadaria. — Se virou de volta. — Isso leva à cabeça! E foi
assim que eu subi. Algum tipo de câmara de vento. Mas quem construiu
isso... e por quê?
Tasslehoff continuou andando pela sacada, esperando encontrar uma
pista na pintura. No lado direito da galeria, outra batalha era retratada.
Mas esta não o encheu de horror. Havia dragões vermelhos, pretos, azuis
e brancos, soprando fogo e gelo, mas, lutando contra eles, havia outros
dragões, dragões de prata e ouro...
— Eu me lembro! — gritou Tasslehoff.
O kender começou a pular, gritando como uma coisa selvagem. — Eu
me lembro! Me lembro! Foi em Pax Tharkas. Fizban me mostrou. Existem
dragões bons no mundo. Eles nos ajudarão a lutar contra os malignos!
Apenas temos que encontrá-los. E existem as lanças de dragão!
— Caramba! — rosnou uma voz abaixo do kender. — A gente não
pode nem dormir um pouco? O que é toda essa agitação? Você está fazendo
barulho o suficiente para acordar os mortos!

245
Tasslehoff girou de susto, com a faca na mão. Poderia jurar que
estava sozinho aqui em cima. Mas não. Levantando-se de um banco de
pedra que ficava em uma área sombria, fora da luz das tochas, havia uma
figura escura de manto. Ele se sacudiu, espreguiçou, depois levantou
e começou a subir as escadas, se movendo rapidamente em direção ao
kender. Tas não poderia ter fugido, mesmo que quisesse, e o kender se
viu intensamente curioso sobre quem estava ali em cima. Abriu a boca
para perguntar a essa criatura estranha o que ela era e por que escolhera a
garganta de uma Montanha do Dragão para tirar uma soneca, quando a
figura emergiu para a luz. Era um velho. Era...
A faca de Tasslehoff caiu no chão. O kender cambaleou de costas até o
corrimão. Pela primeira, última e única vez em sua vida, Tasslehoff Burrfoot
ficou sem palavras.
— F-F-F ... — Nada saiu de sua garganta, apenas um grasnido.
— Bem, o que foi? Fale! — retrucou o velho, parado sobre ele. —
Você estava fazendo bastante barulho há um minuto. Qual o problema?
Algo não caiu muito bem?
— F-F-F... — Gaguejou Tas fracamente.
— Ah, pobrezinho. Com problema, hein? Impedimento de fala. Tris-
te, triste. Aqui... — O velho se atrapalhou em suas vestes, abrindo várias
bolsas enquanto Tasslehoff estava tremendo diante dele.
— Pronto — disse a figura. Tirando uma moeda, a colocou na palma
da mão do kender e fechou os dedos pequenos e sem vida sobre ela. —
Agora, vá em frente. Procure um clérigo...
— Fizban! — Tasslehoff finalmente conseguiu respirar.
— Onde? — O velho se virou. Erguendo seu cajado, olhou com medo
para a escuridão. Então, pareceu se lembrar de algo. Virando de volta, ele
perguntou a Tas em um sussurro alto: — Digo, você tem certeza que viu
esse Fizban? Ele não morreu?
— Eu sei que achava que sim... — Tas disse, de forma miserável.
— Então, ele não deveria estar vagando por aí, assustando as pessoas!
— o velho declarou com raiva. — Vou ter uma conversa com ele. Ei, você!
— ele começou a gritar.
Tas estendeu a mão trêmula e puxou o manto do velho. — Eu... eu
não tenho certeza, mas acho que você é Fizban.
— Não... sério? — o velho disse surpreso. — Estava me sentindo um
pouco para baixo esta manhã, mas não tinha ideia de que estava tão ruim

246
assim. — Ele encolheu os ombros. — Então, estou morto. Já era. Fui para
a terra dos pés juntos. Dessa para a melhor. — Ele cambaleou até um banco
e se sentou. — Foi um bom funeral? — ele perguntou. — Muitas pessoas
vieram? Houve uma saudação de vinte e um tiros de fuzil? Sempre quis uma
saudação de vinte e um tiros.
— Eu... ahm... — gaguejou Tas, imaginando o que seria um fuzil. —
Bem, foi... mais uma... cerimônia memorial, podemos dizer. Sabe, nós...
ahm... não conseguimos encontrar os seus... como vou dizer isso?
— Restos? — o velho disse prestativo.
— Ahm... restos. — Tas ficou vermelho. — Nós procuramos, mas
havia todas essas penas suaves de galinha... e um elfo negro... e Tanis disse
que tivemos sorte de termos escapado vivos...
— Penas de galinha! — disse o velho, indignado. — O que as penas
de galinha têm a ver com o meu funeral?
— Nós... ahm... você, eu e Sestun. Você se lembra de Sestun, o anão
tolo? Bem, havia aquela corrente grande, enorme em Pax Tharkas. E aquele
dragão vermelho grande. Estávamos pendurados na corrente e o dragão
cuspiu fogo e a corrente quebrou e caímos — Tas estava se aquecendo para
sua história, que se tornara uma das suas favoritas — e eu sabia que estava
tudo acabado. Nós íamos morrer. Deve ter sido uma queda de vinte metros
— (isso aumentava a cada vez que Tas contava a história) — e você estava
abaixo de mim e eu ouvi você lançando uma magia...
— Sim, eu sou um bom mágico, sabe.
— Ahm, certo — Tas gaguejou, depois continuou apressadamente. —
Você entoou esse feitiço, queda suave ou algo assim. De qualquer forma,
você só disse a palavra “suave” e, de repente — o kender abriu as mãos, um
olhar de temor em seu rosto ao lembrar o que aconteceu — havia milhões,
milhões e milhões de penas suaves de galinha...
— Então, o que aconteceu depois? — o velho exigiu, cutucando Tas.
— Ah, ahm, é aí que fica um pouco... confuso — disse Tas. — Eu
ouvi um grito e um baque. Bem, era mais como uma batida molhada, na
verdade, e imaginei que a batida era você.
— Eu? — o velho gritou. — Batida! — Ele olhou para o kender,
furioso. — Eu nunca sofri uma batida na minha vida!
— Então, Sestun e eu caímos nas penas de galinha, junto com a
corrente. Eu procurei... de verdade. — Os olhos de Tas se encheram de
lágrimas quando se lembrou de sua busca pelo corpo do velho, com o co-

247
ração partido. — Mas havia muitas penas... e essa comoção terrível do lado
de fora, onde os dragões estavam lutando. Sestun e eu chegamos à porta
e, então, encontramos Tanis e eu queria voltar para procurá-lo um pouco
mais, mas Tanis disse que não...
— Então, você me deixou enterrado sob um monte de penas de galinha?
— Foi uma cerimônia memorial muito legal — Tas vacilou. — Lua
Dourada falou, assim como Elistan. Você não conheceu Elistan, mas se
lembra da Lua Dourada, não lembra? E Tanis?
— Lua Dourada... — o velho murmurou. — Ah sim. Bela menina.
Um cara grande e sério apaixonado por ela.
— Vento Ligeiro! — Tas disse animado. — E Raistlin?
— Rapaz magro. Um mago muito bom — disse o velho solenemente
— mas nunca será nada se não fizer algo sobre aquela tosse.
— Você é Fizban! — Tas disse. Pulando de alegria, ele jogou os braços
ao redor do velho e o abraçou com força.
— Calma, calma — disse Fizban, envergonhado, dando um tapinha
nas costas de Tas. — Isso é o bastante. Você vai amassar meu manto. Não
fungue. Não posso tolerar. Precisa de um lenço?
— Não, eu tenho um...
— Ah, agora sim. Oh, digo, acredito que esse lenço é meu. Essas são
as minhas iniciais.
— É? Você deve ter deixado cair.
— Eu me lembro de você agora! — o velho disse em voz alta. —
Você é o Tassle... Tassle-alguma-coisa.
— Tasslehoff. Tasslehoff Burrfoot — respondeu o kender.
— E meu nome é... — o velho parou. — Qual era o nome que você
disse?
— Fizban.
— Fizban. Sim... — O velho ponderou por um momento, depois
sacudiu a cabeça. — Tinha certeza de que ele estava morto...

248
10
O segredo de Silvara.

omo você sobreviveu? — Tas perguntou, puxando algumas frutas


secas de uma bolsa para compartilhar com Fizban.
O velho parecia melancólico. — Realmente não achei que so-
brevivi — disse se desculpando. — Receio não ter a menor ideia. Mas,
pensando bem, não consegui comer frango desde então. Agora — ele olhou
astutamente para o kender — o que você está fazendo aqui?
— Eu vim com alguns dos meus amigos. O resto está vagando por
algum lugar, se ainda estiverem vivos. — Ele fungou novamente.
— Eles estão. Não se preocupe. — Fizban deu um tapinha nas costas
dele.
— Você acha? — Tas se animou. — Bem, de qualquer forma, estamos
aqui com Silvara...
— Silvara! — O velho se levantou, os cabelos brancos esvoaçando
para todos os lados. O olhar vago desapareceu de seu rosto.
— Onde ela está? — o velho exigiu. — E seus amigos, onde eles estão?
— L-lá embaixo — gaguejou Tas, assustado com a transformação do
velho. — Silvara lançou uma magia sobre eles!
— Ah, ela lançou, não é? — o velho murmurou. — Daremos um
jeito nisso. Vamos. — Ele começou a caminhar pela varanda, andando tão
rápido que Tas precisou correr para acompanhar.
— Onde você disse que eles estavam? — perguntou o velho, parando
perto da escada. — Seja específico — ele retrucou.
— Ahm... a tumba! A Tumba de Huma! Acho que é a Tumba de
Huma. Foi o que Silvara disse.
— Hunf! Bem, pelo menos não precisamos andar.
Descendo as escadas até o buraco no chão por onde Tas subira, o velho
pisou no seu o centro. Engolindo o seco, Tas se juntou a ele, segurando os
mantos do velho. Eles ficaram suspensos sobre nada além da escuridão,
sentindo o ar fresco flutuando ao seu redor.
— Para baixo — declarou o velho.
Começaram a subir, flutuando em direção ao teto da galeria superior.
Tas sentiu seu cabelo arrepiar.
— Eu disse para baixo! — o velho gritou furiosamente, acenando seu
cajado ameaçadoramente para o buraco abaixo dele.
Houve um som estridente e os dois foram sugados para o buraco tão
rapidamente que o chapéu de Fizban voou. “Igual ao chapéu que ele perdeu
no covil do dragão vermelho”, pensou Tas. Era dobrado e aparentemente
possuía uma mente própria. Fizban tentou pegá-lo avidamente, mas não
conseguiu. No entanto, o chapéu flutuou atrás deles, alguns metros acima.
Tasslehoff olhou para baixo, fascinado, e começou a fazer uma per-
gunta, mas Fizban o calou. Agarrando seu cajado, o velho mago começou a
sussurrar para si mesmo, fazendo um sinal estranho no ar.

Laurana abriu os olhos. Estava deitada em um banco frio de pedra,


olhando para o teto preto e brilhante. Ela não tinha ideia de onde estava.
Então, a memória retornou. Silvara!
Sentando-se rapidamente, lançou um olhar ao redor da sala. Flint
estava gemendo e esfregando o pescoço. Theros piscou e olhou em volta,
intrigado. Já de pé, Gilthanas estava parado no final da tumba, observando
algo perto da porta. Quando Laurana se aproximou, ele se virou. Colocan-
do o dedo nos lábios, acenou com a cabeça na direção da porta.

250
Silvara estava sentada, com a cabeça nos braços, soluçando amargamente.
Laurana hesitou, as palavras furiosas morrendo em seus lábios. Cer-
tamente, não era o que ela esperava. “O que esperava?”, ela se perguntou.
“Nunca mais acordar, provavelmente. Tinha que haver uma explicação”.
Ela começou a avançar.
— Silvara... — ela começou.
A garota deu um salto, o rosto branco de medo manchado de lágrimas.
— O que vocês estão fazendo acordados? Como se libertaram da
minha magia? — ela arfou, caindo contra a parede.
— Não importa! — Laurana respondeu, embora não tivesse ideia de
como despertara. — Conte para a gente...
— Fui eu quem fez! — anunciou uma voz profunda. Laurana e o resto
se viraram para ver um velho de barba branca, vestindo túnicas cor de rato,
subir solenemente pelo buraco no chão.
— Fizban! — sussurrou Laurana, incrédula.
Houve um barulho e um baque. Flint tombou, desmaiado. Ninguém
olhou para ele. Simplesmente encararam o velho mago com espanto. Então,
com um grito, Silvara se jogou no chão de pedra, tremendo e choramingando.
Ignorando os olhares dos outros, Fizban atravessou o chão da tumba,
passou pelo esquife, passou pelo anão desmaiado, para chegar à Silvara.
Atrás dele, Tasslehoff saiu do buraco.
— Olha quem eu encontrei — disse o kender com orgulho. — Fiz-
ban! E eu voei, Laurana. Pulei no buraco e voei direto pelo ar. E há uma
pintura lá em cima com dragões dourados, e então Fizban se sentou e gritou
comigo e... devo admitir que me senti muito estranho lá por um tempo.
Minha voz sumiu e... o que aconteceu com Flint?
— Silêncio, Tas — Laurana disse fracamente, com os olhos em Fizban.
Ajoelhando-se, ele sacudiu a elfa selvagem.
— Silvara, o que você fez? — Fizban perguntou severamente. Laurana
pensou então que, talvez, tivesse cometido um erro. Este deve ser outro velho
vestido com as roupas do mago ancião. Esse homem poderoso, de rosto
severo, certamente não era o velho mago confuso de quem se lembrava. Mas
não, ela reconheceria esse rosto em qualquer lugar, sem falar do chapéu!
Observando os dois, Silvara e Fizban, diante dela, Laurana sentiu um
poder grande e impressionante, como um trovão silencioso surgindo entre
os dois. Teve uma vontade terrível de fugir deste lugar e continuar correndo
até cair de exaustão. Mas ela não podia se mexer. Só conseguia observar.

251
— O que você fez, Silvara? — Fizban exigiu. — Você quebrou seu
juramento!
— Não! — A garota gemeu, se contorcendo no chão aos pés do velho
mago. — Não, não quebrei. Ainda não...
— Você andou pelo mundo em outro corpo, se intrometendo nos
assuntos dos homens. Isso por si só seria suficiente. Mas você os trouxe aqui!
O rosto manchado de lágrimas de Silvara estava contorcido de angústia.
Laurana sentiu suas próprias lágrimas deslizarem sem controle pelo rosto.
— Está certo então! — Silvara gritou, desafiadora. — Eu quebrei meu
juramento ou pelo menos pretendia. Eu os trouxe aqui. Eu precisei! Vi a
miséria e o sofrimento. Além disso... — a voz dela diminuiu, os olhos dela
foram para longe — eles tinham um orbe...
— Sim — disse Fizban. — Um orbe de dragão. Retirado do Castelo
da Muralha de Gelo. O que fez com ele, Silvara? Onde está agora?
— O mandei embora... — Silvara disse, quase de forma inaudível.
Fizban pareceu envelhecer. Seu rosto ficou cansado. Suspirando pro-
fundamente, ele se apoiou pesadamente em seu cajado. — Para onde você
o enviou, Silvara? Onde está o orbe do dragão agora?
— St-Sturm está com ele — interrompeu Laurana, temerosa. — Ele o
levou para Sancrist. O que isto significa? Sturm está em perigo?
— Quem? — Fizban olhou por cima do ombro. — Oh, olá, minha
querida. — Ele sorriu para a elfa. — Que bom vê-la. Como está seu pai?
— Meu pai... — Laurana balançou a cabeça, confusa. — Olha, velho,
esqueça o meu pai! Quem...
— E seu irmão. — Fizban estendeu a mão para Gilthanas. — Bom
vê-lo, filho. E você, senhor. — Ele se curvou para um Theros atônito. —
Braço de prata? Minha nossa — ele lançou um olhar para Silvara — que
coincidência. Theros Dobraferro, não é? Ouvi muito sobre você. E meu
nome é... O velho mago parou, com a testa franzida.
— Meu nome é ...
— Fizban — Tasslehoff falou, prestativo.
— Fizban. — O velho assentiu, sorrindo.
Laurana pensou ter visto o velho mago lançar um olhar de advertência
para Silvara. A menina abaixou a cabeça como se reconhecesse algum sinal
silencioso e secreto passado entre eles.
Mas antes que Laurana pudesse organizar seus pensamentos, Fizban
se voltou para ela novamente. — E agora, Laurana, você se pergunta quem

252
é Silvara? Cabe a Silvara contar. Pois devo deixar vocês agora. Tenho uma
longa jornada pela frente.
— Devo dizer a eles? — Silvara perguntou baixinho. Ela ainda estava
de joelhos e, enquanto falava, seus olhos foram para Gilthanas. Fizban
seguiu seu olhar. Vendo o rosto atormentado do elfo, seu próprio rosto se
suavizou. Então, ele balançou a cabeça tristemente.
Silvara levantou as mãos para ele em um gesto suplicante. Fizban foi
até ela. Tomando suas mãos, ele a levantou. Ela jogou os braços em volta
dele, que a abraçou.
— Não, Silvara — ele disse, sua voz calma e gentil — você não precisa
contar a eles. A escolha é sua, assim como foi da sua irmã. Você pode fazer
que eles esqueçam que já estiveram aqui.
De repente, a única cor que restava no rosto de Silvara era o azul
profundo de seus olhos. — Mas isso significará...
— Sim, Silvara — ele disse. — É com você. — Ele beijou a garota na
testa. — Adeus, Silvara.
Virando, ele olhou para o resto. — Adeus, adeus. Foi ótimo ver vocês
novamente. Estou um pouco irritado com as penas da galinha, mas... sem
ressentimentos. — Ele esperou impaciente por um minuto, olhando para
Tasslehoff. — Você vem? Eu não tenho a noite toda!
— Ir? Com você? — Tas gritou, deixando a cabeça de Flint cair de
volta no chão de pedra com um baque. O kender se levantou. — Claro,
me deixa pegar minha mochila... — Então ele parou, olhando para o anão
inconsciente. — Flint...
— Ele vai ficar bem — prometeu Fizban. — Você não ficará longe
dos seus amigos por muito tempo. Vamos vê-los — ele franziu a testa,
murmurando para si mesmo – em sete dias, mais três, vai um, quanto é
sete vezes quatro? Oh, bem, perto da Época da Fome. É quando realizarão
a reunião do Conselho. Agora venha. Tenho trabalho a fazer. Seus amigos
estão em boas mãos. Silvara cuidará deles, não é, minha querida? — Ele se
virou para a elfa mais selvagem.
— Eu direi a eles — ela prometeu tristemente, os olhos em Gilthanas.
O elfo estava olhando para ela e para Fizban, o rosto pálido, o medo
se espalhando por sua alma.
Silvara suspirou.
— Você está certo. Eu quebrei o juramento há muito tempo. Preciso
terminar o que me propus a fazer.

253
— Como achar melhor. — Fizban colocou a mão na cabeça de Silvara,
acariciando seus cabelos prateados. Então, ele se virou.
— Eu serei punida? — ela perguntou, assim que o velho entrou
nas sombras.
Fizban parou. Balançando a cabeça, ele olhou por cima do ombro. —
Alguns diriam que você está sendo punida agora, Silvara — disse em voz
baixa. — Mas o que você faz, faz por amor. Assim como a escolha foi sua,
também será seu castigo.
O velho entrou na escuridão. Tasslehoff correu atrás dele, suas bolsas
balançando. — Adeus, Laurana! Adeus, Theros! Cuidem de Flint! — No
silêncio que se seguiu, Laurana pôde ouvir a voz do velho.
— Qual era o nome mesmo? Fizbut, Forro...
— Fizban! — disse Tas, estridente.
— Fizban... Fizban... — murmurou o velho.

Todos os olhos se voltaram para Silvara.


Ela estava calma agora, em paz consigo mesma. Embora seu rosto es-
tivesse cheio de tristeza, não era a tristeza atormentada e amarga que viram
antes. Essa era a tristeza da perda, a tristeza silenciosa e receptiva de alguém
que não tem nada para se arrepender. Silvara caminhou em direção a Gil-
thanas. Ela segurou as mãos dele e olhou para seu rosto com tanto amor
que Gilthanas se sentiu abençoado, mesmo sabendo que ela se despediria.
— Estou perdendo você, Silvara — ele murmurou em um tom que-
brado. — Vejo nos seus olhos. Mas não sei por que! Você me ama...
— Eu amo você, elfo — disse Silvara suavemente. — Eu te amei
quando o vi deitado, ferido na areia. Quando você olhou para mim e
sorriu, eu sabia que o destino que acontecera com minha irmã também
seria o meu. — Ela suspirou. — Mas é um risco que assumimos quando
escolhemos esta forma. Pois, apesar de trazermos nossa força para ela, a
forma inflige suas fraquezas sobre nós. Mas é uma fraqueza? Amar...
— Silvara, eu não entendo! — Gilthanas gritou.
— Você vai — ela prometeu, sua voz suave. A cabeça dela se curvou.
Gilthanas a pegou nos braços, a segurando. Ela enterrou o rosto no seu
peito. Ele beijou seus lindos cabelos prateados e a abraçou com um soluço.
Laurana se virou. Essa dor parecia muito sagrada para seus olhos se in-
trometerem. Engolindo suas próprias lágrimas, ela olhou em volta, depois se
lembrou do anão. Pegou um pouco de água do cantil e jogou no rosto de Flint.

254
Os olhos dele tremularam, depois se abriram. O anão olhou para
Laurana por um momento e estendeu a mão trêmula.
— Fizban! — o anão sussurrou com voz rouca.
— Eu sei — disse Laurana, imaginando como o anão receberia a
notícia sobre a partida de Tas.
— Fizban está morto! — Flint ofegou. — Tas disse que estava! Em
uma pilha de penas de galinha! — O anão se esforçou para sentar. — Onde
está aquele kender com cérebro de minhoca?
— Ele foi embora, Flint — disse Laurana. — Foi com Fizban.
— Foi? — O anão olhou em volta, inexpressivo. — Você o deixou ir?
Com aquele velho?
— Temo que sim...
— Você o deixou ir com um velho morto?
— Eu realmente não tinha muita escolha. — Laurana sorriu. — Foi
uma decisão dele. Ele ficará bem...
— Para onde eles foram? — Flint se levantou e colocou a mochila
no ombro.
— Você não pode ir atrás deles — disse Laurana. — Por favor, Flint.
— Ela colocou o braço em volta dos ombros do anão. — Eu preciso de
você. Você é o amigo mais antigo de Tanis, meu mentor...
— Mas ele foi embora sem mim — disse Flint, reclamando. — Como
ele pôde ir embora? Eu não o vi partir.
— Você desmaiou...
— Eu não fiz isso! — o anão rugiu.
— Você... você estava apagado — gaguejou Laurana.
— Eu nunca desmaio! — afirmou o anão indignado. — Deve ter sido
uma recaída daquela doença mortal que peguei a bordo daquele barco... —
Flint soltou a mochila e caiu ao lado dela. — Kender idiota. Fugindo com
um velho morto.
Theros veio até Laurana, a puxando para um lado. — Quem era aquele
velho? — ele perguntou, curioso.
— É uma longa história. — Laurana suspirou. — E, de qualquer
forma, não tenho certeza se poderia responder a essa pergunta.
— Ele parece familiar. — Theros franziu a testa. — Mas não consigo
me lembrar de onde o vi antes, embora ele me lembre de Consolação e da
Hospedaria do Lar Derradeiro. E ele me conhecia... — O ferreiro olhou
para a mão prateada. — Senti um choque passar por mim quando ele me

255
encarou, como um raio atingindo uma árvore. — O grande ferreiro estre-
meceu, depois olhou para Silvara e Gilthanas. — E quanto a isso?
— Acho que finalmente vamos descobrir — disse Laurana.
— Você estava certa — disse Theros. — Você não confiava nela...
— Mas não pelas razões certas — Laurana admitiu, culpada.
Com um pequeno suspiro, Silvara se afastou do abraço de Gilthanas.
O elfo a deixou ir, relutante.
— Gilthanas — ela disse, respirando estremecida — tire uma tocha da
parede e a segure diante de mim.
Gilthanas hesitou. Então, quase com raiva, seguiu suas instruções.
— Segure a tocha lá... — ela instruiu, guiando a mão dele para que
a luz brilhasse bem diante dela. — Agora... olhe para a minha sombra, na
parede atrás de mim — disse em tom trêmulo.
A tumba estava silenciosa, o ruído da tocha o único som. A sombra de
Silvara ganhou vida no muro frio de pedra atrás dela. Os companheiros a
encararam e, por um instante, nenhum deles conseguiu dizer uma palavra.
A sombra que Silvara lançava na parede não era a sombra de uma elfa.
Era a sombra de um dragão.
— Você é uma dragoa! — Laurana disse, em descrença. Ela colocou a
mão na espada, mas Theros a deteve.
— Não! — ele disse de repente. — Eu lembro. Aquele velho... — Ele
olhou para o braço. — Agora eu lembro. Ele costumava ir na Hospedaria
do Lar Derradeiro. Estava vestido de maneira diferente. Não era um mago,
mas era ele! Eu juro! Ele contava histórias para as crianças. Histórias sobre
dragões bons. Dragões de ouro e...
— Dragões de prata — disse Silvara, olhando para Theros. — Eu sou
uma dragoa de prata. Minha irmã era a dragoa de prata que amava Huma
e travou a grande batalha final com ele...
— Não! — Gilthanas jogou a tocha no chão. Ela ficou cintilando
por um momento a seus pés, depois ele pisou com raiva, apagando a luz.
O observando com olhos tristes, Silvara estendeu a mão para confortá-lo.
Gilthanas se encolheu com seu toque, a encarando horrorizado.
Silvara abaixou a mão lentamente. Suspirando suavemente, ela assentiu.
— Eu entendo — ela murmurou. — Me desculpe.
Gilthanas começou a tremer, depois se curvou em agonia. Colocando
seus braços fortes ao redor dele, Theros levou Gilthanas a um banco e o
cobriu com sua capa.

256
— Eu vou ficar bem — murmurou Gilthanas. — Apenas me deixem
em paz, me deixem pensar. Isso é loucura! É tudo um pesadelo. Uma dra-
goa! — Ele fechou os olhos com força, como se pudesse apagar a visão deles
para sempre. — Uma dragoa... — ele sussurrou, arruinado. Theros deu um
tapinha gentil nele, depois voltou para os outros.
— Onde estão os demais dragões bons? — Theros perguntou. — O
velho disse que havia muitos. Dragões de prata, dragões de ouro...
— Existem muitos de nós — respondeu Silvara, relutante.
— Como o dragão de prata que vimos na Muralha de Gelo! — Lau-
rana disse. — Era um dragão bom. Se houver muitos de vocês, se reúnam!
Nos ajudem a combater os dragões do mal!
— Não! — Silvara gritou ferozmente. Seus olhos azuis arderam e
Laurana recuou um passo diante da sua raiva.
— Por que não?
— Não posso contar. — As mãos de Silvara se apertaram nervosamente.
— Tem alguma relação com esse juramento! — Laurana persistiu.
— Não é? O juramento que você quebrou. E a punição sobre a qual
perguntou a Fizban...
— Eu não posso contar! — Silvara falou com uma voz baixa e apaixo-
nada. — O que eu fiz já é ruim o suficiente. Mas eu precisava fazer alguma
coisa! Não podia mais viver neste mundo e ver o sofrimento das pessoas
inocentes! Pensei que talvez pudesse ajudar, então assumi a forma élfica e fiz
o que pude. Trabalhei muito, tentando fazer com que os elfos se juntassem.
Eu os mantive longe da guerra, mas as coisas estavam piorando. Então, você
veio e vi que estávamos em grande perigo, maior do que qualquer um de
nós jamais imaginou. Já que você trouxe... — a voz dela falhou.
— O orbe do dragão! — Laurana disse de repente.
— Sim. — Os punhos de Silvara cerraram em angústia. — Eu sabia
que precisava tomar uma decisão. Você tinha o orbe, mas também a lança.
A lança e o orbe vindo até mim! Ambos, juntos! Era um sinal, pensei,
mas não sabia o que fazer. Decidi trazer o orbe até aqui e mantê-lo seguro
para sempre. Então, enquanto viajávamos, percebi que os cavaleiros nunca
permitiriam que ele permanecesse aqui. Haveria problemas. Então, quando
vi a chance, o mandei embora. — Ela encolheu os ombros. — Essa foi
aparentemente a decisão errada. Mas como eu saberia?
— Por quê? — Theros perguntou severamente. — O que o orbe faz?
Ele é maligno? Você mandou aqueles cavaleiros para a perdição?

257
— Grande mal — Silvara murmurou. — Grande bem. Quem pode
dizer? Eu mesma não entendo os orbes do dragão. Foram forjados há muito
tempo pelos magos mais poderosos.
— Mas o livro que Tas leu disse que poderiam ser usados para contro-
lar dragões! — Flint afirmou. — Ele leu com algum tipo de óculos. Óculos
da visão da verdade, como ele os chamou. Ele disse que não mentem...
— Não — disse Silvara com tristeza. — Isso é verdade. Tão verdade
que temo que seus amigos descubram isso, para seu arrependimento.
Os companheiros, com o medo se fechando ao redor deles, senta-
ram-se juntos em silêncio, quebrado apenas pelos soluços sufocantes de
Gilthanas. As tochas lançavam sombras se esquivando e dançando ao redor
da tumba silenciosa, como espíritos mortos-vivos. Laurana se lembrou de
Huma e do Dragão de Prata. Pensou naquela batalha final terrível... os céus
cheios de dragões, a terra em chamas e sangue.
— Por que você nos trouxe aqui, então? — Laurana perguntou a
Silvara calmamente. — Por que não deixar todos levarmos o orbe?
— Posso contar a eles? Tenho a força para isso? — Silvara sussurrou
para um espírito invisível.
Ela ficou em silêncio por um longo tempo, com o rosto inexpressivo,
as mãos torcendo-se no colo. Seus olhos se fecharam, sua cabeça se inclinou
e seus lábios se moveram. Ela cobriu o rosto com as mãos e ficou quieta.
Então, tremendo, tomou sua decisão.
Se levantando, Silvara caminhou até a mochila de Laurana. Ajoelhan-
do, ela desembrulhou lenta e cuidadosamente a haste de madeira quebrada
que os companheiros carregaram por uma distância tão longa e cansativa.
Silvara se levantou, seu rosto mais uma vez cheio de paz. Mas, agora, havia
também orgulho e força. Pela primeira vez, Laurana começou a acreditar
que essa garota era algo tão poderoso e magnífico quanto uma dragoa. Ca-
minhando orgulhosa, com os cabelos prateados brilhando à luz das tochas,
Silvara se aproximou de Theros Dobraferro.
— A Theros do Braço de Prata — ela disse — eu concedo o poder de
forjar a lança do dragão.

258
LIVRO TRÊS
1
O Mago Vermelho e Suas
Ilusões Maravilhosas!

ombras rastejaram pelas mesas empoeiradas da taverna o Porco e o


Apito. A brisa do mar na Baía de Balifor emitia um som estridente
quando soprava pelas janelas frontais mal ajustadas, aquele apito
que dava à hospedaria a última parte de seu nome. Qualquer palpite de como
a taverna conseguiu a primeira parte terminava ao avistar o estalajadeiro. Um
homem jovial e bondoso, William Aguadoce fora amaldiçoado no nascimen-
to (segundo a lenda da cidade) quando um porco errante derrubou seu berço
de bebê, assustando tanto o jovem William que a marca do porco ficou para
sempre impressa em seu rosto.
Contudo, esta semelhança infeliz certamente não prejudicou o tempe-
ramento de William. Marinheiro de profissão até se aposentar para cumprir
a ambição da sua vida: ter uma hospedaria. Não havia um homem mais
respeitado ou mais querido em Porto Balifor do que William Aguadoce.
Ninguém ria mais com piadas de porco do que William. Ele podia até gru-
nhir de maneira bastante realista e com frequência fazia imitações de porco
para divertir seus clientes. (Mas ninguém nunca, após a morte prematura
de Al Perna-de-Pau, chamava William pelo nome de “Porquinho”.)
Atualmente, William raramente grunhia para seus clientes. A atmosfe-
ra d'O Porco e o Apito era sombria e soturna. Os poucos clientes antigos que
vinham se sentavam amontoados, conversando em voz baixa. Pois Porto
Balifor era uma cidade ocupada... invadida pelos exércitos dos Senhores,
cujos navios navegaram recentemente para a Baía vomitando tropas dos
horrendos homens-dragões.
O povo de Porto Balifor, a maioria de humanos, sentia muita pena de
si. Não tinham conhecimento do que estava acontecendo no mundo exte-
rior, é claro, ou se considerariam com sorte. Nenhum dragão apareceu para
queimar sua cidade. Os draconianos geralmente deixavam os cidadãos em
paz. Os Senhores dos Dragões não estavam particularmente interessados na
parte oriental do continente de Ansalon. A terra era povoada de forma es-
parsa: algumas comunidades pobres e dispersas de humanos e Kendermore,
a terra natal dos kenders. Uma revoada de dragões poderia ter arrasado o
campo, mas os Senhores dos Dragões estavam concentrando sua força no
norte e no oeste. Enquanto os portos permanecessem abertos, os Senhores
não precisariam devastar as terras de Balifor e Goodlund.
Embora muitos clientes antigos não fossem ao Porco e o Apito, os
negócios haviam melhorado para William Aguadoce. As tropas draconianas
e goblins do Senhor eram bem pagas e sua única fraqueza era bebida forte.
Mas William não abrira sua taverna por dinheiro. Ele amava a companhia
de amigos velhos e novos. Não gostava da companhia das tropas do Senhor.
Quando eles chegavam, seus antigos clientes saíam. Portanto, William
prontamente colocou seus preços para os draconianos três vezes mais altos
do que em qualquer outra hospedaria da cidade. Também colocou água na
cerveja. Consequentemente, seu bar estava quase deserto, exceto por alguns
velhos amigos. Esse arranjo era adequado para William.
Ele estava conversando com alguns desses amigos, a maioria principal-
mente marinheiros, de pele marrom, desgastada pelo tempo e sem dentes,
na noite em que os estranhos entraram em sua taverna. William olhou
para eles desconfiado por um momento, assim como seus amigos. Mas,
vendo viajantes cansados da estrada e não os soldados do Senhor, ele os
cumprimentou cordialmente e mostrou a uma mesa no canto.

262
Todos os estranhos pediram cerveja, exceto por um homem de manto
vermelho que só pedia água quente. Então, depois de uma discussão mo-
derada centrada em uma bolsa de couro gasta e na quantidade de moedas
nela, pediram a William que trouxesse pão e queijo.
— Eles não são dessas partes — disse William a seus amigos em voz
baixa enquanto pegava a cerveja de um barril especial que mantinha em-
baixo do balcão (não do barril para draconianos). — E pobres como um
marinheiro depois de uma semana em terra, se tiver que adivinhar.
— Refugiados — disse seu amigo, os olhando de forma especulativa.
— Mas é um grupo estranho — acrescentou o outro marinheiro. —
O camarada de barba ruiva é um meio-elfo, se é que já vi um. E o grandão
tem armas suficientes para enfrentar todo o exército do Senhor.
— Aposto que ele também enfiou essa espada em alguns deles —
resmungou William. — Eles estão fugindo de algo, aposto. Veja como
aquele sujeito barbudo mantém os olhos na porta. Bem, não podemos
ajudá-los a combater o Senhor, mas vou ver se eles querem mais alguma
coisa. — E foi servi-los.
— Guardem seu dinheiro — disse William, rispidamente, colocando
não apenas pão e queijo, mas também uma bandeja cheia de frios. Ele
jogou as moedas fora. — Vocês estão com algum tipo de problema, isso é
tão evidente como o focinho deste porco no meu rosto.
Uma das mulheres sorriu para ele. Era a mulher mais bonita que Wil-
liam já tinha visto. Seus cabelos prata-dourados brilhavam sob um capuz
de pele, seus olhos azuis eram como o oceano em um dia calmo. Quando
ela sorriu, William sentiu o calor do conhaque fino percorrer seu corpo.
Mas um homem de rosto sério e cabelos escuros ao lado dela empurrou as
moedas de volta para o estalajadeiro.
— Não aceitaremos caridade — disse o homem alto e coberto de
peles.
— Não? — perguntou o grandalhão, melancólico, encarando a carne
defumada com olhos ansiosos.
— Vento Ligeiro — a mulher protestou, colocando uma mão gentil
no braço dele. O meio-elfo também parecia prestes a se interpor quando o
homem de manto vermelho, que pedira a água quente, estendeu a mão e
pegou uma moeda da mesa.
Equilibrando a moeda na parte de trás de sua mão ossuda, de cor
metálica, o homem de repente e sem esforço a fez dançar ao longo de suas

263
juntas. Os olhos de William se arregalaram. Seus dois amigos no bar se
aproximaram para ver melhor. A moeda entrava e saía dos dedos do homem
de manto vermelho, girando e pulando. Ela desapareceu no ar, apenas para
reaparecer acima da cabeça do mago na forma de seis moedas, girando em
torno de seu capuz. Com um gesto, ele as mandou girar em torno da cabeça
de William. Os marinheiros observavam maravilhados, de boca aberta.
— Pegue uma pela sua preocupação — disse o mago em um sussurro.
Hesitante, William tentou pegar as moedas que passavam por seus olhos,
mas sua mão as atravessou! De repente, todas as seis moedas desapareceram.
Só restava uma agora, descansando na palma do mago de manto vermelho.
— Eu a darei como pagamento — disse o mago com um sorriso
malicioso — mas tenha cuidado. Pode queimar um buraco no seu bolso.
William aceitou a moeda cuidadosamente. A segurando entre dois
dedos, olhou desconfiado. Então, a moeda explodiu em chamas! Com um
grito assustado, William a deixou cair no chão, pisando nela. Seus dois
amigos começaram a rir. Pegando a moeda, William descobriu que estava
perfeitamente fria e incólume.
— Isso valeu a carne! — disse o estalajadeiro, sorrindo.
— E uma noite de hospedagem — acrescentou o marinheiro, seu
amigo, jogando um punhado de moedas.
— Eu acredito — disse Raistlin em voz baixa, olhando para os outros
— que resolvemos nossos problemas.
Assim nasceu O Mago Vermelho e Suas Ilusões Maravilhosas, um
espetáculo itinerante que ainda hoje é mencionado do sul, até Porto Balifor,
e tão longe ao norte quanto as Ruínas.
Na noite seguinte, o mago de manto vermelho começou a fazer seus
truques para um público admirador composto pelos amigos de William. A
novidade se espalhou rapidamente. Depois que o mago se apresentou no
Porco e o Apito por aproximadamente uma semana, Vento Ligeiro, que a
princípio se opôs à ideia toda, foi forçado a admitir que o ato de Raistlin
parecia resolver não apenas seus problemas financeiros, mas outros mais
urgentes também.
A escassez de dinheiro era a mais urgente. Os companheiros poderiam
viver da terra... mesmo no inverno, tanto Vento Ligeiro quanto Tanis sendo
caçadores habilidosos. Mas eles precisavam de dinheiro para comprar pas-
sagens em um navio para os levar a Sancrist. Assim que tivessem dinheiro,
precisavam poder viajar livremente pelas terras ocupadas pelo inimigo.

264
Na juventude, Raistlin costumava usar seus talentos consideráveis
para dar sustento a si e a seu irmão. Embora isso fosse reprovado por seu
mestre, que ameaçou expulsar o jovem mago de sua escola, Raistlin se tor-
nou bastante bem-sucedido. Agora, seus poderes mágicos crescentes davam
a ele um alcance que não era possível antes. Ele literalmente mantinha seu
público encantado com truques e ilusões.
Mediante o comando de Raistlin, navios de asas brancas navegavam para
cima e para baixo no bar d´o Porco e o Apito, os pássaros voavam das sopeiras,
enquanto os dragões espiavam pelas janelas, lançando fogo sobre os convidados
assustados. No grand finale, o mago, resplandecente no manto vermelho costu-
rado por Tika, parecia totalmente consumido em chamas furiosas, apenas para
entrar pela porta da frente momentos depois (para aplausos intensos) e beber
calmamente um copo de vinho branco para a saúde dos convidados.
Em uma semana, o Porco e o Apito fez mais negócios do que William
fizera em um ano. Melhor ainda para ele, seus amigos foram capazes de
esquecer seus problemas. Logo, porém, convidados indesejados começaram
a chegar. A princípio, ele ficou irritado com o aparecimento de draconianos
e goblins na multidão, mas Tanis o tranquilizou e, relutantemente, William
permitiu que eles assistissem.
De fato, Tanis estava satisfeito em vê-los. Funcionava bem do ponto
de vista do meio-elfo e resolvia o segundo problema deles. Se as tropas do
Senhor gostassem do espetáculo e divulgassem a novidade, os companheiros
poderiam viajar pelo campo sem serem incomodados.
Depois de consultar William, o plano deles era chegar a Naufrágio,
uma cidade ao norte de Porto Balifor, localizada no Mar de Sangue de
Istar. Lá, eles esperavam encontrar um navio. Ninguém em Porto Balifor
daria passagem, explicou William. Todos os armadores locais estavam em-
pregados (ou seus navios foram confiscados) pelos Senhores dos Dragões.
Mas Naufrágio era um paraíso conhecido para aqueles mais interessados em
dinheiro do que em política.
Os companheiros ficaram no Porco e Apito por um mês. Willia
fornecia quartos e refeições gratuitas e até permitiu que guardassem todo
o dinheiro que ganhavam. Embora Vento Ligeiro protestasse contra essa
generosidade, William declarou firmemente que tudo o que importava era
ver seus antigos clientes voltarem.
Durante esse tempo, Raistlin refinou e ampliou seu ato que, a princí-
pio, consistia apenas em suas ilusões. Mas o mago se cansava rapidamente,

265
então Tika se ofereceu para dançar e dar tempo para ele descansar entre os
atos. Raistlin tinha dúvidas, mas Tika costurou para si mesma uma fantasia
tão atraente que Caramon foi, a princípio, totalmente contra o plano. Mas
ela apenas riu dele. Sua dança foi um sucesso e aumentou radicalmente o
dinheiro que coletavam. Raistlin a adicionou imediatamente ao ato.
Vendo que as multidões gostavam dessa diversão, o mago pensou nos
outros. Corando ardentemente, Caramon foi convencido a realizar feitos de
força, o destaque sendo quando ele levantava o robusto William sobre a ca-
beça com uma mão. Tanis surpreendeu a multidão com sua habilidade élfica
de “ver” no escuro. Mas Raistlin ficou surpreso um dia quando Lua Dourada
o procurou, enquanto contava o dinheiro da apresentação da noite anterior.
— Gostaria de cantar na apresentação hoje à noite — disse ela.
Raistlin olhou para ela, incrédulo. Seus olhos foram para Vento Ligei-
ro. O homem alto das Planícies assentiu com relutância.
— Você tem uma voz poderosa — disse Raistlin, colocando o dinheiro
em uma bolsa e puxando a corda com força. — Me lembro muito bem.
A última música que ouvi você cantar na Hospedaria do Lar Derradeiro
provocou uma revolta que quase nos matou.
Lua Dourada corou, lembrando a música fatídica que a apresentara ao
grupo. Carrancudo, Vento Ligeiro colocou a mão no ombro dela.
— Vamos embora! — ele disse seriamente, encarando Raistlin. —
Eu avisei que...
Mas Lua Dourada sacudiu a cabeça, teimosa, erguendo o queixo em
um gesto familiar e imperioso. — Eu cantarei — disse friamente — e Vento
Ligeiro me acompanhará. Eu escrevi uma música.
— Muito bem — o mago retrucou, deslizando a bolsa de dinheiro em
seus mantos. — Vamos tentar esta noite.
O Porco e o Apito estava lotado naquela noite. Era um público varia-
do... crianças pequenas com seus pais, marinheiros, draconianos, goblins e
vários kender, que fizeram com que todos ficassem de olho em seus perten-
ces. William e dois ajudantes se apressaram, servindo bebidas e comidas.
Então, o espetáculo começou.
A multidão aplaudiu as moedas giratórias de Raistlin, riu quando um
porco ilusório dançou no bar e subiu aterrorizada em suas cadeiras quando
um troll gigante trovejou através de uma janela. Se curvando, o mago saiu
para descansar. Tika entrou.

266
A multidão, principalmente os draconianos, aplaudiu a dança de Tika,
batendo suas canecas na mesa.
Então, Lua Dourada apareceu diante deles, trajando uma túnica azul clara.
Os cabelos prata-dourados caíam sobre os ombros como água brilhan-
do ao luar. A multidão silenciou instantaneamente. Sem dizer nada, ela se
sentou em uma cadeira na plataforma elevada que William construíra às
pressas. Ela era tão bonita que nenhum murmúrio saía da multidão. Todos
esperavam com expectativa.
Vento Ligeiro estava sentado no chão a seus pés. Colocando uma
flauta esculpida à mão nos lábios, ele começou a tocar e, depois de alguns
instantes, a voz de Lua Dourada se misturou à flauta. Sua música era sim-
ples, a melodia doce e harmoniosa, mas marcante. Mas foram as palavras
que chamaram a atenção de Tanis, fazendo com que trocasse olhares preo-
cupados com Caramon. Sentado ao lado, Raistlin agarrou o braço de Tanis.
— Eu temia isso! — o mago sibilou. — Outra revolta!
— Talvez não — disse Tanis, observando. — Olhe para o público.
As mulheres apoiaram a cabeça nos ombros dos maridos, os filhos
estavam quietos e atentos. Os draconianos pareciam encantados, assim
como, às vezes, um animal selvagem fica domado pela música. Apenas os
goblins arrastaram os pés, aparentemente entediados, mas tão admirados
pelos draconianos que não ousaram protestar.
A canção de Lua Dourada era sobre os deuses antigos. Ela contou
como os deuses enviaram o Cataclismo para punir o Rei-Sacerdote de Istar
e o povo de Krynn por seu orgulho. Cantou os terrores daquela noite e
das que se seguiram. Lembrou como as pessoas, acreditando estarem
abandonadas, oraram para deuses falsos. Então, deu uma mensagem de
esperança: os deuses não os abandonaram. Os deuses verdadeiros estavam
aqui, esperando apenas que alguém os ouvisse.
Depois que a música terminou, e o gemido melancólico da flauta
parou, a maioria da multidão balançou a cabeça, parecendo acordar de
um sonho agradável. Quando perguntados sobre o que era a música, eles
não conseguiam dizer. Os draconianos deram de ombros e pediram mais
cerveja. Os goblins gritaram para Tika dançar novamente. Mas, aqui e ali,
Tanis percebeu um rosto ainda tinha o ar maravilhado que surgiu durante
a música. E não ficou surpreso ao ver uma jovem de pele escura se aproxi-
mando de Lua Dourada timidamente.

267
— Peço desculpas por incomodá-la, minha senhora — Tanis ouviu a
mulher dizer — mas sua música me tocou profundamente. Eu... eu quero
aprender sobre deuses antigos, aprender seus caminhos.
Lua Dourada sorriu. — Me procure amanhã — disse ela — e ensinarei
o que sei.
E, assim, lentamente, a palavra sobre os deuses antigos começou a
se espalhar. Quando saíram de Porto Balifor, a mulher de pele escura, um
jovem de voz suave e várias outras pessoas usavam o medalhão azul de
Mishakal, a Deusa da Cura. Eles saíram em segredo, trazendo esperança
para a terra sombria e atribulada.

No final do mês, os companheiros conseguiram comprar uma carroça,


cavalos para puxá-la, cavalos de montaria e suprimentos. O que sobrou
era para a compra da passagem de navio para Sancrist. Eles planejavam
aumentar seu dinheiro atuando nas pequenas comunidades agrícolas entre
Porto Balifor e Naufrágio.
Quando o Mago Vermelho deixou Porto Balifor pouco antes da tem-
porada de fim de ano, sua carroça foi vista por multidões entusiasmadas.
Cheia com seus trajes, suprimentos para dois meses e um barril de cerveja
(fornecido por William), a carroça era grande o suficiente para Raistlin dor-
mir e viajar dentro dela. Também levava as tendas listradas e multicoloridas
nas quais os outros ficariam.
Tanis olhou em volta para a visão estranha que causaram, balançando
a cabeça. Parecia que, no meio de tudo o que acontecera com eles, isso era
o mais bizarro. Ele olhou para Raistlin sentado ao lado de seu irmão, que
conduzia a carroça. Os mantos de lantejoulas vermelhas do mago brilha-
vam como chamas à luz do sol do inverno. Com os ombros curvados contra
o vento, Raistlin olhava para a frente, envolto em uma demonstração de
mistério que encantava a multidão. Caramon, vestido com um traje de pele
de urso (presente de William), puxou a cabeça do urso sobre a sua, fazendo
parecer que um urso dirigia a carroça. As crianças aplaudiram quando ele
rosnou para elas, em uma ferocidade fingida.
Eles estavam quase fora da cidade quando um comandante draconiano
os deteve. Com o coração preso na garganta, Tanis cavalgou para frente, a
mão pressionada contra a espada. Mas o comandante só queria ter certeza
de que eles passariam pelo Mirante Sangrento, onde estavam localizadas as
tropas draconianas. O draconiano mencionara o espetáculo a um amigo. As

268
tropas estavam ansiosas para vê-lo. Jurando internamente não passar nem
perto do local, Tanis prometeu fielmente que apareceriam por lá.
Finalmente, chegaram aos portões da cidade. Descendo de suas mon-
tarias, eles se despediram do amigo. William deu um abraço em cada um
deles, começando com Tika e terminando com Tika. Ele ia abraçar Raistlin,
mas os olhos dourados do mago se arregalaram tão assustadoramente quan-
do William se aproximou que o estalajadeiro recuou abruptamente.
Os companheiros subiram novamente nos cavalos. Raistlin e Cara-
mon voltaram para a carroça. A multidão aplaudiu e pediu que retornassem
para a celebração da Charrua na primavera. Os guardas abriram os portões,
desejando uma viagem segura, e os companheiros cavalgaram. Os portões
se fecharam atrás deles.
O vento soprava frio. Nuvens cinzentas acima deles começaram a
soltar neve. A estrada, que souberam ser bem percorrida, se estendia diante
deles desolada e vazia. Raistlin começou a tremer e tossir. Depois de um
tempo, disse que entraria no vagão. O resto puxou os capuzes por cima da
cabeça e apertou mais os mantos de pele.
Guiando os cavalos pela estrada sulcada e enlameada, Caramon pare-
cia incomumente pensativo.
— Sabe, Tanis — disse solenemente acima do toque dos sinos que
Tika amarrara às crinas dos cavalos — sou mais grato do que posso dizer
que nenhum de nossos amigos viu isso. Consegue ouvir o que Flint diria?
Aquele velho anão resmungão nunca me deixaria viver com isso. E pode
imaginar Sturm! — O grandalhão balançou a cabeça, o pensamento indo
além das palavras.
“Sim”, Tanis suspirou. “Eu posso imaginar Sturm. Caro amigo, nun-
ca percebi o quanto dependia de você... da sua coragem, do seu espírito
nobre. Você está vivo, meu amigo? Chegou a Sancrist em segurança? É
agora um cavaleiro em corpo, como sempre o fora em espírito? Vamos
nos encontrar novamente ou nos separamos para nunca nos encontrar
nesta vida... como Raistlin previu?”
O grupo cavalgou em frente. O dia ficou mais escuro, a tempestade
mais selvagem. Vento Ligeiro recuou para cavalgar ao lado de Lua Dourada.
Tika amarrou o cavalo atrás da carroça e se arrastou para sentar perto de
Caramon. Dentro da carroça, Raistlin dormia.
Tanis cavalgava sozinho, com a cabeça baixa e os pensamentos distantes.

269
2
O Julgamento dos Cavaleiros

por fim — disse Derek em voz baixa e moderada — acuso Sturm


Brightblade de covardia diante do inimigo.
Um murmúrio baixo percorreu a assembleia de cavaleiros re-
unidos no castelo do Lorde Gunthar. Três cavaleiros, sentados à enorme
mesa de carvalho preto em frente à assembleia, inclinaram a cabeça para
confabular em voz baixa.
Há muito tempo, os três que estavam sentados neste Julgamento dos
Cavaleiros, conforme prescrito pela Providência, seriam o Grão-Mestre, o
Alto Clerista e o Supremo Juiz. Mas, naquele momento, não havia Grão-
-Mestre. Não havia um Alto Clerista desde a época do Cataclismo. E embo-
ra o Supremo Juiz, Lorde Alfred MarKenin, estivesse presente, seu controle
nessa posição era tênue, na melhor das hipóteses. Quem se tornasse o novo
Grão-Mestre tinha permissão para substituí-lo.
Apesar dessas vagas na Liderança da Ordem, os negócios dos Cavalei-
ros devem continuar. Embora não fosse forte o suficiente para reivindicar
a posição cobiçada do Grão-Mestre, Lorde Gunthar Uth Wistan era forte
o suficiente para desempenhar esse papel. E assim, ele se sentava aqui hoje,
no início da temporada de festas, julgando esse jovem escudeiro, Sturm
Brightblade. À sua direita, estava Lorde Alfred, à sua esquerda, o jovem
Lorde Michael Jeoffrey, substituindo o Alto Clerista.
De frente para eles, no Grande Salão do Castelo Uth Wistan, havia
vinte outros Cavaleiros de Solamnia que se reuniram às pressas de todas as
partes de Sancrist para testemunhar o Julgamento dos Cavaleiros, conforme
prescrito pela Providência. Agora eles murmuravam e balançavam a cabeça
enquanto seus líderes conferenciavam.
De uma mesa diretamente em frente aos três Cavaleiros Sentados em
Julgamento, Lorde Derek se levantou e fez uma reverência a Lorde Gun-
thar. Seu testemunho chegou ao fim. Restava agora apenas a resposta do
cavaleiro e o próprio Julgamento. Derek voltou ao seu lugar entre os outros
cavaleiros, rindo e conversando com eles.
Apenas uma pessoa no salão ficou em silêncio. Sturm Brightblade per-
maneceu imóvel durante todas as acusações condenatórias de Lorde Derek
Crownguard. Ele ouviu acusações de insubordinação, falha em obedecer a
ordens, se passar por cavaleiro... e nenhuma palavra ou murmúrio escapara.
O rosto dele estava cuidadosamente inexpressivo, as mãos cruzadas sobre o
tampo da mesa.
Os olhos do Lorde Gunthar estavam agora em Sturm, como aconte-
cia durante o Julgamento. Ele começou a se perguntar se o homem ainda
estava vivo, tão imóvel e branco estava seu rosto, tão rígida sua postura.
Vira Sturm se encolher apenas uma vez. Sob acusação de covardia, um
calafrio convulsionou o corpo do homem. O olhar em seu rosto... bem,
Gunthar lembrou de ter visto o mesmo olhar uma vez antes, em um ho-
mem que acabara de ser atingido por uma lança. Mas Sturm rapidamente
recuperou a compostura.
Gunthar estava tão interessado em observar Brightblade que quase
perdeu a noção da conversa dos dois cavaleiros ao lado dele. Pegou apenas
o fim da sentença de Lorde Alfred.
—... não permita a Resposta do Cavaleiro.
— Por que não? — Lorde Gunthar perguntou bruscamente, embora
mantendo a voz baixa. — É direito dele de acordo com a Providência.

271
— Nunca tivemos um caso como esse — afirmou Lorde Alfred, Cava-
leiro da Espada. — Sempre antes, quando um escudeiro era trazido perante
o Conselho da Ordem para atingir sua cavalaria, havia testemunhas, muitas
testemunhas. Ele tem a oportunidade de explicar os motivos para suas
ações. Ninguém nunca pergunta se ele cometeu os atos. Mas a única defesa
de Brightblade...
— É nos dizer que Derek mente — concluiu Lorde Michael Jeoffrey,
Cavaleiro da Coroa. — E isso é impensável. Aceitar a palavra de um escu-
deiro sobre a de um Cavaleiro da Rosa.
— Mesmo assim, o jovem terá chance de falar — disse Lorde Gunthar,
encarando seriamente cada um dos homens. — Essa é a Lei de acordo com
a Providência. Algum de vocês a questiona?
— Não...
— Não, claro que não. Mas...
— Muito bem. — Gunthar alisou os bigodes e, inclinando-se para a
frente, bateu suavemente na mesa de madeira com o punho da espada, a
espada de Sturm, que estava sobre ela. Os outros dois cavaleiros trocaram
olhares atrás das suas costas, um erguendo as sobrancelhas, o outro dando
de ombros levemente. Gunthar estava ciente disso, pois estava ciente de
todas as maquinações e conspirações ocultas agora difundidas na Cavalaria.
Ele escolheu ignora-las.
Ainda não era forte o suficiente para reivindicar a posição vaga de
Grão-Mestre, mas ainda era o mais forte e mais poderoso dos cavaleiros
atualmente sentados no Conselho. Era forçado a ignorar muito do que
ele teria reprimido sem hesitação, em outro dia e idade. Ele esperava essa
deslealdade de Alfred MarKenin, o cavaleiro estava no lado de Derek há
muito tempo, mas ficou surpreso com Michael, quem considerava leal a
ele. Aparentemente, Derek também conseguira seu apoio.
Gunthar observou Derek Crownguard enquanto os cavaleiros retor-
navam a seus lugares. Derek era seu único rival com o dinheiro e o apoio
capaz de reivindicar o posto de Grão-Mestre. Na esperança de ganhar votos
adicionais, ele se ofereceu ansiosamente a realizar a perigosa busca em
busca dos lendários orbes do dragão. Gunthar teve pouca escolha a não ser
concordar. Se tivesse recusado, pareceria assustado com o crescente poder
de Derek. E Derek era inegavelmente o mais qualificado... se a Providência
fosse seguida rigorosamente. Mas Gunthar, que o conhecia há muito tem-
po, teria impedido sua partida, se pudesse, não porque temesse o cavaleiro,

272
mas porque realmente não confiava nele. O homem era vaidoso e sedento
de poder e, quando se tratava disso, as primeiras lealdades de Derek eram
para o próprio Derek.
E agora parecia que o retorno bem-sucedido dele com um orbe de
dragão ganhara o dia. Trouxera muitos cavaleiros para o seu lado, que
já estavam indo nessa direção de qualquer maneira, e realmente atraíra
alguns da facção de Gunthar. Os únicos que se opunham a ele ainda eram
os cavaleiros mais jovens da ordem mais baixa da Cavalaria, os Cavaleiros
da Coroa.
Esses jovens usavam pouco a interpretação estrita e rígida da Providên-
cia, que era o sangue vital para os cavaleiros mais velhos. Eles pressionaram
por mudanças e eram severamente castigados por Lorde Derek Crownguard.
Alguns chegaram perto de perder o título de cavaleiro. Esses jovens cavaleiros
apoiavam firmemente Lorde Gunthar. Infelizmente, eram poucos em núme-
ro e, na maioria das vezes, tinham mais lealdade do que dinheiro. Contudo,
os jovens cavaleiros adotaram a causa de Sturm como sua.
“Mas este foi o golpe de mestre de Derek Crownguard”, Gunthar
pensou amargamente. “Com um corte da sua espada, Derek se livraria de
um homem que odiava e de seu principal rival.”
Lorde Gunthar era um conhecido amigo da família Brightblade,
uma amizade que remontava a gerações. Foi Gunthar quem apresentou o
pedido de Sturm quando o jovem apareceu do nada, cinco anos antes, para
procurar seu pai e sua herança. Sturm conseguira, com as cartas de sua mãe,
provar seu direito ao nome Brightblade. Alguns insinuaram que isso fora
realizado no lado errado dos lençóis, mas Gunthar rapidamente reprimiu
esses rumores. O jovem era obviamente filho de seu velho amigo... isso
podia ser visto no rosto de Sturm. Ao apoiar Sturm, no entanto, o lorde
estava arriscando muito.
O olhar de Gunthar foi para Derek, caminhando entre os cavaleiros,
sorrindo e apertando as mãos. Sim, este julgamento estava fazendo com que
ele, Lorde Gunthar Uth Wistan, parecesse um tolo.
“Pior ainda”, Gunthar pensou com tristeza, seus olhos se voltando a
Sturm, “isso provavelmente destruiria a carreira de quem ele acreditava ser
um homem muito bom, um homem digno de seguir o caminho de seu pai.”
— Sturm Brightblade — disse Lorde Gunthar quando o silêncio
tomou conta do salão — ouviu as acusações feitas contra você?

273
— Escutei, meu senhor — respondeu Sturm. Sua voz profunda
ecoou assustadoramente no corredor. De repente, um tronco na enorme
lareira atrás de Gunthar se abriu, enviando labaredas de calor e uma chuva
de faíscas pela chaminé. Ele fez uma pausa enquanto os servos se apres-
savam para colocar mais madeira. Quando os servos saíram, continuou o
interrogatório ritual.
— Você, Sturm Brightblade, entende as acusações feitas e entende
ainda que essas são acusações graves e podem fazer com que este Conselho
o considere impróprio para a cavalaria?
— Entendo — Sturm começou a responder. Sua voz falhou. Tossindo,
ele repetiu com mais firmeza: — Entendo, meu senhor.
Gunthar alisou os bigodes, tentando pensar em como conduzir isso,
sabendo que qualquer coisa que o jovem dissesse contra Derek refletiria mal
sobre o próprio Sturm.
— Quantos anos você tem, Brightblade? — perguntou.
Sturm piscou com essa pergunta inesperada.
— Mais de trinta, eu acredito? — Gunthar continuou refletindo.
— Sim, meu senhor — Sturm respondeu.
— E, pelo que Derek nos conta sobre suas façanhas no Castelo da
Muralha de Gelo, um combatente habilidoso...
— Nunca neguei isso, meu senhor — disse Derek, se levantando mais
uma vez. Sua voz estava marcada de impaciência.
— Mas você o acusa de covardia — retrucou Gunthar. — Se minha
memória me serve corretamente, você afirmou que quando os elfos ataca-
ram, ele se recusou a obedecer à sua ordem de lutar.
O rosto de Derek ficou vermelho. — Posso lembrar a vossa senhoria
que não estou em julgamento...
— Você acusa Brightblade de covardia diante do inimigo — Gunthar
interrompeu. — Faz muitos anos desde que os elfos foram nossos inimigos.
Derek hesitou. Os outros cavaleiros pareciam desconfortáveis. Os elfos
eram membros do Conselho da Pedra Branca, mas não tinham a permissão
de votar. Por causa da descoberta do orbe do dragão, os elfos participariam
do próximo Conselho e não seria bom ter notícias de que os cavaleiros os
consideravam inimigos.
— Talvez “inimigo” seja uma palavra muito forte, meu senhor. —
Derek se recuperou sem problemas. — Se estou errado, é simplesmente
porque estou sendo forçado a seguir o que está escrito na Providência. Na

274
época em que falo, os elfos, embora não fossem nossos inimigos de verdade,
estavam fazendo tudo ao seu alcance para impedir que levássemos o orbe do
dragão para Sancrist. Como essa era minha missão e os elfos se opunham,
fui forçado a defini-los como “inimigos” .... de acordo com a Providência.
“Bastardo ardiloso”, Gunthar pensou com raiva.
Com uma reverência para pedir desculpas por falar fora de hora,
Derek se sentou novamente. Muitos dos cavaleiros mais velhos assentiram
em aprovação.
— Também diz na Providência — disse Sturm lentamente — que não
devemos tirar a vida desnecessariamente, que lutamos apenas em defesa...
seja em nossa defesa ou na dos outros. Os elfos não ameaçavam nossas
vidas. Em nenhum momento estávamos em perigo físico real.
— Eles estavam atirando flechas em você, homem! — Lorde Alfred
bateu na mesa com a mão enluvada.
— Verdade, meu senhor — respondeu Sturm — mas todos sabem
que os elfos são exímios atiradores. Se quisessem nos matar, não teriam
atingido as árvores!
— O que acha que teria acontecido se você tivesse atacado os elfos?
— Gunthar questionou.
— Os resultados teriam sido trágicos na minha opinião, meu se-
nhor — disse Sturm, com a voz suave e baixa. — Pela primeira vez em
gerações, elfos e humanos estariam se matando. Acho que os Senhores dos
Dragões teriam gargalhado.
Vários dos cavaleiros jovens aplaudiram.
Lorde Alfred olhou para eles, zangado com essa violação grave das
regras de conduta da Providência.
— Lorde Gunthar, devo lembrar que Lorde Derek Crownguard não
está sendo julgado aqui. Ele provou seu valor mais de uma vez no campo
de batalha. Acho que podemos aceitar a palavra dele com segurança sobre
o que é uma ação inimiga e o que não é. Sturm Brightblade, você diz que
as acusações feitas contra você pelo Lorde Derek Crownguard são falsas?
— Meu senhor — começou Sturm, lambendo os lábios que estavam
rachados e secos — não digo que o cavaleiro tenha mentido. Digo, no
entanto, que ele me apresentou de forma equivocada.
— Com que propósito? — Lorde Michael perguntou.
Sturm hesitou. — Eu preferiria não responder a isso, meu senhor —
disse tão baixo que muitos cavaleiros na fila de trás não conseguiram ouvir

275
e pediram que Gunthar repetisse a pergunta. Ele o fez e recebeu a mesma
resposta, desta vez mais alto.
— Com base em que você se recusa a responder a essa pergunta,
Brightblade? — Lorde Gunthar perguntou seriamente.
Porque, de acordo com a Providência, ela colide com a honra da
Cavalaria — respondeu Sturm.
O rosto de Lorde Gunthar estava sério. — Essa é uma acusação
grave. Fazendo isso, percebe que não tem ninguém para ficar com você
em evidência?
— Percebo, meu senhor — respondeu Sturm — e é por isso que
prefiro não responder.
— Se eu ordenar que você fale?
— Isso, claro, seria diferente.
— Então fale, Sturm Brightblade. Esta é uma situação incomum e não
vejo como podemos fazer um julgamento justo sem ouvir tudo. Por que
acredita que Lorde Derek Crownguard o apresenta de forma equivocada?
O rosto de Sturm ficou vermelho. Apertando e soltando as mãos, ele
ergueu os olhos e encarou diretamente os três cavaleiros que se sentavam
em seu julgamento. Seu caso estava perdido, ele sabia. Ele nunca seria um
cavaleiro, nunca alcançaria o que era mais valioso do que a própria vida.
Perdê-lo por culpa própria já seria amargo o suficiente, mas perdê-lo assim
era uma ferida purulenta. E, assim, ele falou as palavras que sabia que
tornariam Derek seu inimigo amargo pelo resto de seus dias.
— Acredito que Lorde Derek Crownguard me apresenta de forma
equivocada em um esforço para promover sua própria ambição, meu senhor.
O tumulto começou. Derek se levantou. Seus amigos o contiveram
à força ou ele teria atacado Sturm no Salão do Conselho. Gunthar bateu
o punho da espada por ordem e, eventualmente, a assembleia se acalmou,
mas não antes de Derek desafiar Sturm a testar sua honra no campo.
Gunthar olhou friamente para o cavaleiro.
— Você sabe, Lorde Derek, que agora, uma época de guerra declarada, os
desafios de honra são proibidos! Acalme-se ou será expulso desta assembleia.
Respirando pesadamente, com o rosto manchado de vermelho, Derek
recuou de volta em seu assento.
Gunthar deu à Assembleia mais alguns momentos para se acalmar e
depois continuou.
— Você tem mais alguma coisa a dizer em sua defesa, Sturm Brightblade?

276
— Não, meu senhor — disse Sturm.
— Então, pode se retirar enquanto esse assunto é considerado.
Sturm se levantou e fez uma reverência aos senhores. Virando, fez uma
reverência para a Assembleia. Então, ele saiu da sala, escoltado por dois
cavaleiros que o levaram a uma antecâmara. Os dois cavaleiros, sem grosse-
ria, deixaram Sturm sozinho. Ficaram perto da porta fechada, conversando
baixinho sobre assuntos não relacionados ao julgamento.
Sturm estava sentado em um banco no outro extremo da câmara. Ele
parecia calmo e sereno, mas era tudo fingimento. Ele estava determinado a
não deixar esses cavaleiros verem o tumulto em sua alma. Era impossível, ele
sabia. A expressão triste de Gunthar dizia isso. Mas qual seria o julgamen-
to? Exílio, ser despojado de terras e riquezas? Sturm sorriu amargamente.
Não tinha nada que pudessem tirar dele. Ele vivera fora de Solamnia por
tanto tempo que o exílio não seria sentido. Morte? Ele quase gostaria disso.
Qualquer coisa era melhor do que essa existência sem esperança, essa dor
palpitante e lancinante.
As horas passaram. O murmúrio das três vozes aumentava e diminuía
dos corredores ao redor do Salão, às vezes com raiva. A maioria dos outros
cavaleiros saíra, pois apenas os três, como Líderes do Conselho, podiam
julgar. Os outros cavaleiros estavam divididos em facções diferentes.
Os cavaleiros jovens falaram abertamente da postura nobre de Sturm,
de seus atos de coragem, que nem Derek pôde reprimir. Sturm estava certo
em não lutar contra os elfos. Os Cavaleiros de Solamnia precisavam de
todos os amigos que pudessem ter hoje em dia. Por que atacar desnecessa-
riamente, e assim por diante. Os cavaleiros mais velhos tinham apenas uma
resposta, a Providência. Derek deu a Sturm uma ordem. Ele se recusou a
obedecer. A Providência dizia que isso era imperdoável. A discussão durou
a maior parte da tarde.
Então, perto da noite, um pequeno sino de prata tocou.
— Brightblade — disse um dos cavaleiros.
Sturm levantou a cabeça.
— Está na hora?
O cavaleiro assentiu.
Sturm inclinou a cabeça por um momento, pedindo coragem a
Paladine. Então, se levantou. Ele e seus guardas esperaram que os outros
cavaleiros voltassem e se sentassem. Sabia que estariam dando o veredicto
assim que entrassem.

277
Por fim, os dois cavaleiros destacados como escoltas abriram a porta
e fizeram um gesto para Sturm entrar. Ele entrou no salão, os cavaleiros
seguindo atrás. O olhar de Sturm foi imediatamente para a mesa diante de
Lorde Gunthar.
A espada de seu pai, uma espada que, segundo a lenda, foi passada pelo
próprio Berthel Brightblade, uma espada que só quebraria se seu mestre
quebrasse, estava sobre a mesa. Os olhos de Sturm foram para a espada. Sua
cabeça caiu para esconder as lágrimas ardentes em seus olhos.
Enrolado em volta da lâmina estava o antigo símbolo de culpa, as
rosas negras.
— Tragam o homem, Sturm Brightblade, para frente — pediu
Lorde Gunthar.
“O homem, Sturm Brightblade, não o cavaleiro!” pensou Sturm em
desespero. Então, se lembrou de Derek. Ele levantou a cabeça rapidamente,
com orgulho, enquanto piscava para afastar as lágrimas. Assim como teria
escondido sua dor do inimigo no campo de batalha, estava determinado a
escondê-la agora de Derek. Jogando a cabeça para trás de forma desafiadora,
com os olhos em Lorde Gunthar e em mais ninguém, o escudeiro desgraçado
avançou para ficar diante dos três oficiais da Ordem para aguardar seu destino.
— Sturm Brightblade, nós o consideramos culpado. Estamos prepara-
dos para fazer o julgamento. Você está preparado para recebê-lo?
— Sim, meu senhor — disse Sturm firmemente.
Gunthar puxou seus bigodes, um sinal que os homens que serviram
com ele reconheceram. Lorde Gunthar sempre puxava os bigodes antes de
entrar na batalha.
— Sturm Brightblade, é nosso julgamento que você deixe de usar
qualquer um dos ornamentos e paramentos de um Cavaleiro da Solamnia.
— Sim, meu senhor — disse Sturm em voz baixa, engolindo o seco.
— E daqui em diante, você não receberá pagamento dos cofres dos
Cavaleiros, nem obterá nenhuma propriedade ou presente deles...
Os cavaleiros no salão se mexeram, inquietos. Isso era ridículo! Nin-
guém recebera salário a serviço da Ordem desde o Cataclismo. Algo estava
acontecendo. Eles sentiram os trovões antes da tempestade.
— Por fim... — Lorde Gunthar fez uma pausa. Ele se inclinou para
frente, suas mãos brincando com as rosas negras que enfeitavam a espada
antiga. Seus olhos perspicazes varreram a Assembleia, reunindo sua audiên-

278
cia, permitindo que a tensão aumentasse. No momento em que ele falou,
até o fogo atrás dele havia deixado de estalar.
— Sturm Brightblade. Cavaleiros reunidos. Nunca antes um caso
como esse foi apresentado ao Conselho. E isso, talvez, não seja tão estranho
quanto possa parecer, pois esses são dias sombrios e incomuns. Temos um
jovem escudeiro, e lembro que Sturm Brightblade é jovem para todos os
padrões da Ordem, um jovem escudeiro conhecido por sua habilidade e
coragem na batalha. Até seu acusador admite isso. Um jovem escudeiro
acusado de desobedecer a ordens e de covardia diante do inimigo. O jovem
escudeiro não nega essa acusação, mas afirma que foi deturpada.
— Agora, pela Providência, somos obrigados a aceitar a palavra de
um cavaleiro consagrado, como Derek Crownguard, sobre a palavra de
um homem que ainda não ganhou seu escudo. Mas a Providência tam-
bém afirma que este homem poderá chamar testemunhas em seu próprio
nome. Devido às circunstâncias incomuns ocasionadas por esses tempos
sombrios, Sturm Brightblade não pode chamar testemunhas. Aliás, nem
Derek Crownguard foi capaz de apresentar testemunhas para apoiar sua
própria causa. Portanto, concordamos com o seguinte procedimento,
ligeiramente irregular.
Sturm estava diante de Gunthar, confuso e perturbado. O que estava
acontecendo? Ele olhou para os outros dois cavaleiros. Lorde Alfred não se
incomodava em esconder sua raiva. Era óbvio, portanto, que esse “acordo”
de Gunthar fora obtido com dificuldade.
— É o julgamento deste Conselho — continuou Lorde Gunthar
— que o jovem Sturm Brightblade seja aceito na ordem mais baixa dos
cavaleiros, a Ordem da Coroa, em minha honra...
Houve um suspiro universal de espanto.
— E que, ademais, ele seja colocado como em terceiro no comando
do exército que deve partir em breve para Palanthas. Conforme prescrito
pela Providência, o Alto Comando deve ter um representante de cada
uma das Ordens. Portanto, Derek Crownguard será o Alto Comandante,
representando a Ordem da Rosa. Lorde Alfred MarKenin representará a
Ordem da Espada, e Sturm Brightblade atuará, em minha honra, como
comandante da Ordem da Coroa.
No meio do silêncio atordoado, Sturm sentiu as lágrimas escorrerem
pelo rosto, mas agora não precisava mais escondê-las. Atrás dele, ele ouviu
o som de alguém se levantando, de uma espada sacudindo de raiva. Derek

279
saiu furiosamente do Salão, os outros cavaleiros de sua facção o seguindo.
Também houve aplausos espalhados. Sturm viu através das lágrimas que
cerca de metade dos cavaleiros na sala, particularmente os cavaleiros mais
jovens, os cavaleiros que ele comandaria, estavam aplaudindo. Sturm
sentiu uma dor rápida bem profunda dentro de sua alma. Embora tivesse
conquistado sua vitória, ficou horrorizado com o que a cavalaria se tornara,
dividida em facções por homens famintos por poder. Não era nada além de
uma casca corrompida de uma irmandade que já foi honrada.
— Parabéns, Brightblade — disse Lorde Alfred, rígido. — Espero que
você perceba o que Lorde Gunthar fez por você.
— Percebo, meu senhor — disse Sturm, curvando-se — e juro pela
espada de meu pai — ele colocou a mão sobre ela — que serei digno da sua
confiança.
— Certifique-se disso, rapaz — Lorde Alfred respondeu e saiu. O
lorde mais novo, Michael, o acompanhou sem dizer uma palavra a Sturm.
Mas os outros jovens cavaleiros avançaram, oferecendo seus parabéns
entusiasmados. Eles brindaram à sua saúde com vinho e teriam ficado para
uma bebedeira se Gunthar não os tivesse mandado embora.
Quando os dois ficaram sozinhos no salão, Lorde Gunthar deu um
sorriso largo para Sturm e apertou sua mão. O jovem cavaleiro devolveu o
aperto de mão calorosamente, se não o sorriso. A dor estava muito fresca.
Então, lenta e cuidadosamente, Sturm tirou as rosas negras da espada.
As colocando sobre a mesa, ele deslizou a lâmina de volta na bainha ao seu
lado. Ele começou a afastar as rosas, mas fez uma pausa, depois pegou uma
e enfiou no cinto.
— Devo agradecê-lo, meu senhor — começou Sturm, com a voz
trêmula. — Você não tem nada para me agradecer, filho — disse Lorde
Gunthar. Olhando ao redor da sala, ele estremeceu. — Vamos sair deste
lugar, para algum lugar quente. Vinho quente?
Os dois cavaleiros caminharam pelos corredores de pedra do antigo
castelo de Gunthar, os sons dos jovens cavaleiros que partiam flutuando
de baixo... os cascos de cavalos batendo no paralelepípedo, vozes gritando,
alguns até iniciando uma canção militar.
— Eu devo agradecê-lo, meu senhor — Sturm disse com firmeza. —
O risco que você corre é muito grande. Espero provar que sou digno...
— Risco! Bobagem, meu rapaz. — Esfregando as mãos para restaurar
a circulação, Gunthar levou Sturm para uma pequena sala decorada para a

280
celebração de Yule, rosas vermelhas de inverno, cultivadas em ambientes fe-
chados, penas de martim-pescador e coroas douradas pequenas e delicadas.
Uma lareira ardia intensamente. Sob o comando de Gunthar, os criados
trouxeram duas canecas de líquido fumegante que emitiam um odor quente
e picante. — Muitas foram as vezes em que seu pai jogou seu escudo diante
de mim e ficou em cima de mim, me protegendo quando eu caí.
— E você fez o mesmo por ele — disse Sturm. — Não deve nada a ele.
Comprometer sua honra por mim significa que, se eu falhar, você sofrerá.
Você será despojado de sua posição, seu título, suas terras. Derek faria isso
acontecer — acrescentou sombriamente.
Enquanto Gunthar tomava um gole profundo de seu vinho, ele estu-
dou o jovem diante dele. Sturm apenas bebeu seu vinho por polidez, segu-
rando a caneca com uma mão que tremia visivelmente. Gunthar colocou
a mão gentilmente no ombro de Sturm, empurrando o jovem gentilmente
para se sentar em uma cadeira.
— Você falhou no passado, Sturm? — Gunthar perguntou.
Sturm olhou para cima, seus olhos castanhos brilhando.
— Não, meu senhor — respondeu. — Não falhei. Eu juro!
— Então, não temo o futuro — disse Lorde Gunthar, sorrindo. Ele
levantou sua caneca. — Brindo à sua sorte em batalha, Sturm Brightblade.
Sturm fechou os olhos. O esforço fora demasiado. Abaixando a cabeça
no braço, ele choro, seu corpo tremendo com soluços dolorosos. Gunthar
agarrou seu ombro.
— Eu entendo... — ele disse, com os olhos voltados para o tempo em
Solamnia, quando o pai desse jovem desabou e chorou da mesma maneira,
na noite em que Lorde Brightblade enviou sua jovem esposa e filho em uma
jornada para o exílio, uma jornada da qual ele nunca os veria retornar.
Exausto, Sturm finalmente adormeceu, com a cabeça na mesa. Gun-
thar se sentou com ele, bebendo o vinho quente, perdido nas lembranças
do passado, até que também caiu no sono.

Os poucos dias que faltavam para o exército partir para Palanthas


passaram rapidamente para Sturm. Ele teve que encontrar uma armadura...
usada, pois não podia pagar uma nova. Ele guardou a do seu pai cuidadosa-
mente, com a intenção de carregá-la, uma vez que fora proibido de usá-la.
Depois, havia reuniões para participar, disposições de batalha para estudar,
informações sobre o inimigo para assimilar.

281
A batalha por Palanthas seria amarga, determinando o controle de
toda a parte norte de Solamnia. Os líderes concordaram com sua estratégia.
Fortificariam as muralhas da cidade com o exército da cidade. Os próprios
cavaleiros ocupariam a Torre do Alto Clerista, que bloqueava a passagem
pelas Montanhas Vingaard. Mas isso foi tudo o que concordaram. As reu-
niões entre os três líderes eram tensas, o ar frio.
Finalmente, chegou o dia dos navios zarparem. Os cavaleiros se reuni-
ram a bordo. Suas famílias estavam em silêncio na costa. Embora os rostos
estivessem pálidos, havia poucas lágrimas, as mulheres de pé tão quietas
e austeras quanto seus homens. Algumas esposas usavam espadas presas à
cintura. Todos sabiam que, se a batalha no norte fosse perdida, o inimigo
atravessaria o mar.
Gunthar estava parado no píer, vestido com sua armadura brilhante,
conversando com os cavaleiros, se despedindo de seus filhos. Ele e Derek
trocaram algumas palavras rituais, conforme prescrito pela Providência. Ele
e Lorde Alfred se abraçaram superficialmente. Por fim, Gunthar procurou
Sturm. O jovem cavaleiro, vestido com uma armadura simples e surrada, se
destacava da multidão.
— Brightblade — disse Gunthar em voz baixa quando se aproximou
dele — eu queria perguntar algo, mas nunca encontrei um momento nesses
últimos dias. Você mencionou que esses seus amigos viriam para Sancrist.
Há alguém que possa servir como testemunha perante o Conselho?
Sturm parou. Por um momento, a única pessoa em que ele conseguia
pensar era em Tanis. Seus pensamentos estavam no amigo durante os últi-
mos dias difíceis. Ele até teve uma onda de esperança de que Tanis chegasse
a Sancrist. Mas a esperança morrera. Onde quer que Tanis estivesse, ele
tinha seus próprios problemas, enfrentava seus próprios perigos. Também
havia outra pessoa, a quem ele esperava além da esperança poder ver. Sem
pensamento consciente, Sturm colocou a mão sobre a Joia Estelar que pen-
dia do pescoço contra o peito. Ele quase podia sentir seu calor e sabia, sem
saber como, que, embora estivesse longe, Alhana estava com ele. Então...
— Laurana! — ele disse.
— Uma mulher? — Gunthar franziu a testa.
— Sim, mas a filha do Orador dos Sóis, membro da casa real dos quali-
nesti. E também há seu irmão, Gilthanas. Ambos testemunhariam por mim.
— A casa real... — Gunthar refletiu. O rosto dele se iluminou. — Isso
seria perfeito, especialmente porque recebemos a notícia de que o próprio

282
Orador comparecerá ao Alto Conselho para discutir o orbe do dragão. Se
isso acontecer, meu rapaz, vou informá-lo de alguma forma e você poderá
colocar essa armadura novamente! Você será inocentado! Livre para usá-la,
sem humilhações!
— E você estará livre de sua promessa — disse Sturm, apertando a
mão do cavaleiro com gratidão.
— Ora! Não pense nisso. — Gunthar colocou a mão na cabeça de
Sturm, como colocara a mão na cabeça de seus próprios filhos. Sturm se
ajoelhou diante dele com reverência. — Receba minha bênção, Sturm
Brightblade, a bênção de um pai que dou na ausência de seu próprio pai.
Cumpra seu dever, jovem, e continue sendo o filho de seu pai. Que o espí-
rito de Lorde Huma esteja com você.
— Obrigado, meu senhor — disse Sturm, se levantando. — Adeus.
— Adeus, Sturm — disse Gunthar. Abraçando o jovem cavaleiro
rapidamente, ele virou e se afastou.
Os cavaleiros entraram nos navios. Era alvorada, mas nenhum sol
brilhava no céu de inverno. Nuvens cinzentas pairavam sobre um mar
cinza-chumbo. Não houve aplausos, os únicos sons foram os comandos
gritados do capitão e as respostas de sua tripulação, o rangido dos guinchos
e o bater das velas ao vento.
Lentamente, os navios de asas brancas levantaram âncora e navegaram
para o norte. Logo, a última vela estava fora de vista, mas ainda assim nin-
guém saiu do píer, nem mesmo quando uma chuva súbita caiu, atingindo a
todos com granizo e gotas de gelo, puxando uma cortina fina e cinza através
das águas geladas.

283
3
O orbe do dragão.
A promessa de Caramon.

aistlin estava parado na entrada pequena da carroça, seus olhos


dourados olhando para a floresta iluminada pelo sol. Tudo
estava quieto. A época de Yule havia passado. O campo estava
dominado pelas garras do inverno. Nada se mexia na terra coberta de neve.
Seus companheiros saíram, ocupados com várias tarefas. Raistlin assentiu
sombriamente. Ótimo. Virando, ele voltou para dentro da carroça e fechou
as portas de madeira com firmeza.
Os companheiros estavam acampados aqui há vários dias, nos arredores
de Kendermore. Sua jornada estava chegando ao fim. Ela fora incrivelmente
bem-sucedida. Esta noite, eles partiriam, viajando para Naufrágio sob a co-
bertura da escuridão. Tinham dinheiro suficiente para contratar um navio,
além de algumas sobras para os suprimentos e o pagamento da hospedagem
de uma semana em Naufrágio. Esta tarde fora sua apresentação final.
O jovem mago atravessou a bagunça até o fundo da carroça. Seu olhar
demorou no manto vermelho cintilante que pendia de um prego. Tika
começou a guardá-lo, mas Raistlin resmungou para ela ameaçadoramente.
Dando de ombros, ela deixou para lá, saindo para andar pela floresta saben-
do que Caramon, como sempre, a encontraria.
Raistlin estendeu a mão fina para tocar o manto, os dedos delgados
acariciando o tecido brilhante de lantejoulas melancolicamente, lamentan-
do que este período em sua vida acabara.
— Eu fui feliz — murmurou para si mesmo. — Estranho. Não hou-
ve muitas vezes na minha vida em que eu pudesse fazer essa afirmação.
Certamente não quando eu era jovem, nem nos últimos anos, depois que
torturaram meu corpo e me amaldiçoaram com esses olhos. Mas nunca
esperei felicidade. Como é insignificante, comparada à minha mágica!
Ainda assim... estas últimas semanas foram de paz. Semanas de felicidade.
Suponho que não voltarão novamente. Não depois do que devo fazer...
Raistlin segurou o manto por mais um momento e, encolhendo os
ombros, o jogou em um canto, continuou na parte de trás da carroça onde
cercara com cortinas para seu uso particular. Uma vez dentro, fechou as
cortinas firmemente.
Excelente. Ele teria privacidade por várias horas, até o anoitecer, de fato.
Tanis e Vento Ligeiro foram caçar. Caramon também, supostamente, embora
todos soubessem que isso era apenas uma desculpa para ele encontrar tempo
a sós com Tika. Lua Dourada estava preparando comida para a jornada.
Ninguém o incomodaria. O mago assentiu satisfeito consigo mesmo.
Sentado na mesinha que Caramon construíra para ele, Raistlin retirou
cuidadosamente do bolso mais interno de seus mantos um saco de aparência
comum, o saco que continha o orbe do dragão. Seus dedos esqueléticos tre-
meram quando ele puxou o cordão. A bolsa se abriu. Se abaixando, Raistlin
agarrou o orbe do dragão e o retirou. Segurou com facilidade na palma da
mão, o inspecionando de perto para ver se havia alguma mudança.
Não. Uma cor verde fraca ainda rodopiava por dentro. Ainda parecia
frio ao toque, como se ele segurasse uma pedra de granizo. Sorrindo, Rais-
tlin segurou o orbe firmemente em uma mão enquanto mexia nos adereços
embaixo da mesa. Finalmente encontrou o que procurava, um suporte de
madeira esculpido com três pernas. Erguendo-o, Raistlin o colocou sobre
a mesa. Não era nada demais... Flint teria zombado. Raistlin não tinha o
amor nem a habilidade necessária para trabalhar a madeira. Ele o esculpira

285
arduamente, em segredo, trancado dentro da carroça agitada durante os
longos dias na estrada. Não, não era muito bonito de olhar, mas ele não se
importava. Servia ao seu propósito.
Deixando o suporte sobre a mesa, ele encaixou o orbe do dragão. O
orbe do tamanho de uma bola de gude parecia ridículo, mas Raistlin se
sentou, esperando pacientemente. Como esperava, logo o orbe começou a
crescer. Ou não? Talvez ele estivesse encolhendo. Raistlin não sabia. Sabia
apenas que, de repente, o orbe estava do tamanho certo. Se alguma coisa
estava diferente, era ele que era pequeno demais, insignificante demais para
estar na mesma sala que o orbe.
O mago balançou a cabeça. Devia permanecer no controle, ele sabia,
e imediatamente percebeu os truques sutis que o orbe estava fazendo para
minar esse controle. Logo, esses truques não seriam sutis. Raistlin sentiu sua
garganta apertar. Ele tossiu, amaldiçoando seus pulmões fracos. Puxando
um fôlego trêmulo, ele se forçou a respirar profunda e facilmente.
“Relaxar”, ele pensou. “Preciso relaxar. Eu não temo. Eu sou forte.
Veja o que eu fiz!” Silenciosamente, ele chamou o orbe: Veja o poder que
obtive! Testemunhe o que eu fiz na Floresta Escura. Testemunhe o que eu
fiz em Silvanesti. Eu sou forte. Eu não temo.
As cores do orbe rodaram suavemente. Ele não respondeu.
O mago fechou os olhos por um momento, tirando o orbe de sua
vista. Recuperando o controle, ele os abriu novamente, olhando a esfera
com um suspiro. O momento se aproximava.
O orbe do dragão estava agora de volta ao seu tamanho original. Ele
quase podia ver as mãos encarquilhadas de Lorac o agarrando. O jovem
mago tremeu involuntariamente. “Não! Pare com isso!”, disse a si mesmo
com firmeza e imediatamente baniu a visão de sua mente.
Mais uma vez ele relaxou, respirando regularmente, seus olhos de
ampulheta focados no orbe. Então, lentamente, ele esticou os dedos
delgados, de cor metálica. Após um momento de hesitação final, Raistlin
colocou as mãos sobre o cristal frio do orbe do dragão e pronunciou as
palavras antigas.
— Ast bilak moiparalan/Suh akvlar tantangusar. — Como ele sabia o
que dizer? Como sabia que palavras antigas levariam o orbe a entendê-lo
e a perceber sua presença? Raistlin não sabia. Sabia apenas que, de alguma
forma, em algum lugar dentro dele, ele conhecia as palavras! A voz que

286
falara com ele em Silvanesti? Possivelmente. Isso não importava. Mais uma
vez, disse as palavras em voz alta.
— Ast bilak moiparalan/Suh akvlar tantangusar! — Lentamente, a cor
verde flutuante ficou submersa em uma miríade de cores rodopiantes e
deslizantes que o deixaram tonto ao assistir. O cristal estava tão frio sob
as palmas das mãos que era doloroso tocá-lo. Raistlin teve uma visão ater-
radora de ao afastar as mãos e deixar a carne para trás, congelada ao orbe.
Cerrando os dentes, ele ignorou a dor e sussurrou as palavras novamente.
As cores deixaram de girar. Uma luz brilhava no centro, uma luz nem
branca nem preta, de todas as cores, mas de nenhuma. Raistlin engoliu em
seco, lutando contra o catarro sufocante que subia em sua garganta.
Duas mãos saíram da luz! Ele teve uma vontade desesperada de tirar as
suas, mas antes que pudesse se mover, as duas mãos agarraram as dele com
um aperto forte e firme. O orbe desapareceu! O quarto desapareceu! Rais-
tlin não via nada ao seu redor. Nenhuma luz. Nenhuma escuridão. Nada!
Nada... além das duas mãos, segurando as dele. Por puro terror, Raistlin se
concentrou nessas mãos.
Humanas? Élficas? Velhas? Jovens? Ele não sabia dizer. Os dedos eram
longos e esbeltos, mas seu aperto era o da morte. Se soltasse, cairia no vazio,
flutuando até que a escuridão misericordiosa o consumisse. Mesmo quando
se agarrava a essas mãos, com a força emprestada pelo medo, Raistlin perce-
beu que as mãos estavam o puxando lentamente para... para...
Raistlin voltou a si mesmo de repente, como se alguém tivesse jogado
água fria em seu rosto. Não! ele disse à mente que sentia controlar as mãos.
Eu não irei! Embora temesse perder esse aperto salvador, ele temia ainda
mais ser arrastado para onde não queria ir. Ele não soltaria. Vou manter
o controle, disse à mente das mãos de maneira selvagem. Forçando seu
próprio aperto, o mago convocou toda sua força, toda sua vontade e puxou
as mãos em sua direção!
As mãos pararam. Por um momento, as duas vontades competiram
juntas, travadas em uma disputa de vida ou morte. Raistlin sentiu a força
diminuir de seu corpo, suas mãos enfraquecidas, as palmas das mãos co-
meçaram a suar. Sentiu as mãos do orbe começarem a puxá-lo novamente,
ainda que levemente. Em agonia, Raistlin invocou cada gota de sangue,
concentrou todos os nervos, sacrificou todos os músculos de seu corpo
frágil para recuperar o controle.

287
Lentamente... lentamente... assim que ele pensou que seu coração
sairia do peito ou seu cérebro explodia em chamas... Raistlin sentiu as mãos
cederem. Elas ainda o apertavam firmemente, assim como ele as apertava.
Mas os dois não estavam mais em disputa. Suas mãos e as mãos do orbe
do dragão permaneceram travadas, cada uma respeitando a outra, sem
procurar domínio.
O êxtase da vitória, o êxtase da magia fluiu através de Raistlin e explodiu,
o envolvendo em uma luz quente e dourada. Seu corpo relaxou. Tremendo,
ele sentiu as mãos o segurando gentilmente, apoiando, dando força.
“O que é você?”, ele questionou silenciosamente. “Você é bom? Mau?”
Não sou nenhum. Sou nada. Sou tudo. A essência dos dragões capturados
há muito tempo é o que eu sou.
“Como você funciona?” Perguntou Raistlin. “Como você controla
os dragões?”
Ao seu comando, eu os chamarei até mim. Eles não podem resistir ao meu
chamado. Eles vão obedecer.
“Eles se voltarão contra seus mestres? Cairão sob o meu comando?”
Isso depende da força do mestre e do vínculo entre os dois. Em alguns casos,
é tão forte que o mestre pode manter o controle do dragão. Mas a maioria fará
o que você pedir. Eles não podem evitar.
“Eu preciso estudar isso”, Raistlin murmurou, sentindo-se cada vez
mais fraco. “Eu não entendo...”
Calma. Eu vou ajudá-lo. Agora que nos unimos, você pode procurar
minha ajuda com frequência. Conheço muitos segredos há muito esquecidos.
Eles podem ser seus.
“Quais segredos?” ... Raistlin se sentiu perdendo a consciência. O
esforço fora demasiado. Ele se esforçou para manter o controle sobre as
mãos, mas sentiu o aperto escorregar.
As mãos o seguravam gentilmente, como uma mãe segura o filho.
Relaxe, não deixarei você cair. Durma. Você está cansado.
“Me diga! Eu preciso saber!” Raistlin gritou em silêncio.
Só vou dizer isso e então você deve descansar. Na biblioteca de Astinus de
Palanthas existem livros, centenas de livros, levados pelos magos de antigamente
nos dias da Batalha Perdida. Para todos que olham para esses livros, eles pare-
cem nada mais do que enciclopédias de magia, histórias monótonas de magos
que morreram nas cavernas do tempo.
Raistlin viu a escuridão rastejando em sua direção. Ele apertou as mãos.

288
“O que os livros contêm de verdade?” ele sussurrou.
Então ele soube e, com o conhecimento, a escuridão caiu sobre ele
como a onda de um oceano.

Em uma caverna perto da carroça, escondidos pelas sombras, aquecida


pelo calor de sua paixão, Tika e Caramon estavam deitados nos braços um
do outro. Os cabelos ruivos de Tika grudavam no rosto e na testa em cachos
apertados, os olhos estavam fechados, os lábios carnudos separados. Seu
corpo macio em sua saia de cores alegres e uma blusa branca de mangas
compridas estava pressionado contra o de Caramon. As pernas dela entrela-
çavam as dele, sua mão acariciava o rosto dele, seus lábios se roçavam.
— Por favor, Caramon — ela sussurrou. — Isso é tortura. Nós quere-
mos um ao outro. Não estou com medo. Por favor, me ame!
Caramon fechou os olhos. Seu rosto brilhava de suor. A dor do seu
amor parecia impossível de suportar. Ele poderia acabar com isso, acabar
com tudo em um doce êxtase. Por um momento, ele hesitou. Os cabelos
perfumados de Tika estavam nas suas narinas, os lábios macios no seu
pescoço. Seria tão fácil... tão maravilhoso...
Caramon suspirou. Firmemente, ele segurou os pulsos de Tika com
as mãos fortes. Firmemente, ele os afastou do rosto e empurrou a garota.
— Não — ele disse, sua paixão o sufocando. Rolando, ele se levantou.
— Não — ele repetiu. — Me desculpe. Eu não pretendia... deixar as coisas
chegarem tão longe.
— Bem, eu pretendia! — Tika gritou. — Eu não estou assustada!
Não mais.
“Não”, ele pensou, pressionando as mãos contra a cabeça latejante.
“Sinto você tremendo em minhas mãos como um coelho preso.” Tika
começou a amarrar o cordão da sua blusa branca. Incapaz de ver através das
lágrimas, ela puxou o cordão tão violentamente que ele partiu.
— Pronto! Olha só! — Ela jogou o cordão de seda partido na caver-
na. — Arruinei minha blusa! Vou ter que consertar. Todos saberão o que
aconteceu, claro! Ou pensam que saberão! Eu... eu... Ah, para que isso!
Chorando de frustração, Tika cobriu o rosto com as mãos, balançando
para frente e para trás.
— Não ligo para o que eles pensam! — Caramon disse, sua voz ecoan-
do na caverna. Ele não a confortou. Sabia que, se a tocasse novamente,

289
cederia à sua paixão. — Além disso, eles não pensam em nada. São nossos
amigos. Eles se preocupam conosco...
— Eu sei! — Tika gritou, entrecortada. — É Raistlin, não é? Ele não
me aprova. Ele me odeia!
— Não diga isso, Tika. — A voz de Caramon era firme. — Se ele a
odiasse e se fosse mais forte, não importaria. Não me importaria com o que
alguém dissesse ou pensasse. Os outros querem que sejamos felizes. Eles
não entendem por que nós... não nos tornamos... ahm... amantes. Tanis até
me disse na minha cara que eu era um tolo...
— Ele está certo. — A voz de Tika estava abafada pelos cabelos úmidos
pelas lágrimas.
— Talvez. Talvez não.
Algo na voz de Caramon fez a garota parar de chorar. Ela o observou
quando Caramon se virou para encará-la.
— Você não sabe o que aconteceu com Raist nas Torres da Alta Magia.
Nenhum de vocês sabe. Nenhum de vocês jamais saberá. Mas eu sei. Eu
estava lá. Eu vi. Eles me fizeram ver! — Caramon estremeceu, colocando as
mãos sobre o rosto. Tika ficou muito quieta. Então, a encarando novamen-
te, ele respirou fundo. — Eles disseram: “Sua força salvará o mundo”. Que
força? Força interior? Eu sou a força exterior dele! Eu... eu não entendo,
mas Raist me disse no sonho que éramos uma pessoa só, amaldiçoada pelos
deuses e dividida em dois corpos. Precisamos um do outro... agora, pelo
menos. — O rosto do grandalhão escureceu. — Talvez um dia isso mude.
Talvez algum dia ele encontre a força externa...
Caramon ficou em silêncio. Tika engoliu em seco e passou a mão
no rosto.
— Eu... — ela começou, mas Caramon a interrompeu.
— Espere um minuto — disse ele. — Me deixe terminar. Eu te amo,
Tika, tão verdadeiramente quanto qualquer homem ama qualquer mulher
neste mundo. Quero fazer amor com você. Se não estivéssemos envolvidos
nessa guerra estúpida, eu a teria para mim hoje. Neste minuto. Mas não
posso. Porque, se eu fizesse, seria um compromisso com você que eu dedicaria
minha vida para manter. Você deve vir em primeiro lugar em todos os meus
pensamentos. Você não merece nada menos que isso. Mas não posso assumir
esse compromisso, Tika. Meu primeiro compromisso é com meu irmão. —
As lágrimas de Tika correram novamente, desta vez não por ela mesma, mas
por ele. — Devo deixar você livre para encontrar alguém que possa...

290
— Caramon! — Um grito partiu o silêncio doce da tarde. — Cara-
mon, venha rápido! — Era Tanis.
— Raistlin! — disse o grandalhão e, sem outra palavra, saiu correndo
da caverna.
Tika parou por um momento, olhando para ele. Então, suspirando,
tentou pentear os cabelos úmidos.
— O que foi? — Caramon entrou na carroça. — Raist?
Tanis assentiu, com o rosto sério.
— Eu o encontrei assim. — O meio-elfo puxou a cortina para o
pequeno apartamento do mago. Caramon o empurrou para o lado.
Raistlin estava deitado no chão, a pele branca, a respiração superficial.
Sangue escorria de sua boca. Ajoelhado, Caramon o levantou nos braços.
— Raistlin? — ele sussurrou. — O que aconteceu?
— Isso foi o que aconteceu — disse Tanis sombriamente, apontando.
Caramon olhou para cima, seu olhar parando no orbe do dragão,
agora crescido até o tamanho que Caramon vira em Silvanesti. Estava no
suporte que Raistlin havia feito, suas cores rodando e mudando sem parar
enquanto ele observava. Caramon respirou fundo, horrorizado. As visões
terríveis de Lorac inundaram sua mente. Lorac insano, morrendo...
— Raist! — ele gemeu, segurando seu irmão com força.
A cabeça de Raistlin se moveu debilmente. Suas pálpebras tremeram
e ele abriu a boca.
— O que? — Caramon se curvou para baixo, a respiração do irmão
fria sobre sua pele. — O que? -
— Minhas... — Raistlin sussurrou. — Magias... dos antigos... mi-
nhas... Minhas... — A cabeça do mago relaxou, suas palavras morreram.
Mas seu rosto estava calmo, plácido, relaxado. Sua respiração ficou regular.
Os lábios finos de Raistlin se abriram em um sorriso.

291
4
Visitantes da festa de Yule.

evou vários dias de cavalgada inclemente para Lorde Gunthar


chegar a sua casa a tempo do Yule, após a partida dos cavaleiros
para Palanthas. As estradas estavam cheias de lama até os joelhos.
Seu cavalo afundou mais de uma vez e Gunthar, que amava o cavalo tanto
quanto os seus filhos, andava sempre que necessário. Quando retornou ao
castelo, ele estava exausto, encharcado e tremendo. O cavalariço saiu para
cuidar pessoalmente do cavalo.
— Esfregue-o bem — disse Gunthar, desmontando rigidamente.
— Aveia quente e... — Ele continuou com suas instruções, o cavalariço
assentindo pacientemente, como se nunca tivesse cuidado de um cavalo na
vida. Gunthar estava, de fato, a ponto de levar seu cavalo para os estábulos
quando seu serviçal mais velho saiu à sua procura.
— Meu senhor. — Wills chamou Gunthar para um lado na entrada.
— Você tem visitas. Eles chegaram apenas há algumas horas.
— Quem? — Gunthar perguntou sem muito interesse, os visitantes
não sendo novidade, especialmente durante o Yule. — Lorde Michael? Ele
não podia viajar conosco, mas pedi que parasse no caminho de casa...
— Um velho, meu senhor — interrompeu Wills — e um kender.
— Um kender? — Gunthar repetiu com algum alarme.
— Temo que sim, senhor. Mas não se preocupe — o serviçal acres-
centou apressadamente. — Tranquei a prataria em uma gaveta e sua esposa
levou as joias para o porão.
— Eu pensei que estávamos sitiados! — Gunthar bufou. No entanto,
ele atravessou o pátio mais rápido do que o habitual.
— É preciso ter muito cuidado com essas criaturas, meu senhor —
murmurou Wills, seguindo atrás dele.
— Quem são esses dois, então? Mendigos? Por que os deixou en-
trar? — Gunthar exigiu, começando a ficar irritado. Tudo o que queria era
seu vinho quente, roupas quentes e uma massagem da sua esposa. — Dê
comida, dinheiro e mande-os embora. Reviste o kender primeiro, claro.
— Eu ia, meu senhor — disse Wills, teimoso. — Mas há algo sobre
eles... o velho em particular. Ele é louco, se me perguntar, mas é um sujeito
inteligente. Sabe de alguma coisa e isso pode ser mais do que bom para ele...
ou para nós também.
— Como assim?
Os dois tinham acabado de abrir as enormes portas de madeira que
levavam aos aposentos do castelo. Gunthar parou e olhou para Wills, co-
nhecendo e respeitando o grande poder de observação de seu serviçal. Wills
olhou em volta, depois se inclinou para perto.
— O velho disse que eu deveria contar que ele tinha notícias urgentes
sobre o orbe do dragão, meu senhor!
— O orbe do dragão! — Gunthar murmurou. O orbe era um segredo
ou ele presumiu que fosse. Os Cavaleiros sabiam dele, claro. Derek contou
a mais alguém? Essa foi uma de suas manobras?
— Você agiu com sabedoria, Wills, como sempre — disse Gunthar
finalmente. — Onde eles estão?
— Eu os coloquei na sua sala de guerra, senhor, imaginando que
poderiam causar pouca confusão por lá.
— Vou trocar de roupa antes que eu fique gripado e depois vou direto
até eles. Você os deixou confortáveis?

293
— Sim, meu senhor — respondeu Wills, correndo atrás de Gunthar,
que estava em movimento novamente. — Vinho quente, um pouco de pão
e carne. Embora eu acredite que o kender já tenha surrupiado os pratos...

Gunthar e Wills ficaram do lado de fora da porta da sala de guerra por


um momento, escutando a conversa dos visitantes.
— Ponha isso de volta! — ordenou uma voz severa.
— Não coloco! É meu! Olha, estava na minha bolsa.
— Ora! Eu vi você colocar nela não faz cinco minutos!
— Bem, você está errado — protestou a outra voz em tom magoado.
— É meu! Veja, meu nome está gravado...
— “Para Gunthar, meu amado marido, no Dia da Dádiva da Vida”
— disse a primeira voz.
Houve um momento de silêncio na sala. Wills ficou pálido. Então, a
voz estridente falou, mais suave dessa vez.
— Acho que deve ter caído na minha bolsa, Fizban. É isso! Veja, mi-
nha bolsa estava embaixo da mesa. Não foi sorte? Teria quebrado se tivesse
caído no chão...
Com o rosto sombrio, Lorde Gunthar abriu a porta.
— Feliz Yule para vocês, senhores — ele disse. Wills apareceu depois
dele, seus olhos passando rapidamente pela sala.
Os dois estranhos se viraram, o velho segurando uma caneca de louça
na mão. Wills deu um salto até a caneca, a levando embora. Com um olhar
indignado para o kender, ele a colocou sobre a prateleira, bem acima do
alcance do kender.
— Mais alguma coisa, meu senhor? — Wills perguntou, olhando
escancaradamente para o kender. — Devo ficar e ficar de olho nas coisas?
Gunthar abriu a boca para responder, mas o velho acenou com a
mão negligente.
— Sim, obrigado, meu bom homem. Traga mais um pouco de cerve-
ja. E não traga nenhuma dessas coisas podres dos barris dos criados! — O
velho olhou para Wills com firmeza. — Tire do barril que está no canto
escuro, perto da escada da adega. Você sabe... aquele todo coberto de teias.
Will o encarou de boca aberta.
— Bem, continue. Não fique aí boquiaberto como um peixe em terra
firme! Meio apalermado, não é? — perguntou o velho a Gunthar.

294
— N-não — Gunthar gaguejou. — Tudo bem, Wills. Eu... eu acredi-
to que vou querer uma caneca também... da... cerveja do barril perto da...
ahm... escada. Como sabia? — Ele exigiu do velho, desconfiado.
— Oh, ele é um mago — disse o kender, encolhendo os ombros e se
sentando sem ser convidado.
— Um mago? — O velho olhou ao redor. — Onde?
Tas sussurrou algo, cutucando o velho.
— É mesmo? Eu? — ele disse. — Não diga! Que notável. Agora, sabe,
parando para pensar, eu me lembro de uma magia... Bola de fogo. Como
eu lançava?
O velho mago começou a falar as palavras estranhas. Assustado, o
kender saltou da cadeira e agarrou o velho.
— Não, Ancião! — ele disse, puxando-o de volta para uma cadeira.
— Agora não!
— Suponho que não — disse o velho melancólico. — Mas é uma
magia maravilhosa...
— Tenho certeza — murmurou Gunthar, absolutamente confuso.
Então ele balançou a cabeça, recuperando a severidade. — Agora, expli-
quem-se. Quem são vocês? Por que estão aqui? Wills disse algo sobre um
orbe de dragão...
— Meu nome é... — O mago parou, piscando.
— Fizban — disse o kender com um suspiro. De pé, ele estendeu a
mãozinha educadamente para Gunthar. — E eu sou Tasslehoff Burrfoot.
— Ele começou a se sentar. — Ah — ele disse, levantando novamente. —
Um feliz Yule para você também, senhor cavaleiro.
— Sim, sim — Gunthar apertou as mãos, assentindo distraidamente.
— Agora, sobre o orbe do dragão?
— Ah, sim, o orbe do dragão! — O olhar confuso deixou o rosto de
Fizban. Ele olhou para Gunthar com olhos perspicazes, astutos. — Onde
ele está? Percorremos um longo caminho em busca dele.
— Receio não poder contar — disse Gunthar friamente. — Se, de
fato, uma coisa dessas já esteve aqui...
— Oh, estava aqui — respondeu Fizban. — Trazido a você por um Cava-
leiro da Rosa, um tal Derek Crownguard. E Sturm Brightblade estava com ele.
— Eles são meus amigos — explicou Tasslehoff, vendo o queixo de
Gunthar afrouxar. — Na verdade, eu ajudei a obter o orbe — acrescentou o
kender modestamente. — Tiramos ele de um mago maligno em um palácio

295
feito de gelo. É a história mais maravilhosa... — ele se sentou animado. —
Você quer ouvi-la?
— Não — disse Gunthar, olhando surpreso para os dois. — E se eu
acreditasse neste conto de pássaros nadando... espere... — Ele afundou na
cadeira. — Sturm disse algo sobre um kender. Quem eram os outros no
seu grupo?
— Flint, o anão, Theros, o ferreiro, Gilthanas e Laurana...
— Precisamente! — Gunthar exclamou, então ele franziu a testa. —
Mas ele nunca mencionou um mago...
— Ah, é porque estou morto — afirmou Fizban, apoiando os pés
sobre a mesa.
Os olhos de Gunthar se arregalaram, mas antes que ele pudesse
responder, Wills entrou. Olhando fixamente para Tasslehoff, o serviçal
colocou as canecas na mesa em frente ao seu senhor.
— Três canecas aqui, meu senhor. Quatro, com aquela na prateleira.
E é melhor haver quatro quando eu voltar!
Ele saiu, fechando a porta com um baque.
— Ficarei de olho nelas — Tas prometeu solenemente. — Você tem
algum problema com pessoas roubando canecas? — perguntou a Gunthar.
— Eu... não... Morto? — Gunthar sentiu que estava perdendo rapida-
mente o controle da situação.
— É uma longa história — disse Fizban, engolindo o líquido de uma
só vez. Ele limpou a espuma dos lábios com a ponta da barba. — Ah,
excelente. Agora, onde eu estava?
— Morto — disse Tas prestativamente.
— Ah, sim. Uma longa história. Longa demais para agora. Devo pegar
o orbe. Onde ele está?
Gunthar levantou-se com raiva, com a intenção de ordenar que esse
velho estranho e esse kender saíssem de sua câmara e de seu castelo. Ele
chamaria seus guardas para tirá-los. Mas, em vez disso, se viu pego pelo
olhar intenso do velho.
Os Cavaleiros de Solamnia sempre temeram a magia. Embora não tives-
sem participado da destruição das Torres da Alta Magia, o que teria sido contra
a Providência, não se arrependeram de ver os magos expulsos de Palanthas.
— Por que quer saber? — Gunthar vacilou, sentindo um medo frio
se infiltrar em seu sangue ao sentir o estranho poder do velho o envolver.
Lenta e relutantemente, Gunthar se sentou de novo.

296
Os olhos de Fizban brilharam.
— Prefiro manter o motivo comigo — ele disse suavemente. — Basta
que você saiba que eu vim procurando o orbe. Ele foi feito por magos, há
muito tempo! Eu sei disso. Sei muito sobre isso.
Gunthar hesitou, lutando consigo mesmo. Afinal, havia cavaleiros
guardando a esfera e, se esse velho realmente sabia alguma coisa sobre isso,
que mal poderia haver em dizer a ele onde estava? Além disso, realmente
não achava que tinha escolha.
Fizban distraidamente pegou sua caneca vazia novamente e começou a
beber. Ele olhou dentro dela de forma triste enquanto Gunthar respondeu.
— O orbe do dragão está com os gnomos.
Fizban deixou cair a caneca com um estrondo. Ela se partiu em cem
pedaços que deslizaram pelo chão de madeira.
— Pronto, o que foi que eu disse? — Tas disse tristemente, olhando
para a caneca quebrada.

Os gnomos moravam no Monte Esquece desde quando conseguiram


se lembrar... e, como eram os únicos que se importavam, eram os únicos que
contavam. Certamente, eles estavam lá quando os primeiros cavaleiros chega-
ram em Sancrist, viajando do recém-criado reino de Solamnia para construir
seus fortes e fortalezas ao longo da parte mais ocidental de sua fronteira.
Sempre tendo forasteiros como suspeitos, os gnomos ficaram alar-
mados ao ver um navio chegando às suas costas, carregando hordas de
humanos altos, de rosto severo e combativos. Determinados a manter em
segredo o que consideravam um paraíso nas montanhas, os gnomos entra-
ram em ação. Sendo a raça mais voltada para a tecnologia em Krynn (eles
são conhecidos por terem inventado o motor a vapor e a mola espiralada),
os gnomos primeiro pensaram em se esconder dentro de suas cavernas nas
montanhas, mas tiveram uma ideia melhor. Esconder a própria montanha!
Após vários meses de trabalho interminável por seus maiores gênios
mecânicos, os gnomos estavam preparados. O plano deles? Fariam sua
montanha desaparecer!
Foi nesse momento que um dos membros da Guilda dos Filósofos
gnômicos perguntou se não era provável que os cavaleiros já tivessem nota-
do a montanha, a mais alta da ilha. Será que o desaparecimento repentino
da montanha não causaria uma certa curiosidade nos humanos?

297
Esta pergunta deixou os gnomos em tumulto. Dias foram gastos em
discussão. A questão logo dividiu os gnomos filósofos em duas facções:
aqueles que acreditavam que, se uma árvore caía em uma floresta e ninguém
a ouvia, ela ainda produzia um som estridente, e aqueles que acreditavam
que não. O que isso tinha a ver com a pergunta original foi levantado no
sétimo dia, mas foi prontamente encaminhado à comissão.
Enquanto isso, os Engenheiros Mecânicos, zangados, decidiram acio-
nar o dispositivo de qualquer maneira.
E assim ocorreu o dia que ainda é lembrado nos anais de Sancrist
(quando quase todo o resto fora perdido durante o Cataclismo) como o
Dia dos Ovos Podres.
Naquele dia, um ancestral de Lorde Gunthar acordou, sonolento,
imaginando se seu filho caíra novamente do telhado do galinheiro. Isso
acontecera há poucas semanas. O garoto estava perseguindo um galo.
— Você o leva para o lago — disse o ancestral de Gunthar, sonolento,
para sua esposa, rolando na cama e passando as cobertas sobre a cabeça.
— Não posso! — ela disse sonolenta. — A chaminé está soltando fumaça!
Foi então que ambos acordaram completamente, percebendo que a
fumaça que enchia a casa não vinha da chaminé e que o odor ímpio não
vinha do galinheiro.
Junto com todos os outros residentes da nova colônia, os dois correram
para fora, sufocando e engasgando com o cheiro que piorava a cada minuto.
Contudo, não conseguiam ver nada. A terra estava coberta por uma fumaça
amarela espessa, com o cheiro de ovos que ficaram ao sol por três dias.
Dentro de horas, todos na colônia estavam mortalmente enjoados
com o cheiro. Arrumando cobertores e roupas, eles foram para as praias.
Respirando a brisa fresca de sal, agradecidos, eles se perguntaram se pode-
riam voltar para suas casas.
Enquanto discutiam isso e observavam ansiosamente para ver se a
nuvem amarela no horizonte poderia se elevar, os colonos ficaram bastante
surpresos ao ver o que parecia ser um exército de criaturas baixas e marrons
cambaleando na fumaça, caindo quase sem vida a seus pés.
O povo gentil de Solamnia foi imediatamente em auxílio dos pobres
gnomos e, assim, as duas raças que viviam em Sancrist se encontraram.
O encontro dos gnomos e dos cavaleiros acabou sendo amigável.
O povo solâmnico tinha grande consideração por quatro coisas: honra
individual, o Código, a Providência e a tecnologia. Eles ficaram muito

298
impressionados com os dispositivos que poupavam mão-de-obra que os
gnomos inventaram naquela época, que incluíam a polia, o eixo, o parafuso
e a engrenagem.
Foi nessa primeira reunião que o Monte Esquece também recebeu
esse nome.
Os cavaleiros logo descobriram que, enquanto os gnomos pareciam ser
parentes dos anões, sendo baixos e atarracados, toda semelhança terminava
ali. Os gnomos eram um povo magro, de pele marrom e cabelos brancos
pálidos, muito nervosos e de cabeça quente. Falavam tão rapidamente que
os cavaleiros pensaram que estavam falando uma língua estrangeira. No
fim, era apenas o idioma comum em um ritmo acelerado. A razão para isso
ficou óbvia quando um ancião cometeu o erro de perguntar aos gnomos o
nome de sua montanha.
Traduzido de forma aproximada, era algo como: Um Monte Grande,
Enorme e Alto Feito de Vários Estratos Diferentes de Rocha, dos Quais
Identificamos Granito, Obsidiana e Quartzo com Vestígios de Outras
Rochas Nas Quais Ainda Estamos Trabalhando, que Possui Seu Próprio
Sistema de Aquecimento Interno que Estudamos para Copiar Um Dia que
Aquece a Rocha a Temperaturas que a Convertem em Estados Líquidos
e Gasosos que Ocasionalmente Vêm à Superfície e Fluem pela Lateral do
Monte Grande, Enorme e Alto...
— Esquece — disse o ancião apressadamente.
Esquece! Os gnomos ficaram impressionados. Pensar que esses huma-
nos poderiam reduzir algo tão gigantesco e imponente em algo tão simples
era maravilhoso e além da imaginação. Assim, daquele dia em diante, a
montanha foi chamada Monte Esquece, para grande alívio da Guilda dos
Cartógrafos gnômicos.
Os cavaleiros de Sancrist e os gnomos viveram em harmonia depois
disso, os cavaleiros trazendo aos gnomos questões de natureza tecnológica
que precisassem ser resolvidas e os gnomos fornecendo um fluxo constante
de novas invenções.
Quando o orbe do dragão chegou, os cavaleiros precisavam saber como
a coisa funcionava. Eles o entregaram à guarda dos gnomos, enviando dois
jovens cavaleiros para guardá-lo. O pensamento de que o orbe poderia ser
mágico não passou por suas cabeças.

299
5
Lançadores Gnômicos.

gora lembre-se. Nenhum gnomo vivo ou morto completou uma


frase em sua vida. A única maneira de chegar a algum lugar é
interrompê-los. Não se preocupe em ser rude. Eles esperam
isso — o próprio mago foi interrompido pelo aparecimento de um gnomo
vestido com mantos longos marrons, que se aproximou deles e fez uma
reverência respeitosa.
Tasslehoff estudou o gnomo com curiosidade animada. O kender
nunca vira um gnomo antes, embora antigas lendas sobre o Graygem de
Gargath indicassem que as duas raças tinham uma relação distante. Certa-
mente, havia algo de infantil no jovem gnomo, suas mãos esbeltas, expressão
ansiosa e olhos afiados e brilhantes, com a intenção de observar tudo. Mas
a semelhança terminava aí. Não havia nada da natureza descontraída dos
kender. O gnomo estava nervoso, sério e profissional.
— Tasslehoff Burrfoot — disse o kender educadamente, estendendo
a mão. O gnomo pegou a mão de Tas, olhou atentamente para ela e, sem
encontrar nada de interessante, a balançou fracamente. — E este... — Tas
começou a apresentar Fizban, mas parou quando o gnomo estendeu a mão
e segurou calmamente o hoopak do kender.
— Ah... — o gnomo disse, seus olhos brilhando quando pegou a
arma. — MandeparaummembrodaGuildadeArmas...
O guarda na entrada no térreo da grande montanha não esperou o
gnomo terminar. Estendendo a mão, ele puxou uma alavanca, gerando um
som estridente. Certo de que um dragão pousara atrás dele, Tas se virou,
pronto para se defender.
— Apito — disse Fizban. — Melhor se acostumar com isso.
— Apito? — repetiu Tas, intrigado. — Nunca ouvi um assim antes. Sai
fumaça! Como funciona... Ei! Volte aqui! Devolva meu hoopak! — ele gritou
enquanto seu cajado descia corredor, carregado por três gnomos ansiosos.
— Saladeexames — disse o gnomo, noSkimbosh...
— O que?
— Sala de Exames — traduziu Fizban. — Eu perdi o resto. Você
realmente precisa falar mais devagar — ele disse, balançando seu cajado em
direção ao gnomo.
O gnomo assentiu, mas seus olhos brilhantes estavam fixos no cajado
de Fizban. Então, vendo que era uma madeira simples e levemente desgas-
tada, o gnomo voltou sua atenção para o mago e o kender.
— Forasteiros — ele disse. — Voutentarmelembrar... Vou tentar
me lembrar, então não se preocupem, porque... — ele agora falou lenta
e distintamente — sua arma não será prejudicada, uma vez que faremos
apenas um desenho...
— Sério?! — interrompeu Tas, bastante lisonjeado. — Eu poderia
fazer uma demonstração de como ela funciona, se você quiser.
Os olhos do gnomo brilharam. — Issoseriamuito...
— E agora — interrompeu o kender novamente, se sentindo satisfeito
por estar aprendendo a se comunicar — qual é o seu nome?
Fizban fez um gesto rápido, mas era tarde demais.
— Gnoshoshallamarionininillisyylphanitdisdisslishxdie...
Ele fez uma pausa para respirar.
— Esse é o seu nome? — Tas perguntou, espantado.

301
O gnomo soltou o ar. — Sim — respondeu, um pouco desconcertado.
— É o meu primeiro nome e agora, se me deixar prosseguir...
— Espere! — exclamou Fizban. — Como seus amigos o chamam?
O gnomo respirou fundo novamente. — Gnoshoshallamarioninillis...
— Como os cavaleiros o chamam?
— Ah! — o gnomo parecia abatido — Gnosh, se você...
— Obrigado — respondeu Fizban. — Agora, Gnosh, estamos com
muita pressa. A guerra acontecendo e tudo mais. Como Lorde Gunthar
afirmou em seu comunicado, precisamos ver este orbe do dragão.
Os pequenos olhos escuros de Gnosh brilhavam. Suas mãos se torce-
ram nervosamente. — É claro que vocês podem ver o orbe do dragão já que
lorde Gunthar solicitou, mas, se eu puder perguntar, qual é o seu interesse
no orbe além da curiosidadenor...?
— Eu sou um mago... — Fizban começou.
— Ummago! — o gnomo declarou, esquecendo de falar devagar
em sua excitação. — VenhamporaquiimediatamenteparaaSaladeExamejá-
queoorbedodragãofoifeitopormagos...
Tas e Fizban piscaram sem entender.
— Oh, apenas venham... — o gnomo disse, impaciente.
Antes que soubessem o que estava acontecendo, o gnomo, ainda
falando, os apressou pela entrada da montanha, acionando um número
excessivo de sinos e apitos.
— Sala de Exames? — Tas disse em voz baixa para Fizban enquanto
corriam atrás de Gnosh. — O que isso significa? Eles não o danificariam,
não é?
— Acho que não — murmurou Fizban, as sobrancelhas brancas e
grossas se juntando em um sinistro formato de V sobre o nariz. — Gunthar
enviou cavaleiros para protegê-lo, lembra.
— Então, com o que você está preocupado? — Tas perguntou.
— Os orbes do dragão são coisas estranhas. Muito poderosas. Meu medo
— disse Fizban mais para si mesmo do que para Tas — é que tentem usá-lo!
— Mas o livro que li em Tarsis disse que o orbe podia controlar dra-
gões! — Tas sussurrou. — Isso não é bom? Quero dizer, os orbes não são
malignos, são?
— Malignos? Ah não! Não são malignos. — Fizban balançou a cabeça.
— Esse é o perigo. Não são bondosos, não são malignos. Não são nada! Ou
talvez eu deva dizer, eles são tudo.

302
Tas percebeu que provavelmente nunca obteria uma resposta direta de
Fizban, cuja mente estava longe. Precisando mudar de assunto, o kender
voltou sua atenção para seu anfitrião.
— O que seu nome significa? — Tas perguntou.
Gnosh sorriu alegremente. — No Início, Os Deuses Criaram os Gno-
mos, e Um dos Primeiros que criaram Foi Nomeado Gnosh I e Esses São os
Eventos Notáveis que Ocorreram em Sua Vida: Se Casou com Marioninillis...
Tas teve uma sensação de desânimo. — Espere... — ele interrompeu.
— Qual o tamanho é o seu nome?
— Ele enche um livro deste tamanho na biblioteca — disse Gnosh
orgulhosamente, estendendo as mãos — porque somos uma família muito
antiga, como verá quando eu continuar...
— Tudo bem — disse Tas rapidamente. Não vendo para onde estava
indo, ele tropeçou em uma corda. Gnosh o ajudou a se levantar. Olhando
para cima, Tas viu a corda subir em um ninho de cordas conectadas uma à
outra, serpenteando em todas as direções. Ele se perguntou para onde elas
iam. — Talvez outra hora.
— Mas existem algumas partes muito boas — disse Gnosh, enquanto
caminhavam em direção a uma enorme porta de aço — e eu poderia pular
para elas, se preferir, como a parte em que a tatataravó Gnosh inventou
água fervente...
— Eu adoraria ouvir. — Tas engoliu em seco. — Mas não há tempo...
— Sim, suponho que sim — disse Gnosh — e de qualquer maneira,
aqui estamos na entrada da câmara principal, então se me derem licença...
Ainda falando, ele estendeu a mão e puxou uma corda. Um apito
tocou. Dois sinos e um gongo soaram. Então, com uma explosão tremenda
de vapor que quase ferveu todos eles, duas enormes portas de aço localizadas
no interior da montanha começaram a se abrir. Quase imediatamente, as
portas travaram e, em minutos, o lugar estava repleto de gnomos, gritando,
apontando e discutindo de quem era a culpa.
Tasslehoff Burrfoot estava planejando o que faria depois que essa
aventura terminasse e todos os dragões fossem mortos (o kender tentava
manter uma perspectiva positiva). A primeira coisa que ele planejava fazer
era passar alguns meses com seu amigo Sestun, o anão tolo em Pax Tharkas.
Os anões tolos levavam vidas interessantes e Tas sabia que poderia morar lá
muito feliz, desde que não precisasse comer sua comida.

303
Mas, no momento em que Tas entrou no Monte Esquece, decidiu que
a primeira coisa que faria seria voltar e morar com os gnomos. O kender
nunca vira algo tão maravilhoso em toda a sua vida. Ele parou bruscamente.
Gnosh o encarou.
— Impressionante, não é? — ele perguntou.
— Não é exatamente a palavra que eu usaria — murmurou Fizban.
Eles estavam na parte central da cidade dos gnomos. Construída dentro
de um antigo túnel de um vulcão, tinha centenas de metros de diâmetro e
quilômetros de altura. A cidade foi construída em níveis ao redor do túnel.
Tas olhou para cima... e para cima... e para cima...
— Quantos níveis existem? — o kender perguntou, quase caindo para
trás tentando ver.
— Trinta e cinco e...
— Trinta e cinco! — Tas repetiu, maravilhado. — Eu odiaria morar
no trigésimo quinto nível. Quantas escadas vocês precisam subir?
Gnosh fungou. — Dispositivos primitivos que aprimoramos há muito
tempo e agora — ele gesticulou — vejaalgumasdasmaravilhasdatecnologia-
quetemosemoperaç...
— Estou vendo — disse Tas, abaixando os olhos ao nível do solo. —
Vocês devem estar se preparando para uma grande batalha. Nunca vi tantas
catapultas na minha vida...
A voz do kender parou. Enquanto observava, um apito soou, uma
catapulta disparou com um zunido e um gnomo saiu voando pelo ar. Tas
não estava olhando para máquinas de guerra, estava olhando para os dispo-
sitivos que substituíram as escadas!
O piso inferior da câmara estava cheio de catapultas, todo tipo de ca-
tapulta já concebida por gnomos. Havia catapultas de estilingue, catapultas
de besta, catapultas de salgueiro, catapultas a vapor (ainda experimentais,
eles estavam trabalhando para ajustar a temperatura da água).
Ao redor das catapultas, sobre as catapultas, sob as catapultas e através
das catapultas, havia quilômetros e quilômetros de cordas amarradas que
operavam uma variedade louca de engrenagens, rodas e polias, todas girando,
rangendo e com manivelas girando. Do chão, das próprias máquinas e saindo
pelas laterais das paredes, havia enormes alavancas que dezenas de gnomos
estavam empurrando, puxando ou, às vezes, os dois ao mesmo tempo.
— Por um acaso — perguntou Fizban, em tom desesperançado — a
Sala de Exames ficaria no térreo?

304
Gnosh balançou a cabeça. — Sala de Exames no nível quinze...
O velho mago soltou um suspiro de cortar o coração.
De repente, houve um som horrível de trituração que fez os dentes de
Tas rangerem.
— Ah, estão prontos para nós. Venham — disse Gnosh.
Tas pulou alegremente atrás dele quando se aproximaram de uma
catapulta gigante. Um gnomo gesticulou para eles, irritado, apontando para
uma longa fila de gnomos esperando sua vez. Tas pulou no assento da enorme
catapulta, olhando ansiosamente para dentro do túnel. Acima dele, podia ver
gnomos o observando de várias varandas, todos cercados por grandes máqui-
nas, apitos, cordas e coisas enormes e sem forma penduradas nas laterais da
parede, como morcegos. Gnosh estava ao lado dele, repreendendo.
— Os anciãos primeiro, meu jovem, entãosaiadaínesteinstanteedeixe
— ele arrastou Tasslehoff para fora do assento com uma força notável —
omagoirprimeiro...
— Ah, tudo bem — protestou Fizban, tropeçando para trás em uma
pilha de corda. — Eu... eu me lembro de uma magia que me levará direto
ao topo. Levitar. Como e-era? Apenas me dê um instante.
— Você era o único com pressa... — disse Gnosh, sério, encarando
Fizban. Os gnomos na fila começaram a gritar rudemente, empurrando,
atropelando e acotovelando.
— Oh, muito bem — rosnou o velho mago, subindo no assento com
a ajuda de Gnosh.
O gnomo operando a alavanca que lançava a catapulta gritou algo
com Gnosh que soou como “qualnível?”
Gnosh apontou para cima, gritando de volta. — Skimbosh!
O chefe foi até a primeira de uma série de cinco alavancas. Um número
excessivo de cordas se estendia para o infinito. Fizban se sentou miseravel-
mente no assento da catapulta, ainda tentando se lembrar da magia.
— Agora — gritou Gnosh, puxando Tas para que ele pudesse apro-
veitar uma vista excelente — logo logo, o chefe dará o sinal... sim, aí está...
O chefe puxou uma das cordas.
— O que isso faz? — Tas interrompeu.
— A corda toca um sino no Skimbosh, ahm, nível quinze, dizendo
para eles esperarem uma chegada...
— E se a campainha não tocar? — Fizban exigiu em voz alta.
— Então, um segundo sino toca dizendo que o primeiro sino não...

305
— O que acontece aqui embaixo se a campainha não toca?
— Nada. É problemadoSkimboshnãoseu...
— O problema é meu se eles não souberem que eu vou! — Fizban
gritou. — Ou simplesmente apareço e os surpreendo!
— Ah — Gnosh disse orgulhosamente — você vê...
— Vou sair... — afirmou Fizban.
— Não, espere — disse Gnosh, falando cada vez rápido em sua angús-
tia — eles estão prontos...
— Quem está pronto? — Fizban exigiu, irritado.
— Skimbosh! Com a rede parapegálo,sabe...
— Rede! — Fizban empalideceu. — É isso! — Ele jogou um pé por
cima da borda.
Mas, antes que pudesse se mover, o chefe estendeu a mão e puxou a
primeira alavanca. O rangido começou de novo quando a catapulta come-
çou a girar em sua amarração. O movimento repentino jogou Fizban para
trás, derrubando o chapéu sobre seus olhos.
— O que está acontecendo? — Tas gritou.
— Eles estão o colocando em posição — Gnosh gritou. — A longitu-
de e a latitude foram pré-calculadas e a catapulta deve estar no local correto
para enviar o passageiro...
— E a rede? — Tas berrou.
— O mágico voa para Skimbosh... ah, com toda a segurança, ga-
ranto... fizemos estudos, de fato, provando que voar é mais seguro do
que caminhar... e justamente quando ele estiver no auge de sua trajetória,
começando a cair, o Skimbosh lança uma rede por baixo dele, o pegando —
Gnosh demonstrou com a mão, fazendo um movimento de agarrar como
se pegasse uma mosca — e o puxa...
— Isso deve exigir uma precisão incrível!
— Mas a precisão é engenhosa, pois tudo depende de um gancho
específico que desenvolvemos — Gnosh franziu os lábios, as sobrancelhas
unidas — algo está atrasando um pouco a precisão, mas existe um comitê...
O gnomo puxou a alavanca e Fizban, com um grito agudo, voou pelo ar.
— Oh, minha nossa — disse Gnosh, olhando fixamente — parece...
— O que? O que? — Tas gritou, tentando ver.
— A rede abriu muito cedo de novo — Gnosh balançou a cabeça — e
essa é a segunda vez hoje que aconteceu apenas no Skimbosh e issodefiniti-
vamenteserátratadonapróximareuniãodaGuildadaRede...

306
Tas ficou olhando, de boca aberta, a visão de Fizban zunindo pelo ar,
impulsionado por baixo pela força tremenda da catapulta e, de repente, o
kender viu sobre o que Gnosh estava falando. A rede no nível quinze... em
vez de abrir depois que o mago passasse voando e depois pegá-lo quando
começava a cair, abriu antes do mago alcançar o nível quinze. Fizban atingiu
a rede e foi achatado como uma aranha esmagada. Por um momento, ele se
agarrou precariamente, de braços e pernas abertos, depois caiu.
Instantemente, sinos e gongos tocaram.
— Não me diga — Tas adivinhou miseravelmente. — Esse é o alarme
que significa que a rede falhou.
— De fato, mas não fique alarmado (piadinha) — Gnosh riu — por-
que os alarmes disparam um dispositivo para abrir a rede no nível treze,
bem a tempo, oops... um pouco tarde, bem, ainda existe a do nível doze...
— Faça alguma coisa! — Tas gritou.
— Não fique tão agitado. — Gnosh disse com raiva. — E eu termi-
nareioqueestavaprestesadizersobreosistemareservademergênciafinalequevai,
ah, lávaiele...
Tas observou com espanto a queda dos fundos de seis barris enormes
pendurados nas paredes no nível três, jogando milhares de esponjas no chão
no centro da câmara. Isso foi feito, aparentemente, no caso de todas as redes
em todos os níveis falharem. Felizmente, a rede no nível nove realmente
funcionou, se espalhando sob o mago bem a tempo. Então, ela se dobrou
ao seu redor e o levou até a varanda onde os gnomos, ouvindo o mago
praguejando e xingando dentro dela, pareciam relutantes em deixá-lo sair.
— Agoratudoestábemeéasuavez — disse Gnosh.
— Uma última pergunta! — Tas gritou com Gnosh quando se sen-
tou no banco. — O que acontece se o sistema reserva de emergência com
as esponjas falhar?
— É engenhoso... — disse Gnosh feliz — porque, sabe, se as esponjas
caírem um pouco tarde demais, o alarme dispara, liberando um barril
enorme de água no centro e, como as esponjas já estão lá, é fácil limpar a
bagunça...
O chefe puxou a alavanca.

Tas esperava todo tipo de coisa fascinante na Sala de Exames, mas a


encontrou, para sua surpresa, quase vazia. Ela era iluminada por um buraco
na lateral da montanha que deixava a luz do sol entrar. (Este dispositivo

307
simples, mas engenhoso, foi sugerido aos gnomos por um anão visitante
que o chamou de “janela”; os gnomos estavam bastante orgulhosos dela.)
Havia três mesas, mas pouco além disso. Na mesa central, cercada por
gnomos, repousava o orbe do dragão e seu hoopak.
Ele voltou ao seu tamanho original, Tas percebeu com interesse.
Parecia o mesmo... ainda um pedaço redondo de cristal, com uma espécie
de névoa de cor leitosa rodopiando no seu interior. Um jovem cavaleiro
de Solamnia, com uma expressão intensamente entediada, estava perto do
orbe, protegendo-o. Sua expressão entediada mudou bruscamente com a
aproximação dos estranhos.
— Muitobem — Gnosh disse ao cavaleiro tranquilizadoramente —
estes são os dois sobre os quais Lorde Gunthar enviou uma mensagem...
— Ainda falando, Gnosh os empurrou rumo à mesa central. Os olhos do
gnomo cintilavam enquanto ele observava o orbe.
— Um orbe do dragão — ele murmurou alegremente — depois de
todos esses anos...
— Que anos? — Fizban retrucou, parando a uma certa distância
da mesa.
— Sabe — explicou Gnosh — cada gnomo tem uma Missão de Vida
atribuída a ele no nascimento e, a partir de então, sua única ambição é
cumprir essa Missão de Vida e foi minha Missão de Vida estudar o orbe do
dragão desde então...
— Mas os orbes do dragão estão desaparecidos há centenas de anos!
— Tas disse incrédulo. — Ninguém sabia sobre eles! Como pode ser sua
Missão de Vida?
— Ah, nós sabíamos sobre eles — respondeu Gnosh — porque era a
Missão de Vida do meu avô e, depois, a Missão de Vida do meu pai. Ambos
morreram sem ver um orbe do dragão. Eu também temia isso, mas agora,
finalmente, alguém apareceu e posso estabelecer o lugar de nossa família na
vida após a morte...
— Você quer dizer que não pode chegar à... ahm... vida após a
morte até completar a Missão de Vida? — Tas perguntou. — Mas seu
avô e seu pai...
— Provavelmente muito desconfortáveis — disse Gnosh, parecendo
triste — onde quer que estejam... Minha nossa!
Uma mudança notável ocorreu no orbe do dragão. Ele começou a
girar e a brilhar com muitas cores diferentes... como se estivesse agitado.

308
Murmurando palavras estranhas, Fizban caminhou até o orbe e colo-
cou a mão nele. Instantaneamente, ele ficou preto. Fizban lançou um olhar
ao redor da sala, sua expressão tão séria e assustadora que até Tas recuou. O
cavaleiro saltou para a frente.
— Para trás! — o mago trovejou. — Todos vocês!
— Fui ordenado a não sair e não vou... — O cavaleiro pegou sua
espada, mas Fizban sussurrou algumas palavras. O cavaleiro caiu no chão.
Os gnomos desapareceram da sala instantaneamente, deixando apenas
Gnosh, torcendo as mãos, o rosto contorcido de agonia.
— Venha, Gnosh! — Tas pediu. — Eu nunca o vi assim. É melhor
fazermos o que ele diz. Se não o fizermos, ele pode nos transformar em
anões tolos ou algo grudento do tipo!
Choramingando, Gnosh permitiu que Tas o levasse para fora da sala.
Quando olhou de volta para o orbe do dragão, a porta se fechou.
— Minha Missão de Vida... — o gnomo lamentou.
— Tenho certeza de que vai dar tudo certo — disse Tas, embora não
tivesse nem um pouco de certeza. Ele não gostou da expressão no rosto de
Fizban. Na verdade, nem parecia ser o rosto de Fizban... ou alguém que Tas
quisesse conhecer!
Tas sentiu um calafrio e havia um nó apertado na boca do estômago.
Os gnomos murmuraram entre si e lançaram olhares tristes para ele. Tas
engoliu em seco, tentando tirar um gosto amargo da boca. Então, puxou
Gnosh para o lado.
— Gnosh, você descobriu algo sobre o orbe quando o estudou? — Tas
perguntou em voz baixa.
— Bem — Gnosh pareceu pensativo — eu descobri que existe ou
parece existir algo dentro, porque eu olhava para ele e olhava sem ver nada
por muito tempo e, exatamente quando estava pronto para desistir, eu via
palavras rodopiando na névoa...
— Palavras? — Tas interrompeu ansiosamente. — O que eles diziam?
Gnosh balançou a cabeça. — Eu não sei — disse solenemente — por-
que eu não conseguia ler. Ninguém conseguiu, nem mesmo um membro
da Guilda de Idiomas Estrangeiros...
— Magia, provavelmente — Tas murmurou para si mesmo.
— Sim — Gnosh disse miseravelmente — foi isso que decidi...
A porta se escancarou, como se algo tivesse explodido.

309
Gnosh se virou, aterrorizado. Fizban estava parado na porta, segu-
rando uma pequena sacola preta em uma mão, seu cajado e o hoopak de
Tasslehoff na outra. Gnosh passou por ele.
— O orbe! — ele gritou, tão chateado que realmente completou
uma frase.
— Você conseguiu!
— Sim, Gnosh — disse Fizban.
A voz do mago parecia cansada e Tas, o observando atentamente, viu
que estava à beira da exaustão. Sua pele estava cinza, suas pálpebras caíam.
Ele se apoiava pesadamente em seu cajado. — Venha comigo, meu rapaz
— disse ele ao gnomo. — E não se preocupe. Sua Missão de Vida será
cumprida. Mas, agora, o orbe deve ser levado ao Conselho da Pedra Branca.
— Vou com você — repetiu Gnosh espantado — para o Conselho —
ele apertou as mãos com entusiasmo — onde talvez me peçam para fazer
um relatório, você acha...
— Eu não duvidaria nem um pouco — respondeu Fizban.
— Imediatamente, me dê tempo para fazer as malas, onde estão
meus papéis...
Gnosh saiu correndo. Fizban se virou para encarar os outros gnomos
que estavam escondidos atrás dele, tentando ansiosamente tocar seu cajado.
Ele fez uma careta tão alarmante que eles tropeçaram para trás e desapare-
ceram na Sala de Exames.
— O que você descobriu? — Tas perguntou, se aproximando hesitan-
temente de Fizban. O velho mago parecia cercado pela escuridão. — Os
gnomos não fizeram nada, fizeram?
— Não, não. — Fizban suspirou. — Felizmente para eles. Pois ainda
está ativo e é muito poderoso. Muito dependerá das decisões que alguns
tomarão... talvez o destino do mundo.
— Como assim? O Conselho não tomará as decisões?
— Você não entende, meu rapaz — disse Fizban gentilmente. — Pare
um instante, eu preciso descansar. — O mago se sentou, encostando na
parede. Balançando a cabeça, ele continuou. — Concentrei minha vontade
no orbe, Tas. Ah, não para controlar dragões — acrescentou, vendo os
olhos do kender se arregalarem. — Eu vislumbrei o futuro.
— O que você viu? — Tas perguntou, hesitante, sem ter certeza que
queria saber por causa da expressão sombria do mago.

310
— Vi duas estradas se estendendo diante de nós. Se tomarmos a mais
fácil, parecerá o melhor no começo, mas a escuridão cairá no final, para
nunca mais ser removida. Se seguirmos a outra estrada, será árdua e difícil
de viajar. Poderá custar as vidas de alguns que amamos, meu caro. Pior,
pode custar aos outros suas próprias almas. Mas somente através desses
grandes sacrifícios encontraremos esperança.
Fizban fechou os olhos.
— E isso envolve o orbe? — Tas perguntou, tremendo.
— Sim.
— Você sabe o que deve ser feito para... seguir a estrada escura? — Tas
temia a resposta.
— Sim — respondeu Fizban em voz baixa. — Mas as decisões não
foram deixadas em minhas mãos. Isso depende de outros.
— Entendo — Tas suspirou. — Pessoas importantes, suponho. Pes-
soas como reis, elfos e cavaleiros. — Então, as palavras de Fizban ecoaram
em sua mente. As vidas de alguns que amamos...
De repente, um nó se formou na garganta de Tas, o sufocando. Ele
jogou sua cabeça entre as mãos. “Estava dando tudo errado nesta aventura!
Onde estava Tanis? E o bom e velho Caramon? E a bela Tika? Ele tentou
não pensar neles, principalmente depois daquele sonho.”
“E Flint... eu não deveria ter partido sem ele”, Tas pensou miseravel-
mente. “Ele pode morrer, pode estar morto agora! As vidas de alguns que
você ama! Na verdade... nunca pensei em nenhum de nós morrendo. Sempre
imaginei que, se estivéssemos juntos, poderíamos vencer qualquer coisa! Mas
agora, fomos divididos de alguma forma. E as coisas estão dando errado!”
Sentiu a mão de Fizban acariciar seu topete, sua única grande vaidade.
E, pela primeira vez em sua vida, o kender se sentiu muito perdido, sozinho
e assustado. O aperto do mago se fechou em torno dele afetuosamente.
Enterrando o rosto na manga de Fizban, Tas começou a chorar.
Fizban deu tapinhas gentis.
— Sim — repetiu o mago — pessoas importantes.

311
6
O Conselho da Pedra Branca.
Uma pessoa importante.

Conselho da Pedra Branca se reuniu no vigésimo oitavo dia de


dezembro, um dia conhecido como Dia da Fome em Solamnia,
pois relembrava o sofrimento do povo durante o primeiro inverno
após o Cataclismo. Lorde Gunthar achou apropriado realizar a reunião do
Conselho neste dia, marcado por jejum e meditação.
Fazia mais de um mês que os exércitos partiram para Palanthas. As
notícias que Gunthar recebeu daquela cidade não foram boas. De fato, um
relatório chegara cedo na manhã do dia vinte oito. Lendo duas vezes, ele
suspirou pesadamente, franziu a testa e enfiou o papel no cinto.
O Conselho da Pedra Branca se reunira uma vez antes, no passado
recente, uma reunião precipitada pela chegada dos elfos refugiados em
Ergoth do Sul e pelo aparecimento de dragões no norte de Solamnia.
Esta reunião do Conselho foi planejada durante vários meses e, portanto,
todos os membros, com assento ou consultivos, foram representados. Os
membros com assento, aqueles que podiam votar, incluíam os Cavaleiros
de Solamnia, os gnomos, os anões das colinas, o povo marinheiro de pele
escura de Ergoth do Norte e um representante dos exilados solâmnicos que
viviam em Sancrist. Os membros consultivos eram os elfos, os anões da
montanha e os kender. Esses membros foram convidados a expressar suas
opiniões, mas não podiam votar.
No entanto, a primeira reunião do Conselho não correu bem. Alguns
dos feudos e animosidades antigas entre as raças representadas explodiram
em chamas. Arman Kharas, representante dos anões da montanha, e
Duncan Martelopétreo, dos anões das colinas, tiveram que ser fisicamente
contidos em certo ponto ou o sangue daquela disputa antiga poderia ter
voltado a jorrar. Alhana Brisestelar, representante dos silvanesti na ausência
de seu pai, se recusou a falar uma palavra durante toda a sessão. Alhana fora
apenas porque Porthios dos qualinesti estava lá. Ela temia uma aliança entre
os qualinesti e os humanos e estava determinada a evitá-la.
Alhana não precisava se preocupar. Tal era a desconfiança entre hu-
manos e elfos que eles só se falavam por educação. Nem mesmo o discurso
apaixonado de Lorde Gunthar, no qual ele declarou: — Nossa unidade
começa a paz, nossa divisão acaba com a esperança! — impressionou.
A resposta de Porthios para isso foi culpar os humanos pelo reapareci-
mento dos dragões. Portanto, os humanos poderiam se livrar desse desastre.
Logo depois que Porthios deixou clara sua posição, Alhana se levantou
altivamente e saiu, sem deixar dúvidas sobre a posição dos silvanesti.
O anão da montanha, Arman Kharas, declarara que seu povo estaria
disposto a ajudar, mas até que o Martelo de Kharas fosse encontrado, os
anões da montanha não poderiam ser unidos. Ninguém sabia na época
que os companheiros recuperariam o Martelo em breve, então Gunthar foi
forçado a desconsiderar a ajuda dos anões. De fato, o único que ofereceu
ajuda foi Kronin Thistleknott, líder dos kender. Como a última coisa que
um país são queria era a “ajuda” de um exército de kenders, esse gesto foi
recebido com sorrisos educados, enquanto os membros trocavam olhares
horrorizados pelas costas de Kronin.
Portanto, o primeiro Conselho se desfez sem realizar muita coisa.
Gunthar tinha grandes esperanças para esta segunda reunião do Con-
selho. A descoberta do orbe do dragão, claro, colocava tudo sob uma luz
muito mais clara. Os representantes das duas facções élficas chegaram. Estes
incluíam o Orador dos Sóis, que trouxe consigo um humano que afirmava

313
ser um clérigo de Paladine. Gunthar ouvira muito sobre Elistan de Sturm e
esperava encontrá-lo. Quem representaria os silvanesti, Gunthar não tinha
certeza. Ele assumiu que era o senhor que fora declarado regente após o
misterioso desaparecimento de Alhana Brisestelar.
Os elfos chegaram a Sancrist dois dias atrás. Suas tendas se destacavam
nos campos, bandeiras de seda de cores alegres tremulando em brilhante
contraste com o céu cinzento e tempestuoso. Foram a única outra raça que
compareceu. Não havia tempo para enviar uma mensagem aos anões das
montanhas, e os anões das colinas estavam lutando por suas vidas contra os
exércitos dracônicos. Nenhum mensageiro poderia alcançá-los.
Gunthar esperava que este encontro unisse os humanos e os elfos na
grande luta para expulsar os exércitos dracônicos de Ansalon. Mas suas
esperanças foram frustradas antes do início da reunião.
Depois de examinar o relatório dos exércitos de Palanthas, Gunthar
deixou sua barraca, se preparando para fazer uma visita final a Clareira da
Pedra Branca para ver se tudo estava em ordem. Wills, seu serviçal, veio
correndo atrás dele.
— Meu senhor — o velho bufava — volte imediatamente.
— O que foi? — Gunthar perguntou. Mas o velho serviçal estava sem
fôlego para responder.
Suspirando, o senhor solâmnico voltou à sua tenda, onde encontrou
Lorde Michael, vestido com armadura completa, andando nervosamente.
— Qual o problema? — Gunthar disse, com o coração afundando ao
ver a expressão grave no rosto do jovem senhor.
Michael avançou rapidamente, agarrando Gunthar pelo braço.
— Meu senhor, recebemos a notícia de que os elfos exigirão a devolu-
ção do orbe do dragão. Se não devolvermos, eles estão preparados para ir à
guerra para recuperá-lo!
— O que? — Gunthar exigiu incrédulo. — Guerra! Contra nós! Isso é
ridículo! Eles não podem... Você tem certeza? Quão confiável é essa informação?
— Receio que seja muito confiável, Lorde Gunthar.
— Meu senhor, eu apresento Elistan, clérigo de Paladine — disse Mi-
chael. — Peço perdão por não tê-lo apresentado antes, mas minha mente
está em tumulto desde que ele me trouxe essa notícia.
— Ouvi falar muito sobre o senhor — disse lorde Gunthar, estenden-
do a mão para o homem.

314
Os olhos do cavaleiro estudaram Elistan com curiosidade. Gunthar
mal sabia o que esperava ver em um suposto clérigo de Paladine, talvez uma
estética de olhos fracos, pálido e magro devido aos estudos. Não estava pre-
parado para esse homem alto e de boa constituição que poderia ter cavalgado
para lutar com os melhores cavaleiros. O símbolo antigo de Paladine, um
medalhão de platina gravado com um dragão, pendia do seu pescoço.
Gunthar revisou tudo o que ouvira de Sturm sobre Elistan, incluindo
a intenção do clérigo de tentar convencer os elfos a se unirem aos humanos.
Elistan sorriu, cansado, como se estivesse ciente de todos os pensamentos que
passavam pela mente de Gunthar. Foi aos pensamentos que ele respondeu.
— Sim, eu falhei — admitiu Elistan. — Tudo o que o que consegui
foi convencê-los a participar da reunião do Conselho e eles vieram aqui
apenas, temo, para dar um ultimato: devolver o orbe aos elfos ou lutar para
ficar com ele.
Gunthar afundou em uma cadeira, gesticulando fracamente com a
mão para que os outros sentassem. À sua frente, em uma mesa, estavam
espalhados mapas das terras de Ansalon, mostrando, em tons de escuridão,
o avanço insidioso dos exércitos dracônicos. O olhar de Gunthar repousava
nos mapas, e de repente, ele os jogou no chão.
— É melhor desistirmos agora! — esbravejou. — Envie uma mensa-
gem aos Senhores dos Dragões: “Não se incomodem em vir nos destruir.
Estamos cuidando disso muito bem por conta própria”.
Irritado, ele atirou sobre a mesa a mensagem que recebera. — Aí está!
Veio de Palanthas. O povo insistiu que os cavaleiros deixassem a cidade. Os
palanthianos estão negociando com os Senhores dos Dragões e a presença
dos cavaleiros “compromete gravemente sua posição”. Se recusam a nos dar
qualquer ajuda. E assim um exército de mil palanthianos fica parado!
— O que lorde Derek está fazendo, meu senhor? — Michael perguntou.
— Ele, os cavaleiros e mil soldados de infantaria, refugiados das terras
ocupadas em Throtyl, estão fortificando a torre do Alto Clerista, ao sul de
Palanthas — disse Gunthar, cansado. — Protege a única passagem pelas
Montanhas Vingaard. Protegeremos Palanthas por um tempo, mas se os
exércitos dracônicos atravessarem... — Ele ficou calado. – Droga! — Sus-
surrou, batendo o punho suavemente sobre a mesa — Poderíamos proteger
essa passagem com dois mil homens! Tolos! E agora isso! Ele acenou com a
mão na direção das tendas élficas.
Gunthar suspirou, deixando a cabeça cair nas mãos.

315
— Bem, o que você aconselha, clérigo?
Elistan ficou quieto por um momento, antes de responder.
— Está escrito nos Discos de Mishakal que o mal, por sua própria
natureza, sempre se voltará contra si mesmo. Assim, se torna autodestru-
tivo. — Ele colocou a mão no ombro de Gunthar. — Não sei o que pode
acontecer com essa reunião. Meus deuses guardaram esse segredo de mim.
Pode ser que eles próprios não saibam, que o futuro do mundo esteja na
balança e nossa decisão aqui o determinará. Eu sei disso: Não entre com
derrota no seu coração, pois essa será a primeira vitória do mal.
Então, Elistan se levantou e saiu da tenda em silêncio.
Gunthar ficou em silêncio depois que o clérigo se foi. “De fato, parecia
que o mundo inteiro estava silencioso”, ele pensou. O vento parara durante
a noite. As nuvens de tempestade pairavam baixas e pesadas, abafando o
som de modo que até o toque da trombeta marcando o amanhecer do dia
parecia monótono. Um farfalhar quebrou sua concentração. Michael estava
lentamente recolhendo os mapas espalhados.
Gunthar levantou a cabeça, esfregando os olhos.
— O que você acha?
— Do que? Dos elfos?
— Desse clérigo — disse Gunthar, olhando para a abertura da barraca.
— Certamente não é o que eu esperava — respondeu Michael, seu
olhar seguindo o de Gunthar. — Mais parecido com as histórias que ou-
vimos dos clérigos de antigamente, os que guiaram os Cavaleiros nos dias
anteriores ao Cataclismo. Ele não parece com esses charlatães que temos
agora. Elistan é um homem que ficaria ao seu lado no campo de batalha,
invocando as bênçãos de Paladine com uma mão e empunhando sua maça
com a outra. Ele usa o medalhão que ninguém viu desde que os deuses nos
abandonaram. Mas ele é um clérigo verdadeiro? — Michael deu de ombros.
— Será necessário muito mais do que um medalhão para me convencer.
— Eu concordo. — Gunthar se levantou e começou a caminhar em
direção à aba da tenda. — Bem, está quase na hora. Fique aqui, Michael,
caso mais relatórios cheguem. — Começando a sair, ele parou na entrada
da tenda. — Como é estranho, Michael — murmurou, seus olhos seguin-
do Elistan, agora não mais do que uma mancha branca à distância. —
Sempre fomos um povo que buscou nossa esperança nos deuses, um povo
de fé que desconfiava da magia. No entanto, agora buscamos a magia em

316
busca dessa esperança e, quando aparece uma chance de renovar nossa fé,
a questionamos.
Lorde Michael não respondeu. Gunthar sacudiu a cabeça e, ainda
ponderando, caminhou até a Clareira da Pedra Branca.

Como Gunthar disse, o povo solâmnico sempre foi um seguidor fiel dos
deuses. Muito tempo atrás, nos dias que antecederam o Cataclismo, a Clarei-
ra da Pedra Branca fora um dos centros sagrados de adoração. O fenômeno
da rocha branca atraíra a atenção dos curiosos por mais tempo do qualquer
um se lembrava. O próprio Rei-Sacerdote de Istar abençoara a enorme rocha
branca que ficava no meio de uma clareira perpetuamente verde, declarando-
-a sagrada aos deuses e proibindo qualquer mortal de tocá-la.
Mesmo depois do Cataclismo, quando a crença nos deuses antigos
morreu, a Clareira permaneceu um lugar sagrado. Talvez fosse porque nem
o Cataclismo a afetara. A lenda dizia que quando a montanha de fogo caiu
do céu, o solo ao redor da Pedra Branca rachou e se partiu, mas a Pedra
Branca permaneceu intacta.
Tão impressionante era a visão da enorme rocha branca que até agora
ninguém se atreveu a se aproximar ou a tocá-la. Que estranhos poderes
possuía, ninguém poderia dizer. Tudo o que sabiam era que o ar ao redor
da Pedra Branca era sempre primaveril e quente. Por mais amargo que fosse
o inverno, a grama na Clareira da Pedra Branca sempre era verde.
Embora seu coração estivesse pesado, Gunthar relaxou quando entrou
na clareira e respirou o ar quente e doce. Por um momento, sentiu mais
uma vez o toque da mão de Elistan em seu ombro, transmitindo uma
sensação de paz interior.
Olhando rapidamente, ele viu tudo pronto. Cadeiras maciças de madei-
ra, com as costas esculpidas com ornamentos, foram colocadas na grama ver-
de. Cinco para os membros votantes do Conselho estavam do lado esquerdo
da Pedra Branca, três para os membros consultivos, do lado direito. Bancos
polidos para as testemunhas do processo, conforme exigido pela Providência,
estavam em frente à Pedra Branca e aos membros do Conselho.
Algumas das testemunhas já haviam começado a chegar, Gunthar
percebeu. A maioria dos elfos que viajava com o Orador e o senhor silva-
nesti estava sentada. As duas raças élficas afastadas estavam sentadas uma
perto da outra, além dos humanos que estavam entrando também. Todos se
sentaram em silêncio, alguns em lembrança do Dia da Fome; outros, como

317
os gnomos, que não celebravam aquele feriado, admirados com o ambiente.
Os assentos na primeira fila eram reservados para convidados de honra ou
para aqueles com permissão para falar diante do Conselho.
Gunthar viu o filho de cara severa do Orador, Porthios, entrar com
um séquito de guerreiros élficos. Eles se sentaram na frente. Gunthar se
perguntou onde Elistan estava. Pretendia pedir que ele falasse. Ficara im-
pressionado com as palavras do homem (mesmo que fosse um charlatão) e
esperava repeti-las.
Enquanto procurava por Elistan em vão, viu três figuras estranhas en-
trando e se sentando na primeira fila: era o velho mago de chapéu dobrado
e sem forma, seu amigo kender e um gnomo que eles trouxeram do Monte
Esquece. Os três acabavam de retornar de sua jornada na noite anterior.
Gunthar foi forçado a voltar sua atenção para a Pedra Branca. Os
membros consultivos do Conselho estavam entrando. Havia apenas dois,
Lorde Quinath dos silvanesti e o Orador dos Sóis. Gunthar olhou curioso
para o Orador, sabendo que ele era um dos poucos seres em Krynn que
ainda se lembrava dos horrores do Cataclismo.
O Orador estava tão curvado que parecia quase aleijado. Seus cabelos
eram grisalhos, seu rosto pálido. Mas quando se sentou e voltou o olhar
para as testemunhas, Gunthar viu que os olhos do elfo estavam brilhantes
e interessados. Lorde Quinath, sentado ao lado dele, era conhecido por
Gunthar, que o considerava arrogante e orgulhoso como Porthios dos
qualinesti, mas sem a inteligência que Porthios possuía.
Quanto a Porthios, Gunthar pensou que provavelmente poderia gostar
muito do filho mais velho do Orador. Porthios tinha todas as características
que os cavaleiros admiravam, com uma exceção, seu temperamento irritável.
As observações de Gunthar foram interrompidas, pois agora era hora
dos membros votantes do Conselho entrarem e Gunthar precisava tomar
seu lugar. Primeiro veio Mir Kar-thon de Ergoth do Norte, um homem de
pele escura, com cabelos grisalhos e os braços de um gigante. Depois veio
Serdin MarThasal, representando os exilados em Sancrist e, finalmente,
Lorde Gunthar, cavaleiro de Solamnia.
Uma vez sentado, Gunthar olhou ao redor pela última vez. A enorme
Pedra Branca brilhava atrás dele, lançando seu próprio esplendor estranho,
pois o sol não brilharia hoje. Do outro lado da Pedra Branca estava o Orador,
ao lado dele, Lorde Quinath. Em frente a eles, de frente para o Conselho,
sentavam as testemunhas em seus bancos. O kender estava sentado calmo,

318
balançando as pernas curtas no banco alto. O gnomo repassava o que pare-
cia ser uma resma de papel; Gunthar estremeceu, desejando que houvesse
tempo para pedir um relatório condensado. O velho mago bocejou e coçou
a cabeça, espiando vagamente ao redor.
Tudo estava pronto. Ao sinal de Gunthar, dois cavaleiros entraram,
carregando um suporte de ouro e um baú de madeira. Um silêncio quase
mortal desceu sobre a multidão enquanto observavam a entrada do orbe
do dragão.
Os cavaleiros pararam, em pé diretamente em frente à Pedra Branca.
Lá, um dos cavaleiros colocou o suporte de ouro no chão. O outro colocou
o baú, o destrancou e tirou com cuidado o orbe, que estava de volta ao seu
tamanho original, com mais de sessenta centímetros de diâmetro.
Um murmúrio atravessou a multidão. O Orador dos Sóis se mexeu
desconfortavelmente, carrancudo. Seu filho, Porthios, se virou para dizer
algo a um elfo perto dele. Todos os elfos estavam armados, observou Gun-
thar. Não era um bom sinal, pelo pouco que sabia sobre o protocolo élfico.
Ele não teve escolha a não ser prosseguir. Convocando a reunião,
Lorde Gunthar Uth Wistan anunciou: — Que comece o Conselho da
Pedra Branca.

Depois de dois minutos, ficou óbvio para Tasslehoff que as coisas es-
tavam realmente uma bagunça. Antes que lorde Gunthar tivesse concluído
seu discurso de boas-vindas, o Orador dos Sóis se levantou.
— Minha fala será breve — declarou o líder élfico com uma voz que
combinava com o cinza de aço das nuvens de tempestade acima dele. —
Os silvanesti, os qualinesti e os keganesti se reuniram em conselho logo
após o orbe ser removido do nosso acampamento. É a primeira vez que
os membros das três comunidades se encontram desde as Guerras Fratri-
cidas. — Ele fez uma pausa, colocando uma forte ênfase nessas últimas
palavras. Então, continuou.
— Decidimos deixar de lado nossas próprias diferenças em nosso
acordo perfeito de que o orbe do dragão pertence às mãos dos elfos, não
às mãos dos humanos ou de qualquer outra raça sobre Krynn. Portanto,
viemos ao Conselho da Pedra Branca e pedimos que o orbe do dragão nos
seja entregue imediatamente. Em troca, garantimos que o levaremos para
nossas terras e o manteremos seguro até que seja necessário, se for o caso.

319
O Orador se sentou, seus olhos escuros varrendo a multidão, seu silên-
cio agora quebrado por um murmúrio de vozes suaves. Os outros membros
do Conselho, sentados ao lado de Lorde Gunthar, balançaram a cabeça,
os rostos sombrios. O líder de pele escura do povo de Ergoth do Norte
sussurrou para Lorde Gunthar com uma voz áspera, cerrando o punho para
enfatizar suas palavras.
Lorde Gunthar, depois de ouvir e acenar com a cabeça por vários
minutos, se levantou para responder. Seu discurso foi frio, calmo, cortês
aos elfos. Mas dizia, nas entrelinhas, que os Cavaleiros veriam os elfos no
Abismo antes que entregarem o orbe do dragão.
O Orador, entendendo perfeitamente a mensagem de aço expressa nas
frases bonitas, se levantou para responder. Ele falou apenas uma frase, mas
isso levantou a multidão de testemunhas.
— Então, Lorde Gunthar — disse o Orador — os elfos declaram que,
a partir de agora... estamos em guerra!
Humanos e elfos se dirigiram para o orbe do dragão que estava sobre
seu suporte dourado, seu interior branco leitoso girando suavemente dentro
do cristal.
Gunthar gritou várias vezes, batendo com o punho da espada sobre a
mesa. O Orador falou algumas palavras bruscamente em élfico, encarando
duramente seu filho, Porthios, e finalmente a ordem foi restaurada.
Mas a atmosfera estalava, como o ar antes de uma tempestade. Gun-
thar falou. O Orador respondeu. O Orador falou. Gunthar respondeu. O
marinheiro de pele escura perdeu a paciência e fez algumas observações
mordazes sobre os elfos. O senhor dos silvanesti o reduziu a tremer a raiva
com suas réplicas sarcásticas. Vários cavaleiros foram embora, apenas para
voltar armados até os dentes. Eles se aproximaram de Gunthar, com as
mãos nas armas. Liderados por Porthios, os elfos se levantaram para cercar
seus próprios líderes.
Com seu relatório na mão, Gnosh começou a perceber que ele não
seria pedido.
Tasslehoff olhou em volta, aflito, procurando por Elistan. Ele
continuava esperando desesperadamente que o clérigo chegasse. Elistan
poderia acalmar essas pessoas. Ou talvez Laurana. Onde ela estava? Não
havia notícias de seus amigos, os elfos disseram friamente ao kender. Ela
e o irmão aparentemente desapareceram na selva. “Eu não deveria tê-los
abandonado”, pensou Tas. “Eu não deveria estar aqui. Por que, por que

320
esse velho mago louco me trouxe? Eu sou inútil! Talvez Fizban pudesse
fazer alguma coisa?” Tas olhou esperançoso para o mago, mas Fizban estava
dormindo profundamente!
— Por favor, acorde! — Tas implorou, o sacudindo. — Alguém tem
que fazer alguma coisa!
Naquele momento, ele ouviu Lorde Gunthar gritar:
— O orbe do dragão não é seu por direito! Lady Laurana e os outros
estavam trazendo para nós quando naufragaram! Você tentou o manter em
Ergoth à força e sua própria filha...
— Não mencione minha filha! — disse o Orador com uma voz pro-
funda e áspera. — Eu não tenho uma filha.
Algo quebrou dentro de Tasslehoff. Memórias confusas de Laurana
lutando desesperadamente contra o bruxo malvado que guardava a esfera,
Laurana lutando contra draconianos, Laurana disparando seu arco contra a
dragoa branca, Laurana cuidando dele com ternura quando ele estava perto
da morte. Ser expulsa por seu próprio povo quando estava trabalhando tão
desesperadamente para salvá-los, quando sacrificara tanto...
— Parem com isso! — Tasslehoff se ouviu gritando no topo dos seus
pulmões. — Parem com isso agora e me escutem!
De repente, ele viu, para sua surpresa, que todo mundo havia parado
de falar e estava olhando para ele.
Agora que tinha seu público, Tas percebeu que não fazia ideia do
que dizer a todas essas pessoas importantes. Mas sabia que tinha que dizer
alguma coisa. “Afinal”, ele pensou, “isso é culpa minha... eu li sobre esses
malditos orbes.” Engolindo em seco, ele deslizou do banco e caminhou em
direção à Pedra Branca e os dois grupos hostis se agruparam ao redor dele.
Pensou ter visto, pelo canto do olho, Fizban sorrindo por baixo do chapéu.
— Eu... eu ... — O kender gaguejou, imaginando o que dizer. Ele foi
salvo por uma inspiração repentina.
— Eu exijo o direito de representar meu povo — disse Tasslehoff com
orgulho — e tomar meu lugar no conselho consultivo.
Lançando sua mecha de cabelo castanho por cima do ombro, o kender
ficou parado em frente ao orbe do dragão. Olhando para cima, podia ver a
Pedra Branca se elevando sobre o orbe e sobre ele. Tas olhou para a pedra,
tremendo, depois rapidamente desviou o olhar da rocha para Gunthar e o
Orador dos Sóis.

321
E então Tasslehoff sabia o que precisava fazer. Ele começou a tremer de
medo. Ele, Tasslehoff Burrfoot, que nunca teve medo de nada em sua vida!
Enfrentou dragões sem tremer, mas o conhecimento do que faria agora
o assustava. Suas mãos pareciam estar fazendo bolas de neve sem luvas.
Sua língua parecia pertencer à boca de uma pessoa maior. Mas Tas estava
resoluto. Ele só tinha que os manter conversando, os impedir de adivinhar
o que planejava.
— Vocês nunca levaram a gente, kenders, muito a sério, sabem — Tas
começou, sua voz soando muito alta e estridente em seus próprios ouvidos
— e não posso dizer que os culpo muito. Acho que não temos um forte sen-
so de responsabilidade e provavelmente somos curiosos demais..., mas, eu
pergunto, como vocês descobrirão alguma coisa se não estiverem curiosos?
Tas pode ver o rosto do Orador virar aço, até Lorde Gunthar estava
carrancudo. O kender se aproximou do orbe do dragão.
— Acho que causamos muitos problemas, sem querer e, ocasional-
mente, alguns de nós adquirem certas coisas que não são nossas. Mas uma
coisa que os kender sabem é...
Tasslehoff começou a correr. Rápido e ágil como um rato, ele deslizou
facilmente pelas mãos que tentavam pegá-lo, chegando ao orbe do dragão
em questão de segundos. Rostos indistintos ao seu redor, bocas abertas,
gritando e berrando com ele. Mas era tarde demais.
Em um movimento rápido e suave, Tasslehoff jogou o orbe do dragão
na Pedra Branca imensa e brilhante.
O cristal redondo e brilhante, com seu interior rodopiando em agita-
ção, ficou suspenso no ar por longos segundos. Tas se perguntou se o orbe
teria o poder de interromper seu voo. Mas foi apenas uma impressão febril
na mente do kender.
O orbe do dragão atingiu a rocha e se despedaçou, explodindo em mil
pedaços cintilantes. Por um instante, uma bola de fumaça branca leitosa
pairou no ar, como se tentasse desesperadamente se segurar. Então a brisa
morna e quente da clareira a pegou e a separou.
Houve um silêncio intenso e terrível.
O kender se levantou, olhando calmamente para o orbe do dragão
quebrado.
— Sabemos — ele disse em voz baixa que caiu no terrível silêncio
como uma gota pequena de chuva — que deveríamos estar lutando contra
dragões. Não uns contra os outros.

322
Ninguém se mexeu. Ninguém falou. Então, houve um baque.
Gnosh desmaiou.
O silêncio foi quebrado... de forma quase tão destruidora quanto a
quebra do orbe. Lorde Gunthar e o Orador investiram contra Tas. Um
segurou o ombro esquerdo do kender, o outro o direito.
— O que você fez? — O rosto de lorde Gunthar estava lívido, os olhos
arregalados enquanto segurava o kender com mãos trêmulas.
— Você causou a morte de todos nós! — Os dedos do Orador se
afundaram na carne de Tas como as garras de um pássaro predador. — Você
destruiu nossa única esperança!
— E por isso, ele próprio será o primeiro a morrer!
Porthios, um elfo alto e de rosto sombrio, estava sobre o kender en-
colhido, a espada brilhando na mão. O kender se manteve firme entre o
rei elfo e o cavaleiro, seu rosto pequeno pálido, sua expressão desafiadora.
Quando cometeu seu crime, ele sabia que a morte seria a punição.
“Tanis ficará triste com o que fiz”, Tas pensou. “Mas, pelo menos,
ouvirá que eu morri bravamente.”
— Calma, calma, calma... — disse uma voz sonolenta. — Ninguém
vai morrer! Pelo menos, não neste momento. Pare de balançar a espada,
Porthios! Alguém vai se machucar.
Tas espreitou debaixo de um mar agitado de braços e armaduras
brilhantes para ver Fizban, bocejando, passar por cima do corpo inerte do
gnomo e cambalear em direção a eles. Elfos e humanos abriram caminho
para ele passar, como se fossem obrigados a fazê-lo por uma força invisível.
Porthios se virou para encarar Fizban, com tanta raiva que a saliva
borbulhava em seus lábios e sua fala era quase incoerente.
— Cuidado, velho, ou você compartilhará da punição!
— Eu disse para parar de balançar a espada — Fizban retrucou irrita-
do, balançando um dedo para a espada.
Porthios deixou a arma cair com um grito selvagem. Segurando a mão
ardente e dolorida, ele olhou para a espada com espanto: havia crescido
espinhos no punho dela! Fizban parou ao lado do elfo e o olhou com raiva.
— Você é um jovem muito bom, mas deveria ter aprendido a respeitar
os mais velhos. Eu disse para abaixar a espada e falei sério! Talvez você acredite
em mim na próxima vez! — O olhar triste de Fizban passou para o Orador.
— E você, Solostaran, era um homem bom há cerca de duzentos anos.
Conseguiu criar três bons filhos. Três bons filhos, eu disse. Não me venha

323
com essa bobagem de não ter uma filha. Você tem uma e ela é uma boa
garota. Tem mais senso do que o pai. Deve ter puxado o lado da mãe. Onde
eu estava? Ah, sim. Você também criou Tanis Meio-Elfo. Sabe, Solostaran,
entre esses quatro jovens, ainda podemos salvar este mundo.
— Agora. Quero que todos se sentem. Sim, você também, Lorde
Gunthar.
Venha, Solostaran, eu ajudo. Nós velhos temos que ficar juntos. Pena
que você é um idiota.
Resmungando em sua barba, Fizban levou o Orador espantado à sua
cadeira. Porthios voltou ao seu lugar com a ajuda de seus guerreiros, com o
rosto contorcido de dor.
Lentamente, os elfos e cavaleiros reunidos se sentaram, murmurando
entre si... todos lançando olhares sombrios para o orbe do dragão despeda-
çado que jazia sob a Pedra Branca.
Fizban colocou o Orador em seu assento, encarando Lorde Quinath,
que achou que tinha algo a dizer, mas rapidamente decidiu que não. Satis-
feito, o velho mago voltou para a frente da Pedra Branca, onde Tas estava
parado, abalado e confuso.
— Você — Fizban olhou para o kender como se nunca o tivesse visto
antes — vá e cuide daquele pobre sujeito. Com a mão, ele apontou para o
gnomo, que ainda estava apagado.
Sentindo os joelhos tremerem, Tasslehoff caminhou lentamente até
Gnosh e se ajoelhou ao lado dele, satisfeito por olhar para algo diferente dos
rostos zangados e cheios de medo.
— Gnosh — ele sussurrou miseravelmente, dando um tapinha na
bochecha do gnomo — me desculpe. Me desculpe mesmo. Sobre a sua
Missão de Vida e a alma do seu pai e tudo mais. Mas simplesmente não
parecia haver mais nada a fazer.
Fizban se virou devagar e encarou o grupo reunido, colocando o
chapéu na cabeça.
— Sim, eu vou dar um sermão em vocês. Vocês merecem, cada um de
vocês... então, não fiquem aí, parecendo hipócritas. Aquele kender — ele
apontou para Tasslehoff, que se encolheu — tem mais cérebro sob esse
topete ridículo que muitos de vocês juntos. Sabem o que teria acontecido
com vocês se o kender não tivesse a coragem de fazer o que fez? Sabem?
Bem, eu vou dizer. Apenas me deixem encontrar um assento... — Fizban
olhou ao redor vagamente. — Ah, sim, pronto... — Balançando a cabeça,

324
satisfeito, o velho mago se aproximou e se sentou no chão, encostando as
costas na Pedra Branca sagrada!
Os cavaleiros reunidos ofegaram, horrorizados. Gunthar ficou de pé,
estarrecido com esse sacrilégio.
— Nenhum mortal pode tocar a Pedra Branca! — ele gritou, avançando.
Fizban virou a cabeça lentamente para encarar o cavaleiro furioso.
— Mais uma palavra — disse o velho mago solenemente — e farei
seus bigodes caírem. Agora, sente-se e cale a boca!
Raivoso, Gunthar teve a atenção chamada por um gesto imperioso do
velho. O cavaleiro não pôde fazer nada além de voltar ao seu lugar.
— Onde eu estava antes de ser interrompido? — Fizban fez uma
careta. Olhando em volta, seu olhar recaiu sobre os pedaços quebrados do
orbe. — Ah, sim. Eu estava prestes a contar uma história. Um de vocês teria
ficado com o orbe, claro. E o teria levado... para mantê-lo “seguro” ou para
“salvar o mundo”. E, sim, ele é capaz de salvar o mundo, mas somente se
você souber usá-lo.
Quem de vocês tem esse conhecimento? Quem tem a força? O orbe
foi criado pelos maiores e mais poderosos magos da antiguidade. Todos
os mais poderosos.... vocês entendem? Foi criado por aqueles dos Mantos
Brancos e dos Mantos Negros. Tem a essência do mal e do bem. Os Mantos
Vermelhos reuniram as duas essências e as uniram com sua força. Existem
poucos agora com poder e força para entender o orbe, compreender seus
segredos e dominá-lo. Poucos de fato — os olhos de Fizban brilharam — e
nenhum deles está sentado aqui!
O silêncio era completo agora, um silêncio profundo enquanto ou-
viam o velho mago, cuja voz era forte e carregada acima do vento crescente
que soprava as nuvens de tempestade do céu.
— Um de vocês pegaria o orbe e o usaria, e descobriria que havia se
jogado em um desastre. Com tanta certeza, ficaria tão quebrado quanto
o kender quebrou a esfera. Quanto à esperança ser destruída, digo que a
esperança se perdeu por um tempo, mas, agora, ela nasceu de novo...
Uma súbita rajada de vento tirou o chapéu do velho mago, o soprando
da cabeça e jogando de brincadeira para longe. Rosnando de irritação,
Fizban se arrastou para frente para pegá-lo.
Assim que o mago se inclinou, o sol apareceu nas nuvens. Houve um
lampejo de prata, seguido de um som de rachadura ensurdecedor, como se
a própria terra tivesse se separado.

325
Cegos pela luz ardente, as pessoas piscavam e olhavam com medo e
reverência para a visão aterradora diante de seus olhos.
A Pedra Branca foi dividida ao meio.
O velho mago estava esparramado aos pés dela, com o chapéu na mão,
o outro braço jogado sobre a cabeça, aterrorizado. Acima dele, perfurando
a rocha onde estava sentado, havia uma arma longa feita de prata reluzente.
Foi atirada pelo braço prateado de um homem negro, que se aproximou
para ficar ao lado dele. O acompanhavam três pessoas: uma elfa vestida com
armadura de couro, um anão velho de barba branca e Elistan.
Em meio ao silêncio atordoado da multidão, o negro estendeu a mão
e levantou a arma dos restos lascados da rocha. Ele a segurou acima da
cabeça e a ponta farpada de prata brilhava intensamente nos raios do sol
do meio-dia.
— Eu sou Theros Dobraferro — o homem gritou em voz profunda
— e, durante o último mês, estive forjando isso! — Ele balançou a arma
na mão. — Peguei prata derretida do poço escondido nas profundezas do
coração do Monumento do Dragão de Prata. Com o braço de prata dado
pelos deuses, forjei a arma conforme a lenda predisse. E a trago para vocês,
para todo o povo de Krynn, para que possamos nos unir e derrotar o grande
mal que ameaça nos envolver na escuridão para sempre.
— Trago para vocês... a Lança do Dragão!
Com isso, Theros enfiou a arma profundamente no chão. Ela permane-
ceu em pé, reta e brilhante, entre os pedaços quebrados do orbe do dragão.

326
7
Uma jornada inesperada.

gora minha tarefa está concluída — disse Laurana. — Estou livre


para partir.
— Sim — Elistan disse lentamente — e sei por que você parte. —
Laurana corou e abaixou a cabeça. — Mas para onde você vai?
— Silvanesti — ela respondeu. — O último lugar em que o vi.
— Apenas em um sonho...
— Não, foi mais do que um sonho — disse Laurana estremecendo.
— Foi real. Ele estava lá. Está vivo e preciso encontrá-lo.
— Certamente, minha querida, por isso você deveria ficar aqui —
Elistan sugeriu. — Você diz que, no sonho, ele encontrou um orbe de
dragão. Se o tiver, ele virá para Sancrist.
Laurana não respondeu. Infeliz e irresoluta, ela olhou pela janela do
castelo de Lorde Gunthar, onde ela, Elistan, Flint e Tasslehoff estavam
hospedados como convidados.
Ela deveria estar com os elfos. Antes de deixarem a Clareira da Pedra
Branca, seu pai pediu que voltasse com eles para Ergoth do Sul. Mas Laurana
recusou. Embora não tenha dito, sabia que nunca mais viveria entre seu povo.
O pai não a pressionou e, em seus olhos, viu que ele ouvira suas palavras
não ditas. Elfos envelheciam com os anos, não com os dias, como os huma-
nos. Para seu pai, parecia que o tempo havia acelerado e ele estava mudando
enquanto ela observava. Ela sentiu como se estivesse o vendo através dos
olhos de ampulheta de Raistlin e o pensamento era aterrorizante. No entanto,
as notícias que ela trouxe apenas aumentaram sua infelicidade amarga.
Gilthanas não retornara. Laurana também não pôde dizer a seu pai
onde seu amado filho fora, pois a jornada que ele e Silvara fizeram era
sombria e cheia de perigos. Laurana apenas disse ao seu pai que Gilthanas
não estava morto.
— Você sabe onde ele está? — o Orador perguntou após uma pausa.
— Sim — respondeu Laurana — ou melhor, sei para onde ele vai.
— E não pode falar sobre isso, nem mesmo para mim, seu pai?
Laurana balançou a cabeça firmemente.
— Não, Orador, não posso. Me perdoe, mas, quando foi tomada a de-
cisão de realizar essa ação desesperada, concordamos que os que soubessem
não contariam a ninguém. Ninguém — repetiu.
— Então, você não confia em mim...
Laurana suspirou. Seus olhos foram para a Pedra Branca quebrada.
— Pai — ela disse — você quase foi à guerra... com as únicas pessoas
que podem ajudar a nos salvar...
Seu pai não respondeu, mas, em sua despedida fria e na maneira como
se apoiou no braço do filho mais velho, deixou claro para Laurana que
agora tinha apenas um filho.
Theros foi com os elfos. Após sua apresentação dramática da lança do
dragão, o Conselho da Pedra Branca votou por unanimidade em fazer mais
dessas armas e unir todas as raças na luta contra os exércitos dracônicos.
— No momento — anunciou Theros —, temos as poucas lanças que
consegui forjar sozinho em um mês, além de algumas lanças antigas que os
dragões de prata esconderam na época em que os dragões foram banidos
do mundo. Mas precisaremos de mais, muito mais. Preciso de homens para
me ajudar!
Os elfos concordaram em fornecer homens para ajudar a fazer as
lanças do dragão, mas se ajudariam a lutar ou não...

328
— Esse continua sendo um assunto que devemos discutir — afirmou
o Orador.
— Não discutam por muito tempo — retrucou Flint Forjardente —
ou poderão se encontrar discutindo isso com um Senhor dos Dragões.
— Os elfos realizam seus próprios conselhos e não pedem auxílio aos
anões — o Orador respondeu friamente. — Além disso, nem sabemos se
essas lanças funcionam! A lenda diz que elas deveriam ser forjadas por aque-
le do Braço de Prata, sim. Mas também diz que o Martelo de Kharas era
necessário ao forjar. Onde está o Martelo agora? — ele perguntou a Theros.
— O Martelo não poderia ser trazido aqui a tempo, mesmo que
pudesse ser mantido longe dos exércitos dracônicos. O Martelo de Kharas
era necessário nos dias antigos, porque a habilidade do homem não era
suficiente por si só para produzir as lanças. A minha é — acrescentou com
orgulho. — Você viu o que a lança fez com aquela rocha.
— Veremos o que ela fará com os dragões — disse o Orador. E o Se-
gundo Conselho da Pedra Branca chegou ao fim. Por fim, Gunthar propôs
que as lanças que Theros trouxera com ele fossem enviadas aos cavaleiros
de Palanthas.
Esses pensamentos passaram pela mente de Laurana enquanto ela
olhava para a paisagem sombria do inverno. Logo estaria nevando no vale,
disse Lorde Gunthar.
“Não posso ficar aqui”, Laurana pensou, pressionando o rosto contra
o vidro gelado. “Eu ficarei louca.”
— Estudei os mapas de Gunthar — ela murmurou, quase falando
consigo mesma — e vi a localização dos exércitos dracônicos. Tanis nunca
chegará a Sancrist. E, se tiver o orbe, pode não saber o perigo que ele repre-
senta. Eu preciso avisá-lo.
— Minha querida, você não está falando com sensatez — disse Elistan
suavemente. — Se Tanis não pode chegar a Sancrist com segurança, como
você chegará até ele? Pense com lógica, Laurana...
— Não quero pensar com lógica! — Laurana gritou, batendo o pé
e olhando furiosa para o clérigo. — Estou cansada de ser sensata! Estou
cansada de toda essa guerra. Eu fiz a minha parte... mais do que a minha
parte. Só quero encontrar Tanis!
Vendo o rosto simpático de Elistan, Laurana suspirou.
— Sinto muito, meu querido amigo. Sei o que você diz é verdade —
ela disse envergonhada. — Mas não posso ficar aqui e não fazer nada!

329
Embora Laurana não tenha mencionado, tinha outra preocupação.
Aquela humana, Kitiara. Onde ela estava? Eles estavam juntos como ela
vira no sonho? Percebeu que a imagem de Kitiara com o braço de Tanis ao
seu redor era mais perturbadora do que a imagem de sua própria morte.
Naquele momento, Lorde Gunthar entrou de repente na sala.
— Oh! — ele disse, assustado, vendo Elistan e Laurana. — Sinto
muito, espero não estar incomodando...
— De modo algum, por favor, entre — disse Laurana rapidamente.
— Obrigado — disse Gunthar, entrando e fechando a porta com
cuidado, primeiro olhando para o corredor para ter certeza de que não
havia ninguém por perto. Ele se juntou a eles na janela. — Na verdade, eu
precisava conversar com vocês dois. Mandei Wills atrás de vocês. Contudo,
isso é melhor. Ninguém sabe que estamos conversando.
“Mais intrigas”, Laurana pensou, cansada. Durante a jornada para o
castelo de Gunthar, ela ouvira falar apenas de lutas políticas que estavam
destruindo a Cavalaria.
Chocada e indignada com a história de Gunthar sobre o julgamento
de Sturm, Laurana foi a um Conselho de Cavaleiros para falar em defesa
dele. Apesar da presença de uma mulher em um Conselho ser inédita, os
cavaleiros ficaram impressionados com o discurso eloquente da jovem em
nome de Sturm. O fato de Laurana ser membro da família real élfica e de
ter trazido as lanças do dragão também falou a seu favor.
Mesmo a facção de Derek, aqueles que permaneceram, tiveram dificul-
dades em encontrar falhas nela. Mas os cavaleiros não conseguiram tomar
uma decisão. O homem designado para ocupar o lugar de Lorde Alfred
era do grupo de Derek e Lorde Michael vacilou a tal ponto que Gunthar
foi forçado a levar o assunto a votação aberta. Os cavaleiros exigiram um
período de reflexão e a reunião foi encerrada. Eles se reuniram novamente
esta tarde. Aparentemente, Gunthar acabara de sair dessa reunião.
Laurana sabia, pela expressão no rosto de Gunthar, que as coisas foram
favoráveis. Mas, neste caso, por que as manobras?
— Sturm foi perdoado? — ela perguntou.
Gunthar sorriu e esfregou as mãos.
— Não perdoado, minha querida. Isso implicaria em sua culpa. Não.
Ele foi completamente inocentado! Eu forcei isso. O perdão não seria ade-
quado para nós. Seu título de cavaleiro foi concedido. Ele tem seu comando
oficialmente concedido. E Derek está com problemas graves!

330
— Estou feliz por Sturm — Laurana disse friamente, trocando olhares
preocupados com Elistan. Embora gostasse do que vira de Lorde Gunthar,
ela fora criada em uma casa real e sabia que Sturm estava sendo transforma-
do em peça de jogo.
Gunthar captou a ponta de gelo em sua voz e seu rosto ficou sério.
— Senhora Laurana — disse ele, falando de modo mais sóbrio — sei
o que está pensando... que estou puxando cordas como se Sturm fosse uma
marionete. Sejamos francos, minha senhora. Os Cavaleiros estão divididos,
divididos em duas facções, a de Derek e a minha. E nós dois sabemos o que
acontece com uma árvore dividida em duas: ambos os lados murcham e
morrem. Essa batalha entre nós deve terminar ou terá consequências trági-
cas. Agora, senhora e Elistan, porque eu confiei e confio em seu julgamento,
deixo isso em suas mãos. Vocês me conheceram e conheceram Lorde Derek
Crownguard. Quem escolheriam para liderar os Cavaleiros?
— Você, Lorde Gunthar — disse Elistan sinceramente.
Laurana acenou com a cabeça.
— Concordo. Essa briga é terrível para a Cavalaria. Eu mesma vi
isso na reunião do Conselho. E, pelo que ouvi dos relatórios vindos de
Palanthas, também está prejudicando nossa causa lá. No entanto, minha
primeira preocupação deve ser com meu amigo.
— Entendo perfeitamente e fico feliz em ouvi-la dizer isso — disse
Gunthar de forma aprovadora — porque engrandece o favor que estou
prestes a pedir. — Ele pegou o braço de Laurana. — Quero que você vá
para Palanthas.
— O que? Por quê? Eu não entendo!
— Claro que não. Deixe-me explicar. Por favor, sente-se. Você também,
Elistan. Vou colocar um pouco de vinho...
— Melhor não — disse Laurana, sentando-se perto da janela.
— Muito bem. — O rosto de Gunthar ficou sério. Ele colocou a mão
sobre a de Laurana. — Conhecemos política, você e eu. Então, vou organizar
todas as minhas peças diante de você. Aparentemente, você estará viajando
para Palanthas para ensinar os cavaleiros a usar as lanças do dragão. É uma
razão legítima. Sem Theros, você e o anão são os únicos que entendem seu
uso. E, vamos encarar, o anão é muito baixo para lidar com uma.
Gunthar pigarreou. — Você levará as lanças para Palanthas. Mais
importante, porém, você levará consigo uma Ordem de Inocência do
Conselho, restaurando completamente a honra de Sturm. Isso dará o

331
golpe mortal na ambição de Derek. No momento em que Sturm vestir sua
armadura, todos saberão que tenho todo o apoio do Conselho. Não seria
surpresa se Derek for julgado quando voltar.
— Mas por que eu? — Laurana perguntou sem rodeios. — Eu posso
ensinar qualquer um, Lorde Michael, por exemplo, a usar uma lança de
dragão. Ele pode levá-las para Palanthas. Pode levar a Ordem para Sturm...
— Senhora — Lorde Gunthar agarrou sua mão com força, se apro-
ximando e falando apenas um sussurro — você ainda não entende! Não
posso confiar em lorde Michael! Não posso... não ouso confiar em nenhum
dos cavaleiros com isso! Derek foi derrubado do cavalo, por assim dizer,
mas ainda não perdeu o torneio. Preciso de alguém em quem possa confiar
implicitamente! Alguém que conheça Derek pelo que ele é, que tenha os
melhores interesses de Sturm no coração!
— Eu tenho os interesses de Sturm no coração — Laurana disse
friamente. — Eu os coloco acima dos interesses da Cavalaria.
— Ah, mas lembre-se, Senhora Laurana — disse Gunthar, se levan-
tando e curvando enquanto beijava a mão dela — o único interesse de
Sturm é a Cavalaria. O que acha que aconteceria com ele se a Cavalaria
caísse? O que acontecerá com ele se Derek assumir o controle?

No final, claro, Laurana concordou em ir a Palanthas, como Gunthar


sabia que devia. À medida que a hora da partida se aproximava, ela come-
çou a sonhar quase todas as noites com Tanis chegando à ilha poucas horas
depois dela sair. Mais de uma vez, ela estava prestes a se recusar a ir, mas
depois pensou em enfrentar Tanis, em ter que dizer que se recusara a ir até
Sturm para avisá-lo desse perigo. Isso a impediu de mudar de ideia. Isso... e
sua consideração por Sturm.
Foi durante as noites solitárias, quando seu coração e seus braços doíam
por Tanis que ela teve visões dele abraçando aquela humana com cabelos
escuros e encaracolados, olhos castanhos reluzentes e sorriso encantador e
torto, sua alma estava em turbulência.
Seus amigos conseguiam oferecer pouco conforto. Um deles, Elistan,
saiu quando um mensageiro chegou dos elfos, solicitando a presença do
clérigo, e pedindo que um emissário dos cavaleiros o acompanhasse. Havia
pouco tempo para despedidas. Um dia após a chegada do mensageiro
élfico, Elistan e o filho de Lorde Alfred, um jovem solene e sério chamado

332
Douglas, começaram sua jornada de volta a Ergoth do Sul. Laurana nunca
se sentiu tão sozinha quando se despediu de seu mentor.

Tasslehoff também enfrentou uma separação triste.


No meio da empolgação com a lança do dragão, todo mundo esqueceu
o pobre Gnosh e sua Missão de Vida, que estava em mil pedaços brilhantes
na grama. Todos, menos Fizban. O velho mago se levantou de onde estava
deitado encolhido no chão diante da Pedra Branca partida e foi até o gnomo
atingido, que estava olhando tristemente para o orbe do dragão destruído.
— Calma, calma, meu rapaz — disse Fizban — este não é o fim
de tudo!
— Não é? — perguntou Gnosh, tão infeliz que terminou uma frase.
— Não, claro que não! Você precisa olhar para isso da perspectiva
apropriada. Agora, você tem a chance de estudar uma esfera de dragão de
dentro para fora!
Os olhos de Gnosh brilharam.
— Você está certo — ele disse após uma breve pausa — e, de fato,
aposto que poderia colar...
— Sim, sim — disse Fizban apressadamente, mas Gnosh avançou, seu
discurso ficando cada vez mais rápido.
— Poderíamos etiquetar as peças,entende,eentãodesenharumdiagra-
madeondecadapeça estavanochão,oque...
— Isso, isso — murmurou Fizban.
— Afastem-se, afastem-se — disse Gnosh, sentindo-se importante,
afastando as pessoas do orbe. — Cuidado onde pisa, Lorde Gunthar, e sim,
vamos estudá-lo de dentro para fora agora, e eu devo ter um relatório em
questão de semanas...
Gnosh e Fizban isolaram a área e começaram a trabalhar. Nos dois
dias seguintes, Fizban permaneceu na Pedra Branca quebrada fazendo dia-
gramas, supostamente marcando a localização exata de cada pedaço antes
de ser apanhado. (Um dos diagramas de Fizban acabou acidentalmente na
bolsa do kender. Tas descobriu mais tarde que na verdade era um jogo
conhecido como “xis e zero” que o mago estava jogando contra si mesmo e,
aparentemente, perdera.)
Enquanto isso, Gnosh se arrastava alegremente pela grama, colando
pedaços de pergaminho adornados com números em pedaços de vidro
menores que os pedaços de pergaminho. Ele e Fizban finalmente coletaram

333
os 2.687 pedaços do orbe de dragão em uma cesta e os transportaram de
volta ao Monte Esquece.
Tasslehoff teve a opção de ficar com Fizban ou ir a Palanthas com
Laurana e Flint. A escolha foi simples. O kender sabia que dois inocentes
como a elfa e o anão não sobreviveriam sem ele. Mas foi difícil deixar o
velho amigo. Dois dias antes de o navio partir, ele fez uma visita final aos
gnomos e a Fizban.
Depois de um passeio emocionante na catapulta, ele encontrou Gnosh
na Sala de Exames. Os pedaços do orbe do dragão quebrado, marcados e
numerados, estavam espalhados por duas mesas.
— Absolutamentefascinante — Gnosh falou tão rápido que gaguejou:
— porque analisamosovidro, materialcurioso, queédiferentedetudoquejávi-
mos amaiordescoberta desteséculo...
— Então, sua Missão de Vida acabou? — Tas interrompeu. — A alma
do seu pai...
— Descansandoconfortavelmente! — Gnosh sorriu, depois voltou
ao seu trabalho. — Eficofelizquevocêtenhapassadoporaquieseestivernavizi-
nhançaemalgummomentoequiserpassarparanosvisitardenovo...
— Eu vou — Tas disse, sorrindo.
Tas encontrou Fizban dois níveis abaixo. (Uma jornada fascinante.
Ele simplesmente gritou o nome de seu nível, depois pulou no vazio.
Redes abriram, sinos tocaram, gongos retumbaram e apitos soaram.
Finalmente, Tas foi pego um nível acima do solo, assim que a área estava
sendo inundada com esponjas.)
Fizban estava no Desenvolvimento de Armas, cercado por gnomos,
todos olhando para ele com admiração descarada.
— Ah, meu rapaz! — ele disse, olhando vagamente para Tasslehoff. —
Você chegou bem a tempo de ver o teste da nossa nova arma. Revolucionará
a guerra. Deixará a lança do dragão obsoleta.
— É mesmo? — Tas perguntou empolgado.
— Um fato! — Fizban confirmou. — Agora, você fique ali... — Ele
apontou para um gnomo que saltou para cumprir sua ordem, correndo
para ficar no meio da sala entulhada.
Fizban pegou o que parecia, para a mente confusa do kender, uma
besta que fora atacada por um pescador enfurecido. Era uma besta, de fato.
Mas, em vez de uma seta, uma rede enorme pendia de um gancho no final.

334
Resmungando e murmurando, Fizban ordenou que os gnomos ficassem
atrás dele e dessem espaço.
— Agora, você é o inimigo — disse Fizban ao gnomo no centro da
sala. O gnomo imediatamente assumiu uma expressão feroz e combativa.
Os outros gnomos assentiram com apreciação.
Fizban apontou, então disparou. A rede voou pelo ar, se prendeu ao
gancho no final da besta e recuou como uma vela em se fechando para
envolver o mago.
— Gancho confuso! — Fizban murmurou.
Entre os gnomos e Tas, ajudaram-no a se desenrolar.
— Acho que isso é um adeus — disse Tas, estendendo lentamente
a mão pequena.
— É mesmo? — Fizban pareceu surpreso. — Estou indo para algum
lugar? Ninguém me disse nada! Não estou preparado...
— Eu estou indo a algum lugar — disse Tas pacientemente — com
Laurana. Vamos levar as lanças e, ahm, acho que eu não deveria ter contado
a ninguém — acrescentou, envergonhado.
— Não se preocupe. Bico fechado — disse Fizban em um sussurro
rouco que atravessou claramente a sala lotada. — Você vai adorar Palanthas.
Linda cidade. Dê a Sturm meus cumprimentos. Ah, e Tasslehoff — o velho
mago olhou para ele de forma astuta — você fez a coisa certa, meu rapaz!
— Fiz? — Tas disse esperançoso. — Fico feliz. — Ele hesitou. — Eu
pensei... sobre o que você disse... o caminho escuro. Eu...?
O rosto de Fizban ficou sério quando ele segurou Tas firmemente
no ombro.
— Acho que sim. Mas você tem coragem para segui-lo.
— Espero que sim — disse Tas com um pequeno suspiro. — Bem,
adeus. Eu voltarei. Assim que a guerra acabar.
— Oh, eu provavelmente não estarei aqui — disse Fizban, balançando
a cabeça com tanta força que seu chapéu escorregou. — Assim que a nova
arma estiver aperfeiçoada, vou partir para... — ele fez uma pausa. — Para
onde eu deveria ir? Não consigo me lembrar. Mas não se preocupe. Nós nos
encontraremos de novo. Pelo menos, você não está me deixando enterrado
sob uma pilha de penas de galinha! — murmurou, procurando seu chapéu.
Tas o pegou e entregou.
— Adeus — disse o kender, com a voz embargada.

335
— Adeus, adeus! — Fizban acenou alegremente. Então, lançando um
olhar assustado aos gnomos, ele puxou Tas para perto. — Ah, eu pareço ter
esquecido algo. Qual era o meu nome mesmo?

Outra pessoa também se despediu do velho mago, embora não nas


mesmas circunstâncias.
Elistan estava andando pela costa de Sancrist, esperando o barco que
o levaria de volta a Ergoth do Sul. O jovem Douglas caminhava ao seu
lado. Os dois estavam conversando profundamente, Elistan explicando os
caminhos dos deuses antigos a um ouvinte extasiado e atento.
De repente, Elistan ergueu os olhos e viu o velho mago confuso que
vira na reunião do Conselho. Tentou encontrar o velho por dias, mas Fizban
sempre o evitava. Assim, foi com espanto que viu o velho caminhando na
direção deles agora ao longo da costa. Sua cabeça estava inclinada, ele estava
murmurando para si mesmo. Por um momento, pensou que ele passaria
sem percebê-los, quando, de repente o velho mago levantou a cabeça.
— Ora veja! Não nos conhecemos? — ele perguntou, piscando.
Por um momento, Elistan não conseguiu falar. O rosto do clérigo
ficou mortalmente branco sob o bronzeado castigado pelo tempo. Final-
mente conseguiu responder ao velho mago, com sua voz rouca.
— De fato, senhor. Eu não percebi isso antes. E, apesar de termos sido
apresentados recentemente, sinto que o conheço há muito, muito tempo.
— De fato? — O velho fez uma careta desconfiado. — Você não está
fazendo algum tipo de comentário sobre a minha idade, está?
— Não, certamente não! — Elistan sorriu.
O rosto do velho ficou tranquilo.
— Bom, tenha uma viagem agradável. E segura. Adeus.
Apoiado em um cajado torto e surrado, o velho passou por eles. De
repente, ele parou e se virou. — Ah, a propósito, o nome é Fizban.
— Eu vou lembrar — disse Elistan seriamente, se curvando. — Fizban.
Satisfeito, o velho mago assentiu e continuou seu caminho ao longo
da costa, enquanto Elistan, subitamente pensativo e quieto, retomou sua
caminhada com um suspiro.

336
8
O Perechon.
Memórias de outrora.

sso é loucura, espero que você perceba! — Caramon sussurrou.


— Não estaríamos aqui se fossemos sãos, estaríamos? — Tanis
respondeu, rangendo os dentes.
— Não — Caramon murmurou. — Acho que você está certo.
Os dois homens estavam nas sombras de um beco escuro, em uma
cidade onde geralmente as únicas coisas encontradas nos becos eram ratos,
bêbados e cadáveres.
O nome da cidade miserável era Naufrágio e era bem apropriado, pois
ela ficava às margens do Mar de Sangue de Istar como os destroços de um
naufrágio, jogados sobre as rochas. Habitada pela escória da maioria das
raças de Krynn, Naufrágio era, além disso, uma cidade ocupada, invadida
por draconianos, goblins e mercenários de todas as raças, atraídos pelos
Senhores por salários altos e espólios de guerra.
E assim, “como a outra escória”, conforme Raistlin observou, os com-
panheiros flutuavam nas marés da guerra e foram jogados em Naufrágio.
Aqui, esperavam encontrar um navio que os levasse na jornada longa e
traiçoeira pela parte norte de Ansalon até Sancrist... ou onde quer que fosse.
O seu destino era um ponto de discussão ultimamente, desde que
Raistlin se recuperou de sua doença. Os companheiros o observaram an-
siosamente fazendo uso contínuo do orbe do dragão, sua preocupação não
totalmente centrada em sua saúde. O que aconteceu quando ele usou o
orbe? Que mal ele poderia ter causado a eles?
— Vocês não precisam ter medo — Raistlin disse em sua voz sussur-
rante. — Não sou fraco e tolo como o rei élfico. Eu tenho o controle do
orbe. Ele não tem controle sobre mim.
— Então, o que ele faz? Como podemos usá-lo? — Tanis perguntou,
assustado com a expressão congelada no rosto metálico do mago.
— Foi necessária toda minha força para obter o controle do orbe —
respondeu Raistlin, com os olhos para o teto acima da cama. — Precisarei
de muito mais estudo antes de aprender a usá-lo.
— Estudo... — Tanis repetiu. — Estudo do orbe?
Raistlin lançou um olhar para ele e voltou a encarar o teto.
— Não — ele respondeu. — O estudo de livros, escritos pelos antigos
que criaram o orbe. Temos que ir a Palanthas, à biblioteca de um tal de
Astinus, que reside lá.
Tanis ficou em silêncio por um momento. Ele podia ouvir a respiração
do mago em seus pulmões enquanto lutava para respirar.
“O que o mantém agarrado a esta vida?” Tanis se perguntou em silêncio.
Nevara naquela manhã, mas agora a neve mudara para chuva. Tanis
podia ouvi-la tamborilando no teto de madeira da carroça. Nuvens pesadas
vagavam pelo céu. Talvez fosse a escuridão do dia, mas quando olhou para
Raistlin, Tanis sentiu um arrepio percorrer seu corpo até que o frio pareceu
congelar seu coração.
— Foi isso o que você quis dizer quando falou sobre magias antigas?
— perguntou Tanis.
— Claro. O que mais? — Raistlin fez uma pausa tossindo, e perguntou.
— Quando falei sobre... magias antigas?
— Quando o encontramos — Tanis respondeu, observando o mago
de perto. Ele percebeu um vinco na testa de Raistlin e ouviu tensão em sua
voz quebrada.

338
— O que eu disse?
— Nada de mais — respondeu Tanis cautelosamente. — Apenas algo
sobre magias antigas, magias que em breve seriam suas.
— Isso foi tudo?
Tanis não respondeu imediatamente. Os olhos estranhos de ampulhe-
ta de Raistlin focaram nele friamente. O meio-elfo estremeceu e assentiu.
Raistlin virou a cabeça. Seus olhos se fecharam.
— Vou dormir agora — ele disse suavemente. — Lembre-se, Tanis.
Palanthas.
Tanis foi forçado a admitir que queria ir a Sancrist por razões pura-
mente egoístas. Esperava contra todas as chances que Laurana, Sturm e os
outros estivessem lá. E foi para onde prometeu que levaria o orbe do dragão.
Mas, contra isso, ele teve que pesar a insistência constante de Raistlin de
deveriam ir à biblioteca desse Astinus para descobrir como usar o orbe.
Sua mente ainda estava em um dilema quando chegaram a Naufrágio.
Finalmente, decidiu que eles arranjariam uma passagem em um navio que
fosse para o norte primeiro e decidiriam onde desembarcariam depois.
Mas, quando chegaram a Naufrágio, tiveram um choque desagradável.
Havia mais draconianos naquela cidade do que viram em toda a sua jornada
do norte de Porto Balifor. As ruas estavam cheias de patrulhas fortemente
armadas, demonstrando um interesse intenso por estranhos. Felizmente,
os companheiros venderam sua carroça antes de entrar na cidade, de modo
que puderam se misturar com a multidão nas ruas. Mas não estavam nem
há cinco minutos dentro dos portões da cidade quando viram uma patrulha
draconiana prender um humano para “interrogatório”.
Isso os alarmou, então eles se hospedaram na primeira pousada que
viram... um lugar degradado na periferia da cidade.
— Como vamos chegar ao porto e comprar passagens em um navio?
— Caramon perguntou enquanto se instalavam em seus quartos surrados.
— O que está acontecendo?
— O estalajadeiro disse que uma Senhora dos Dragões está na cidade.
Os draconianos estão procurando por espiões ou algo assim — Tanis mur-
murou, desconfortável. Os companheiros trocaram olhares.
— Talvez estejam nos procurando — disse Caramon.
— Isso é ridículo! — Tanis respondeu rapidamente... rapidamente
demais. — Estamos ficando assustados. Como alguém poderia saber que
estamos aqui? Ou saber o que carregamos?

339
— Eu imagino... — Vento Ligeiro disse sombriamente, olhando para
Raistlin.
O mago retornou seu olhar frio, não se dignando a responder.
— Água quente para a minha bebida — instruiu a Caramon.
— Só há uma forma que consigo pensar — disse Tanis, enquanto
Caramon trazia a água para o irmão, conforme solicitado. — Caramon
e eu sairemos hoje à noite e emboscaremos dois dos soldados do exército
dracônico. Vamos roubar seus uniformes. Não dos draconianos... — dis-
se apressadamente, enquanto a testa de Caramon se enrugava de nojo.
— Dos mercenários humanos. Então, poderemos nos mover livremente
por Naufrágio.
Depois de um debate, todos concordaram que era o único plano que
parecia funcionar. Os companheiros comeram sem muito apetite, jantando
em seus quartos, em vez de se arriscarem a entrar no salão comum.
— Você ficará bem? — Caramon perguntou a Raistlin, inquieto,
quando os dois estavam sozinhos no quarto que dividiam.
— Sou capaz de cuidar de mim mesmo — respondeu Raistlin. Le-
vantando pegou um grimório para estudar, quando um acesso de tosse o
dobrou.
Caramon estendeu a mão, mas Raistlin se encolheu.
— Saia! — O mago ofegou. — Me deixe em paz!
Caramon hesitou, depois suspirou. — Claro, Raist — disse ele, saindo
da sala e fechando a porta suavemente atrás de si.
Raistlin ficou parado por um momento, tentando recuperar o fôlego.
Então, se moveu lentamente pela sala, abaixando o grimório. Com a mão
trêmula, pegou um dos sacos que Caramon havia colocado na mesa ao lado
de sua cama. Ao abri-lo, Raistlin retirou cuidadosamente o orbe do dragão.

Tanis e Caramon andavam pelas ruas de Naufrágio, o meio-elfo com


o capuz abaixado sobre o rosto e as orelhas. Procuravam por dois guardas
cujos uniformes pudessem servir. Isso seria fácil para Tanis, mas encontrar
um guarda cuja armadura coubesse no gigante Caramon era mais difícil.
Ambos sabiam que era melhor encontrar algo rapidamente. Mais de
uma vez, os draconianos os olharam desconfiados. Dois draconianos até os
pararam, insistindo em saber sobre seus negócios. Caramon respondeu no
dialeto mercenário bruto que estavam procurando emprego no exército da

340
Senhora dos Dragões e os draconianos os deixaram ir. Mas os dois sabiam
que era uma questão de tempo até que uma patrulha os pegasse.
— Mas o que está acontecendo? — Tanis murmurou, preocupado.
— Talvez a guerra esteja esquentando para os Senhores — começou
Caramon. — Ali, olha, Tanis. Indo para aquele bar...
— Estou vendo. Sim, ele é do seu tamanho. Se abaixe naquele beco.
Vamos esperar até que saiam, então... — O meio-elfo fez um movimento
de torcer pescoço. Caramon concordou. Os dois passaram pelas ruas imun-
das e desapareceram no beco, se escondendo onde podiam ficar de olho na
porta da frente do bar.
Era quase meia-noite. As luas não nasceriam nesta noite. A chuva
cessara, mas as nuvens ainda obscureciam o céu. Os dois homens agachados
no beco logo tremiam, apesar de seus mantos pesados. Ratos deslizavam
sobre seus pés, fazendo-os se encolher na escuridão. Um robgoblin bêbado
deu uma volta errada e passou por eles, caindo de cabeça em uma pilha de
lixo. O robgoblin não se levantou e o fedor quase deixou Tanis e Caramon
enjoados, mas não ousaram deixar seu ponto privilegiado.
Então, ouviram sons bem-vindos... risadas bêbadas e vozes humanas
falando em comum. Os dois guardas que esperavam saíram do bar e cam-
balearam na direção deles.
Havia um braseiro de ferro alto na calçada, iluminando a noite.
Os mercenários andaram até a luz, permitindo que Tanis prestasse mais
atenção neles. Ambos eram oficiais do exército dracônico, ele viu. “Re-
cém-promovidos”, ele imaginou, “o que pode ter sido o motivo de estarem
comemorando.” A armadura deles era nova, reluzente, relativamente limpa
e não amassada. Também era uma boa armadura, viu com satisfação. Feita
de aço azul, foi criada de acordo no estilo das armaduras em escama de
dragão dos Senhores.
— Pronto? — Caramon sussurrou. Tanis concordou.
Caramon desembainhou sua espada. — Lixo élfico! — ele rugiu do
fundo do seu peito largo. — Eu te encontrei e, agora, você vem comigo à
Senhora dos Dragões, espião!
— Você nunca vai me levar vivo! — Tanis sacou sua própria espada.
Ao som de suas vozes, os dois oficiais pararam cambaleando, obser-
vando com olhos turvos o beco escuro.
Os oficiais assistiam com um interesse crescente Caramon e Tanis
investirem um contra o outro, manobrando para ficarem em posição.

341
Quando Caramon estava de costas para os oficiais e Tanis os encarava,
o meio-elfo fez um movimento repentino. Desarmando Caramon, fez a
espada do guerreiro voar.
— Rápido! Me ajudem a pegá-lo! — Caramon berrou. — Existe uma
recompensa por ele... vivo ou morto!
Os oficiais nem hesitaram. Procurando suas armas, bêbados, partiram
para cima de Tanis, com o rosto torcido em expressões de prazer cruel.
— É isso aí! Pega ele! — Caramon insistiu, esperando até que eles
passassem. Então, assim que levantaram suas espadas, as mãos enormes de
Caramon envolveram seus pescoços. Ele bateu a cabeça dos dois e seus
corpos caíram no chão.
— Depressa! — Tanis grunhiu. Ele arrastou um corpo pelos pés para
longe da luz. Caramon seguiu com o outro. Rapidamente, começaram a
tirar a armadura.
— Ufa! Este deve ser meio-troll — disse Caramon, abanando com a
mão para tirar o mau cheiro do ar.
— Pare de reclamar! — Tanis retrucou, tentando descobrir como
funcionava o complexo sistema de fivelas e correias. — Pelo menos você
está acostumado a usar essas coisas. Me ajude com isso, sim?
— Claro. — Sorrindo, Caramon ajudou Tanis a prender a armadura.
— Um elfo de armadura de placas. No que o mundo está se transformando?
— Tempos tristes — Tanis murmurou. — Quando é que vamos
encontrar a capitã de quem William falou?
— Ele disse que poderíamos encontrá-la a bordo por volta do amanhecer.

— O nome é Maquesta Kar-thon — disse a mulher, sua expressão fria


e profissional. — E... me deixe adivinhar... você não é oficial do exército
dracônico. A menos que estejam contratando elfos atualmente.
Tanis corou, retirando o elmo de oficial. — É tão óbvio assim?
A mulher deu de ombros.
— Provavelmente não para os outros. A barba é muito boa... talvez
eu deva dizer meio-elfo, claro. E o elmo esconde suas orelhas. Mas, a me-
nos que use uma máscara, seus lindos olhos amendoados entregam tudo.
Mesmo assim, não há muitos draconianos capazes de olhar em seus “lindos
olhos”, não é? — Recostando na cadeira, ela colocou o pé na mesa e o
encarou friamente.
Tanis ouviu Caramon rir e sentiu sua pele queimar.

342
Eles estavam a bordo do Perechon, sentados na cabine da capitã, em
frente à própria. Maquesta Kar-thon era membro de uma das etnias de pele
escura que viviam em Ergoth do Norte. Seu povo era marinheiro há séculos
e acreditava-se popularmente que sabia falar as línguas das aves marinhas
e dos golfinhos. Tanis se encontrou pensando em Theros Dobraferro en-
quanto olhava para Maquesta. A pele da mulher brilhava, os cabelos bem
enrolados e amarrados com uma faixa dourada em volta da testa. Os olhos
dela eram castanhos e reluziam como a pele. Mas havia o brilho de aço da
adaga em seu cinto e o brilho de aço em seus olhos.
— Estamos aqui para discutir negócios, capitã Maque... — Tanis
gaguejou com o nome estranho.
— Claro que sim — disse a mulher. — E me chame de Maq. Mais
fácil para nós dois. E foi bom que tivesse essa carta de William Cara de
Porco ou eu nem falaria com você. Mas ele diz que você é honesto e seu
dinheiro é bom, então vou ouvir. Agora, para onde você vai?
Tanis trocou olhares com Caramon. Essa era a pergunta. Além disso,
não tinha certeza de que queria contar sobre qualquer um dos destinos.
Palanthas era a capital de Solamnia, enquanto Sancrist era um refúgio
conhecido dos Cavaleiros.
— Ah, pelo amor de... — Maq retrucou, os vendo hesitar. Os olhos
dela arderam. Tirando o pé da mesa, ela os encarou seriamente. — Vocês
confiam em mim ou não!
— Deveríamos? — Tanis perguntou sem rodeios.
Maq levantou uma sobrancelha.
— Quanto dinheiro vocês têm?
— O bastante — disse Tanis. — Digamos que queremos ir para o
norte, ao redor do Cabo de Nordmaar. Se, nesse ponto, ainda considerar-
mos a companhia uns dos outros agradável, continuaremos. Caso contrário,
pagaremos e você nos levará a um porto seguro.
— Kalaman — disse Maq, se recostando. Ela parecia satisfeita. — Esse
é um porto seguro. Tão seguro quanto qualquer um atualmente. Metade
do seu dinheiro agora. Metade em Kalaman. Qualquer coisa além disso é
negociável.
— Entrega segura em Kalaman — Tanis corrigiu.
— Quem pode prometer? — Maq deu de ombros. — É uma época
difícil do ano para viajar pelo mar. — Ela se levantou languidamente, se

343
esticando como um gato. Levantando rapidamente, Caramon olhou para
ela com admiração.
— Estou de acordo — disse ela. — Vamos. Vou mostrar o navio.
Maq os levou para o convés. O navio parecia em boa forma, tanto
quanto Tanis, que não sabia nada sobre navios, podia dizer. Sua voz e mo-
dos eram frios quando conversaram com ela pela primeira vez, mas quando
mostrou seu navio, pareceu se aquecer. Tanis vira a mesma expressão, ouvira
os mesmos tons quentes que Maq usava ao falar sobre o navio, eram as que
Tika usava ao falar sobre Caramon. Obviamente, o Perechon era o único
amor de Maq.
O navio estava quieto, vazio. Sua tripulação estava em terra, junto
com seu imediato, explicou Maq. A única outra pessoa que Tanis viu a
bordo era um homem sentado sozinho, consertando uma vela. O homem
olhou para cima quando eles passaram e Tanis viu seus olhos se arregalarem
de susto ao verem a armadura do dragão.
— Nocesta, Berem — Maq disse-lhe de forma calma quando passa-
ram. Ela fez um movimento cortante com a mão, gesticulando para Tanis e
Caramon. — Nocesta. Clientes. Dinheiro.
O homem assentiu e voltou ao trabalho.
— Quem é ele? — Tanis perguntou a Maq em voz baixa enquanto ca-
minhavam em direção a sua cabine mais uma vez para concluir seus negócios.
— Quem? Berem? — ela perguntou, olhando em volta. — É o timo-
neiro. Não sei muito sobre ele. Apareceu há alguns meses, procurando tra-
balho. O coloquei para esfregar o convés. Então, meu timoneiro foi morto
em uma briga com... bem, não importa. Mas esse sujeito acabou sendo uma
mão muito boa no timão, melhor que o antigo, na verdade. Mas é estranho.
Mudo. Nunca fala. Nunca vai em terra firme, se puder evitar. Escreveu seu
nome para mim no livro do navio ou eu não saberia nem isso sobre ele. Por
quê? — ela perguntou, notando que Tanis estudava o homem.
Berem era alto, de boa constituição. À primeira vista, seria possível
imaginar que ele fosse de meia-idade. Seu cabelo era cinza, seu rosto bar-
beado, bronzeado e desgastado pelos meses a bordo do navio. Mas seus
olhos eram jovens, claros e brilhantes. As mãos que seguravam a agulha
eram macias e fortes, as mãos de um jovem. Sangue élfico, talvez, pensou
Tanis, mas, se fosse, não era aparente em nenhum de seus traços.
— Já o vi em algum lugar — Tanis murmurou. — E você, Caramon?
Lembra dele?

344
— Ah, qual é — disse o grande guerreiro. — Vimos centenas de
pessoas mês passado, Tanis. Provavelmente ele estava na plateia em uma das
nossas apresentações.
— Não. — Tanis balançou a cabeça. — Quando o vi pela primeira
vez, pensei em Pax Tharkas e Sturm...
— Ei, tenho muito trabalho a fazer, meio-elfo — disse Maquesta. —
Você vem ou vai ficar encarando um cara costurando uma vela?
Ela desceu pela escotilha. Caramon seguiu desajeitadamente, sua
espada e armadura batendo. Relutantemente, Tanis foi atrás deles. Mas se
virou para dar uma última olhada e pegou o homem o observando com um
olhar estranho e penetrante.

— Tudo bem, você volta para a estalagem com os outros. Vou comprar
os suprimentos. Partiremos quando o navio estiver pronto. Maquesta disse
que são cerca de quatro dias.
— Queria que fosse antes — murmurou Caramon.
— Eu também — disse Tanis, sombriamente. — Há muitos draco-
nianos por aqui. Mas temos que esperar a maré ou algo assim. Volte para
a hospedaria e mantenha todos lá dentro. Diga ao seu irmão para estocar
essas coisas de ervas que ele bebe... ficaremos no mar por muito tempo.
Volto em algumas horas, depois de pegar os suprimentos.
Tanis andou pelas ruas movimentadas de Naufrágio, ninguém olhan-
do pela segunda vez sua armadura de dragão. Ele ficaria feliz em tirá-la. Era
quente, pesada e o fazia se coçar. E ele teve problemas para se lembrar de
responder as continências dos draconianos e goblins. Estava começando a
passar por sua mente, enquanto via o respeito que seu uniforme demandava,
que os humanos de quem roubaram os uniformes deviam ter uma patente
alta. O pensamento não foi reconfortante. A qualquer momento, alguém
poderia reconhecer sua armadura.
Mas não poderia ficar sem ela, ele sabia. Hoje, havia mais draconianos
nas ruas do que nunca. A tensão no ar em Naufrágio estava alta. A maioria
dos cidadãos do local estava em casa e a maioria das lojas estava fechada,
exceto pelas tavernas. De fato, ao passar por uma loja fechada atrás da ou-
tra, Tanis começou a se preocupar com onde compraria suprimentos para
a longa viagem oceânica.
Tanis refletia sobre esse problema enquanto olhava para uma vitrine
fechada quando uma mão envolveu sua bota e o puxou para o chão.

345
A queda tirou o fôlego do corpo do meio-elfo. Ele bateu a cabeça com
força nos paralelepípedos e, por um momento, ficou grogue de dor. Instin-
tivamente, ele chutou o que tivesse o agarrado pelos pés, mas as mãos que o
seguravam eram fortes. Ele se sentiu sendo arrastado para um beco escuro.
Balançando a cabeça para recuperar a clareza, ele se esforçou para
olhar para o seu sequestrador. Era um elfo! Suas roupas sujas e rasgadas,
seus traços élficos distorcidos pela dor e pelo ódio, o elfo estava em cima
dele, com uma lança na mão.
— Homem-dragão! — o elfo rosnou em comum. — Seu tipo imundo
matou minha família... minha esposa e meus filhos! Assassinados em suas
camas, ignorando seus pedidos de misericórdia. Isto é por eles! — O elfo
levantou a lança.
— Shak! It mo dracosali! — Tanis gritou desesperado em élfico,
lutando para tirar o elmo. Mas, enlouquecido pela dor, o elfo estava além
da audição ou da compreensão. Sua lança avançou para baixo. De repente,
os olhos do elfo se arregalaram, em choque. A lança caiu de seus dedos
impotentes quando uma espada o perfurou por trás. O elfo moribundo
caiu com um grito, batendo pesadamente na calçada.
Tanis olhou com espanto para ver quem salvara sua vida. Uma Senho-
ra dos Dragões estava sobre o corpo do elfo.
— Ouvi você gritando e vi um dos meus oficiais em apuros. Imaginei
que você precisasse de ajuda — disse a Senhora, estendendo a mão enluvada
para ajudar Tanis a se levantar.
Confuso, tonto de dor e sabendo apenas que não deveria se entregar, Tanis
aceitou a mão da Senhora e se levantou. Abaixando o rosto, agradecido pelas
sombras escuras no beco, murmurou palavras de agradecimento com uma voz
áspera. Então, viu os olhos da Senhora por trás da máscara se arregalarem.
— Tanis?
O meio-elfo sentiu um calafrio percorrer seu corpo, uma dor tão rápida
e aguda quanto a lança élfica. Não conseguia falar, só podia olhar enquanto
a Senhora removia rapidamente a máscara de dragão azul e dourada.
— Tanis! É você! — a Senhora gritou, o agarrando pelos braços. Tanis
viu olhos castanhos brilhantes, um sorriso torto e encantador.
— Kitiara...

346
9
Tanis capturado.

ntão, Tanis! Um oficial, sob meu próprio comando. Eu deveria


revistar minhas tropas com mais frequência! — Kitiara riu, pas-
sando o braço pelo dele. — Você está tremendo. Sua queda foi
feia. Vamos. Meus aposentos não estão longe daqui. Vamos tomar uma
bebida, cuidar dessa ferida e depois... conversar.
Atordoado, mas não pelo ferimento na cabeça, Tanis deixou Kitiara
levá-lo para fora do beco, na calçada. Muita coisa acontecera rápido demais.
Em um minuto ele estava comprando suprimentos e, agora, estava andando
de braços dados com uma Senhora dos Dragões que acabara de salvar sua
vida e que também era a mulher que ele amava há anos. Ele não conseguia
parar de encará-la e Kitiara, sabendo que seus olhos estavam nela, retornou
o olhar por baixo dos cílios longos e negros como fuligem.
“A armadura brilhante azul-esverdeada dos Senhores dos Dragões a
servia bem”, Tanis se pegou pensando.
Draconianos se amontoaram ao redor deles, esperando até mesmo um
meneio breve de cabeça da Senhora. Mas Kitiara os ignorou, conversando
alegremente com Tanis como se tivesse passado apenas uma tarde desde que
se separaram, não cinco anos. Ele não conseguia absorver as palavras dela,
seu cérebro ainda estava tentando entender isso, enquanto seu corpo reagia,
mais uma vez, à proximidade dela.
A máscara deixara seu cabelo um pouco úmido, os cachos grudados
no rosto e na testa. Casualmente, ela passou a mão enluvada pelo cabelo, o
sacudindo. Era um antigo hábito dela e esse pequeno gesto trouxe memó-
rias de volta...
Tanis balançou a cabeça, lutando desesperadamente para juntar seu
mundo destruído e prestar atenção nas palavras dela. A vida de seus amigos
dependia do que ele faria agora.
— Está quente sob o elmo do dragão! — ela dizia. — Não preciso
dessa coisa assustadora para manter meus homens na linha. Preciso? — ela
perguntou, piscando.
— N-não — Tanis gaguejou, se sentindo corar.
— O mesmo velho Tanis — ela murmurou, pressionando seu corpo
contra o dele. — Você ainda fica corado como um adolescente. Mas
nunca foi como os outros, nunca... — ela acrescentou suavemente. O
puxando para perto, ela o abraçou. Fechando os olhos, os lábios úmidos
roçaram os dele...
— Kit... — Tanis disse com uma voz abafada, puxando para trás. —
Aqui não! Não na rua — acrescentou ele, sem muito convencimento.
Por um momento, Kitiara o olhou com raiva, então, dando de ombros,
ela abaixou a mão para pegar o braço dele novamente. Juntos, continuaram
pela rua, os draconianos zombando e brincando.
— O mesmo Tanis — ela disse novamente, desta vez com um peque-
no suspiro. — Não sei por que deixei você se safar. Qualquer outro homem
que me recusasse assim teria morrido na minha espada. Ah, aqui estamos.
Ela entrou na melhor estalagem de Naufrágio, a Brisa Salgada. Cons-
truída no alto de um penhasco, ela dava para o Mar de Sangue de Istar,
cujas ondas batiam nas rochas abaixo. O estalajadeiro correu para frente.
— Meu quarto está arrumado? — Kit perguntou friamente.
— Sim, Senhora — disse o estalajadeiro, se curvando repetidamente.
Enquanto subiam as escadas, o estalajadeiro se apressou à frente deles para
garantir que tudo estivesse em ordem.

348
Kit olhou ao redor. Achando tudo satisfatório, ela casualmente jogou
o elmo do dragão sobre a mesa e começou a tirar as luvas. Sentada em uma
cadeira, ela levantou a perna com uma naturalidade sensual e deliberada.
— Minhas botas — disse para Tanis, sorrindo.
Engolindo em seco, dando um sorriso fraco em resposta, Tanis agarrou
sua perna entre as mãos. Este era um jogo antigo, ele tirando as botas dela.
Isso sempre levava a... Tanis tentou não pensar nisso!
— Traga uma garrafa do seu melhor vinho — Kitiara disse ao estala-
jadeiro — e dois copos. — Ela levantou a outra perna, os olhos castanhos
em Tanis. — Depois, nos deixe sozinhos.
— Mas, minha senhora... — disse o estalajadeiro, hesitante — chega-
ram mensagens do Senhor dos Dragões Ariakas...
— Se você mostrar seu rosto neste quarto... depois de trazer o vinho...
cortarei fora suas orelhas — Kitiara disse de forma agradável. Mas, enquanto
falava, ela puxou uma adaga brilhante do cinto.
O estalajadeiro empalideceu, assentiu e saiu às pressas.
Kit riu. — Pronto! — disse ela, mexendo os dedos dos pés na meia de
seda azul. — Agora, vou tirar suas botas...
— E-Eu realmente tenho que ir — disse Tanis, suando sob a armadura.
— Meu comandante da c-companhia sentirá minha falta...
— Mas eu sou a comandante da sua companhia! — Kit disse ale-
gremente. — E amanhã você será o comandante da sua companhia. Ou
superior, se quiser. Agora, sente-se.
Tanis não podia fazer nada além de obedecer, sabendo, no entanto, em
seu coração que ele não queria fazer nada além de obedecer.
— É tão bom te ver — disse Kit, se ajoelhando diante dele e puxando
a bota. — Sinto muito por ter perdido a reunião em Consolação. Como
estão todos? Como está Sturm? Provavelmente lutando com os Cavaleiros,
suponho. Não estou surpresa que vocês dois se separaram. Era uma amizade
que eu nunca consegui entender...
Kitiara falou, mas Tanis parou de ouvir. Ele só podia olhar para ela.
Esquecera como ela era adorável, sensual, convidativa. Desesperado, se
concentrou em seu próprio perigo. Mas tudo em que conseguia pensar era
nas noites felizes passadas com Kitiara.
Naquele momento, Kit olhou nos olhos dele. Deslumbrada e detida
pela paixão que viu neles, ela deixou a bota escorregar de suas mãos. In-

349
voluntariamente, Tanis estendeu a mão e a aproximou. Kitiara passou sua
mão pelo pescoço e pressionou os lábios nos dele.
Ao toque dela, os desejos e anseios que atormentaram Tanis por cinco
anos surgiram em seu corpo. Sua fragrância, quente e feminina... misturada
com o cheiro de couro e aço. O beijo dela era como o fogo. A dor era
insuportável. Tanis sabia apenas uma maneira de acabar com isso.
Quando o estalajadeiro bateu na porta, ele não recebeu resposta.
Balançando a cabeça em admiração (este foi o terceiro homem em tantos
dias) ele colocou o vinho no chão e foi embora.

— E agora — Kitiara murmurou sonolenta, deitada nos braços de


Tanis. — Me conte sobre meus irmãos mais novos. Eles estão com você? A
última vez que os vi, vocês estavam fugindo de Tarsis com aquela elfa.
— Era você! — Tanis disse, lembrando dos dragões azuis.
— Claro! — Kit se aconchegou mais. — Gosto da barba — disse ela,
acariciando seu rosto. — Esconde esses traços élficos fracos. Como você
entrou no exército?
“De fato, como?”, pensou Tanis freneticamente.
— Nós... fomos capturados em Silvanesti. Um dos oficiais me con-
venceu de que eu era um tolo por lutar contra a R-Rainha das Trevas.
— E meus irmãos mais novos?
— Nós... nós fomos separados — disse Tanis fracamente.
— Que pena — disse Kit com um suspiro. — Gostaria de vê-los no-
vamente. Caramon deve ser um gigante agora. E Raistlin... ouvi dizer que
ele é um mago bastante habilidoso. Ainda usando os Mantos Vermelhos?
— A-Acho que sim — Tanis murmurou. — Eu não o vejo...
— Isso não vai durar muito — disse Kit com complacência. — Ele é
como eu. Raist sempre ansiou por poder...
— E você? — Tanis interrompeu rapidamente. — O que você está
fazendo aqui, tão longe da ação? A luta está ao norte...
— Estou aqui pelo mesmo motivo que você — respondeu Kit, abrindo
bem os olhos. — Procurando pelo Homem da Joia Verde, claro.
— É onde eu o vi antes! — Tanis disse, lembranças inundando sua
mente. O homem no Perechon! O homem em Pax Tharkas, escapando com
o pobre Eben. O homem com a joia verde incrustada no meio do peito.
— Você o encontrou! — Kitiara disse, se sentando ansiosa. — Onde,
Tanis? Onde? — Os olhos castanhos dela brilhavam.

350
— Não tenho certeza — Tanis disse, vacilante. — Não tenho certeza
de que era ele. Eu... nós acabamos de receber uma descrição aproximada...
— Ele parece ter cinquenta anos de idade humana — disse Kit,
animada — mas tem olhos jovens e estranhos e suas mãos são jovens. E,
na carne do seu peito, existe uma joia verde. Tivemos relatos de que ele
foi visto em Naufrágio. É por isso que a Rainha das Trevas me enviou para
cá. Ele é a chave, Tanis! Encontre-o... e nenhuma força em Krynn poderá
nos impedir!
— Por quê? — Tanis se fez perguntar calmamente. — O que ele tem
que é tão essencial para... ahm... nosso lado vencer a guerra?
— Quem sabe? — Encolhendo os ombros esbeltos, Kit se deitou nos
braços de Tanis. — Você está tremendo. Aqui, isso vai aquecê-lo. — Ela o
beijou no pescoço, passando as mãos pelo corpo dele. — Disseram que a
coisa mais importante que poderíamos fazer para acabar com esta guerra
em um golpe rápido é encontrar esse homem.
Tanis engoliu em seco, se sentindo aquecer com o toque dela.
— Apenas pense — Kitiara sussurrou em seu ouvido, com a respira-
ção quente e úmida contra a pele dele — se o encontrássemos... você e eu...
teríamos toda Krynn a nossos pés! A Rainha das Trevas nos recompensaria
além de tudo o que sempre sonhamos! Você e eu, sempre juntos, Tanis.
Vamos agora!
A palavras dela ecoaram em sua mente. Os dois, juntos, para sempre.
Terminando a guerra. Governando Krynn. “Não”, ele pensou, sentindo sua
garganta contrair. “Isso é loucura! Insanidade! Meu povo, meus amigos...
Mesmo assim, será que já não fiz o suficiente? O que devo a qualquer um
deles, humanos ou elfos? Nada! São os que me machucaram, me ridiculari-
zaram! Todos esses anos, um pária. Por que pensar neles? Em mim! É hora
de pensar em mim para variar! Esta é a mulher com quem sonhei por tanto
tempo. E ela pode ser minha! Kitiara... tão bonita, tão desejável...”
— Não! — Tanis disse seriamente. – Não — disse mais gentilmente.
Estendendoa mão, ele a puxou de volta para perto. — Vamos amanhã. Se
for ele, ele não vai a lugar nenhum. Eu sei...
Kitiara sorriu e, com um suspiro, se deitou. Se inclinando sobre ela,
Tanis a beijou apaixonadamente. Ao longe, podia ouvir as ondas do Mar de
Sangue de Istar quebrando na costa.

351
10
A Torre do Alto Clerista.
O título de cavalaria.

e manhã, a tempestade sobre Solamnia se dissipou. O sol nasceu,


um disco de ouro pálido que nada aquecia. Os cavaleiros que
vigiavam as ameias da Torre do Alto Clerista foram gratos para
suas camas, falando das maravilhas que viram durante a noite terrível, pois
uma tempestade como essa não foi vista nas terras de Solamnia desde os dias
após o Cataclismo. Aqueles que assumiram a vigia de seus companheiros
cavaleiros estavam quase tão cansados quanto os outros. Ninguém dormira.
Agora, eles olhavam para uma planície coberta de neve e gelo. Aqui
e ali, a paisagem era pontilhada por chamas tremeluzentes, onde árvores,
atingidas pelos relâmpagos irregulares que caíram do céu durante a nevasca,
queimavam assustadoramente. Mas não foi para aquelas chamas estranhas
que os olhos dos cavaleiros se voltaram quando subiram para as ameias.
Era para as chamas que queimavam no horizonte... centenas e centenas de
chamas, enchendo o ar limpo e frio com sua fumaça suja.
As fogueiras da guerra. As fogueiras dos exércitos dracônicos.
Uma coisa ficava entre a Senhora dos Dragões e a vitória em Solamnia.
Essa “coisa” (como a Senhora costumava se referir a ela) era a Torre do Alto
Clerista. Construída há muito tempo por Vinas Solamnus, fundador dos
Cavaleiros, na única passagem pelas Montanhas Vingaard cobertas de neve
e nuvens, a Torre protegia Palanthas, capital de Solamnia, e o porto conhe-
cido como os Portões de Paladine. Caindo a Torre, Palanthas pertenceria
aos exércitos dracônicos. Era uma cidade suave... uma cidade de riqueza
e beleza, uma cidade que virara as costas ao mundo para vislumbrar com
admiração seu próprio reflexo no espelho.
Com Palanthas em suas mãos e o porto sob seu controle, a Senhora
poderia facilmente fazer o resto de Solamnia se render ao matá-la de fome
e, em seguida, eliminar os Cavaleiros problemáticos.
A Senhora dos Dragões, chamada de Dama das Trevas por suas tropas,
não estava no acampamento neste dia. Estava em negócios secretos no leste.
Mas deixara para trás comandantes leais e capazes, comandantes que fariam
qualquer coisa para ganhar seu favor.
De todos os Senhores dos Dragões, a Dama das Trevas era conhecida
por estar na posição mais alta em relação à sua Rainha das Trevas. E, assim,
as tropas de draconianos, goblins, robgoblins, ogros e humanos se sentavam
em volta de suas fogueiras, encarando a Torre com olhos famintos, desejan-
do atacar e receber sua admiração.
A Torre era defendida por uma grande guarnição de Cavaleiros de
Solamnia, que saíra de Palanthas há apenas algumas semanas. A lenda
lembra que a Torre nunca caíra enquanto os homens de fé a protegessem,
dedicada como era ao Alto Clerista, posição que, perdendo apenas para o
Grão-Mestre, era a mais reverenciada na Cavalaria.
Os clérigos de Paladine moraram na Torre do Alto Clerista durante
a Era dos Sonhos. Ali, jovens cavaleiros vieram para seu treinamento e
doutrinação religiosa. Ainda havia muitos vestígios da presença dos clérigos
deixados para trás.
Não foi apenas o medo da lenda que forçou os exércitos dracônicos a
esperarem. Não era necessária uma lenda para dizer aos comandantes que
tomar essa torre seria difícil.
— O tempo está a nosso favor — declarou a Dama das Trevas antes
de partir. — Nossos espiões nos dizem que os cavaleiros receberam pouca
ajuda de Palanthas. Cortamos seus suprimentos do Forte Vingaard, a leste.

353
Deixem que fiquem em sua torre e morram de fome. Cedo ou tarde, a
impaciência e o estômago causarão um erro. Quando isso acontecer, esta-
remos prontos.
— Poderíamos tomá-la com uma revoada de dragões — murmurou
um comandante jovem. Seu nome era Bakaris e sua bravura na batalha e
seu belo rosto fizeram muito para promovê-lo ao favor da Dama das Trevas.
Entretanto, ela o observou especulativamente, enquanto se preparava para
montar seu dragão azul, Skie.
— Talvez não — ela disse friamente. — Você ouviu os relatos da
descoberta da arma antiga... a lança do dragão?
— Ora! Histórias para crianças! — O jovem comandante riu enquanto
a ajudava a subir nas costas de Skie. O dragão azul estava encarando o belo
comandante com olhos ferozes e ardentes.
— Nunca desconsidere as histórias para crianças — disse a Dama das
Trevas —, pois eram as mesmas histórias que eram contadas sobre dragões
— ela deu de ombros. — Não se preocupe, meu bichinho. Se minha missão
de capturar o Homem da Joia Verde for bem-sucedida, não precisaremos
atacar a Torre, pois sua destruição será garantida. Caso contrário, talvez eu
traga a revoada de dragões que me pede.
Com isso, o gigante azul ergueu as asas e partiu em direção ao leste,
rumo a uma cidade pequena e miserável chamada Naufrágio, no Mar de
Sangue de Istar.
E, assim, os exércitos dracônicos esperaram, quentes e confortáveis
ao redor de suas fogueiras, enquanto, como a Dama das Trevas previra, os
cavaleiros passavam fome em sua Torre. Mas muito pior do que a falta de
comida era a dissensão amarga dentro de suas próprias fileiras.
Os jovens cavaleiros sob o comando de Sturm Brightblade passaram a
reverenciar seu líder desonrado durante os meses difíceis que se seguiram a
sua partida de Sancrist. Embora melancólico e muitas vezes distante, a ho-
nestidade e a integridade de Sturm conquistaram o respeito e a admiração
de seus homens. Foi uma vitória dispendiosa, causando muito sofrimento
a Sturm nas mãos de Derek. Um homem menos nobre poderia ignorar as
manobras políticas dele, ou pelo menos manter a boca fechada (como Lorde
Alfred), mas Sturm falava constantemente contra ele, mesmo sabendo que
isso piorava sua própria causa com o poderoso cavaleiro.
Foi Derek quem alienou completamente o povo de Palanthas. Já
desconfiado, cheio de velhos ódios e amarguras, o povo da bela e tranquila

354
cidade ficou alarmado e irritado com as ameaças de Derek quando se recu-
saram a permitir que os Cavaleiros colocassem forças militares na cidade.
Foi somente através das negociações pacientes de Sturm que os cavaleiros
receberam suprimentos.
A situação não melhorou quando os cavaleiros chegaram à Torre do
Alto Clerista. A perturbação entre os cavaleiros diminuiu o moral dos
soldados, já sofrendo com a falta de comida. Logo, a própria torre se tor-
nou um campo armado. Agora, a maioria dos cavaleiros que favoreciam
Derek tinha oposição aberta dos que estavam do lado de Lorde Gunthar,
liderados por Sturm. Foi apenas por causa da obediência estrita dos cava-
leiros a Providência que as lutas dentro da própria Torre ainda não haviam
começado. Mas a visão desmoralizante dos exércitos dracônicos acampados
nas proximidades, bem como a falta de comida, levaram a temperamentos
desgastados e nervos tensos.
Lorde Alfred percebeu o perigo tarde demais. Lamentou amargamente
sua própria loucura ao apoiar Derek Crownguard, pois agora podia ver
claramente que ele estava ficando louco.
A loucura crescia diariamente. O desejo de Derek pelo poder o con-
sumiu e o privou de sua razão. Mas Lorde Alfred não tinha meios para agir.
Os cavaleiros estavam tão presos em sua estrutura rígida que, segundo a
Providência, seriam necessários meses de Conselhos dos Cavaleiros para
tirar Derek do seu posto.
As notícias da inocência de Sturm atingiram essa floresta seca e
crepitante como um relâmpago. Como Gunthar previra, isso destruiu as
esperanças de Derek. O que ele não previra era que isso romperia a tênue
sanidade do rival.

Na manhã após a tempestade, os olhos dos guardas se voltaram por


um momento de sua vigilância sobre os exércitos dracônicos para observar
o pátio da Torre do Alto Clerista. O sol preenchia o céu cinzento com uma
luz pálida e fria que se refletia na armadura fria e brilhante dos Cavaleiros
de Solamnia, enquanto eles se reuniam na cerimônia solene que concedia
o título de cavalaria.
Acima deles, as bandeiras com a Crista do Cavaleiro pareciam conge-
ladas nas ameias, penduradas sem vida no ar parado e frio. Em seguida, as
notas puras de uma trombeta cortaram o ar, atiçando o sangue. Naquele

355
toque de trombeta, os cavaleiros ergueram a cabeça orgulhosamente e
marcharam para o pátio.
Lorde Alfred estava no centro de um círculo de cavaleiros. Vestido com
a armadura de batalha, a capa vermelha tremulando dos ombros, segurava
uma espada antiga em uma bainha velha e desgastada. O martim-pescador,
a rosa e a coroa, símbolos ancestrais da Cavalaria, estavam entrelaçados na
bainha. O lorde lançou um olhar rápido e esperançoso ao redor da assem-
bleia, mas depois baixou os olhos, balançando a cabeça.
Os piores temores do senhor Alfred se tornaram realidade. Triste, ele
esperava que essa cerimônia reunisse os cavaleiros. Mas estava tendo o efeito
oposto. Havia grandes lacunas no Círculo Sagrado, lacunas que os cava-
leiros presentes encaravam, desconfortáveis. Derek e todo o seu comando
estavam ausentes.
O som da trombeta soou mais duas vezes, depois o silêncio caiu sobre
os cavaleiros reunidos. Sturm Brightblade, vestido com longas túnicas
brancas, saiu da Capela do Alto Clerista, onde passara a noite em oração e
meditação solenes, conforme prescrito pela Providência. Uma Guarda de
Honra incomum o acompanhava.
Ao lado de Sturm, caminhava uma elfa, sua beleza brilhando na escu-
ridão do dia como o sol nascendo na primavera. Atrás dela, caminhava um
anão velho, a luz do sol brilhando em seus cabelos e barba brancos. Ao lado
do anão, vinha um kender vestido com perneiras azuis claras.
O círculo de cavaleiros se abriu para admitir Sturm e seus acompa-
nhantes. Eles pararam diante de Lorde Alfred. Segurando o seu elmo nas
mãos, Laurana estava à direita dele. Carregando seu escudo, Flint ficou à
esquerda e, depois de receber uma cutucada nas costelas do anão, Tasslehoff
correu para a frente com os esporões do cavaleiro.
Sturm inclinou a cabeça. Seus longos cabelos, já com fios grisalhos,
embora tivesse apenas trinta e poucos anos, caíam sobre seus ombros. Ele
ficou um momento em oração silenciosa, então, a um sinal de Lorde Alfred,
caiu de joelhos com reverência.
— Sturm Brightblade — declarou Lorde Alfred solenemente, abrindo
uma folha de papel — o Conselho dos Cavaleiros, ao ouvir testemunhos
de Lauralanthalasa da família real dos qualinesti e o testemunho adicional
de Flint Forjardente, anão da cidade de Consolação, concedeu a Inocência
das acusações contra você. Em reconhecimento às suas ações de bravura e
coragem, conforme relatadas por essas testemunhas, você é declarado Cava-

356
leiro da Solamnia. — A voz de Lorde Alfred se suavizou quando ele olhou
para o cavaleiro. Lágrimas escorriam sem controle pelas bochechas magras
de Sturm. — Você passou a noite em oração, Sturm Brightblade — disse
Alfred calmamente. — Você se considera digno dessa grande honra?
— Não, meu senhor — respondeu Sturm, de acordo com o ritual
antigo — mas humildemente o aceito e juro que dedicarei minha vida a me
tornar digno. — O cavaleiro levantou os olhos para o céu. — Com a ajuda
de Paladine — disse suavemente — eu o farei.
Lorde Alfred passara por muitas dessas cerimônias, mas não conseguia
se lembrar de uma dedicação tão fervorosa no rosto de um homem.
— Gostaria que Tanis estivesse aqui — murmurou Flint, rabugento,
para Laurana, que apenas assentiu brevemente.
Ela estava parada ereta, vestindo uma armadura especialmente feita
para ela em Palanthas, sob o comando de Lorde Gunthar. Os cabelos cor
de mel escorriam por baixo de um elmo prateado. Desenhos dourados in-
trincados reluziam em seu peitoral, sua saia de couro preta e macia, cortada
lateralmente para permitir liberdade de movimento, roçava as pontas das
botas. Seu rosto estava pálido e sombrio, pois a situação em Palanthas e na
própria Torre era sombria e aparentemente sem esperança.
Ela poderia ter voltado a Sancrist. De fato, fora ordenada a fazê-lo.
Lorde Gunthar recebera um comunicado secreto de Lorde Alfred relatando
os apuros desesperados em que os cavaleiros estavam e ele enviou ordens a
Laurana para interromper sua estadia.
Mas ela escolheu permanecer, pelo menos por um tempo. O povo
de Palanthas a recebeu educadamente, afinal, ela tinha sangue real e eles
ficaram encantados com sua beleza. Também estavam bastante interessa-
dos na lança do dragão e pediram uma para expor em seu museu. Mas,
quando Laurana mencionou os exércitos dracônicos, eles apenas deram
de ombros e sorriram.
Então, Laurana descobriu por um mensageiro o que estava acon-
tecendo na Torre do Alto Clerista. Os cavaleiros estavam sitiados. Um
exército dracônico na casa dos milhares esperava no campo. Os cavaleiros
precisavam das lanças do dragão, Laurana decidiu, e não havia ninguém
além dela para levá-las aos cavaleiros e ensinar sobre seu uso. Ela ignorou a
ordem de Lorde Gunthar de voltar a Sancrist.
A viagem de Palanthas à Torre foi um pesadelo. Laurana partiu
acompanhando duas carroças cheias de suprimentos escassos e as preciosas

357
lanças de dragão. A primeira carroça atolou na neve a poucos quilômetros
da cidade. Seu conteúdo foi redistribuído entre os poucos cavaleiros na
escolta, Laurana e seu grupo e a segunda carroça. Esta também atolou.
Novamente, eles a cavaram para fora até que, finalmente, ela atolou de
vez. Carregando a comida e as lanças nos cavalos, os cavaleiros, Laurana,
Flint e Tas seguiram o resto do caminho a pé. Seu grupo foi o último a
conseguir passar. Após a tempestade da noite passada, Laurana sabia, assim
como todos na Torre, que não haveria mais suprimentos. O caminho para
Palanthas agora estava intransitável.
Mesmo com um racionamento mais restrito, os cavaleiros e seus
soldados tinham comida suficiente apenas para alguns dias. Os exércitos
dracônicos pareciam preparados para esperar o resto do inverno.
As lanças de dragão foram tiradas dos cavalos cansados que as carre-
gavam e, por ordem de Derek, empilhadas no pátio. Alguns cavaleiros as
olharam com curiosidade, depois as ignoraram. As lanças pareciam armas
desajeitadas e pesadas.
Quando Laurana se ofereceu timidamente para instruir os cavaleiros
no uso das lanças, Derek bufou com escárnio. Lorde Alfred olhou as foguei-
ras acesas no horizonte pela janela. Laurana se voltou para Sturm para ver
seus medos confirmados.
— Laurana — ele disse gentilmente, pegando sua mão fria na dele
— não acho que o Senhor se dará ao trabalho de enviar dragões. Se não
pudermos reabrir as linhas de suprimentos, a Torre cairá porque restarão
apenas os mortos para defendê-la.
Então as lanças de dragão estavam no pátio, sem uso, esquecidas, com
a prata brilhante enterrada sob a neve.

358
11
A curiosidade de um kender.
Os Cavaleiros avançam.

erdidos em memórias, Sturm e Flint percorreram as ameias na


noite em que Sturm seria sagrado cavaleiro.
— Um poço de pura prata... brilhando como uma joia... no
coração da Montanha do Dragão — disse Flint, admiração em sua voz. —
E foi a partir dessa prata que Theros forjou as lanças do dragão.
— Eu gostaria, acima de tudo, de ter visto o túmulo de Huma — disse
Sturm em voz baixa. Olhando para as fogueiras no horizonte, ele parou,
apoiando a mão na parede de pedra antiga. A luz da tocha de uma janela
próxima brilhava em seu rosto magro.
— Você verá — disse o anão. — Quando isso terminar, voltaremos.
Tas desenhou um mapa, não que seja bom, provavelmente...
Enquanto reclamava sobre Tas, Flint estudou seu outro velho amigo
com preocupação. O rosto do cavaleiro estava sério e melancólico. Nada
incomum para Sturm. Mas havia algo novo, uma calma nele que não vinha
da serenidade, mas do desespero.
— Vamos lá juntos — o anão continuou, tentando esquecer a fome.
— Você, Tanis e eu. E o kender também, além de Caramon e Raistlin.
Nunca pensei que sentiria falta daquele mago magrelo, mas um mago seria
útil agora. E é melhor que Caramon não esteja aqui. Consegue imaginar o
ronco de barriga que ouviríamos dele ao ele perder algumas refeições?
Sturm sorriu distraidamente, seus pensamentos distantes. Quando
falou, ficou óbvio que não ouvira uma palavra que o anão disse.
— Flint — ele começou, sua voz suave e desanimada — precisamos
apenas de um dia de clima quente para abrir a estrada. Quando esse dia
chegar, pegue Laurana e Tas e vá embora. Me prometa.
— Todos nós devemos ir embora! — o anão retrucou. — Recuar com
os cavaleiros para Palanthas. Aposto que poderíamos proteger a cidade até
contra dragões. Suas construções são de pedras sólidas. Não é como este
lugar! — O anão olhou com desprezo a torre construída pelo homem. —
Palanthas poderia ser defendida.
Sturm balançou a cabeça.
— As pessoas não permitiriam. Elas se preocupam apenas com sua
bela cidade. Enquanto acharem que ela pode ser salva, não lutarão. Não,
precisamos resistir aqui.
— Vocês não têm chance — argumentou Flint.
— Sim, temos — respondeu Sturm — se pudermos aguentar até
que as linhas de suprimentos possam ser estabelecidas firmemente. Temos
potencial humano suficiente. É por isso que os dragões não atacaram...
— Existe outra forma — veio uma voz.
Sturm e Flint se viraram. A luz da tocha caiu sobre um rosto delgado
e a expressão de Sturm endureceu.
— E qual forma seria, Lorde Derek? — Sturm perguntou com uma
educação deliberada.
— Você e Gunthar acham que me derrotaram — disse Derek, igno-
rando a pergunta. Sua voz suave tremia de ódio enquanto encarava Sturm.
— Mas não derrotaram! Através de um ato heroico, terei os Cavaleiros na
palma da mão — Derek estendeu a mão na cota de malha, a armadura bri-
lhando à luz do fogo — e você e Gunthar estarão perdidos! — Lentamente,
ele apertou o punho.

361
— Eu estava com a impressão de que nossa guerra estava lá fora, contra
os exércitos dracônicos — disse Sturm.
— Não me venha com essa tolice hipócrita! — Derek rosnou. —
Aproveite seu título, Brightblade. Você pagou o suficiente por ele. O que
você prometeu à elfa em troca de suas mentiras? Casamento? Fazer dela
uma mulher respeitável?
— Não posso lutar contra você, de acordo com a Providência, mas
não preciso ouvi-lo insultar uma mulher que é tão bondosa quanto corajosa
— disse Sturm, se virando para sair.
— Nunca vire as costas para mim! — Derek gritou. Saltando para
frente, agarrou o ombro de Sturm. Sturm girou com raiva, a mão na es-
pada. Derek também pegou sua arma e pareceu, por um momento, que a
Providência poderia ser esquecida. Mas Flint colocou a mão para conter seu
amigo. Sturm respirou fundo e levantou a mão da espada.
— Diga o que você tem a dizer, Derek! — A voz de Sturm tremeu.
— Você está acabado, Brightblade. Amanhã, liderarei os cavaleiros
para o campo. Chega de se esconder nesta miserável prisão de rocha. Ama-
nhã à noite, meu nome será lenda!
Flint olhou para Sturm, alarmado. O rosto do cavaleiro perdera todo
o sangue. — Derek — Sturm disse em voz baixa — você está louco! Há
milhares deles! Vão cortá-lo em pedaços!
— Sim, é isso que você gostaria de ver, não é? — Derek zombou. —
Esteja pronto ao amanhecer, Brightblade.

Naquela noite, Tasslehoff (com frio, faminto e entediado) decidiu que


a melhor maneira de parar de pensar no estômago era explorar os arredores.
“Há muitos lugares para esconder as coisas aqui”, Tas pensou. “Esta é uma
das construções mais estranhas que já vi.”
A Torre do Alto Clerista repousava solidamente contra o lado oeste do
Passo do Portão Oeste, o único desfiladeiro que atravessava as montanhas
da Cordilheira de Habbakuk, que separava Solamnia oriental de Palanthas.
Como a Senhora dos Dragões sabia, qualquer um que tentasse chegar a Pa-
lanthas que não fosse por essa rota teria que viajar centenas de quilômetros
pelas montanhas, pelo deserto ou pelo mar. E os navios que entravam nos
Portões de Paladine eram alvos fáceis para as catapultas lançadoras de fogo
dos gnomos.

362
A Torre do Alto Clerista foi construída durante a Era do Poder. Flint
sabia muito sobre a arquitetura desse período, pois os anões foram fun-
damentais para projetar e construir a maior parte dela. Mas não haviam
construído ou projetado esta Torre. De fato, Flint se perguntou quem a
construíra, imaginando que a pessoa devia estar bêbada ou louca.
Uma muralha externa de pedra formava um octógono como base da
Torre. Cada ponto da parede octogonal era encimado por uma torre menor.
As ameias passavam pelo topo da muralha entre as torres. Uma parede
octogonal interna formava a base de uma série de torres e contrafortes que
varriam graciosamente para cima, até a própria Torre central.
Era um desenho bastante padrão, mas o que intrigava o anão foi a falta
de pontos de defesa interna. Três grandes portas de aço abriam a muralha
externa, em vez de uma porta, como pareceria mais razoável, já que três
portas demandavam um número incrível de homens para defendê-las.
Cada porta se abria para um pátio estreito, no extremo oposto, onde havia
um portão levando diretamente para um corredor enorme. Cada um desses
três corredores se encontrava no coração da própria Torre!
— Seria melhor convidar o inimigo para entrar e tomar um chá! —
o anão resmungou. — A forma mais estúpida de construir uma fortaleza
que já vi.
Ninguém entrava na torre. Para os cavaleiros, ela era inviolável. O
único que podia entrar na Torre era o próprio Alto Clerista e, como não
havia Alto Clerista, os cavaleiros defenderiam as muralhas da Torre com
suas vidas, mas nenhum deles colocaria os pés em seus salões sagrados.
Originalmente, a Torre apenas guardava o passo, não o bloqueava.
Mais tarde, os palanthianos construíram uma adição à estrutura principal
que vedava o passo. Era nessa adição que os cavaleiros e os soldados estavam
morando. Ninguém sequer pensou em entrar na própria Torre.
Ninguém, exceto Tasslehoff.
Impulsionado por sua curiosidade insaciável e sua fome persistente,
o kender fez o seu caminho ao longo do topo da muralha externa. Os
cavaleiros de guarda olhavam cautelosamente para ele, segurando as espadas
em uma mão e as bolsas na outra. Mas relaxaram assim que ele passou e Tas
conseguiu descer os degraus e entrar no pátio central.
Apenas as sombras andavam ali. Nenhuma tocha queimava, nenhum
guarda foi colocado. Degraus amplos levavam ao portão de aço. Tas subiu
as escadas em direção ao grande arco, bocejando, e olhou ansiosamente

363
através das barras. Nada. Ele suspirou. A escuridão adiante era tão intensa
que ele poderia estar olhando para o próprio abismo.
Frustrado, ele empurrou o portão, mais por hábito do que por es-
perança, pois apenas Caramon ou dez cavaleiros teriam a força necessária
para erguê-lo.
Para espanto do kender, as grades começaram a subir, fazendo os
rangidos mais horríveis! Agarrando-as, Tas puxou lentamente até pararem.
O kender olhou com medo para as ameias, esperando ver toda a guarnição
descendo para capturá-lo. Mas, aparentemente, os cavaleiros estavam ou-
vindo apenas os grunhidos dos estômagos vazios.
Tas se voltou para o portão de grades. Havia um pequeno espaço aberto
entre as pontas afiadas de ferro e os trabalhos em pedra, um espaço grande o
suficiente para um kender. Tas não perdeu tempo, nem parou para considerar
as consequências. Se espremendo, ele se contorceu sob os espinhos.
Ele se viu em um salão grande e amplo, com quase cinco metros de
largura. Podia ver apenas uma curta distância. Contudo, havia tochas velhas
na parede. Depois de alguns saltos, Tas alcançou uma e a acendeu com a
pederneira de Flint que encontrou em sua bolsa.
Agora, Tas podia ver claramente o salão gigantesco. Ele seguiu em
frente, direto para o coração da torre. Colunas estranhas se alinhavam ao
longo de ambos os lados, como dentes serrilhados. Espiando atrás de uma,
ele não viu nada além de uma alcova.
O salão em si estava vazio. Desapontado, Tas continuou andando,
esperando encontrar algo interessante. Ele chegou a um segundo portão de
grades, já levantado, para seu desgosto. “Qualquer coisa fácil é mais com-
plicada do que vale a pena”, era um velho ditado kender. Tas passou por
baixo das grades para um segundo corredor, mais estreito que o primeiro,
com apenas três metros de largura, mas com as mesmas colunas estranhas e
parecidas com dentes de cada lado.
“Por que construir uma torre tão fácil de entrar?” Tas se perguntou.
A muralha externa era formidável, mas uma vez ultrapassada, cinco anões
bêbados poderiam tomar esse lugar. Tas olhou para cima. E por que tão
grande? O salão principal tinha nove metros de altura!
Talvez os cavaleiros daquela época fossem gigantes, o kender especulou
com interesse enquanto se esgueirava pelo corredor, espiando portas abertas
e cantos.

364
No final do segundo corredor, ele encontrou um terceiro portão. Este
era diferente dos outros dois e tão estranho quanto o resto da Torre. Este
portão de grades tinha duas metades, que deslizavam para se juntar no
centro. O mais estranho de tudo era que havia um grande buraco no meio
das portas!
Rastejando por esse buraco, Tas se viu em uma sala menor. À sua
frente, duas enormes portas de aço. Empurrando-as casualmente, ele se
assustou ao encontrá-las trancadas. Nenhum dos portões de grade estava
trancado. Não havia nada para proteger.
Bem, pelo menos aqui havia algo para mantê-lo ocupado e fazer
esquecer o estômago vazio. Subindo em um banco de pedra, Tas enfiou a
lanterna em um candeeiro na parede e começou a remexer em suas bolsas.
Finalmente descobriu o conjunto de ferramentas para abrir fechaduras que
era próprio para um kender. “Por que insultar o propósito da porta ao
trancá-la?”, é uma das expressões favoritas dos kender.
Tas rapidamente escolheu a ferramenta adequada e começou a traba-
lhar. A fechadura era simples. Houve um ligeiro clique e Tas guardou suas
ferramentas com satisfação quando a porta se abriu. O kender ficou parado
um momento, ouvindo atentamente. Não conseguia ouvir nada. Olhando
para dentro, não conseguia ver nada. Subindo no banco novamente, ele
pegou sua tocha e passou cuidadosamente pelas portas de aço.
Mantendo a tocha no alto, ele se viu em uma sala grande, ampla e
circular. Tas suspirou. A sala estava vazia, exceto por um objeto coberto de
poeira que lembrava uma fonte antiga diretamente no centro. Este também
era o fim do corredor, pois, embora houvesse mais dois conjuntos de portas
duplas saindo da sala, era óbvio para o kender que elas apenas levavam de
volta pelos outros dois corredores gigantes. Este era o coração da torre. Este
era o lugar sagrado. Era sobre isso que se tratava.
Nada.
Tas andou um pouco, iluminando com sua tocha aqui e ali. Por fim,
o kender descontente foi examinar a fonte no centro da sala antes de sair.
Quando Tas se aproximou, viu que não era uma fonte, mas a poeira era
tão espessa que ele não conseguiu descobrir. Era quase da altura do kender,
com um metro e vinte a partir do chão. O topo redondo era apoiado em
um suporte delgado de três pernas.
Tas inspecionou o objeto de perto, então respirou fundo e soprou
forte. A poeira entrou em seu nariz e ele espirrou violentamente, quase

365
derrubando a tocha. Por um momento, não conseguiu ver nada. Então, a
poeira baixou e ele pode ver o objeto. Seu coração pulou na garganta.
— Ah, não! — Tas gemeu. Fuçando em outra bolsa, ele puxou um
lenço e esfregou o objeto. A poeira saiu facilmente e, agora, ele sabia o que
era. — Droga! — ele disse em desespero. — Eu tinha razão. Agora, o que
eu faço?

O sol nasceu vermelho na manhã seguinte, brilhando através de uma


névoa esfumaçada que pairava sobre os exércitos dracônicos. No pátio da
Torre do Alto Clerista, as sombras da noite ainda não haviam se levantado
antes do início das atividades. Cem cavaleiros montaram, ajustaram as rédeas,
pediram escudos e afivelaram as armaduras, enquanto mil soldados andavam
em volta, procurando por seus lugares adequados na linha.
Sturm, Laurana e lorde Alfred estavam em uma passagem escura,
observando em silêncio enquanto lorde Derek, rindo e contando piadas
para seus homens, entrava no pátio. O cavaleiro estava resplandecente em
sua armadura, a rosa brilhando em seu peitoral nos primeiros raios de sol.
Seus homens estavam de bom humor, o pensamento de batalha os fazendo
esquecer sua fome.
— Você precisa impedir isso, meu senhor — disse Sturm.
— Não posso — Lorde Alfred disse, colocando as luvas, seu rosto
abatido à luz da manhã. Ele não dormira desde que Sturm o acordou nas
últimas horas da noite. — A Providência dá a ele o direito de tomar essa
decisão.
Em vão, Alfred discutira com Derek, tentando convencê-lo a esperar
mais alguns dias! O vento já estava começando a mudar, trazendo uma brisa
quente do norte.
Mas Derek fora inflexível. Ele cavalgaria e desafiaria os exércitos dracô-
nicos no campo. Quanto a estar em menor número, ele riu com desprezo:
— Desde quando goblins lutam como Cavaleiros da Solamnia? Os
Cavaleiros estavam em inferioridade numérica de cinquenta a um nas
Guerras dos Goblins e dos Ogros do Forte Vingaard, há cem anos, e derro-
taram as criaturas com facilidade!
— Mas você lutará contra draconianos — alertou Sturm. — Eles
não são como goblins. São inteligentes e habilidosos. Eles têm usuários de
magia em suas fileiras e suas armas são as melhores de Krynn. Mesmo na
morte, eles têm o poder de matar...

366
— Eu acredito que podemos lidar com eles, Brightblade — Derek in-
terrompeu de forma rude. — E agora, sugiro que você acorde seus homens
e peça para eles se preparem.
— Eu não vou — disse Sturm com firmeza. — E também não darei
ordens para que meus homens saiam.
Derek empalideceu com fúria. Por um momento não conseguiu falar,
com tanta raiva que estava. Até Lorde Alfred parecia chocado.
— Sturm — Alfred começou devagar — você sabe o que está fazendo?
— Sim, meu senhor — Sturm respondeu. — Somos a única coisa
entre os exércitos dracônicos e Palanthas. Não ousaremos deixar esse forte
sem uma guarnição. Estou mantendo meus comandados aqui.
— Desobedecendo a uma ordem direta — disse Derek, respirando
pesadamente. — Você é testemunha, Lorde Alfred. Desta vez, terei a cabeça
dele! — Ele saiu. Com o rosto sombrio, Lorde Alfred seguiu, deixando
Sturm sozinho.
No final, Sturm dera a seus homens uma escolha. Eles poderiam ficar
com ele sem nenhum risco para si mesmos, já que estavam simplesmente
obedecendo às ordens de seu oficial comandante, ou poderiam acompanhar
Derek. Ele mencionou que foi a mesma escolha que Vinas Solamnus dera a
seus homens há muito tempo, quando os Cavaleiros se rebelaram contra o
Imperador corrupto de Ergoth. Os homens não precisavam ser lembrados
dessa lenda. Eles viram isso como um sinal e, como Solamnus, a maioria
deles optou por ficar com o comandante que passaram a respeitar e admirar.
Agora, eles ficaram olhando, com o rosto pesado, enquanto seus
amigos se preparavam para cavalgar. Foi a primeira cisão aberta na longa
história da Cavalaria e o momento era grave.
— Reconsidere, Sturm — disse Lorde Alfred enquanto o cavaleiro
o ajudava a montar seu cavalo. — Lorde Derek está certo. Os exércitos
dracônicos não foram treinados, não como os Cavaleiros. Há toda a proba-
bilidade de os rechaçarmos sem sofrer nem mesmo um golpe.
— Rezo para que seja verdade, meu senhor — disse Sturm com firmeza.
Alfred o olhou com tristeza. — Se for verdade, Brightblade, Derek
fará com que você seja julgado e executado por isso. Não haverá nada que
Gunthar possa fazer para impedi-lo.
— Eu morreria de bom grado, meu senhor, se isso impedir o que temo
que aconteça — respondeu Sturm.

367
— Droga, homem! — Lorde Alfred explodiu. — Se formos derrotados,
o que você ganhará se ficar aqui? Você não poderia deter um exército de anões
tolos com seu contingente pequeno! Suponha que as estradas se abram? Você
não poderá defender a torre por tempo suficiente para Palanthas enviar reforços.
— Pelo menos, podemos dar tempo para Palanthas evacuar seus
cidadãos, se...
Lorde Derek Crownguard colocou o cavalo entre os de seus homens.
Olhando fixamente para Sturm, com os olhos brilhando por trás das fendas
no elmo, Lorde Derek levantou a mão pedindo silêncio.
— De acordo com a Providência, Sturm Brightblade — Derek come-
çou formalmente — eu o causo de conspiração e...
— Para o Abismo com a Providência! — Sturm vociferou, sua paciên-
cia se esgotando. — Onde a Providência nos levou? Divididos, invejosos,
loucos! Até nosso próprio povo prefere tratar com os exércitos de nossos
inimigos! A Providência falhou!
Um silêncio mortal se estabeleceu sobre os cavaleiros no pátio, quebra-
do apenas pela agitação inquieta de um cavalo ou pelo tinir da armadura,
enquanto um homem se mexia na sela aqui e acolá.
— Reze pela minha morte, Sturm Brightblade — disse Derek suave-
mente — ou, pelos deuses, eu mesmo cortarei sua garganta na sua execução!
— Sem outra palavra, ele girou o cavalo e galopou até a frente da coluna.
— Abram os portões! — ele ordenou.
O sol da manhã apareceu acima da fumaça subindo no céu azul. Os
ventos sopravam do norte, agitando bravamente a bandeira do topo da
torre. A armadura brilhou. Houve um barulho de espadas contra escudos e
o som de uma trombeta quando os homens correram para abrir os grossos
portões de madeira.
Derek levantou sua espada no ar. Erguendo a voz na saudação do
Cavaleiro ao inimigo, ele galopou para a frente. Os cavaleiros atrás dele o
acompanharam em seu desafio e seguiram para os campos onde, há muito
tempo, Huma conquistara uma vitória gloriosa. Os soldados marcharam,
seus passos deixando marcas no pavimento de pedra. Por um momento,
Lorde Alfred pareceu prestes a falar com Sturm e os jovens cavaleiros que
estavam assistindo. Mas ele apenas balançou a cabeça e foi embora.
Os portões se fecharam atrás dele. A barra de ferro pesada foi solta para
trancá-los com segurança. Os homens sob o comando de Sturm correram
para as ameias para assistir.

368
Sturm ficou em silêncio no centro do pátio, o rosto magro sem
expressão.

O comandante jovem e belo dos exércitos dracônicos, na ausência da


Dama das Trevas, estava acordando para o café da manhã e o início de outro
dia chato quando um batedor galopou para o acampamento.
O comandante Bakaris olhou para o batedor com desgosto. O ho-
mem estava cavalgando pelo acampamento descontroladamente, seu cavalo
espalhando panelas e goblins. Os guardas draconianos se levantaram, ba-
lançando os punhos e xingando. Mas o batedor os ignorou.
— A Senhora! — ele chamou, saindo do seu cavalo na frente da tenda.
— Eu preciso ver a Senhora.
— A Senhora não está — disse o ajudante do comandante.
— Eu estou no comando — retrucou Bakaris. — O que você quer?
O patrulheiro olhou em volta rapidamente, não querendo cometer
um erro. Mas não havia sinal da terrível Dama das Trevas ou do grande
dragão azul que ela montava.
— Os Cavaleiros entraram em campo!
— O que? — O queixo do comandante caiu. — Tem certeza?
— Sim! — O batedor era praticamente incoerente. – Eu vi! Centenas
a cavalo! Azagaias, espadas. Trezentos metros.
— Ela estava certa! — Bakaris praguejou baixinho com admiração. —
Os tolos cometeram seu erro!
Chamando seus servos, ele correu de volta para sua tenda. — Toque
o alarme — ele ordenou, dando instruções. — Traga os capitães aqui em
cinco minutos para as ordens finais. — Suas mãos tremiam de ansiedade
enquanto ele colocava sua armadura. — E envie o wyvern para Naufrágio
com uma mensagem para a Senhora.
Os servos goblins correram em todas as direções e logo as trombetas
ecoavam pelo acampamento. O comandante lançou um último olhar
para o mapa em sua mesa, depois saiu para se encontrar com seus oficiais.
— Que tristeza — refletiu friamente enquanto se afastava. — A luta
provavelmente terá acabado quando ela receber a notícia. Uma pena. Ela
gostaria de estar presente na queda da Torre do Alto Clerista. Ainda assim
— ele refletiu — talvez amanhã à noite dormiremos em Palanthas, ela e eu.

369
12
Morte nas planícies.
A descoberta de Tasslehoff.

sol subiu alto no céu. Os cavaleiros estavam sobre as ameias da


Torre, observando as planícies até seus olhos doerem. Tudo o que
podiam ver era uma grande maré de figuras negras e rastejantes
que se aglomerava pelos campos, pronta para engolir a lança delgada de
prata reluzente que avançava constantemente para enfrentá-la.
Os exércitos se encontraram. Os cavaleiros se esforçaram para ver, mas
um véu cinza enevoado tomava conta da terra. O ar ficou maculado com
um cheiro ruim, como o de ferro quente. A névoa ficou mais densa, quase
obscurecendo totalmente o sol.
Agora, não podiam ver nada. A Torre parecia estar flutuando em
um mar de neblina. A névoa pesada amorteceu até mesmo o som, pois, a
princípio, eles ouviram o choque de armas e os gritos dos moribundos. Mas
até isso desapareceu e tudo ficou em silêncio.
O dia passou. Andando inquieta em sua câmara que escurecia, Laura-
na acendeu velas que tremularam no ar imundo. O kender se sentou com
ela. Olhando pela janela da torre, Laurana podia ver Sturm e Flint, de pé
nas ameias abaixo dela, refletidos na luz fantasmagórica das tochas.
Um servo trouxe para ela o pedaço de pão bichado e carne seca que
era sua ração para o dia. Devia estar apenas no meio da tarde, ela perce-
beu. Então, o movimento nas ameias chamou sua atenção. Ela viu um
homem vestido com uma armadura de couro cheia de lama se aproximar
de Sturm. “Um mensageiro”, ela pensou. Apressadamente, ela começou a
prender sua armadura.
— Vamos? — ela perguntou a Tas, pensando, de repente, que o kender
estava quieto demais. — Um mensageiro chegou de Palanthas!
— Parece que sim — disse Tas, sem interesse.
Laurana franziu a testa, esperando que ele não estivesse ficando fraco
pela falta de comida. Mas Tas balançou a cabeça com a preocupação dela.
— Estou bem — ele murmurou. — Apenas esse ar cinza estúpido.
Laurana esqueceu dele enquanto descia as escadas correndo.
— Novidades? — ela perguntou a Sturm, que espiava por cima dos mu-
ros em um esforço vão para ver o campo de batalha. — Eu vi o mensageiro...
— Ah, sim. — Ele sorriu cansado. — Boas notícias, imagino. O ca-
minho para Palanthas está aberto. A neve derreteu o suficiente para passar.
Tenho um cavaleiro de prontidão para levar uma mensagem a Palanthas,
caso sejamos der... — ele parou abruptamente, depois respirou fundo. —
Quero que você esteja pronta para voltar a Palanthas com ele.
Laurana esperava isso e sua resposta estava preparada. Mas, agora
que havia chegado a hora de falar, ela não conseguiu. O ar amargo secou
sua boca, sua língua parecia inchada. Não, não era isso, ela se repreendeu.
Estava assustada. Admitiu. Queria voltar para Palanthas! Queria sair deste
lugar soturno onde a morte espreitava nas sombras. Apertando o punho,
bateu a mão enluvada nervosamente na pedra, reunindo sua coragem.
— Eu vou ficar aqui, Sturm — disse ela. Depois de fazer uma pausa
para controlar a voz, continuou: — Sei o que você vai dizer, então me escute
primeiro. Você precisará de todos os guerreiros qualificados que conseguir.
Você conhece meu valor.
Sturm concordou. O que ela disse era verdade. Havia poucos em seu
comando mais precisos com um arco. Ela também era uma espadachim
treinada. Fora testada em batalha, algo que ele não podia dizer sobre muitos

371
dos cavaleiros jovens sob seu comando. Então, ele concordou. Ele pretendia
mandá-la embora de qualquer maneira.
— Eu sou a única treinada para usar a lança do dragão...
— Flint foi treinado — Sturm interrompeu em voz baixa.
Laurana encarou o anão com um olhar penetrante.
Pego entre duas pessoas que amava e admirava, Flint corou e limpou
a garganta.
— Isso é verdade — ele disse com voz rouca — mas... ahm... eu...
devo admitir... ahm, Sturm, que sou um pouco baixo.
— De qualquer forma, não vimos sinal de dragões — disse Sturm,
enquanto Laurana lançava um olhar triunfante. — Os relatórios dizem que
eles estão ao nosso sul, lutando pelo controle de Thelgaard.
— Mas você acredita que os dragões estão a caminho, não acredita?
— Laurana retrucou.
Sturm parecia desconfortável. — Talvez — murmurou.
— Você não pode mentir, Sturm, então não comece agora. Vou ficar.
É o que Tanis faria...
— Droga, Laurana! — Sturm disse, seu rosto corado. — Viva sua
própria vida! Você não pode ser Tanis! Eu não posso ser Tanis! Ele não está
aqui! Temos que encarar isso! — O cavaleiro se virou de repente. — Ele não
está aqui — repetiu, sério.
Flint suspirou, olhando tristemente para Laurana. Ninguém percebeu
Tasslehoff, que estava sentado, encolhido miseravelmente em um canto.
Laurana colocou o braço em torno de Sturm.
— Sei que não sou o amigo que Tanis é para você, Sturm. Nunca
poderei tomar o lugar dele. Mas farei o possível para ajudá-lo. Foi isso que
eu quis dizer. Você não precisa me tratar de maneira diferente dos seus
cavaleiros...
— Eu sei, Laurana — disse Sturm. Colocando o braço ao seu redor,
ele a abraçou. — Sinto muito ter respondido dessa forma. — Sturm sus-
pirou. — E você sabe por que devo mandá-la embora. Tanis nunca me
perdoaria se algo acontecesse com você.
— Sim, perdoaria — Laurana respondeu suavemente. — Ele entende-
ria. Ele me disse uma vez que há um momento quando você precisa arriscar
sua vida por algo que signifique mais do que a própria vida. Não entende,
Sturm? Se eu fugisse para a segurança, deixando meus amigos para trás, ele
diria que entendeu. Mas, no fundo, não entenderia. Porque é tão diferente

372
do que ele próprio faria. Além disso — ela sorriu — mesmo que não hou-
vesse Tanis neste mundo, eu ainda não poderia deixar meus amigos.
Sturm olhou nos olhos dela e viu que nenhuma palavra dele faria
qualquer diferença. Silenciosamente, ele a abraçou. O outro braço dele
passou peloss ombro de Flint e puxou o anão para perto.
Desabando em lágrimas, Tasslehoff se levantou e se atirou sobre eles,
soluçando loucamente. Eles o encararam com espanto.
— Tas, o que foi? — Laurana perguntou, alarmada.
— É tudo culpa minha! Eu quebrei um! Estou fadado a dar a volta
ao mundo quebrando essas coisas? — Tas lamentou de forma incoerente.
— Calma — disse Sturm, sua voz severa. Ele sacudiu o kender. — Do
que você está falando?
— Eu encontrei outro — Tas choramingou. — Lá embaixo, em uma
grande câmara vazia.
— Outro o que, criatura? — Flint disse, exasperado.
— Outro orbe do dragão! — Tas lamentou.

A noite caiu sobre a Torre como uma névoa mais espessa e pesada. Os
cavaleiros acenderam tochas, mas a chama apenas povoava a escuridão com
fantasmas. Os cavaleiros mantinham uma vigia silenciosa nas ameias, se
esforçando para ouvir ou ver algo, qualquer coisa...
Então, quando era quase meia-noite, eles se assustaram ao ouvir,
não os gritos vitoriosos de seus camaradas ou as trombetas monótonas e
estridentes do inimigo, mas o tinir dos arreios, o relincho suave dos cavalos
se aproximando da fortaleza.
Correndo para a beira das ameias, os cavaleiros iluminaram o nevoeiro
com tochas. Eles ouviram os cascos parar lentamente. Sturm estava acima
do portão.
— Quem cavalga até a Torre do Alto Clerista? — ele clamou.
Uma única tocha acendeu abaixo. Laurana, olhando para a escuridão
enevoada, sentiu os joelhos enfraquecerem e agarrou a parede de pedra para
se apoiar. Os cavaleiros gritaram de horror.
O cavaleiro que segurava a tocha flamejante estava vestido com a
armadura brilhante de um oficial do exército dracônico. Ele era loiro,
seus traços bonitos, frios e cruéis. Ele conduzia um segundo cavalo sobre
o qual dois corpos estavam jogados — um deles sem cabeça, ambos san-
grentos, mutilados.

373
— Eu trouxe de volta seus oficiais — disse o homem, sua voz rouca e
estridente. — Um está morto, como podem ver. O outro, acredito, ainda
está vivo. Ou estava quando comecei minha jornada. Espero que ainda es-
teja vivo, para que possa contar o que aconteceu hoje no campo de batalha.
Se for possível chamar isso de batalha.
Banhado pelo brilho de sua própria tocha, o oficial desmontou. Ele
começou a desamarrar os corpos, usando uma mão para arrancar as cordas
que os prendiam à sela. Então, ele olhou para cima.
— Sim, vocês poderiam me matar agora. Eu sou um bom alvo, mesmo
nesta neblina. Mas vocês não vão. Vocês são Cavaleiros da Solamnia — o
sarcasmo dele era forte — e sua honra é a sua vida. Vocês não matariam
um homem desarmado, devolvendo os corpos dos seus líderes. — Ele deu
um puxão nas cordas. O corpo sem cabeça deslizou para o chão. O oficial
arrastou o outro corpo para fora da sela. Ele jogou a tocha na neve ao lado
dos corpos. Ela chiou, depois se apagou e a escuridão o engoliu.
— Vocês têm um excesso de honra no campo — ele falou. Os cavaleiros
ouviram o couro ranger, sua armadura retinir enquanto ele montava em seu
cavalo. — Eu darei até de manhã para se renderem. Quando o sol nascer,
abaixem sua bandeira. A Senhora dos Dragões tratará vocês com misericórdia...
De repente, houve o som de um arco, o som de uma flecha atingindo a
carne e o som de palavrões assustados abaixo deles. Os cavaleiros se viraram
para encarar uma figura solitária de pé na parede, com um arco na mão.
— Não sou cavaleiro — Laurana gritou, abaixando o arco. — Sou
Lauralanthalasa, filha dos qualinesti. Nós elfos temos nosso próprio código
de honra e, como tenho certeza que sabe, eu posso enxergar muito bem
nessa escuridão. Eu poderia tê-lo matado. Do jeito que está, acredito que
você terá alguma dificuldade em usar esse braço por um bom tempo. Na
verdade, você nunca mais poderá segurar uma espada novamente.
— Tome isso como nossa resposta à sua Senhora — disse Sturm seria-
mente. — Morreremos de frio antes de abaixarmos a bandeira!
— De fato, morrerão! — o oficial disse entre dentes cerrados de dor.
O som de cascos galopantes se perdeu na escuridão.
— Tragam os corpos — ordenou Sturm.
Cautelosamente, os cavaleiros abriram os portões. Vários correram
para cobrir os outros que gentilmente ergueram os corpos e os carregaram
para dentro. Então, os guardas recuaram de volta para a fortaleza e tranca-
ram os portões atrás deles.

374
Sturm se ajoelhou na neve ao lado do corpo do cavaleiro sem cabeça.
Erguendo a mão do homem, removeu um anel dos dedos rígidos e frios. A
armadura do cavaleiro estava enegrecida. Soltando a mão sem vida de volta
na neve, Sturm inclinou a cabeça. — Lorde Alfred — disse ele, sem tom.
— Senhor — disse um dos jovens cavaleiros — o outro é Lorde Derek.
O maldito oficial dos dragões estava certo.. ele ainda está vivo.
Sturm se levantou e foi até onde Derek estava deitado na pedra fria. O
rosto do lorde estava branco, os olhos arregalados e brilhando febrilmente.
O sangue seco cobria seus lábios. Um dos jovens cavaleiros que o apoiava
levou um copo de água aos lábios, mas Derek não conseguiu beber.
Enjoado de horror, Sturm viu a mão de Derek pressionada sobre seu
estômago, de onde o sangue de sua vida estava jorrando, mas não rápido o
suficiente para acabar com a dor agonizante. Derek deu um sorriso medo-
nho e segurou o braço de Sturm com a mão ensanguentada.
— Vitória! — ele arfou. — Eles correram e nós os perseguimos! Foi
glorioso, glorioso! E eu... eu serei Grão-Mestre! — Ele engasgou e o sangue
jorrou de sua boca quando caiu nos braços do jovem cavaleiro, que olhou
para Sturm, seu rosto esperançoso.
— Você acha que ele está certo, senhor? Talvez tenha sido um ardil...
— Sua voz morreu ao ver o rosto sombrio de Sturm e ele olhou para Derek
com pena. — Ele está louco, não é, senhor?
— Ele está morrendo. Bravamente... como um verdadeiro cavaleiro
— disse Sturm.
— Vitória! — Derek sussurrou, então seus olhos ficaram fixos e ele
vislumbrou a névoa sem ver mais.

— Não, você não deve quebrá-lo — disse Laurana.


— Mas Fizban disse...
— Eu sei o que ele disse — respondeu Laurana impaciente. — Não
é mau, não é bom, não é nada, é tudo. Isso — ela murmurou — é a cara
de Fizban!
Ela e Tas estavam na frente do orbe do dragão. O orbe repousava em
seu suporte no centro da sala redonda, ainda coberto de poeira, exceto pelo
local que Tas havia esfregado. A sala estava escura e assustadoramente silen-
ciosa, tão silenciosa que Tas e Laurana se sentiram compelidos a sussurrar.
Laurana olhou para o orbe, sua testa franzida em pensamentos. Tas olhou
tristemente para Laurana, com medo de saber o que ela estava pensando.

375
— Esses orbes precisam funcionar, Tas! — Laurana disse finalmente.
— Eles foram criados por magos poderosos! Pessoas como Raistlin, que não
toleram o fracasso. Se soubéssemos como...
— Eu sei — Tas disse em um sussurro quebrado.
— O que? — Laurana perguntou. — Você sabe! Por que não...
— Eu não sabia que sabia... por assim dizer — gaguejou Tas. — Ape-
nas veio a mim. Gnosh, o gnomo, me disse que descobriu uma escrita
dentro do orbe, letras que giravam na névoa. Ele disse que não podia ler
porque estavam escritas em algum tipo de idioma estranho...
— O idioma da magia.
— Sim, foi o que eu disse e...
— Mas isso não vai nos ajudar! Nós também não podemos falar. Se
ao menos Raistlin...
— Não precisamos de Raistlin — interrompeu Tas. — Não consigo
falar, mas consigo ler. Sabe, eu tenho esses óculos... óculos da visão da ver-
dade, como Raistlin os chamou. Eles me deixam ler idiomas... até mesmo
o da magia. Eu sei porque ele disse que se me pegasse lendo algum de seus
pergaminhos, ele me transformaria em um grilo e me engoliria inteiro.
— E você acha que pode ler o orbe?
— Eu posso tentar — Tas disse evasivo. — Mas Laurana, Sturm disse
que provavelmente não haveria dragões. Por que deveríamos nos arriscar
a mexer com o orbe? Fizban disse que apenas os magos mais poderosos se
atrevem a usá-lo.
— Me escute, Tasslehoff Burrfoot — Laurana disse em voz baixa, se
ajoelhando ao lado do kender e olhando diretamente nos olhos dele. — Se
eles trouxerem um dragão aqui, estaremos perdidos. É por isso que nos
deram tempo para nos rendermos em vez de apenas invadir o lugar. Estão
usando o tempo extra para trazer dragões. Temos que aproveitar esta chance!
“Um caminho escuro e um caminho claro.” Tasslehoff se lembrou das
palavras de Fizban e abaixou a cabeça. “Morte daqueles a quem você ama,
mas você tem a coragem.”
Lentamente, Tas enfiou a mão no bolso do colete felpudo, tirou os
óculos e encaixou as armações de arame nas orelhas pontudas.

376
13
O sol nasce.
A escuridão cai.

nevoeiro subiu com a chegada da manhã. O dia amanheceu claro


e limpo, tão limpo que Sturm, andando pelas ameias, podia ver
as pastagens cobertas de neve da sua terra natal perto do Forte
Vingaard, terras agora completamente controladas pelos exércitos dracô-
nicos. Os primeiros raios do sol atingiram a bandeira dos Cavaleiros, o
martim-pescador sob uma coroa de ouro, segurando uma espada decorada
com uma rosa em suas garras. O emblema dourado cintilava à luz da ma-
nhã. Então, Sturm ouviu as trombetas implacáveis e estridentes.
Os exércitos dracônicos marcharam sobre a Torre ao amanhecer.
Os jovens cavaleiros, os cerca de cem que restavam, permaneciam em
silêncio nas ameias, observando o exército vasto avançar pela terra com a
inexorabilidade de insetos devoradores.
No início, Sturm se perguntou sobre as palavras finais do cavaleiro. —
Eles correram diante de nós! — Por que o exército dracônico correu? Então,
ficou claro. Os homens-dragão haviam usado o orgulho dos cavaleiros con-
tra eles em uma manobra antigas. Recue diante de seu inimigo... não muito
rápido, apenas deixe as linhas de frente mostrarem medo e terror suficientes
para serem críveis. Deixe parecer que o pânico tomou conta. Então, deixe
seu inimigo investir atrás de vocês, estendendo demais as linhas dele. E
deixe seus exércitos se aproximarem, cercá-lo e cortá-lo em pedaços.
Não era necessário ver os corpos, quase invisíveis na neve pisoteada e
sangrenta, para dizer a Sturm que ele julgara corretamente. Estavam onde
tentaram desesperadamente se reagrupar para uma resistência final. Não
que importasse como eles morreram. Ele se perguntou quem olharia para
seu corpo quando tudo terminasse.
Flint espiou por uma fenda na muralha. — Pelo menos vou morrer
em terra firme — murmurou o anão.
Sturm sorriu levemente, acariciando seus bigodes. Seus olhos foram
para o leste. Ao pensar em morrer, ele olhou para a terra onde nascera...
um lar que mal conhecia, um pai que mal lembrava, um país que levou sua
família ao exílio. Ele estava prestes a dar a vida para defender esse país. Por
quê? Por que ele não partiu e voltou para Palanthas?
Durante toda a sua vida ele seguira o Código e a Providência. O
Código: Est Sularus oth Mithas – Minha Honra é Minha Vida. O Código
era tudo o que restava. A Providência se fora. Falhara. Rígida, inflexível,
envolvera os Cavaleiros em um aço mais pesado que sua armadura. Isola-
dos, lutando para sobreviver, os Cavaleiros se apegaram à Providência em
desespero, sem perceber que era uma âncora, os deixando carregados.
“Por que eu era diferente?” Sturm se perguntou. Mas ele sabia a res-
posta, mesmo enquanto ouvia o resmungo do anão. Era por causa do anão,
do kender, do mago, do meio-elfo... Eles o ensinaram a ver o mundo através
de outros olhos: olhos puxados, olhos menores, até olhos de ampulheta.
Cavaleiros como Derek viam o mundo em preto e branco. Sturm vira o
mundo em todas as suas cores radiantes, em todo o seu cinza lúgubre.
— Está na hora — disse a Flint. Os dois desceram do ponto de vigia,
assim que a primeira flecha envenenada do inimigo sobre as paredes.
Com gritos e berros, o estrondo de trombetas e a batida de escudos e
espadas, os exércitos dracônicos atacaram a Torre do Alto Clerista enquanto
a luz frágil do sol enchia o céu.

Ao cair da noite, a bandeira ainda voava. A Torre estava de pé.

379
Mas metade dos seus defensores estavam mortos.
Os vivos não tinham tempo durante o dia para fechar os olhos fixos
ou endireitar os membros agonizados e contorcidos. Os vivos faziam tudo
o que podiam para permanecerem vivos. A paz finalmente chegou com
a noite, enquanto os exércitos dracônicos se retiravam para descansar e
esperar a manhã seguinte.
Sturm passeava pelas ameias, seu corpo doendo de cansaço. No entan-
to, toda vez que ele tentava descansar, os músculos tensos se contraíam e
dançavam, seu cérebro parecia em chamas. E, assim, ele era levado a andar
de novo... para frente e para trás, para frente e para trás com passo lento e
comedido. Ele não sabia que seu ritmo constante expulsava os horrores do
dia dos pensamentos dos jovens cavaleiros que ouviam. Cavaleiros no pátio,
estendendo os corpos de amigos e camaradas, achando que amanhã alguém
poderia estar fazendo isso por eles, ouviram o ritmo constante de Sturm e
sentiram seus medos pelo amanhã diminuídos.
O som dos passos do cavaleiro trazia conforto para todos, de fato,
exceto para o próprio cavaleiro. Os pensamentos de Sturm eram sombrios
e atormentados: pensamentos de derrota; pensamentos de morrer de forma
desprezível, sem honra; lembranças torturadas do sonho, vendo seu corpo
ser cortado e mutilado pelas criaturas imundas acampadas além. O sonho
se tornaria realidade? Ele pensou, tremendo. Ele vacilaria no final, incapaz
de vencer o medo? O Código falharia com ele, assim como a Providência?
Passo... passo... passo... passo...
Pare com isso! Sturm disse a si mesmo com raiva. Logo, você ficará
louco como o pobre Derek. Girando abruptamente nos calcanhares para
quebrar o passo, o cavaleiro se virou para encontrar Laurana atrás dele. Seus
olhos encontraram os dela e os pensamentos sombrios foram iluminados
pela luz dela. Enquanto a paz e a beleza dela existissem neste mundo, havia
esperança. Ele sorriu e ela sorriu de volta, um sorriso tenso, mas que apagou
linhas de fadiga e preocupação em seu rosto.
— Descanse — ele disse a ela. — Você parece exausta.
— Tentei dormir — ela murmurou — mas tive sonhos terríveis... mãos
envoltas em cristal, dragões enormes voando pelos corredores de pedra. — Ela
balançou a cabeça e se sentou exausta em um canto protegido do vento frio.
O olhar de Sturm se voltou para Tasslehoff, que estava ao lado dela.
O kender dormia profundamente, enrolado como uma bola. Sturm o

380
observou com um sorriso. Nada incomodava Tas. O kender teve um dia
verdadeiramente glorioso, que viveria em sua memória para sempre.
— Eu nunca estive em um cerco antes — Sturm ouvira Tas confiar a
Flint apenas alguns segundos antes do machado de guerra do anão arrancar
a cabeça de um goblin.
— Você sabe que todos vamos morrer — rosnou Flint, limpando o
sangue escuro da lâmina do machado.
— Foi o que você disse quando enfrentamos aquela dragoa negra em
Xak Tsaroth — Tas respondeu. — E você disse a mesma coisa em Thorbar-
din, e depois no barco...
— Desta vez vamos morrer! — Flint rugiu de raiva. — Mesmo que
eu tenha te matar!
Mas eles não morreram... pelo menos, não hoje. Há sempre um ama-
nhã, pensou Sturm, com o olhar repousando no anão que estava encostado
a uma parede de pedra, esculpindo um bloco de madeira.
Flint olhou para cima. — Quando vai começar? — ele perguntou.
Sturm suspirou, seu olhar passando para o céu oriental. — Ao ama-
nhecer — ele respondeu. — Ainda faltam algumas horas.
O anão assentiu. — Podemos resistir? — Sua voz era natural, a mão
que segurava a madeira firme e resoluta.
— Precisamos — respondeu Sturm. — O mensageiro chegará a
Palanthas hoje à noite.
Se eles agirem imediatamente, ainda terão uma marcha de dois dias
para chegar até nós. Devemos dar a eles dois dias...
— Se eles agirem imediatamente! — Flint resmungou.
— Eu sei... — Sturm disse baixinho, suspirando. — Você deveria
partir — ele se virou para Laurana, que saiu de seu devaneio com um
sobressalto. — Vá para Palanthas. Convença-os do perigo.
— Seu mensageiro deve fazer isso — disse Laurana, cansada. — Se
não, nenhuma palavra minha os influenciará.
— Laurana — ele começou.
— Você precisa de mim? — ela perguntou abruptamente. — Eu sou
útil aqui?
— Você sabe que sim — respondeu Sturm. Ele ficou maravilhado
com a força inabalável da elfa, sua coragem e sua habilidade com o arco.
— Então, vou ficar — Laurana disse simplesmente. Puxando o co-
bertor para mais perto, ela fechou os olhos. — Não consigo dormir — ela

381
sussurrou. Mas, em alguns momentos, sua respiração ficou suave e regular
como a do kender adormecido.
Sturm balançou a cabeça, engolindo um nó sufocante na garganta.
Seu olhar encontrou o de Flint. O anão suspirou e voltou a esculpir.
Nenhum dos dois falou, os dois pensando a mesma coisa. Suas mortes
seriam ruins se os draconianos invadissem a Torre. A morte de Laurana
poderia ser um pesadelo.

O céu oriental estava se iluminando, prevendo a aproximação do sol,


quando os cavaleiros foram despertados de seu sono agitado pelo estrondo
das trombetas. Apressadamente, eles se levantaram, pegaram suas armas e
pararam nas muralhas, espiando pela terra escura.
As fogueiras dos exércitos dracônicos queimaram baixo, se apagando
enquanto a luz do dia se aproximava. Eles podiam ouvir os sons da vida re-
tornando ao corpo horrível. Os cavaleiros agarraram suas armas, esperando.
Então, se viraram entre si, confusos.
Os exércitos dracônicos estavam se retirando! Embora visto muito
pouco na meia-luz fraca, era óbvio que a maré negra estava se afastando
lentamente. Sturm observou, intrigado. Os exércitos recuaram, logo além
do horizonte. Mas eles ainda estavam lá, Sturm sabia. Ele os sentia.
Alguns dos cavaleiros mais jovens começaram a comemorar.
— Fique em silêncio! — Sturm comandou severamente. Seus gritos
irritaram seus nervos à flor da pele. Laurana ficou ao lado dele e o encarou
com espanto. Seu rosto estava cinzento e abatido à luz bruxuleante das
tochas. Seus punhos enluvados, repousando sobre as ameias, abriam e
fechavam nervosamente. Seus olhos se estreitaram quando se inclinou para
frente, olhando para o leste.
Sentindo o medo crescente dentro dele, Laurana sentiu seu próprio
corpo esfriar. Lembrou do que dissera a Tas.
— É o que temíamos? — ela perguntou, com a mão no braço dele.
— Reze para que estejamos errados! — ele falou suavemente, com
uma voz quebrada.
Minutos passaram. Nada aconteceu. Flint se juntou a eles, subindo
em uma enorme laje de pedra quebrada para ver do outro lado da muralha.
Tas acordou, bocejando.
— Quando é o café da manhã? — o kender perguntou alegremente,
mas ninguém prestou atenção nele.

382
Eles ainda assistiam e esperavam. Agora, todos os cavaleiros, cada
um deles sentindo o mesmo medo crescente, se alinhavam nas muralhas,
olhando para o leste, sem nenhuma ideia clara do porquê.
— O que foi? — Tas sussurrou. Subindo para ficar ao lado de Flint,
ele viu a pequena lasca vermelha do sol queimando no horizonte, seu fogo
laranja deixando o céu noturno roxo, escurecendo as estrelas.
— Para o que estamos olhando? — Tas sussurrou, cutucando Flint.
— Nada — resmungou Flint.
— Então por que estamos olhando... — o kender prendeu a respiração
com um susto. — Sturm... — ele estremeceu.
— O que foi? — o cavaleiro exigiu, girando em alarme.
Tas continuou olhando. O resto seguiu seu olhar, mas seus olhos não
eram páreo para os do kender.
— Dragões... — Tasslehoff respondeu. — Dragões azuis.
— Bem que imaginei — Sturm disse baixinho. — O medo dracônico.
É por isso que recuaram os exércitos. Os humanos que lutam entre eles não
poderiam suportar. Quantos dragões?
— Três — respondeu Laurana. — Posso vê-los agora.
— Três — repetiu Sturm, a voz vazia, sem expressão.
— Escute, Sturm... — Laurana o arrastou para longe da muralha.
— Eu... nós... não diríamos nada. Podia não ter importância, mas
importa agora. Tasslehoff e eu sabemos como usar o orbe do dragão!
— Orbe do dragão? — Sturm murmurou, sem realmente ouvir.
— O orbe aqui, Sturm! — Laurana persistiu, as mãos o segurando
ansiosamente. — Aquele abaixo da Torre, bem no centro. Tas mostrou para
mim. Três corredores longos e amplos levam a ele e... e... — sua voz mor-
reu. De repente, ela viu vividamente, como seu subconsciente vira durante
a noite, dragões voando pelos corredores de pedra...
— Sturm! — ela gritou, o sacudindo em sua excitação. — Eu sei como
o orbe funciona! Eu sei como matar os dragões! Agora, se tivermos tempo...
Sturm a segurou, suas mãos fortes em seus ombros. Em todos os meses
em que a conhecera, ele não conseguia se lembrar de vê-la mais bonita. Seu
rosto, pálido de cansaço, estava iluminado pela excitação.
— Me conte, rapidamente — ele ordenou. Laurana explicou, suas
palavras caindo sobre si mesmas enquanto montava a imagem para ele
que ficava mais clara para ela enquanto falava. Flint e Tas observavam

383
por trás de Sturm, o rosto do anão horrorizado, o rosto do kender cheio
de consternação.
— Quem usará o orbe? — Sturm perguntou devagar.
— Eu vou — respondeu Laurana.
— Mas, Laurana — gritou Tasslehoff — Fizban disse...
— Tas, calado! — Laurana disse entre dentes. — Por favor, Sturm! —
ela insistiu. — É a nossa única esperança. Temos as lanças do dragão... e o
orbe do dragão!
O cavaleiro olhou para ela, depois para os dragões que se aproximavam
do leste sempre iluminado.
— Muito bem — ele disse finalmente. — Flint, você e Tas desçam e
reúnam os homens no pátio central. Depressa!
Lançando um último olhar perturbado para Laurana, Tasslehoff saltou
da rocha onde ele e o anão estavam de pé. Flint veio atrás dele mais devagar,
seu rosto sombrio e pensativo. Chegando ao chão, ele caminhou até Sturm.
— Precisa mesmo? Flint perguntou a Sturm silenciosamente, quando
seus olhos se encontraram.
Sturm assentiu uma vez. Olhando para Laurana, sorriu tristemente.
— Eu direi a ela — disse suavemente. — Cuide do kender. Adeus, meu
amigo.
Flint engoliu em seco, balançando a cabeça velha. Então, com seu
rosto uma máscara de tristeza, o anão passou a mão nodosa pelos olhos e
deu um empurrão nas costas de Tas.
— Ande logo! — o anão reclamou.
Tas se virou para o encarar com espanto, depois deu de ombros e
correu pulando pelo topo das ameias, sua voz estridente gritando para os
cavaleiros assustados.
O rosto de Laurana brilhava. — Venha também, Sturm! — ela disse,
o puxando como uma criança ansiosa para mostrar aos pais um novo brin-
quedo. — Explicarei isso para os homens, se você quiser. Então, você pode
dar as ordens e organizar a disposição da batalha...
— Você está no comando, Laurana — disse Sturm.
— O que? — Laurana parou, o medo substituindo a esperança em seu
coração tão de repente que a dor a fez ofegar.
— Você disse que precisava de tempo — disse Sturm, ajustando o cinto
da espada, evitando os olhos dela. — Você está certa. Você deve colocar os

384
homens em posição. Deve ter tempo para usar o orbe. Vou conseguir esse
tempo para você. — Ele pegou um arco e uma aljava.
— Não! Sturm! — Laurana estremeceu. — Você não pode fazer isso!
Eu não posso comandar. Preciso de você! Sturm, não faça isso consigo... —
sua voz morreu em um sussurro. — Não faça isso comigo.
— Você pode comandar, Laurana — disse Sturm, pegando a cabeça
dela entre as mãos. Inclinando-se para a frente, ele a beijou gentilmente. —
Adeus, elfa — ele disse em voz baixa. — Sua luz brilhará neste mundo. É
hora da minha se apagar. Não sofra, querida. Não chore. — Ele a abraçou.
— A Mestre da Floresta nos disse, na Floresta Escura, que não devemos
lamentar aqueles que cumpriram seu destino. O meu está cumprido. Agora
vá, Laurana. Você precisará de cada segundo.
— Pelo menos, leve a lança do dragão com você — ela implorou.
Sturm balançou a cabeça, a mão na espada antiga de seu pai. — Eu
não sei como usá-la. Adeus, Laurana. Diga a Tanis... — Ele parou, depois
suspirou. — Não — ele disse com um leve sorriso. — Ele saberá o que
estava no meu coração.
— Sturm... — As lágrimas de Laurana a sufocaram, causando seu
silêncio. Ela só podia olhar para ele em um apelo mudo.
— Vá — disse ele.
Tropeçando às cegas, Laurana se virou e, de alguma forma, desceu as
escadas para o pátio abaixo. Lá, sentiu uma mão forte agarrar a dela.
— Flint — ela começou, soluçando dolorosamente — ele, Sturm...
— Eu sei, Laurana — respondeu o anão. — Eu vi no rosto dele.
Acho que eu vejo desde que me lembro. Agora é com você. Você não pode
falhar com ele.
Laurana respirou fundo e, depois, enxugou os olhos com as mãos, lim-
pando o rosto coberto de lágrimas da melhor maneira possível. Respirando
fundo, ela levantou a cabeça.
— Pronto — ela disse, mantendo a voz firme e resoluta. — Estou
pronta. Onde está Tas?
— Aqui — disse uma voz baixa.
— Continue descendo. Você leu as palavras no orbe uma vez antes.
Leia novamente. Tenha certeza absoluta de que as entendeu bem.
— Sim, Laurana. — Tas engoliu em seco e saiu correndo.
— Os cavaleiros estão reunidos — disse Flint. — Esperando seu
comando.

385
— Esperando meu comando — Laurana repetiu distraidamente.
Hesitante, ela olhou para cima. Os raios vermelhos do sol brilhavam
na armadura brilhante de Sturm quando o cavaleiro subiu as escadas estrei-
tas que levavam a uma muralha alta perto da Torre central. Suspirando, ela
baixou o olhar para o pátio onde os cavaleiros esperavam.
Laurana respirou fundo outra vez, depois caminhou em direção a eles,
a crista vermelha tremulando do seu elmo, os cabelos dourados flamejando
na luz da manhã.

O sol frio e quebradiço manchava o céu de vermelho-sangue, apro-


fundando na escuridão aveludada da noite azul escura. A Torre ainda
estava na sombra, embora os raios do sol brilhassem nos fios dourados da
bandeira que tremulava.
Sturm chegou ao topo da muralha. A Torre se elevava acima dele.
O parapeito onde Sturm estava se estendia a trinta metros ou mais à sua
esquerda. A superfície de pedra era lisa, sem abrigo nem cobertura.
Olhando para o leste, Sturm viu os dragões.
Eram dragões azuis e, nas costas do dragão principal da formação
estava uma Senhora dos Dragões, a armadura de escama de dragão azul e
preta brilhando à luz do sol. Ele podia ver a horrível máscara com chifres,
a capa preta tremulando por atrás. Dois outros dragões azuis com ginetes
seguiram a Senhora dos Dragões. Sturm lançou um breve olhar superficial.
Eles não o preocupavam. Sua batalha era contra a líder, a Senhora.
O cavaleiro olhou para o pátio bem abaixo dele. A luz do sol estava
subindo pelas muralhas. Sturm viu o brilho cintilar nas pontas das lanças
de dragão de prata que, agora, cada homem segurava em suas mãos. Viu
queimar nos cabelos dourados de Laurana. Viu os homens olharem para
ele. Segurando sua espada, ele a ergueu no ar. A luz do sol reluzia na
lâmina ornamentada.
Sorrindo para ele, embora ela mal pudesse vê-lo através das lágrimas,
Laurana ergueu a lança do dragão no ar em resposta... em adeus.
Confortado pelo sorriso dela, Sturm se virou para encarar o inimigo.
Caminhando para o centro da muralha, ele parecia uma figura peque-
na posicionada a meio caminho entre a terra e o céu. Os dragões podiam
passar ou circular em volta, mas não era isso que ele queria. Eles deviam
vê-lo como uma ameaça. Deviam dar um tempo para lutar com ele.

386
Embainhando sua espada, Sturm colocou uma flecha no arco e
apontou cuidadosamente para o dragão principal. Ele esperou pacien-
temente, prendendo a respiração. Não posso desperdiçar esse tiro, ele
pensou. Espere... espere...
O dragão estava ao alcance. A flecha de Sturm acelerou através do
brilho da manhã. Sua mira foi certeira. A flecha atingiu o dragão azul no
pescoço. Ricocheteou nas escamas azuis, mas o dragão empinou a cabeça
com dor e irritação, retardando seu voo. Rapidamente, Sturm disparou
mais uma vez, agora contra o dragão voando diretamente atrás do líder.
A flecha rasgou uma asa e o dragão gritou de raiva. Sturm atirou
mais uma vez. Desta vez, o ginete do dragão principal o fez desviar. Mas
o cavaleiro cumprira o que pretendia fazer: chamar a atenção deles, provar
que era uma ameaça, forçá-los a lutar com ele. Podia ouvir o som de passos
correndo no pátio e o guincho estridente dos guinchos elevando os portões.
Agora, Sturm podia ver a Senhora dos Dragões se levantar na sela.
Construída como uma carruagem, podia acomodar seu ginete em uma
posição de pé para a batalha. A Senhora carregava uma lança na mão enlu-
vada. Sturm deixou cair o arco. Pegando seu escudo e desembainhando sua
espada, ficou parado na muralha, observando o dragão voar cada vez mais
perto, seus olhos vermelhos flamejando, seus dentes brancos brilhando.
Então, bem longe, Sturm ouviu o som claro e estridente de uma trom-
beta, sua música fria como o ar das montanhas cobertas de neve de sua terra
natal ao longe. Puro e nítido, o toque da trombeta perfurou seu coração,
se erguendo bravamente acima da escuridão, da morte e do desespero que
o cercavam.
Sturm respondeu ao toque com um grito selvagem de guerra, erguen-
do a espada para encontrar seu inimigo. A luz do sol brilhava em vermelho
em sua lâmina. O dragão mergulhou baixo.
Mais uma vez a trombeta tocou e, novamente, Sturm respondeu,
sua voz subindo em um grito. Mas, desta vez, sua voz vacilou, pois Sturm
percebeu de repente que já ouvira essa trombeta antes.
O sonho!
Sturm parou, segurando sua espada na mão que suava dentro de sua luva.
O dragão pairava acima dele. Montado no dragão estava a Senhora, os chifres
de sua máscara cintilando em vermelho-sangue, sua lança apontada e pronta.
O medo deu um nó no estômago de Sturm, sua pele ficou fria. A
trombeta soou uma terceira vez. Ela soara três vezes no sonho e, após a

387
terceira vez, ele caíra. O medo dracônico estava o dominando. Fuja! Seu
cérebro gritou.
Fuja! Os dragões mergulhariam no pátio. Os cavaleiros ainda não
estavam prontos, eles morreriam, Laurana, Flint e Tas ... A Torre cairia.
Não! Sturm recuperou o controle. Todo o resto estava perdido: seus
ideais, suas esperanças, seus sonhos. A Cavalaria estava em colapso. A Pro-
vidência era insatisfatória. Tudo em sua vida não tinha sentido. Sua morte
não deve ser assim. Ele daria o tempo para Laurana, conseguiria com a vida,
já que era tudo o que tinha para dar. E morreria de acordo com o Código,
já que era tudo o que tinha para se apegar.
Erguendo a espada no ar, ele fez a saudação do cavaleiro a um inimigo.
Para sua surpresa, foi devolvida com grande dignidade pela Senhora dos
Dragões. Então o dragão mergulhou, com as mandíbulas abertas, prepa-
rado para cortar o cavaleiro com os dentes afiados. Sturm girou a espada
em um arco feroz, forçando o dragão a recuar a cabeça ou correr o risco de
decapitação. Sturm esperava interromper seu voo. Mas as asas da criatura
a mantiveram firme, seu ginete a guiando com uma mão firme enquanto
segurava a lança de ponta reluzente na outra.
Sturm se virou para o leste. Meio cego pelo brilho do sol, viu o dragão
como algo feito de escuridão. Viu a criatura afundar em seu voo, mergu-
lhando abaixo do nível do muro, e percebeu que o azul subiria por baixo,
dando à ginete o espaço necessário para atacar. Os outros dois ginetes dos
dragões se contiveram, observando, esperando para ver se sua senhora
precisava de ajuda para eliminar esse cavaleiro insolente.
Por um momento, o céu banhado pelo sol estava vazio, então o dra-
gão surgiu na beira da parede, seu grito horrível partindo os tímpanos de
Sturm, enchendo a cabeça dele de dor. A respiração de sua boca aberta o fez
engasgar. Ele cambaleou vertiginosamente, mas conseguiu se manter em pé
enquanto golpeava com a espada. A lâmina antiga atingiu a narina esquerda
do dragão. O sangue escuro jorrou no ar. O dragão rugiu em fúria.
Mas o golpe custou caro. Sturm não teve tempo de se recuperar.
A Senhora dos Dragões levantou sua lança, sua ponta flamejando ao
sol. Inclinando, atacou profundamente, perfurando armadura, carne e ossos.
O sol de Sturm se partiu.

388
14
Orbe do Dragão. Lança do Dragão.

s cavaleiros passaram por Laurana e entraram na Torre do Alto


Clerista, tomando seus lugares onde ela dissera. Embora céticos a
princípio, a esperança surgiu quando ela explicou seu plano.
O pátio estava vazio após a partida dos cavaleiros. Laurana sabia que
deveria se apressar. Já deveria estar com Tas, se preparando para usar o orbe
do dragão. Mas Laurana não podia deixar aquela figura reluzente e solitária
de pé sozinha, esperando, na muralha.
Então, com as silhuetas sob o sol nascente, ela viu os dragões.
Espada e lança brilhavam à luz do sol.
O mundo de Laurana parou de girar. O tempo diminuiu de velocida-
de até se tornar um sonho. A espada tirou sangue. O dragão gritou. A lança
mantida preparada por uma eternidade.
O sol ficou imóvel.
A lança atingiu.
Um objeto brilhante caiu lentamente do topo da muralha até o pátio. O
objeto era a espada de Sturm, largada de sua mão sem vida e era, para Laura-
na, o único movimento em um mundo estático. O corpo do cavaleiro ficou
parado, empalado na lança da Senhora dos Dragões. O dragão pairava acima,
suas asas equilibradas. Nada se movia, tudo ficou perfeitamente imóvel.
Então, a Senhora soltou a lança e o corpo de Sturm desabou onde
estava, uma massa escura contra o sol. O dragão rugiu de indignação e um
raio saiu da boca ensanguentada do azul, atingindo a Torre do Alto Clerista.
Com uma explosão estrondosa, a pedra se desfez. Chamas queimaram,
mais brilhantes que o sol. Os outros dois dragões mergulharam para o pátio
quando a espada de Sturm caiu no chão com um som de tilintar.
O tempo recomeçou.
Laurana viu os dragões mergulhando em sua direção. O chão ao seu
redor tremeu quando pedras e rochas caíram e fumaça e poeira encheram
o ar. Mesmo assim, Laurana não conseguia se mexer. Mover-se tornaria a
tragédia real. Alguma voz insana continuava sussurrando em seu cérebro...
se você ficar perfeitamente imóvel, isso não terá acontecido.
Mas ali estava a espada, a poucos metros dela. E, enquanto observava,
viu a Senhora dos Dragões balançar a lança, sinalizando para os exércitos
dracônicos que esperavam nas planícies, dizendo para atacarem. Laurana
ouviu o som das trombetas. No olho da sua mente, podia ver os exércitos
dracônicos aparecendo pela terra coberta de neve.
Novamente, o chão tremeu sob seus pés. Laurana hesitou mais um
instante, se despedindo silenciosamente do espírito do cavaleiro. Então,
correu para a frente, tropeçando enquanto o chão se elevava e o ar estalava
com terríveis rajadas de raios. Se abaixando, ela pegou a espada de Sturm e
a levantou desafiadoramente no ar.
— Soliasi Arath!! — ela gritou em élfico, sua voz ecoando acima dos
sons de destruição em desafio aos dragões atacantes.
Os ginetes dos dragões riram, retrucando com seus desafios desdenho-
sos. Os dragões gritaram, sentindo um prazer cruel com a matança. Dois
dragões que acompanhavam a Senhora se jogaram em direção a Laurana
no pátio.
Laurana correu em direção às portas enormes abertas, a entrada da
Torre que fazia tão pouco sentido. As paredes de pedra eram um borrão
enquanto ela passava. Atrás, podia ouvir um dragão voando atrás dela.
Podia ouvir sua respiração estertorosa, a corrente de ar passando por suas

391
asas. Ouviu o comando do ginete do dragão que o impediu de segui-la até
a Torre. Ótimo! Laurana sorriu severamente para si mesma.
Correndo pelo corredor amplo, ela passou rapidamente pelo segundo
portão. Cavaleiros estavam lá, prontos e preparados para soltá-lo.
— Mantenham aberto! — ela ofegou, sem fôlego. — Lembrem-se!
Eles assentiram. Ela acelerou. Agora, estava na câmara escura e mais
estreita, onde os pilares esquisitos e em forma de dentes se inclinavam em
sua direção com o corte de uma navalha. Por trás dos pilares, ela viu rostos
brancos sob elmos reluzentes. Aqui e ali, a luz cintilava em uma lança do
dragão. Os cavaleiros a olharam enquanto ela passava correndo.
— Afastem-se! — ela gritou. — Fiquem atrás dos pilares.
— Sturm? — perguntou um deles.
Laurana sacudiu a cabeça, exausta demais para falar. Ela correu pelo
terceiro portão, o estranho, aquele com um buraco no centro. Ali estavam
quatro cavaleiros, junto com Flint. Esta era a posição chave. Laurana queria
alguém aqui em quem pudesse confiar. Não teve tempo para mais do que
uma troca de olhares com o anão, mas foi o suficiente. Flint leu a história
de seu amigo na cara dela. A cabeça do anão se curvou por um momento,
a mão cobrindo os olhos.
Laurana continuou correndo. Através desta pequena sala, sob as portas
duplas de aço sólido e depois para a câmara do orbe do dragão.
Tasslehoff tirou a poeira do orbe com seu lenço. Laurana podia ver
dentro dele agora, uma leve névoa vermelha rodopiando com uma miríade
de cores. O kender estava parado diante dele, o observando, seus óculos
mágicos pousados no nariz pequeno.
— O que eu faço? — Laurana bufou, sem fôlego.
— Laurana — Tas implorou — não faça isso! Eu li... se você não
conseguir controlar a essência dos dragões dentro da esfera, os dragões
virão, Laurana, e controlarão você!
— Me diga o que eu preciso fazer! — Laurana disse com firmeza.
— Coloque suas mãos sobre o orbe — Tas vacilou — e... não... espere
Laurana!
Já era tarde demais. Laurana já colocara as duas mãos esbeltas no globo
de cristal frio. Houve um lampejo de cor dentro da esfera, tão brilhante que
Tas teve que desviar os olhos.

392
— Laurana! — ele gritou em sua voz estridente. — Escute! Você
deve se concentrar, limpar sua mente de tudo, exceto dobrar a esfera à sua
vontade! Laurana...
Se ela o ouviu, não respondeu, e Tas percebeu que já estava envolvida
na batalha pelo controle do orbe. Temeroso, se lembrou do aviso de Fizban,
a morte de quem você ama, pior... a perda da alma. Ele entendeu apenas
as palavras pavorosas escritas nas cores flamejantes da esfera, mas sabia o
suficiente para perceber que a alma de Laurana pendia na balança.
Em agonia, ele a observou, desejando ajudar... mas sabendo que não
ousava fazer nada. Laurana ficou parada por longos momentos sem se mexer,
com as mãos na esfera, o rosto se esvaindo lentamente de toda a vida. Seus
olhos encaravam profundamente para as cores giratórias e rodopiantes. O
kender ficou tonto de ver e se afastou, se sentindo enjoado. Houve outra
explosão lá fora. Poeira caiu do teto. Tas se mexeu inquieto. Mas Laurana
nunca se mexeu.
Os olhos dela se fecharam, a cabeça inclinada para frente. Ela apertou a
esfera, as mãos embranquecendo pela pressão que exercia. Então, começou a
choramingar e balançar a cabeça. — Não — ela gemeu, parecendo que estava
tentando desesperadamente tirar as mãos. Mas o orbe as segurou firme.
Sem esperança, Tas se perguntou o que deveria fazer. Ele queria correr
até lá e puxá-la. Desejou ter quebrado este orbe, mas não havia nada que
pudesse fazer agora. Só podia ficar parado e assistir, impotente.
O corpo de Laurana estremeceu convulsivamente. Tas a viu cair de
joelhos, as mãos ainda segurando o orbe. Então, Laurana sacudiu a cabeça
com raiva. Murmurando palavras desconhecidas em élfico, ela lutou para
ficar em pé, usando o orbe para se arrastar para cima. Suas mãos ficaram
brancas com a tensão e o suor escorria pelo rosto. Estava usando toda a
força que possuía. Com uma lentidão agonizante, Laurana se levantou.
O orbe cintilou uma última vez, as cores giraram juntas, se tornando
muitas cores e nenhuma. Então, uma luz branca brilhante, radiante e pura
foi derramada do orbe. Laurana estava em pé e firme diante dele. Seu rosto
relaxou. Ela sorriu.
E então caiu, inconsciente, no chão.

No pátio da Torre do Alto Clerista, os dragões estavam sistematica-


mente reduzindo as muralhas de pedra a escombros. O exército estava se
aproximando da torre, draconianos em primeiro plano, se preparando para

393
atravessar as muralhas destruídas e matar qualquer coisa que estivesse viva lá
dentro. A Senhora dos Dragões circulava acima do caos, a narina do dragão
azul escurecida de sangue seco. A Senhora supervisionava a destruição da
Torre. Tudo estava indo bem quando a luz do dia foi atravessada por uma
luz branca pura que irradiava das três entradas enormes e abertas da Torre.
Os ginetes dos dragões olharam para esses raios de luz, imaginando
o que indicavam. Contudo, seus dragões reagiram de maneira diferente.
Erguendo a cabeça, seus olhos perderam todo o foco. Os dragões ouviram
o chamado.
Capturada pelos magos ancestrais, sob controle de uma elfa, a essência
dos dragões mantida dentro do orbe fazia o que era obrigada a fazer quando
comandada. Ela enviou seu chamado irresistível. E os dragões não tiveram
escolha a não ser atender a esse chamado e tentar desesperadamente alcan-
çar sua fonte.
Em vão, os ginetes assustados tentaram virar suas montarias. Mas os
dragões não ouviram mais as vozes de comando dos ginetes, ouviram apenas
uma única voz, a do orbe. Os dois dragões voaram em direção aos portões de
grade convidativos enquanto seus ginetes gritavam e chutavam loucamente.
A luz branca se espalhou além da Torre, tocando as fileiras da frente
dos exércitos dracônicos, e os comandantes humanos observaram quando
seu exército enlouqueceu.
A chamada do orbe soava claramente aos dragões. Mas os draconianos,
que eram apenas parte dragões, ouviram o chamado enquanto uma voz
ensurdecedora gritava comandos ilegíveis. Cada um ouviu a voz de maneira
diferente, cada um recebeu um chamado diferente.
Alguns draconianos caíram de joelhos, segurando a cabeça em agonia.
Outros se viraram e fugiram de um horror invisível à espreita na Torre.
Outros ainda largaram as armas e correram loucamente, direto em direção
à Torre. Em instantes, um ataque organizado e bem planejado se transfor-
mou em confusão em massa quando mil draconianos saíram gritando em
mil direções. Vendo a maior parte de sua força dissolver e correr, os goblins
fugiram prontamente do campo de batalha, enquanto os humanos estavam
perplexos no meio do caos, esperando por ordens que não chegavam.
A montaria da Senhora dos Dragões mal foi mantida sob controle pela
poderosa força de vontade da Senhora. Mas não havia como deter os outros
dois dragões ou a loucura do exército. A Senhora só podia bufar em fúria

394
impotente, tentando determinar o que era essa luz branca e de onde vinha.
E, se possível, tentar erradicá-la.

A primeira dragoa azul chegou ao primeiro portão e acelerou para


dentro da entrada enorme, seu ginete se abaixando bem a tempo de evitar
que sua cabeça fosse arrancada pela parede. Obedecendo ao chamado do
orbe, a dragoa azul voou facilmente através dos corredores amplos de pedra,
as pontas de suas asas apenas roçando nas laterais.
Através da segunda porta, ela disparou, entrando na câmara com os
estranhos pilares semelhantes a dentes. Aqui nesta segunda câmara, ela
sentiu o cheiro carne e aço humanos, mas estava tão encantada com o orbe
que não prestou atenção neles. Esta câmara era menor, então foi forçada a
puxar as asas para perto do corpo, deixando o impulso levá-la adiante.
Flint a observou chegar. Em todos os seus cento e quarenta e alguns
anos, nunca vira algo assim... e esperava nunca mais ver. O medo dracônico
se abateu sobre os homens confinados na sala como uma onda chocante.
Os jovens cavaleiros, com as lanças agarradas nas mãos trêmulas, recuaram
contra as paredes, escondendo os olhos enquanto o corpo monstruoso de
escamas azuis passava trovejando por eles.
O anão cambaleou para trás contra a parede, com a mão inerte apoiada
fracamente no mecanismo que deslizaria para fechar os portões. Ele nunca
esteve tão aterrorizado em sua vida. A morte seria bem-vinda se acabasse
com esse horror. Mas o dragão acelerou, procurando apenas uma coisa...
chegar ao orbe. A cabeça dela deslizou sob o portão estranho.
Agindo instintivamente, sabendo apenas que a dragoa não deveria
chegar ao orbe, Flint liberou o mecanismo. O portão se fechou ao redor do
pescoço da dragoa, a segurando com força. A cabeça da dragoa ficou presa
dentro da câmara pequena. Seu corpo que debatia estava impotente, as asas
pressionadas contra as laterais, na câmara onde os cavaleiros estavam, as
lanças de dragão prontas.
Tarde demais, a dragoa percebeu que estava presa. Ela uivou com
tanta fúria que as pedras estremeceram e racharam quando abriu a boca
para explodir o orbe do dragão com seu sopro de relâmpago. Tasslehoff,
tentando acordar freneticamente Laurana, se viu encarando os dois olhos
flamejantes. Viu as mandíbulas se abrirem, ouviu a dragoa respirar fundo.
O relâmpago estalou da garganta da dragoa, a concussão derrubando
o kender. A rocha explodiu na sala e o orbe do dragão tremeu em seu

395
suporte. Tas estava deitado no chão, atordoado pela rajada. Não conseguia
se mexer e, de fato, nem queria se mexer. Ele ficou ali, esperando o próximo
raio que seria fatal para Laurana, se ela já não estivesse morta, e para ele
também. Nesse ponto, ele realmente não se importava muito.
Mas a rajada nunca veio.
O mecanismo finalmente ativado. A porta dupla de aço se fechou
em frente ao focinho da dragoa, confinando a cabeça da criatura dentro
da sala pequena.
No início, estava mortalmente silencioso. Então, o grito mais horrí-
vel que se possa imaginar reverberou pela câmara. Era agudo, estridente,
lamentoso, borbulhando em agonia, enquanto os cavaleiros saíam de seus
esconderijos atrás dos pilares parecidos com dentes e enviaram as lanças do
dragão de prata no corpo azul e contorcido da dragoa presa.
Tas cobriu os ouvidos com as mãos, tentando bloquear o som
horrível. Repetidas vezes, ele imaginou a terrível destruição que vira os
dragões causarem nas cidades, as pessoas inocentes que eles massacraram.
O dragão também o teria matado, ele sabia... matado sem piedade. Pro-
vavelmente já matara Sturm. Ele continuou se lembrando disso, tentando
endurecer seu coração.
Mas o kender enterrou a cabeça nas mãos e chorou.
Então, sentiu uma mão gentil tocá-lo.
— Tas — sussurrou uma voz.
— Laurana! — Ele levantou a cabeça. — Laurana! Me desculpe. Eu
não deveria me importar com o que eles fazem com a dragoa, mas não
aguento, Laurana! Por que deve haver matança? Não aguento mais! Lágri-
mas corriam em seu rosto.
— Eu sei — Laurana murmurou, lembranças vívidas da morte de
Sturm se misturando aos gritos da dragoa moribunda. — Não tenha ver-
gonha, Tas. Seja grato por sentir pena e horror pela morte de um inimigo.
O dia em que deixarmos de nos importar, mesmo com nossos inimigos, é
o dia em que perderemos essa batalha.
O lamento temeroso ficou ainda mais alto. Tas estendeu os braços e
Laurana o abraçou. Os dois se agarraram um ao outro, tentando apagar
os gritos da dragoa moribunda. Então, ouviram outro som... os cavaleiros
gritando um aviso. Um segundo dragão entrara na outra câmara, batendo
seu ginete contra a parede enquanto lutava para entrar na entrada menor

396
em resposta ao chamado radiante do orbe do dragão. Os cavaleiros estavam
soando o alarme.
Naquele momento, a própria Torre estremeceu do topo à fundação,
abalada pelos violentos golpes do dragão torturado.
— Vamos! — Laurana gritou. — Temos que sair daqui! — Levantan-
do Tas, ela correu tropeçando em direção a uma porta pequena na parede
que os levaria para o pátio. Laurana abriu a porta, exatamente quando a
cabeça do dragão entrou na sala com o orbe. Tas não pode deixar de parar,
apenas um momento, para assistir. A visão era tão fascinante. Podia ver os
olhos flamejantes do dragão, loucos de raiva pelos sons de sua companheira
moribunda, sabendo, tarde demais, que ele voara para a mesma armadilha.
A boca do dragão se torceu em um rosnado cruel, ele respirou fundo. As
portas duplas de aço caíram na frente do dragão, mas apenas na metade.
— Laurana, a porta está presa! — Tas gritou. — O orbe do dragão...
— Vamos! — Laurana deu um puxão na mão do kender. Um re-
lâmpago brilhou e Tas se virou e fugiu, ouvindo a sala atrás dele explodir
em chamas. Rocha e pedra preencheram a câmara. A luz branca do orbe
do dragão foi enterrada nos escombros quando a Torre do Alto Clerista
desabou em cima dela.
O choque deixou Laurana e Tas desequilibrados, os lançando contra a
parede. Tas ajudou Laurana a se levantar e os dois continuaram em direção
à luz do dia.
Então, o chão estava parado. O estrondo da rocha caindo cessou. De
vez em quando, havia apenas um estalo agudo ou um ruído baixo. Parando
um momento para recuperar o fôlego, Tas e Laurana olharam para trás. O
fim da passagem estava completamente bloqueado, sufocado pelas enormes
pedras da Torre.
— E o orbe do dragão? — Tas arfou.
— É melhor que esteja destruído.
Agora que Tas podia ver Laurana mais claramente à luz do dia, ficou
surpreso com a visão. O rosto dela estava mortalmente branco, até os lábios
estavam sem sangue. A única cor estava em seus olhos verdes e eles pareciam
perturbadoramente grandes, sombreados por manchas roxas.
— Eu não conseguiria usá-lo novamente — ela sussurrou, mais para
si mesma do que para ele. — Quase desisti. Mãos... Não posso falar sobre
isso! — Tremendo, ela cobriu os olhos.

397
— Então, me lembrei de Sturm, de pé na muralha, encarando sua
morte sozinho. Se eu cedesse, sua morte não teria sentido. Não podia deixar
isso acontecer. Não podia decepcioná-lo. — Ela balançou a cabeça, tremen-
do. — Forcei o orbe a obedecer a meu comando, mas sabia que só poderia
fazer isso uma vez. E eu nunca, nunca posso passar por isso de novo!
— Sturm está morto? — A voz de Tas tremeu.
Laurana olhou para ele, seus olhos mais calmos. — Sinto muito, Tas
— ela disse — não percebi que você não sabia. Ele... ele morreu lutando
com uma Senhora dos Dragões.
— Foi... foi... — Tas engasgou.
— Sim, foi rápido — Laurana disse gentilmente. — Ele não sofreu
muito.
Tas inclinou a cabeça e depois a ergueu rapidamente, enquanto outra
explosão sacudia o que restava da fortaleza.
— Os exércitos dracônicos... — Laurana murmurou. — Nossa luta
não terminou. — A mão dela foi para o punho da espada de Sturm, que ela
prendera na cintura esbelta. — Vá encontrar Flint. -
Laurana emergiu do túnel para o pátio, piscando na luz brilhante,
quase surpresa ao ver que ainda era dia. Tanta coisa acontecera que, para
ela, parecia que anos poderiam ter passado. Mas o sol estava nascendo sobre
a muralha do pátio.
A alta Torre do Alto Clerista se fora, caída sobre si mesma, um mon-
te de entulho de pedras no centro do pátio. As entradas e os corredores
que levavam ao orbe do dragão não foram danificados, exceto onde os
dragões os esmagaram. As paredes da fortaleza externa ainda permane-
ciam, embora rompidas em alguns lugares, suas pedras enegrecidas pelos
relâmpagos dos dragões.
Mas nenhum exército passava pelas brechas. Tudo estava quieto,
Laurana percebeu. Nos túneis atrás dela, podia ouvir os berros moribundos
do segundo dragão, os gritos roucos dos cavaleiros terminando a matança.
O que aconteceu com o exército? Laurana se perguntou, olhando em
volta, confusa. Deviam estar atravessando as muralhas. Temerosa, olhou
para as ameias, esperando ver as criaturas ferozes caindo sobre elas.
E, então, ela viu o lampejo da luz do sol brilhando na armadura. Viu
a massa disforme caída no topo da muralha.
Sturm. Ela se lembrou do sonho, lembrou das mãos ensanguentadas
dos draconianos atacando o corpo de Sturm.

398
Isso não deve acontecer! ela pensou sombriamente. Sacando a espada
de Sturm, ela correu pelo pátio e imediatamente percebeu que a arma
antiga era muito pesada para empunhar. Mas o que mais havia? Ela olhou
ao redor apressadamente. As lanças do dragão! Soltando a espada, ela pegou
uma. Então, carregando a lança leve com facilidade, ela subiu as escadas.
Laurana chegou ao topo das ameias e olhou para a planície, esperando
ver a maré negra do exército avançando. Mas a planície estava vazia. Havia
apenas alguns grupos de humanos parados, olhando vagamente ao redor.
O que isso poderia significar? Laurana não fazia ideia e estava exausta
demais para pensar. Sua alegria selvagem acabou. Agora, o cansaço tomou
conta, assim como sua dor. Arrastando a lança atrás dela, ela tropeçou até o
corpo de Sturm, deitado na neve manchada de sangue.
Laurana se ajoelhou ao lado do cavaleiro. Estendendo a mão, ela
afastou os cabelos soprados pelo vento para olhar mais uma vez o rosto do
seu amigo. Pela primeira vez desde que o conhecera, Laurana viu paz nos
olhos sem vida de Sturm.
Levantando a mão fria, ela a apertou contra sua bochecha. — Durma,
amigo querido — ela murmurou — e não deixe seu sono ser perturbado por
dragões. — Então, ao colocar a mão branca e fria sobre a armadura quebrada,
viu um brilho cintilante na neve manchada de sangue. Pegou um objeto tão
coberto de sangue que não conseguiu ver o que era. Com cuidado, Laurana
limpou o item. Era uma joia. Laurana olhou para ela com espanto.
Mas antes que pudesse se perguntar como chegou aqui, uma sombra
escura caiu sobre ela. Laurana ouviu o rangido de asas enormes, a inspiração
de um corpo gigantesco. Com medo, se levantou e girou.
Um dragão azul pousou na muralha atrás dela. A pedra cedeu enquan-
to as grandes garras tentavam se segurar. As grandes asas da criatura batiam
no ar. Da sela nas costas do dragão, uma Senhora dos Dragões olhou para
Laurana com olhos frios e severos por trás da máscara hedionda.
Laurana deu um passo para trás enquanto o medo dracônico tomava
conta. A lança do dragão escorregou de sua mão impotente e ela jogou a joia
na neve. Girando, ela tentou fugir, mas não conseguia ver para onde estava
indo. Ela escorregou e caiu na neve, tremendo ao lado do corpo de Sturm.
Em seu medo paralisante, tudo em que conseguia pensar era no sonho!
Ali ela morreu... como Sturm morrera. A visão de Laurana estava cheia de
escamas azuis quando o grande pescoço da criatura se ergueu acima dela.

399
A lança do dragão! Se esforçando para pegá-la na neve molhada de
sangue, os dedos de Laurana se fecharam sobre o seu cabo de madeira. Ela
começou a se levantar, com a intenção de a mergulhar no pescoço do dragão.
Mas uma bota preta bateu sobre lança, errando por pouco a mão
dela. Laurana olhou para a bota preta brilhante, decorada com trabalhos
dourados que reluziam ao sol. Olhou para a bota preta parada no sangue de
Sturm e respirou fundo.
— Toque o corpo dele e você morrerá — Laurana disse baixinho. —
Nem mesmo seu dragão será capaz de salvá-la. Esse cavaleiro era meu amigo
e não deixarei que sua assassina profane seu corpo.
— Não tenho intenção de fazer isso — disse a Senhora dos Dragões.
Se movendo com uma lentidão elaborada, a Senhora se abaixou e fechou
gentilmente os olhos do cavaleiro, que estavam fixos no sol que não enxer-
gava mais.
A Senhora dos Dragões se levantou, encarando a elfa que se ajoelhava
na neve, e retirou a bota da lança do dragão. — Sabe, ele também era meu
amigo. Eu sabia... no momento em que o matei.
Laurana encarou a Senhora. — Eu não acredito em você — disse ela,
cansada. — Como poderia ser?
Calmamente, a Senhora dos Dragões removeu a máscara horrível de
dragão com chifres. — Acho que já ouviu falar de mim, Lauralanthalasa.
Esse é o seu nome, não é?
Laurana assentiu, em silêncio, se levantando.
A Senhora dos Dragões sorriu, um sorriso encantador e torto. — E
meu nome é...
— Kitiara.
— Como sabia?
— Um sonho... — Laurana murmurou.
— Ah, sim... o sonho. — Kitiara passou a mão enluvada pelo cabelo
escuro e encaracolado. — Tanis me contou sobre o sonho. Acho que todos
vocês devem ter compartilhado. Ele pensou que seus amigos poderiam. —
A humana olhou para o corpo de Sturm, deitado a seus pés. — Estranho,
não é... a maneira como a morte de Sturm se tornou realidade? E Tanis
disse que o sonho se tornou realidade para ele também, a parte em que
salvei a vida dele.

400
Laurana começou a tremer. Seu rosto, que já estava branco de exaus-
tão, estava tão drenado de sangue que parecia transparente. — Tanis?...
Você viu Tanis?
— Há dois dias — disse Kitiara. — O deixei em Naufrágio, para
cuidar dos assuntos enquanto eu estava fora.
As palavras frias e calmas de Kitiara atravessaram a alma de Laurana
como a lança da Senhora atravessara a carne de Sturm. Laurana sentiu as
pedras começarem a deslizar debaixo dela. O céu e o chão se misturaram, a
dor a partiu em duas. Ela está mentindo, Laurana pensou desesperadamen-
te. Mas sabia com desesperada certeza que, embora Kitiara pudesse mentir
quando quisesse... não estava mentindo agora.
Laurana cambaleou e quase caiu. Somente a determinação impla-
cável de não revelar nenhuma fraqueza diante dessa humana mantinha a
elfa em pé.
Kitiara não percebera. Se abaixando, ela pegou a arma que Laurana
largara e a estudou com interesse.
— Então, esta é a famosa lança do dragão? — Kitiara comentou.
Laurana engoliu sua tristeza, se forçando a falar com uma voz firme.
— Sim — ela respondeu. — Se quiser ver do que é capaz, olhe dentro das
muralhas da fortaleza, o que resta dos seus dragões.
Kitiara olhou brevemente para o pátio, sem muito interesse. — Não
foram estas que atraíram meus dragões para a sua armadilha, disse ela, seus
olhos castanhos avaliando Laurana friamente — nem espalharam meu
exército aos quatro ventos.
Mais uma vez, Laurana olhou através das planícies vazias.
— Sim — disse Kitiara, vendo a compreensão aparecer no rosto de
Laurana. — Você venceu... hoje. Saboreie sua vitória agora, Elfa, pois será
de curta duração. — A Senhora dos Dragões sacudiu habilmente a lança
na mão e a segurou em direção ao coração de Laurana. A elfa permaneceu
imóvel diante dela, o rosto delicado sem expressão.
Kitiara sorriu. Com um movimento rápido, ela reverteu o golpe
mortal. — Obrigado por esta arma — disse ela, levantando a lança na
neve. — Recebemos relatos sobre elas. Agora, podemos descobrir se é uma
arma tão formidável quanto afirma.
Kitiara se curvou levemente para Laurana. Então, recolocando a
máscara de dragão sobre a cabeça, ela agarrou a lança do dragão e se virou
para partir. Ao fazê-lo, seu olhar foi mais uma vez para o corpo do cavaleiro.

401
— Cuide para que ele recebe o funeral de um cavaleiro — disse Kitia-
ra. — Vai demorar pelo menos três dias para reorganizar o exército. Darei
esse tempo para vocês prepararem uma cerimônia condizente para ele.
— Enterraremos nossos próprios mortos — disse Laurana, orgulhosa.
— Não pedimos nada de você!
A lembrança da morte de Sturm, a visão do corpo do cavaleiro, trouxe
Laurana de volta à realidade como água fria derramada no rosto de um
sonhador. Movendo-se para ficar de proteção entre o corpo de Sturm e a
Senhora dos Dragões, Laurana encarou os olhos castanhos, brilhando atrás
da máscara do dragão.
— O que você dirá a Tanis? — ela perguntou abruptamente.
— Nada — Kit disse simplesmente. — Absolutamente nada. — Vi-
rando, ela se afastou.
Laurana observou a caminhada lenta e graciosa da Senhora dos Dragões,
a capa preta tremulando na brisa quente soprando do norte. O sol brilhava
no prêmio que Kitiara segurava na mão. Laurana sabia que deveria tirar a
lança. Havia um exército de cavaleiros abaixo. Ela só precisava chamar.
Mas o cérebro cansado de Laurana e seu corpo se recusaram a agir. Foi
um esforço apenas permanecer em pé. Só o orgulho a impedia de cair nas
pedras frias.
Leve a lança do dragão, Laurana disse a Kitiara em silêncio. Ela fará
muito bem a você.
Kitiara caminhou até o dragão azul gigante. Lá embaixo, os cavaleiros
entraram no pátio, arrastando com eles a cabeça de um de seus dragões
azuis. Skie sacudiu a cabeça com raiva ao ver isso, um rosnado selvagem
retumbando profundamente dentro de seu peito. Os cavaleiros viraram
seus rostos espantados em direção à parede onde viram o dragão, a Senhora
dos Dragões e Laurana. Mais de um sacou a arma, mas Laurana levantou a
mão para detê-los. Foi o último gesto que ela teve forças para fazer.
Kitiara lançou um olhar desdenhoso para os cavaleiros e colocou a
mão no pescoço de Skie, o acariciando e tranquilizando. Ela demorou um
pouco, mostrando que não tinha medo deles.
Relutantemente, os cavaleiros baixaram as armas.
Rindo com desdém, Kitiara se jogou no dragão.
— Adeus, Lauralanthalasa — ela gritou.

402
Levantando a lança do dragão no ar, Kitiara ordenou a Skie que voasse.
O enorme dragão azul abriu suas asas, subindo sem esforço no ar. Guiando
com habilidade, Kitiara voou logo acima de Laurana.
A elfa olhou nos olhos vermelhos e ardentes do dragão. Viu a narina
ferida e ensanguentada, a boca escancarada retorcida em um rosnado cruel.
Nas costas, sentada entre as asas gigantes, estava Kitiara, a armadura de
escama de dragão brilhando, o sol cintilando na máscara com chifres. A luz
do sol reluziu na ponta da lança do dragão.
Então, cintilando enquanto girava várias vezes, a lança do dragão caiu
da mão enluvada da Senhora dos Dragões. Batendo nas pedras, ela caiu aos
pés de Laurana.
— Fique com isso — Kitiara disse em uma voz ressonante. — Você vai
precisar.
O dragão azul levantou as asas, pegou as correntes de ar e voou pelo
céu até desaparecer no sol.

403
O Funeral
noite do inverno estava escura e sem estrelas. O vento se tornara
um vendaval, trazendo granizo e neve que perfuravam a armadura
como flechas afiadas, congelando sangue e espírito. Não havia
vigia. Um homem parado nas ameias da Torre do Alto Clerista morreria de
frio em seu posto.
Não havia necessidade de vigia. Durante todo o dia, enquanto o sol
brilhava, os cavaleiros olhavam através das planícies, mas não havia sinal do
retorno dos exércitos dracônicos. Mesmo depois que a escuridão caiu, os
cavaleiros podiam ver poucas fogueiras no horizonte.
Na noite de inverno, enquanto o vento uivava entre as ruínas da Torre
desmoronada como os gritos dos dragões massacrados, os Cavaleiros de
Solamnia enterraram seus mortos.
Os corpos foram levados para um sepulcro cavernoso embaixo da
Torre. Há muito tempo, ele fora usado para os mortos da Cavalaria. Mas
foi há séculos, quando Huma cavalgou para a morte gloriosa nos campos
além. O sepulcro poderia ter permanecido esquecido, não fosse pela
curiosidade de um kender. Outrora, ele deveria ter sido guardado e bem
mantido, mas o tempo tocara até os mortos, que se pensa estarem além
do tempo. Os caixões de pedra estavam cobertos com uma camada fina de
poeira espessa. Quando foram limpos, nada pôde ser lido sobre os escritos
gravados na pedra.
Chamada de Câmara de Paladine, o sepulcro era uma sala grande e
retangular, construída bem abaixo do solo, onde a destruição da Torre não
a afetou. Uma escada longa e estreita levava a ela a partir duas portas de
ferro enormes marcadas com o símbolo de Paladine, o dragão de platina,
antigo símbolo de morte e renascimento. Os cavaleiros trouxeram tochas
para iluminar a câmara, encaixando-as em arandelas de ferro enferrujadas
nas paredes de pedra em ruínas.
Os caixões de pedra dos mortos antigos perfilavam as paredes da
sala. Acima de cada um, havia uma placa de ferro com o nome do ca-
valeiro morto, sua família e a data de sua morte. Um corredor central
passava entre as fileiras de caixões em direção a um altar de mármore
na cabeceira da sala. Neste corredor central da Câmara de Paladine, os
cavaleiros colocam seus mortos.

404
Não havia tempo para construir caixões. Todos sabiam que os exércitos
dracônicos voltariam. Os cavaleiros precisavam gastar seu tempo fortalecen-
do as muralhas arruinadas da fortaleza, não construindo lares para aqueles
que não se importam mais. Eles carregaram os corpos de seus camaradas até
a Câmara de Paladine e os deitaram em longas filas no chão frio de pedra.
Os corpos estavam cobertos com lençóis antigos e amassados, destinados
ao envolvimento cerimonial. Também não havia tempo para isso. A espada
de cada cavaleiro morto foi colocada sobre seu peito, enquanto alguns
símbolos do inimigo (talvez uma flecha, um escudo danificado ou as garras
de um dragão) foram colocados a seus pés.
Quando os corpos foram carregados para a câmara iluminada por
tochas, os cavaleiros se reuniram. Eles estavam entre seus mortos, cada
homem ao lado do corpo de um amigo, um camarada, um irmão. En-
tão, em meio a um silêncio tão profundo que cada homem podia ouvir
seu próprio coração batendo, os três últimos corpos foram trazidos.
Carregados em macas, eles foram acompanhados por uma Guarda de
Honra solene.
Isso deveria ter sido um funeral de estado, resplandecente, com os
paramentos detalhados pela Providência. No altar, deveria estar o Grão-
Mestre, vestido com a armadura cerimonial. Ao lado dele deveria estar o
Alto Clerista, vestido com uma armadura coberta com as vestes brancas
de um clérigo de Paladine. Ali deveria estar o Supremo Juiz, sua armadura
coberta pelos mantos judiciais pretos. O altar em si deveria estar coberto
com rosas. Emblemas dourados do martim-pescador, da coroa e da espada
deveriam ter sido colocados sobre ele.
Mas, lá no altar, estava apenas uma elfa, vestida com uma armadura
que estava amassada e manchada de sangue. Ao lado dela, havia um anão
velho, a cabeça curvada pela dor, e um kender, o rosto travesso devastado
pela tristeza. A única rosa sobre o altar era uma negra, encontrada no cinto
de Sturm; o único ornamento era uma lança de dragão de prata, escurecida
com sangue coagulado.
A Guarda trouxe os corpos para a frente da câmara e os colocou de
forma reverente diante dos três amigos.
À direita, estava o corpo do Lorde Alfred MarKenin, seu cadáver
mutilado e sem cabeça, misericordiosamente envolto em linho branco. À
esquerda, estava o Lorde Derek Crownguard, com o corpo coberto de pano
branco para esconder o sorriso hediondo que a morte congelara em seu ros-

405
to. No centro, estava o corpo da Sturm Brightblade. Ele não estava coberto
por um lençol branco. Estava na armadura que usara quando morreu, a
armadura de seu pai. A espada antiga de seu pai estava presa nas mãos frias
sobre o peito. Outro ornamento estava em seu peito quebrado, um símbolo
que nenhum dos cavaleiros reconheceu.
Era a Joia Estelar, que Laurana encontrara em uma poça de sangue do
próprio cavaleiro. A joia estava escura, seu brilho desaparecendo mesmo
quando Laurana a segurava na mão. Muitas coisas ficaram claras para ela
mais tarde, enquanto ela estudava a Joia Estelar. Foi assim que eles compar-
tilharam o sonho em Silvanesti. Sturm percebera o seu poder? Sabia do elo
que fora estabelecido entre ele e Alhana? Não, Laurana pensou tristemente,
ele provavelmente não sabia. Nem podia perceber o amor que representava.
Nenhum humano poderia. Cuidadosamente, ela a colocou sobre o peito
dele, enquanto pensava com tristeza na elfa morena de cabelos escuros, que
devia saber que o coração sobre o qual repousava a Joia Estelar reluzente
estava parado para sempre.
A Guarda de Honra recuou, esperando. Os cavaleiros reunidos ficaram
de cabeças baixas por um momento, depois as ergueram para encarar Laurana.
Este deveria ter sido o momento de discursos orgulhosos, de relatos
dos feitos heroicos dos cavaleiros mortos. Mas, por um momento, tudo
o que se pôde ouvir foram os soluços ruidosos do anão velho e o suspiro
silencioso de Tasslehoff. Laurana olhou para o rosto pacífico de Sturm e não
conseguiu falar.
Por um momento, ela invejou Sturm, o invejou avidamente. Ele estava
além da dor, além do sofrimento, além da solidão. Sua guerra fora travada.
Ele foi vitorioso.
Você me deixou! Laurana chorou em agonia. Me deixou lidar com isso
sozinha! Primeiro Tanis, depois Elistan, agora você. Eu não consigo! Não
sou forte o suficiente! Não consigo deixar você partir, Sturm. Sua morte
foi sem lógica, sem sentido! Uma fraude e uma farsa! Não vou deixar você
partir. Não em silêncio! Não sem raiva!
Laurana levantou a cabeça, os olhos flamejantes à luz da tocha.
— Vocês esperam um discurso nobre — disse ela, com a voz fria como
o ar do sepulcro. — Um discurso nobre honrando as ações heroicas desses
homens que morreram. Bem, vocês não terão. Não de mim!
Os cavaleiros se entreolharam, com os rostos sombrios.

406
— Esses homens, que deveriam ter se unido em uma irmandade
forjada quando Krynn era jovem, morreram em uma discórdia amarga,
provocada por orgulho, ambição e ganância. Seus olhos se voltam para
Derek Crownguard, mas ele não era o único culpado. Vocês são. Todos
vocês! Todos vocês que tomaram partido nesta luta imprudente pelo poder.
Alguns cavaleiros abaixaram a cabeça, outros empalideceram de ver-
gonha e raiva. Laurana engasgou com as lágrimas. Então, sentiu a mão
de Flint deslizar na dela, apertando-a confortavelmente. Engolindo, ela
respirou fundo.
— Apenas um homem estava acima disso. Apenas um homem aqui
entre vocês viveu o Código todos os dias de sua vida. E, durante a maior parte
desses dias, ele não era um cavaleiro. Ou melhor, ele era um cavaleiro onde
isso significava mais... no espírito, no coração, não em alguma lista oficial.
Esticando a mão para trás, Laurana pegou a lança do dragão manchada
de sangue do altar e a ergueu sobre a cabeça. E, quando ela levantou a lança,
seu espírito foi elevado. As asas da escuridão que pairavam ao seu redor
foram banidas. Quando levantou a voz, os cavaleiros a observaram mara-
vilhados. Sua beleza os abençoava como a beleza de um dia de primavera.
— Amanhã sairei deste lugar — Laurana disse suavemente, seus olhos
luminosos na lança do dragão. — Irei para Palanthas. Levarei comigo a
história deste dia! Levarei essa lança e a cabeça de um dragão. Jogarei essa
cabeça sangrenta nos degraus do magnífico palácio deles. Ficarei sobre ela
e farei com que me ouçam. E Palanthas ouvirá! Eles verão o seu perigo. E
então irei a Sancrist e Ergoth e a todos os outros lugares deste mundo onde
as pessoas se recusam a deixar de lado seus ódios mesquinhos e se unir. Pois
até vencermos os males dentro de nós mesmos, como esse homem o fez,
nunca poderemos vencer o grande mal que ameaça nos engolir!
Laurana levantou as mãos e os olhos para o céu. — Paladine! — ela
gritou, sua voz soando como o toque da trombeta. — Vamos a você, Paladi-
ne, escoltando as almas desses nobres cavaleiros que morreram na Torre do
Alto Clerista. Conceda a nós, que ficamos para trás neste mundo devastado
pela guerra, a mesma nobreza de espírito que honra a morte deste homem!
Laurana fechou os olhos enquanto as lágrimas caíam livres e descon-
troladas em suas bochechas. Ela já não lamentava por Sturm. Sua tristeza
era por si mesma, por sentir falta da presença dele, por ter que contar a
Tanis sobre a morte de seu amigo, por ter que viver neste mundo sem esse
amigo nobre ao seu lado.

407
Lentamente, ela colocou a lança sobre o altar. Então, se ajoelhou
diante dele por um momento, sentindo o braço de Flint em volta do ombro
e o toque suave de Tasslehoff em sua mão.
Como se fosse em resposta à sua oração, ela ouviu as vozes dos
cavaleiros se erguendo atrás dela, levando suas próprias orações ao grande e
antigo deus, Paladine.

Que no coração de Huma este homem possa entrar:


Que ele se perca na luz do sol,
No coro do ar, onde a vida se traduz;
No limite do céu, recebê-lo.

Além do firmamento selvagem viajar


Você preparou sua moradia,
Em quartéis de estrelas, onde a espada almeja
Em um arco de desejo, onde nos juntamos cantando.

Que o descanso do guerreiro possa encontrar.


Acima do nosso canto, acima da própria canção,
Que as eras da paz se encontrem em um dia,
Que ele habite no coração de Paladine.

E a última faísca dos seus olhos livrar


Em um lugar fixo e sagrado
Acima das palavras e a terra emprestada tão amada
À medida que recontamos as eras.

Livre das nuvens sufocantes que a guerra produz


Assim como ele cresceu na infância,
Com o mundo longo, possível e brilhante diante dele,
Lorde Huma, livrai-lo.

Sob as tochas das estrelas, na sua luz


Foi traçada a glória imaculada da infância;
Daquele país injustiçado e aconchegante,
Lorde Huma, livrai-lo.

408
Que o último suspiro da sua sorte
Perpetue o vinho, a essência de flores;
Da vanguarda do amor, o último a se render,
Lorde Huma, livrai-lo.

Se refugie no ar consolador
Do coração da espada que desce,
Do peso de uma batalha após a outra;
Lorde Huma, livrai-lo.

Acima dos sonhos do corvo voador


Seus sonhos tentaram primeiro um descanso além da mudança,
Do desejo pela guerra e pelo fim da guerra,
Lorde Huma, livrai-lo.

Onde apenas o falcão se lembra da morte


Em um campo finado; do crepúsculo,
Do desvanecer dos sentidos, somos gratos a você,
Lorde Huma, livrai-lo.

Então que sua alma até Huma possa chegar


Fora do corpo da morte, da casca que se desfaz;
Do abrigo da mente sobre o nada,
somos gratos a você,
Lorde Huma, livrai-lo.

Além do firmamento selvagem viajar


Você preparou sua moradia,
Em quartéis de estrelas, onde a espada almeja
Em um arco de desejo, onde nos juntamos cantando.

Que no coração de Huma este homem possa entrar


Além do firmamento selvagem viajar;
Que o descanso do guerreiro possa encontrar
E a última faísca dos seus olhos livrar
Das nuvens sufocantes que a guerra produz
Sob as tochas das estrelas, na sua luz.

409
Que o último suspiro da sua sorte
Se refugie no ar consolador
Acima dos sonhos do corvo voador
Onde apenas o falcão se lembra da morte.
Então que sua alma até Huma possa chegar
Além do firmamento selvagem viajar.

O cântico terminou. Lenta e solenemente, os cavaleiros avançaram um


a um para homenagear os mortos, cada um ajoelhando por um momento
diante do altar. Então os Cavaleiros de Solamnia deixaram a Câmara de
Paladine, retornando aos seus leitos frios para tentar descansar um pouco
antes do amanhecer do dia seguinte.
Laurana, Flint e Tasslehoff estavam sozinhos ao lado do amigo, abra-
çados entre si, com os corações cheios. Um vento frio assobiava através da
porta aberta do sepulcro onde estava a Guarda de Honra, pronta para selar
a câmara.
— Kharan bea Reorx — disse Flint em anão, passando a mão nodosa
e trêmula sobre os olhos dele. — Os amigos se reúnem em Reorx. — Re-
mexendo na bolsa, tirou um pedaço de madeira, lindamente esculpido na
forma de uma rosa. Gentilmente, ele o colocou no peito de Sturm, ao lado
da Joia Estelar de Alhana.
— Adeus, Sturm — disse Tas, sem jeito. — Eu só tenho um presente
que você aprovaria. Eu... acho que você não entenderá. Mas, por outro
lado, talvez você entenda agora. Talvez você entenda melhor do que eu.
— Tasslehoff colocou uma pequena pena branca na mão fria do cavaleiro.
— Quisalan elevas — Laurana sussurrou em élfico. — Nosso vínculo,
amor eterno. — Ela fez uma pausa, incapaz de deixá-lo nessa escuridão.
— Venha Laurana — disse Flint gentilmente. — Já nos despedimos.
Devemos deixá-lo ir. Reorx espera por ele.
Laurana recuou. Silenciosamente, sem olhar para trás, os três amigos
subiram as escadas estreitas que saíam do sepulcro e caminharam firme-
mente para o vento frio e cortante da noite amarga do inverno.

Longe da terra congelada de Solamnia, outra pessoa se despediu de


Sturm Brightblade.
Silvanesti não havia mudado com o passar dos meses. Embora o
pesadelo de Lorac tivesse terminado e seu corpo estivesse embaixo do solo

410
de seu amado país, a terra ainda se lembrava dos terríveis sonhos de Lorac.
O ar cheirava a morte e decadência. As árvores se curvavam e torciam em
agonia interminável. Animais deformados vagavam pela floresta, buscando
o fim de sua existência torturada.
Em vão, Alhana observava de seu quarto, na Torre das Estrelas, algum
sinal de mudança.
Os grifos voltaram, como ela sabia que voltariam assim que o
dragão se fosse. Ela pretendia deixar Silvanesti e retornar ao seu povo
em Ergoth. Mas os grifos traziam notícias perturbadoras, a guerra entre
os elfos e os humanos.
Foi uma marca da mudança em Alhana, uma marca de seu sofrimento
nos últimos meses, que ela achou essas notícias angustiantes. Antes de co-
nhecer Tanis e os outros, ela teria aceitado a guerra entre elfos e humanos,
talvez fosse até bem-vinda. Mas, agora, viu que este era apenas o trabalho
das forças do mal no mundo.
Ela sabia que deveria retornar ao seu povo. Talvez pudesse acabar com
essa insanidade. Mas ela disse a si mesma que o clima não era seguro para
viajar. De fato, ela evitou enfrentar o choque e a descrença de seu povo
quando contasse a eles sobre a destruição de suas terras e sua promessa ao
pai moribundo de que os elfos voltariam e se reconstruiriam... depois de
ajudarem os humanos a combaterem a Rainha das Trevas e seus lacaios.
Ah, ela venceria. Não tinha dúvida. Mas temia deixar a solidão de seu
exílio voluntário para enfrentar o tumulto do mundo além de Silvanesti.
E ela temia, assim como desejava, ver o humano que amava. O cava-
leiro, cujo rosto orgulhoso e nobre a alcançava em seus sonhos, cuja alma
ela compartilhava através da Joia Estelar. Sem ele saber, ela ficou ao seu
lado em sua luta para salvar sua honra. Sem ele saber, ela compartilhou sua
agonia e aprendeu sobre as profundezas de seu espírito nobre. O amor dela
por ele crescia diariamente, assim como o medo de amá-lo.
E, então, Alhana adiou sua partida continuamente. Partirei, ela disse a
si mesma, quando vir algum sinal de que possa dar ao meu povo, um sinal
de esperança. Caso contrário, eles não voltarão. Desistirão em desespero.
Dia após dia, ela olhou pela janela.
Mas nenhum sinal veio.
As noites de inverno ficaram mais longas. A escuridão se aprofundou.
Uma noite, Alhana caminhava pelas ameias da Torre das Estrelas. Era tarde
em Solamnia e, em outra torre, Sturm Brightblade enfrentava um dragão

411
azul-celeste e uma Senhora dos Dragões chamada de Dama das Trevas.
Alhana sentiu uma sensação aterrorizante, como se o mundo tivesse parado
de girar. Uma dor esmagadora perfurou seu corpo, a levando ao chão de
pedra. Soluçando de medo e tristeza, ela agarrou a Joia Estelar que usava em
volta do pescoço e observou em agonia sua luz tremeluzir e morrer.
— Então, este é o meu sinal! — ela gritou amargamente, segurando a
joia escurecida na mão e a agitando para o firmamento. — Não há esperança!
Não há nada além de morte e desespero!
Segurando a joia com tanta força que as pontas afiadas mordiam sua
carne, Alhana tropeçou sem ver através da escuridão, até seu quarto na
Torre. De lá, olhou mais uma vez para sua terra moribunda. Então, com
um soluço trêmulo, fechou e trancou as persianas de madeira da janela.
“Deixe o mundo fazer o que quiser”, pensou amargamente. “Deixe
meu povo alcançar seu fim da forma que desejar. O mal prevalecerá. Não há
nada que possamos fazer para impedir isso. Vou morrer aqui, com meu pai”.
Naquela noite, ela fez uma última jornada pela terra. Jogou uma capa
fina sobre os ombros e se dirigiu para um túmulo disposto sob uma árvore
retorcida e torturada. Na mão, segurava a Joia Estelar.
Jogando-se no chão, Alhana começou a cavar freneticamente com
as mãos nuas, arranhando o solo congelado do túmulo de seu pai com
dedos que logo estavam em carne viva e sangrando. Ela não se importava.
Ela saudou esta dor que era bem mais fácil de suportar do que a dor em
seu coração.
Finalmente, cavara um pequeno buraco. A lua vermelha, Lunitari,
passava pelo céu noturno, tingindo a luz da lua prateada com sangue.
Alhana olhou para a Joia Estelar até não conseguir mais vê-la através das
lágrimas, depois a jogou no buraco que cavara. Ela se forçou a parar de
chorar. Limpando as lágrimas do rosto, começou a tapar o buraco.
Então, parou.
Suas mãos tremiam. Hesitante, se abaixou e limpou a sujeira da Joia
Estelar, imaginando se sua dor a deixara louca. Não! Dela surgira um pe-
queno vislumbre de luz que ficou ainda mais forte enquanto ela observava.
Alhana tirou a joia cintilante do túmulo.
— Mas ele está morto — ela disse baixinho, olhando para a joia que
brilhava na luz prateada de Solinari. — Eu sei que a morte o reivindicou.
Nada pode mudar isso. No entanto, por que essa luz...

412
Um sussurro repentino a assustou. Alhana recuou, temendo que a
árvore deformada acima do túmulo de Lorac estivesse se abaixando para
agarrá-la em seus galhos rangentes. Mas, enquanto ela observava, viu os
galhos da árvore cessarem suas torções torturadas. Ficaram imóveis por um
instante, depois, com um suspiro, se voltaram para o céu. O tronco se
endireitou, a casca ficou lisa e começou a refletir à luz prateada da lua. O
sangue parou de pingar da árvore. As folhas sentiram a seiva viva fluir mais
uma vez em suas veias.
Alhana ofegou. Se levantando cambaleante, olhou para a terra ao
redor. Nada mais havia mudado. Nenhuma das outras árvores estava dife-
rente, apenas essa, acima do túmulo de Lorac.
“Estou ficando louca”, pensou. Assustada, voltou a olhar para a árvore
sobre o túmulo de seu pai. Ela realmente estava mudando. Mesmo enquanto
observava, ficava mais bonita.
Com cuidado, Alhana colocou a Joia Estelar em seu lugar sobre seu
coração. Então, se virou e voltou para a torre. Havia muito a ser feito antes
de partir para Ergoth.
Na manhã seguinte, quando o sol lançou sua luz pálida sobre a terra
infeliz de Silvanesti, Alhana olhou para a floresta. Uma névoa verde nociva
ainda pairava baixa sobre as árvores que sofriam. Nada mudaria, ela sabia, até
que os elfos voltassem e trabalhassem para fazer esta mudança. Nada mudara,
exceto a árvore acima do túmulo de Lorac.
— Adeus, Lorac — Alhana disse — até a nossa volta.
Invocando seu grifo, ela subiu nas costas fortes e pronunciou uma
palavra firme de comando. A fera abriu suas asas emplumadas e se ergueu
no ar, subindo em espirais velozes acima de Silvanesti. Com uma palavra de
Alhana, virou a cabeça para oeste e começou o longo voo até Ergoth.
Lá embaixo, em Silvanesti, as belas folhas verdes de uma árvore se
destacavam em um contraste esplêndido com a desolação sombria da flo-
resta ao seu redor. Ela balançava com o vento gélido, cantando uma música
suave enquanto espalhava seus membros para proteger o túmulo de Lorac
da escuridão do inverno, esperando a primavera.

413
Para acompanhar as novidades da Jambô e acessar
conteúdos gratuitos de RPG, quadrinhos e literatura,
visite nosso site e siga nossas redes sociais.

www.jamboeditora.com.br

facebook.com/jamboeditora

twitter.com/jamboeditora

youtube.com/jamboeditora

Para ainda mais conteúdo, incluindo colunas, resenhas,


quadrinhos, contos, podcasts e material de jogo, faça parte da
Dragão Brasil, a maior revista de cultura nerd do país.

www.apoia.se/dragaobrasil

Rua Coronel Genuíno, 209 • Centro Histórico


Porto Alegre, RS • 90010-350
(51) 3391-0289 • contato@jamboeditora.com.br
O s servos de Takhisis, a Rainha dos
Dragões, voltaram ao mundo. Frente
a esta ameaça, os povos de todos os reinos
se preparam para lutar por seus lares, por
sua liberdade e por suas vidas. Mas as raças
estão há muito tempo divididas por ódio
e preconceito. Conflitos entre cavaleiros
humanos e guardiões elfos surgem por
todos os lados e a batalha parece estar
perdida antes mesmo de começar.
Os companheiros estão separados pela
guerra. Uma estação inteira irá passar antes
de eles se encontrarem novamente — se
conseguirem. À medida que a escuridão
se aprofunda, um cavaleiro em desgraça,
uma donzela élfica mimada e um kender
inconsequente se veem sozinhos sob a
pálida luz do sol invernal.
São poucos. São fracos. São tudo que resta
entre os povos dos reinos e a Rainha dos
Dragões.

O segundo volume das crôNicas De DraGoNlaNce


continua a saga da Guerra da Lança com uma
das mais amadas histórias da literatura mundial

Você também pode gostar