Você está na página 1de 12

Resumo: Ao tratar da presença indígena feminina na Literatura

de expressão amazônica, é imprescindível ressaltar que a


representação da mulher indígena nas obra Dois irmãos e
Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum, mostram de que forma
tais mulheres foram inseridas no processo de modernização do
espaço amazônico. Assim, para que fossem inseridas no processo
de modernização, tais mulheres aprendiam a língua e a religião
europeia. Destarte, este trabalho tem por objetivo fazer uma
MULHERES INDÍGENAS investigação de como a mulher indígena é retratada nas obras
de Milton Hatoum, por meio das indígenas Domingas e Florita,
SUBALTERNAS NA NARRATIVA DE das obras Dois irmãos e Órfãos do Eldorado, respectivamente.
Isto posto, buscar-se-á investigar, ainda, como tais mulheres são
MILTON HATOUM: DOMINGAS exploradas por meio da manipulação de sua força de trabalho,
fato que as leva a ser inseridas em situações degradantes
E FLORITA, UMA ANÁLISE na modernização da cidade de Manaus. Para subsidiar esta
pesquisa, far-se-á um paralelo entre a construção histórica da
COMPARADA manipulação da força de trabalho na perspectiva da América
Latina, tomando por base, Aníbal Quijano (2005) Colonialidade
do poder, eurocentrismo e América Latina e o lugar ocupado pela
SUBORDINATE INDIGENOUS WOMEN mulher indígena na modernização da Amazônia, especificamente
da cidade de Manaus, adotando por apoio Araújo e Torres
IN MILTON HATOUM’S NARRATIVE: (2008) Trajetória de vida e de trabalho de mulheres indígenas
em Manaus. Para melhor entendermos o caráter hibrido da
DOMINGAS AND FLORITA, A literatura Hatouniana, far-se-á uma breve discussão a cerca
COMPARED ANALYSIS dos conceitos de hibridismo, entrelugar e heterogeneidade,
adotando o aporte de Figueiredo (2005) Conceitos de Literatura
e Cultura e sobre a relação entre os povos de culturas de intenso
contato, Homi K. Bhabha (2013) O local da cultura. Isto posto,
para compreender como se dá a relação da mulher que tem sua
Jose Meiry Soares Braga 1 origem pautada na mistura de culturas com o espaço ao qual
esta inclui-se, este trabalho apoiar-se-á em Anzaldúa (2005),
La consciencia de La mestiza, bem como, outros autores que
corroboram para o arcabouço teórico desta pesquisa.
Palavras-chave: Milton Hatoum. Cultura. Mulheres indígenas.
Subalternidade.

Abstract: In dealing with the indigenous feminine presence in


Literature of Amazonian expression, it is necessary to emphasize
that the representation of the indigenous woman in the work
Two brothers and Orphans of the Eldorado, of Milton Hatoum,
show how these women were inserted in the process of
modernization of the Amazonian space. Thus, in order to be
included in the modernization process, such women learned the
European language and religion. The purpose of this work is to
investigate how the indigenous woman is portrayed in the works
of Milton Hatoum, through the indigenous Domingas and Florita,
from the works Dois Irmãos and Órfãos do Eldorado, respectively.
This fact will seek to investigate how these women are exploited
through the manipulation of their work force, a fact that leads
them to be inserted in degrading situations in the modernization
of the city of Manaus. In order to support this research, a parallel
will be drawn between the historical construction of labor force
manipulation from the perspective of Latin America, based on
Aníbal Quijano (2005) Coloniality of power, Eurocentrism and
Latin America and the place occupied by indigenous woman
in the modernization of Amazonia, specifically in the city of
Manaus, adopting Araújo and Torres (2008). Life and work
trajectory of indigenous women in Manaus. In order to better
understand the hybrid character of the Hatounian literature, a
brief discussion will be made about the concepts of hybridism,
interlacing and heterogeneity, adopting the contribution of
Figueiredo (2005) Concepts of Literature and Culture and the
relation between the peoples of cultures of intense contact,
Homi K. Bhabha (2013) The place of culture. This fact, in order
Possui graduação em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade 1 to understand how the relation of the woman who has its origin
do Estado do Pará (2016). É Especialista em Abordagens Culturalistas, Saberes
e identidades na/da Amazônia; pela Universidade Federal do Sul e Sudeste based on the mixture of cultures with the space to which it is
do Pará (2018). Atualmente é Mestranda do Programa de Pós-Graduação included is given, this work will be supported in Anzaldúa (2005),
em Letras (POSLET), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. The conscience of The mestiza, as well as other authors that
Possui experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, corroborate the theoretical framework of this research.
Abordagens Culturalistas, Literatura de Expressão Amazônica e Literatura e Keywords: Milton Hatoum. Culture. Indigenous women.
Psicanálise. E-mail: bragmont.jose@gmail.com Subalternity.
153 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

Introdução
O atual interesse pelos estudos que envolvem a Literatura na/da Amazônia, deve-se à
necessidade de um debate sobre a Literatura e a Cultura dessa região, não apenas como espelho
de uma paisagem imóvel, que retrata a diversidade de fauna e flora presentes na região, mas uma
discussão que vise salientar as várias interações sociais que se desenvolveram aqui em função da
presença de vários povos e culturas que compõe o mosaico de nossa identidade cultural.
Os estudos acerca da Literatura de expressão amazônica demandam uma visão dinâmica,
que atente para a representação dos vários povos que aparecem nas narrativas produzidas na ou
sobre a região; tais estudos pedem uma análise de como a sociedade volta seu olhar para os grupos
marginais, principalmente, aos povos indígenas que viveram e ainda vivem por aqui. Durante o
processo de modernização da Amazônia, as mulheres indígenas desenvolveram papéis de extrema
importância, no entanto, por serem indígenas e por serem mulheres, seus espaços, na maioria das
vezes, eram subalternos e passíveis a sofrimentos e a todos os tipos de violência.
Deste modo, por meio da obra de Hatoum, é importante analisar a crítica ao espaço semi-
servil ocupado por mulheres indígenas. Por meio da literatura é possível também, fazer um estudo
detalhado de como povos indígenas ainda são vistos como pessoas desprovidas de cultura, ou,
mesmo que sua cultura seja reconhecida, ainda é tida como inferior, em relação à cultura do
colonizador, fato que os coloca no espaço de modernização de Manaus sempre como subordinados.
É imprescindível ressaltarmos que, até pouco tempo, havia a ideia de que os indígenas
precisavam ser “civilizados”, ou seja, apresentados à cultura ocidental, como mostrado na obra
de diversos teóricos, entre eles, Aníbal Quijano (2005). Deste modo, percebe-se nitidamente
a concepção de que a cultura indígena ainda é entendida como primitiva, rude e sem nenhuma
importância.
As mulheres indígenas, em especial, para ocuparem um espaço de doméstica, como é o caso
das personagens em questão, precisavam passar por um processo de ocidentalização que envolvia
o aprendizado da língua portuguesa e a doutrina cristã. Nesse sentido, a cultura de origem não era
aceita na sociedade amazônica na qual a cultura de matriz europeia fazia-se dominante nos espaços
urbanizados.
Milton Hatoum mostra, nitidamente por meio das personagens Florita em Órfãos do
Eldorado e Domingas, em Dois irmãos, estes aspectos. Para que ambas pudessem ter uma vida
considerada melhor - ainda que de subserviência - deveriam passar por processos de aprendizagem
da cultura do outro e isso incluía a língua do colonizador e sua religião. Entretanto, ainda que
timidamente, sua cultura de origem continua ocupando um espaço considerável em suas ações
cotidianas, nas práticas de cura, no preparo de comidas da região e sobretudo na visão de mundo
e no jeito de ser e fazer.
Considerando que a cultura Latino-americana tem sua base na mistura da cultura indigenista
e europeia, Milton Hatoum, em suas obras, mostra de que forma essa mistura de culturas influenciou
na formação da sociedade das amazônias,em especial, de Manaus, e como a valorização da cultura
eurocêntrica empurra mulheres indígenas para situações semi-servis que beiram a escravidão.
Isto posto, por meio da manipulação da força de trabalho, mulheres indígenas são inseridas
em situações degradantes na modernização das cidades da Amazônia. Destarte, este trabalho
visa investigar de que maneira tais acontecimentos são retratados na obra de Milton Hatoum por
meio das indígenas Domingas e Florita, personagens das obras Dois irmãos e Órfãos do Eldorado,
respectivamente.
Para subsidiar esta pesquisa, far-se-á um paralelo entre a construção histórica da manipulação
da força de trabalho na perspectiva da América Latina, tomando por base, Aníbal Quijano (2005)
Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina e o lugar ocupado pela mulher indígena
na modernização da Amazônia, especificamente da cidade de Manaus, adotando por apoio Araújo
e Torres (2008) Trajetória de vida e de trabalho de mulheres indígenas em Manaus. Para melhor
entendermos o caráter híbrido da literatura hatouniana, far-se-á uma breve discussão acerca dos
conceitos de hibridismo, entrelugar e heterogeneidade, levando em consideração Figueiredo (2005)
Conceitos de Literatura e Cultura e sobre a relação entre os povos de culturas de intenso contato,
Homi K. Bhabha em O local da cultura. (2013).
Desta maneira, para compreender como se dá a relação da mulher que tem sua origem
154 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

pautada na mistura de culturas, com o espaço ao qual esta inclui-se, este trabalho apoiar-se-á em
Anzaldúa (2005), La consciencia de La mestiza, bem como, outros autores que corroboram para o
arcabouço teórico deste trabalho.

Hibridismo, Entre-lugar e Hetogeneidade em Milton Hatoum


O escritor Milton Hatoum1, nasceu na cidade de Manaus, no ano de 1952. De descendência
Libanesa, o escritor passou boa parte da infância e juventude em Manaus, mudando para Brasília
no ano de 1968 e, posteriormente, para São Paulo onde cursou Arquitetura e Urbanismo e Letras
na USP.
A sua inauguração nas letras se dá em 1989, com o romance premiadíssimo pela crítica,
Relato de um certo Oriente. Entre outras publicações de igual relevância, em 2000 publicou Dois
irmãos, obra aclamada pela crítica e que conta a história de uma família de imigrantes libaneses
que vive e Manaus e tem sua vida marcada pela rivalidade que vivem os irmãos Omar e Yaqub. A
narrativa é carregada de episódios que refletem os dramas familiares e a história da modernização
de Manaus na qual a mão de obra indígena e cabocla construía um império que os arremessava
para a subalternidade. Tal fato é representado na narrativa por meio da indígena Domingas, que
mesmo escolarizada e catequizada serve à família de Zana em condições semi-servis.
Em 2008, o autor publica a novela Órfãos do Eldorado, que segundo Penalva (2012, p.117):
“Nessa narrativa o autor reúne o mergulho no passado, os conflitos familiares e o desencanto com
o país. Há uma combinação de história e mito,ficção e fábula, lenda e verdade.” A Narrativa conta a
saga de Arminto Cordovil em busca de seu amor Dinaura, moça que sonha com a cidade encantada
submersa, a Eldorado.
Na narrativa, o menino conta com os conselhos e cuidados de Florita, indígena que dedicou
sua vida a cuidar de Arminto e de seu pai, Armando. Ainda que na trama a indígena ocupe lugar de
destaque, assim como Domingas, de Dois Irmãos, a indígena é arrastada pelo espaço secundário
que ocupa sendo subalterna até a morte.
É imprescindível salientar que ambas as obras - corpus deste trabalho - apresentam como
temas os conflitos familiares, a relação dos povos com Manaus, desta maneira, contribuindo para
narrativas que criticam a exclusão de diversos grupos sociais da modernização na Amazônia.
Para uma melhor compreensão deste trabalho, é importante ressaltar conceitos que
corroboram com as teorias dos Estudos Culturais e Pós- coloniais e perceber como tais conceitos
fazem-se presentes nas obras Dois irmãos e Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum.
Neste sentido, abordaremos diversas vezes no decorrer deste trabalho um conceito polêmico
nos estudos acima citados, o Hibridismo. Para Figueiredo (2005) Tal termo consiste em caracterizar
a identidade ambígua ou dupla, gerada a partir do contato com outra cultura, determinando assim
uma nova cultura, flexível e dinâmica. Tal conceito deixa à margem a ideia de cultura pura e única
dando espaço ao ato que gera uma adaptação do indivíduo que, por sua vez, fusiona sua cultura
á cultura do outro, originando assim, o processo de hibridismo. Destarte, o hibridismo tem por
função nomear um indivíduo cuja formação social e cultural são mistas, que origina-se a partir do
encontro de duas culturas Heterogêneas. Segundo Figueiredo (2005):
A primeira definição de Hibridismo[..] aponta para o conteúdo
negativo do termo: ‘animal ger. estéril. formado pelo
cruzamento de progenitores de espécies diferentes, bastardo’.
Até mesmo a etmologia da palavra vai absorver conotações
desfavoráveis adicionais. (FIGUEIREDO, 2005 p.165)

Ainda para Figueiredo, o termo hibridismo no âmbito cultural, é utilizado para descrever
culturas criadas em espaços de intenso contato cultural, como é o caso da cidade de Manaus, onde
são ambientadas as obras de Hatoum em questão.
O contato de culturas apresentado nas obras Dois Irmão e Órfãos do Eldorado, do escritor
Milton Hatoum, apresenta diversas etapas, entre elas, o tumulto de se conviver em uma outra
realidade cultural gerada a partir do choque entre culturas diferentes.
1 Fonte: PENALVA, Gilson. Identidade e Hibridismo cultural na Amazônia Brasileira: Um estudo comparativo entre Dois
Irmãos e cinzas do Norte, de Milton Hatoum, e A Selva, de Ferreira de Castro. UFPB 2012.
155 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

Para Cornejo Polar (Apud Figueiredo 2005,p 144), a pluralidade dos signos sociais presentes
no processo de produção literária, cria uma zona de conflitos dentro da obra, uma vez que, desse
modo, pelo menos um elemento será diferente dos demais o que ocasiona em um fenômeno que
ele chamará de “literatura heterogênea”.
Em Hatoum, esses elementos heterogêneos da narrativa estão presentes nas indígenas
Domingas e Florita. Ambas pertencem a um espaço cultural diferente dos demais personagens,
ainda que tenham absorvido a cultura hegemônica, guardam consigo seus traços da cultura
indígena, como, por exemplo, sua língua materna - Florita - e sua medicina tradicional - Domingas.
Ao participar desses diálogos culturais, o indivíduo não pode fechar as portas ao novo,
entretanto, não pode desvincular-se totalmente se suas origens culturais, nesse sentido, os
elementos híbridos e heterogêneos, figuram para a formação de um entre-lugar. Assim, este
conceito age como forma de resistência do colonizado subalterno à imposição de valores trazidos
e impostos pelos europeus.
Ao citar Nubia Hanciau, Figueiredo (2005, p 127) mostra que o entre-lugar se insere nos
conceitos que indicam a existência de um descentramento que reafirma a heterogêneidade dos
povos e nega a existência de uma cultura pura, homogênea e cristalizada. Destarte, a ocorrência de
tais fenômenos corroboram para a dinâmica cultural dos povos da Amazônia.

As manipulações da Força de Trabalho e o Estabelecimento do


Poder na América Latina
Para uma melhor compreensão da atual realidade econômica e social da América Latina, é
necessário que retornemos aos padrões de poder aqui estabelecidos desde o período colonial. Isto
posto, Aníbal Quijano (2005) propõe uma visão que abarca elementos da economia, da história,
bem como fatos ideológicos e políticos que foram fundamentais para a organização do modelo de
poder na América Latina, desde a Colônia até o período atual.
Para Quijano (2005), o que temos como globalização na sociedade atual, trata-se de uma
herança do padrão de poder que foi inicialmente pautada na divisão social segundo a ideologia de
raça, que se estabeleceu para justificar a dominação social eurocêntrica:
A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história
conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como
referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e
conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi
construída como referência a supostas estruturas biológicas
diferenciais entre esses grupos. (QUIJANO, 2005. p. 117)

A categorização racial da população também corrobora para a estruturação da força de


trabalho. Em seguida, surge a dominação sexista, fato que torna a mulher inferior e submissa ao
homem. Desta maneira, a partir do decreto que finaliza a escravidão indígena, os índios passam à
servidão e, posteriormente, à subalternidade nos espaços urbanos.
Desde o século XVIII, na América hispânica muito dos mestiços
de espanhóis ou mulheres índias, já um estrato social extenso
e importante na sociedade colonial, começaram a ocupar os
mesmos ofícios e atividades que exerciam os ibéricos que não
eram nobres. ( QUIJANO, 2005 p.119)

Dentro desse sistema europeu de organização do mundo, surge o etnocentrismo, desta


maneira, intitulam a modernidade e a racionalidade como produtos Europeus. Isto posto, a Europa
se afirma criadora do que se chama modernidade, tornando os povos dominados inferiores, por
acreditar que era muito mais avançada que os demais de sua espécie.
A associação entre ambos os fenômenos, o etnocentrismo
colonial e a classificação racial universal, ajudam a explicar por
que os europeus foram levados a sentir-se não só superiores
a todos os demais povos do mundo, mas, além disso,
naturalmente superiores. ( QUIJANO, 2005 p. 121)
156 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

Para tanto, Quijano (2005) critica a modernidade como fator de superioridade, uma vez
que defende que todas as culturas estão passíveis de desenvolver os avanços e novidades que são
considerados como a ‘modernidade’, fazendo referência direta à cidades da América Latina que se
desenvolveram tecnologicamente antes mesmo de a Europa desenvolver sua identidade.
Na verdade, a estas alturas da pesquisa histórica seria
quase ridículo atribuir às altas culturas não-européias uma
mentalidade mítico-mágica como traço definidor, por exemplo,
em oposição à racionalidade e à ciência como características
da Europa, pois além dos possíveis ou melhor conjecturados
conteúdos simbólicos, as cidades, os templos e palácios, as
pirâmides, ou as cidades monumentais, seja Machu Pichu ou
Boro Budur, as irrigações, as grandes vias de transporte, as
tecnologias metalíferas, agropecuárias, as matemáticas, os
calendários, a escritura, a filosofia, as histórias, as armas e as
guerras, mostram o desenvolvimento científico e tecnológico
em cada uma de tais altas culturas, desde muito antes da
formação da Europa como nova id-entidade. ( QUIJANO, 2005
p.122,123)

O conceito de modernidade pregado pela Europa, segundo o autor, está pautado no controle
da força de trabalho, do sexo e da raça, tendo como sujeito o eurocentrismo. Destarte, o padrão de
poder configura-se enquanto sistema.
Há, claro, uma relação umbilical entre os processos históricos
que se geram a partir da América e as mudanças da
subjetividade ou, melhor dito, da intersubjetividade de todos
os povos que se vão integrando no novo padrão de poder
mundial. (QUIJANO, 2005 p. 124)

Isto posto, o processo de construção da ideologia ocidental, ocorre a partir da Europa e está
diretamente relacionada à manipulação da força de trabalho que corrobora para sua preeminência
enquanto potência econômica.
Deste modo, por meio do discurso que exalta os valores europeus, essa ideologia atravessa
as gerações estereotipando mulheres, negros, indígenas, e outras minorias, como indivíduos
inferiores,de culturas inferiores o que, de alguma maneira, os empurra para a subalternidade. Homi
K. Bhabha (2013) defende a ideia de que o estereótipo é principal estratégia de fixidez do discurso
eurocêntrico, uma vez que reforça a ideia negativa em relação ao outro que não segue o padrão
proposto pela Europa.
Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia
de discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação
que vacila entre o que está ‘sempre no lugar’, já conhecido,
e algo que deve ser ansiosamente repetido. (BHABHA, 2013,
p. 117)

Para Bhabha (2013), a consolidação do discurso de poder é o que garante o prevalecimento


de uma cultura como superior a outra. O autor considera como “condições e especificações
mínimas” do discurso acerca do poder:
É um aparato que se apoia no reconhecimento e repúdio das
diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica
predominante é criação de um espaço para “povos sujeitos”
através da produção de conhecimentos em termos dos quais
se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa de
prazer/desprazer. Ele busca legitimação para suas estratégias
através da produção de conhecimentos do colonizador
e do colonizado que são estereotipados mas avaliados
antiteticamente. ( BHABHA, 2013 p.123)
157 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

Nesse sentido, o corpo da mulher e sua força de trabalho segue estereotipados, e, quanto
mais inferior sua cultura for considerada, mais a mulher será subjugada e levada a subserviência.

Subalternidade e a Mulher Indígena


Em seu sentido dicionarizado,a palavra subalternidade diz respeito ao estado de dependência,
subserviência, subordinação e inferioridade ao qual se encontra ou se submete um indivíduo. Para
Spivak (2010, p. 12), o termo visa descrever “as camadas mais baixas da sociedade construídas pelos
modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade
de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.”
A autora corrobora com os estudos citados anteriormente ao inserir nesse contexto de
debates a mulher subalterna. Para a autora, se o indivíduo for mulher, negra e pobre, estará envolta
ainda mais pelo empuxo da subalternidade. Deste modo, ao falar do “sujeito colonial” o nativo,
mostra que os grupos considerados como marginais foram pressionados a demonstrar interesse e
respeito pela cultura erudita, que no caso da América- Latina, é a cultura eurocêntrica. Ao tomar por
base essa origem histórica, Spivak (2010), mostra que empurrar indivíduos para a subalternidade
a partir da manipulação da força de trabalho é dar segmento ao projeto imperialista, como vemos
em:
A precária normatividade dessa narrativa é sustentada pelo
substituto supostamente imutável do modo de produção [...]
que intervém para sustentá-la sempre que se tornar aparente
que a história da lógica do capital é a história do ocidente, que
o imperialismo estabeleceu a universalidade da narrativa do
modo de produção e que ignorar o subalterno hoje é - quer
queira quer não - continuar o projeto imperialista( SPIVAK,
2010.p. 97).

No que tange as mulheres indígenas, é importante salientar que as obras em destaque Dois
irmãos e Órfãos do Eldorado refletem como se deu o processo de modernização de Manaus e de
que maneira as mulheres indígenas fizeram parte desse processo: arrancadas de suas comunidade
ou em busca de uma vida mais digna, tais mulheres eram catequizadas e escolarizadas com apenas
um intuito, o de servir e estar digna a servir, uma vez que a cultura indígena era tida como inferior
em relação aos padrões eurocêntricos e as mulheres indígenas deveriam ser “dignas” de ocupar
um espaço longe de sua cultura, um espaço no qual a língua e os costumes do colonizador eram
valorizados e sua cultura materna era totalmente desprivilegiada, conforme Araújo e Torres (2008):
Nos diferentes ciclos econômicos pelos quais passaram a
capital e o Estado do Amazonas, esteve presente o preconceito
étnico articulado pelos processos culturais e sociais. Esta é,
talvez, uma forma de legitimar a exploração da mão-de-obra
indígena e da caboca, no trabalho doméstico e nos demais
tipos de trabalho existentes, inclusive o industrial. A mulher
indígena é inserida no trabalho doméstico, em condições
quase semi-servis. (ARAÚJO E TORRES 2008 p. 2)

Desta maneira, Araújo e Torres ( 2008), assim como Bhabha (2013), apontam que
a justificativa para essa exploração de mão de obra é a estereotipação e o preconceito étnico
notados nos processos de construção das sociedades. Desta maneira, o elemento diferente, o
outro, é subestimado sendo empurrado assim para a margem.
Para tanto, ao longo da história a mulher segue como mão-de-obra não remunerada e
não reconhecida dentro de sua própria casa, desta maneira, o serviço doméstico acompanha a
estereotipação, desqualificando mulheres e as explorando ao longo dos processos de formação da
sociedade e da economia de um povo.
Nas sociedades emergentes a partir da Revolução Industrial, a
posição de desqualificação dos serviços domésticos, acentua-
se, contribuindo para a marginalização das mulheres que são
158 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

transformadas em mão-de-obra barata. Nesse sentido, as


mulheres são exploradas, tanto na condição de dona-de-casa,
quanto nas diferentes ocupações exercidas por elas ao longo
dos processos e ciclos econômicos. (ARAÚJO E TORRES, 2008.
p.2 )

Em La consciência de La mestiza, Anzaldúa (2005, p.704) mostra que a mestiza, de raça


ou de cultura,resulta para a sociedade “em um ser inferior, gera um prole híbrida, uma espécie
mutável, mais maleável.” Neste sentido, a utilização de mão-de-obra indígena feminina pouco ou
não remunerada se dá por acreditar que a mulher indígena é um indivíduo inferior e flexível que
tem por obrigação aceitar qualquer situação e ser fiel e grata a família que a acolheu.
Para que isso ocorra, os elementos de culturas distintas se adaptam uns aos outros, fusionam-
se, criando um novo espaço que mescla a diversidade cultural amazônica, no entanto, esse espaço
resiste às imposições de uma cultura estabelecida como unilateral e pura, pois a mestiza, cria um
terceiro espaço a partir da soma das culturas as quais está inserida.
Ao tentar elaborar uma síntese, o self adiciona um terceiro
elemento que é maior do que a soma de suas partes
separadas. Esse terceiro elemento é uma nova consciência
- uma consciência mestiza - e apesar de ser uma fonte de
dor intensa, sua energia provém de um movimento criativo
contínuo que segue quebrando o aspecto unitário de cada
novo paradigma.” ( ANZALDÚA, 2005. p. 707)

Para Anzaldúa (2005, p. 706), esse contato e choques de cultura, cria uma ambivalência na
mestiza, e ela, como ser mutável que é, mantêm-se flexível, afastando-se de objetos e costumes
cristalizados buscando uma perspectiva que inclui ao invés de excluir: “A nova mestiza enfrenta tudo
isso desenvolvendo uma tolerância às contradições, uma tolerância às ambiguidades [..]aprende a
equilibrar as culturas.”
Destarte, com o choque de culturas tão diferentes entre colonizador e colonizados, surgem
novas culturas, entretanto, tais culturas surgem com traços de resistência uma vez que abarcam,
não apenas a cultura ensinada pelo colonizador, mas também traços de sua cultura de origem.
No entanto, ainda que exista resistência na mulher indígena, pode-se afirmar que a
exploração de seu trabalho doméstico, muito tem a ver com esse choque de culturas uma vez
que convier em uma outra realidade as fragiliza e as dificuldades por elas enfrentadas fora de seu
espaço de origem, acabam sendo uma porta para a subalternidade.
O indígena torna-se frágil fora da sociedade-não-india, o
ethos que perpassa a vida desse sujeito não se efetiva fora
da comunidade étnica a qual pertence. Na ausência de um
sentido de pertencimento a um grupo identitário, torna-se
sujeito fácil de exploração e cooptações de diferentes ordens.
Em função disso muitas mulheres indígenas se submetem às
condições de exploração, no trabalho doméstico (ARAÚJO E
TORRES, 2008. p. 5)

Isto posto, destaca-se nas obras de Milton Hatoum em questão, o reflexo de uma sociedade
em formação, sociedade esta na qual a contribuição cultural indígena é omitida e a presença
“civilizatória” do colonizador valorizada. Neste sentido, fora de sua cultura de origem, Florita e
Domingas veem-se fragilizadas e encontram distinção na servidão de famílias mais afortunadas e,
ainda que seus traços de resistência existam, sua cultura desprivilegiada no ambiente manauara, as
conduz para a ocupação de espaços subalternos, não reconhecidos e não valorizados.

Florita e Domingas: Reflexo da Subalternidade Feminina Indígena na


Literatura Hatouniana
Em Dois irmãos e Órfãos do Eldorado, nota-se uma profunda reflexão crítica a cerca das
mulheres indígenas da Amazônia. Segundo Araújo e Torres (2008, p.2) as mulheres indígenas, em
159 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

sua maioria, saiam de suas comunidades e iam para a cidade grande em busca de uma vida mais
segura e confortável, “que na expectativa de melhoria das condições de vida e trabalho, deslocam-se
de seus lugares de origem em busca de educação formal e são adsorvidas no trabalho domésticos”
ou então, eram arrancadas de suas comunidades pelas missões religiosas com a desculpa de serem
escolarizadas e catequizadas para que assim, pudessem alcançar uma vida mais digna, longe das
constantes dificuldades enfrentadas por seus grupos sociais por conta da crescente urbanização das
cidades da região Amazônica, principalmente a cidade de Manaus.
Domingas fora arrancada de sua comunidade indígena e passou por um doloroso processo
de esquecimento de sua cultura. Era obrigada, sob pressão de palmatórias, a aprender as orações
da igreja católica e a deixar à margem suas próprias crenças. Ainda menina fora levada à Zana para
servi-lhe de doméstica e passa a vida toda dormindo no fundo do quintal.
Na época em que abriram a loja, uma freira, Irmãzinha de
Jesus, ofereceu-lhes uma órfã, já batizada e alfabetizada.
Domingas, uma beleza de cunhantã, cresceu nos fundos
da casa, onde havia dois quartos, separados por árvores e
palmeiras.(HATOUM, 2000, p 41)

Ainda que na obra Dois irmãos, não se note a presença clara da palavra escravidão, a acepção
deste conceito aparece de forma velada, como podemos perceber no trecho acima, o qual mostra
a analogia a situação da senzala, que ficava separada das casas dos senhores, e quando se fala
em Domingas na narrativa, como vemos em: “meio escrava,meio ama”. Domingas também fora
trocada por móveis ,o que leva o leitor a crer ainda mais no caráter escravista ao qual Domingas
estava submetida:
Trouxe uma cunhantã para vocês”, disse a irmã. “Sabe fazer
tudo, lê e escreve direitinho, mas se ela der trabalho, volta
para o internato e nunca mais sai de lá.” Entraram na sala,
onde havia mesinhas e cadeiras de madeira empilhadas num
canto. “Tudo isso pertencia ao restaurante do meu pai”, disse
a mulher, “mas agora a senhora pode levar para o orfanato.”
Irmã

Damasceno agradeceu. Parecia esperar mais alguma coisa.


Olhou para Domingas e disse: “Dona Zana, a tua patroa, é
muito generosa, vê se não faz besteira, minha filha”. Zana
tirou um envelope do pequeno altar e o entregou à religiosa.
As duas foram até a porta e Domingas ficou sozinha, contente,
livre daquela carrancuda.(HATOUM, 2000, p.49)

A descrição da freira em relação a Domingas, deixa a tona o fato de que a catequização e


ocidentalização da indígena fora feito para fins de servidão. Nesse sentido ainda que Domingas
conheça as orações e preceitos da fé cristã, seu espaço na narrativa é subalterno igualando-se à
Zana, segundo o narrador da obra “ apenas na reza”.
Em Dois irmãos, percebe-se ainda, a analogia à escravidão a qual Domingas era submetida,
quando Yaqub enfurecido por ser roubado pelo irmão Omar, sugere aos pais a venda de tudo,
inclusive de Domingas
Yaqub passou da acusação à cobrança. Não ia sossegar
enquanto o irmão não lhe devolvesse os oitocentos e vinte
dólares roubados. Uma fortuna! A poupança de um ano de
trabalho. Um ano calculando estruturas de casas e edifícios
na capital e no interior. Um ano vistoriando obras. Zana devia
conhecer essa história, e aí sim, ela ia entender o verdadeiro
caráter do caçulinha dela, o peludinho frágil. Mimem esse
crápula até ele acabar com vocês! Vendam a loja e a casa!
Vendam a Domingas, vendam tudo para estimular a safadeza
dele! .(HATOUM, 2000 p.80)
160 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

Muito embora Domingas tenha sido catequizada, ela não esquece totalmente sua cultura
de origem, observa-se isso quando ela faz os pássaros de madeira para Yaqub, quando cuida das
doenças de Omar utilizando remédios feitos com ervas, como vemos em: “Zana esperava Halim
sair, Domingas fervia água com folhas de crajiru e o Caçula ficava de cócoras ao lado da bacia,
recebendo o tratamento da mãe.”(HATOUM, 2000 p.133)
O entre-lugar formado por Domingas abarca a cultura nova, do colonizador, mas também
traz consigo traços de sua cultura de origem que lhe fornece um grande conhecimento da Amazônia
como forma de resistência de sua cultura de matriz indígena, como se nota em:
Aqui embaixo, na calçada suja, o corpo de Domingas
debruçava-se sobre o tabuleiro, as mãos apalpavam os olhos
de um peixe. Ela resmungava: “Esse matrinxã já foi fresco,
agora serve para gato de rua”. Adamor se irritava com as
fisgadas de Domingas. Ele queria esvaziar o tabuleiro na nossa
rua, mas minha mãe era exigente, ranzinza, não comprava
peixe liso: “São reimosos, não prestam, dão doença de pele”.
Os dois discutiam, chamavam a patroa, Domingas tinha razão.
Na escolha dos peixes minha mãe triunfava, era vitoriosa, se
orgulhava disso. .(HATOUM, 2000 p.106)

Em Dois irmãos, o narrador reconhece a importância de Domingas para a narrativa e


ressalta que a obra “depende dela”. Ainda assim, mesmo ocupando lugar fundamental para que
a narrativa se desenvolva, os relatos sobre a indígena na obra mostram o quão sofrida fora sua
vida e que a indígena alimentava desejos de liberdade, e ainda que “educada” e catequizada nada
impediu que ela ocupasse um espaço subalterno de servidão.
A cunhantã mirrada, meio escrava, meio ama, “louca para
ser livre”, como ela me disse certa vez, cansada, derrotada,
entregue ao feitiço da família, não muito diferente das outras
empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas pelas
religiosas das missões, mas todas vivendo nos fundos da casa,
muito perto da cerca ou do muro, onde dormiam com seus
sonhos de liberdade. .(HATOUM, 2000 p.43)

Florita, de Órfãos do Eldorado,por sua vez, é resgatada por Almerindo, caseiro de Amando
e, segundo o narrador, ela desiste de uma fuga:”não quis fugir com os preguiçosos , largou a família
para trabalhar e viver melhor.” (HATOUM, 2008 p.32) ..Assim como Domingas, Florita é batizada
no cristianismo e educada para servir à uma família rica. Florita traduz para Arminto, o menino ao
qual dedicou boa parte de sua vida, as narrativas orais indígenas que eles ouviam em LGA2. Após
o “resgate” da jovem, assim como Domingas, a indígena Florita também passa por um processo de
ocidentalização, é catequizada e escolarizada,assim como Domingas, para fins de servidão.
Meu pai levou a moça para o palácio branco, e lhe comprou
roupa e sandálias. Em Vila Bela ela estudou e ganhou um
nome, com batismo cristão, festejado. Amando dizia que era
uma cunhantã de confiança, e que ele respeitava e até ajudava
as pessoas de confiança. Essa moça me criou. A primeira
mulher na minha memória. Florita (HATOUM, 2008 p.32).

Florita servia a uma família rica que, assim como a família à qual Domingas servia, também
fazia grandes doações à igreja católica, como mostrado pelo narrador de Órfãos do Eldorado em:
“Depois de sua morte, eu soube que ele havia sido um verdadeiro filantropo. Dava roupa e comida
ao orfanato das carmelitas, ajudara a construir o palácio episcopal e a restaurar a cadeia pública.”
(HATOUM, 2008 p.14)
A personagem passa a vida na subalternidade, servindo à família e criando Arminto. Uma
das consequência da subalternidade para a mulher indígena é retratada na narrativa por meio de

2 LGA: Língua geral Amazônica. Sobre o conceito de LGA e sua importância na história da Amazônia ver FREIRE, José
Ribamar Bessa. Rio Babel - A História Social Das Línguas na Amazônia p. 41-89. Rio de Janeiro. EDUERJ/ATLANTICA 2004
161 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

Florita; o menino ao qual Florita dedica sua vida a abusa:


Minha maior dúvida naquela época era saber se o silêncio
hostil que nos separava era culpa minha ou dele. Eu ainda
era jovem, acreditava que o castigo por ter abusado de Florita
era merecido; por isso, devia suportar o peso dessa culpa.
(HATOUM, 2008 p.09)

Assim como Domingas, Florita apresenta um grande conhecimento da cultura amazônica,


podemos citar neste trabalho a LGA, que, conforme Ribamar (2004), fora uma língua que surgiu na
Amazônia para facilitar a comunicação entre os indígenas e os colonizadores, a qual é retratada na
narrativa como a língua que Florita dominava . Florita também interpretava os sonhos de Arminto:
“ Abandonar Florita? Como eu podia abandonar a intérprete dos meus sonhos” (HATOUM, 2008. p.
34), ela os reconhecia como presságio, fato que demonstra a presença de sua resistência cultural.
Florita fora empurrada para a subalternidade completa ao ser abandonada pelo menino que
cuidou a vida toda. Após ser desamparada por Arminto quando este decide vender a casa em que
moravam, Florita, expulsa pelo novo proprietário de um lugar ao qual dedicou sua vida, encontra
como único meio de sobrevivência, a venda de beijus, ocupando um espaço ainda mais subalterno
que o anterior.
Uma semana depois da minha partida, Becassis vendeu as
duas propriedades para a família Adel. No dia seguinte Florita
teve que sair da casa. Estiliano alugou um quartinho para ela
no porto de Santa Clara. E Leontino By ron deu a Florita um
tabuleiro para vender beijus e queijo de coalho. (HATOUM,
2008. p. 38)

O novo espaço subalterno ocupado pela indígena, a oprime e a infelicidade trazida por
consequência desse lugar é apontada pela personagem, tal infelicidade gera angústia e um desejo
de morte como fim de seu sofrimento e cansaço:
Tu ainda tiveste uns dias de felicidade, ela disse, sem olhar
para mim. Quem nunca teve isso merece viver? A voz de
Florita não me recriminava, não queria me culpar. E nem era
voz de ameaça.(HATOUM, 2008.p. 42)

Florita, assim como Domingas, anseia sua liberdade “ Se eu fosse mais nova, ia embora
desta terra, disse Florita. - Para onde? - Para outro mundo.” (HATOUM, 2008. p.41). No entanto,
Florita tem seu fim trabalhando, é encontrada morta sobre seu tabuleiro de beiju, no qual alcançou
o auge de sua subalternidade se tornando escrava de seu próprio trabalho autônomo.
Eu colhia jambos rosados quando um homem apareceu.
Empurrava bem devagar o tabuleiro de Florita, e parou ali na
beirada da rua. Fui ver o que ele queria e vi minha Flor deitada
no tabuleiro.

Dormindo no sol?, perguntei.

O homem tirou o chapéu e disse: Acordou morta. (HATOUM,


2008.p.43)

Nesse processo de hibridismo em um espaço heterogêneo, tanto Domingas quanto


Florita incorporam à sua cultura, os dogmas e preceitos da religião cristã, europeia, no entanto, não
esquecem totalmente sua cultura, formando assim um entre-lugar cultural que abarca a cultura
nova e sua cultura de origem. Neste sentido, Domingas e Florita, incorporam elementos da cultura
Ocidental, dando a eles seus próprios significados, e utilizam-se deles para que possam obter
possíveis proveitos, como, por exemplo, uma vida estável, ainda que essa meta seja inalcançável.
Isto posto,é possível afirmar que a obra de Milton Hatoum possui em suas linhas, uma
crítica social profunda, no que tange a miscigenação cultural na Amazônia, deste modo, o entre-
162 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

lugar formado por suas personagens em questão, ocorre como forma de resistência tendo
como objetivo, salientar a diferença cultural de povos que tentam conviver em um novo espaço
de desenvolvimento urbano. Infelizmente, tal espaço privilegia alguns, deixando á margem do
desenvolvimento os povos nativos da região, e a mulher indígena, ao ser inserida ocupa um lugar
inferior, semi-servil, acontecimento representado pelas indígenas em destaque.
Como mencionado anteriormente, tanto Domigas quanto Florita, passam por processos
de esquecimento de sua cultura para que possam tornar-se “civilizadas” e aceitas na sociedade.
Ambas são criadas de famílias ricas, ambas designadas à cuidar dos filhos de seus patrões, ambas
lembram com medo, ou forçadamente, suas origens, sua língua materna e sua religião. Ambas são
doutrinadas e batizadas na igreja católica, não para serem fiéis, mas para servir à seus fiéis, tendo
em vista que seus patrões faziam grandes doações para a igreja .
Ainda que catequizadas e escolarizadas, ambas sofrem as consequências da subalternidade,
como a violência simbólica, o estupro e o silenciamento e a subserviência. Ainda que sonhem com
uma liberdade ela torna-se distante, uma vez que o espaço ao qual estão inseridas as empurra
para a subalternidade pela falta de opções. Assim, de acordo com Araújo e Torres (2008), a mulher
indígena da Amazônia:
Mesmo consciente da situação de exploração muitas
mulheres indígenas, sem oportunidades de trabalho, podem,
facilmente, não sair da condição de empregadas domésticas.
A baixa escolaridade e a falta de treinamento, impedem que
elas exerçam outras ocupações mais valorizadas econômica e
socialmente.(ARAÚJO E TORRES 2008 p. 5)

Isto posto é possível considerar que a chegada da mulher indígena a Manaus se deu
reservando a ela um espaço subalterno e limitado que não lhes permitia dignidade e justiça,
apenas lhe guardava uma casa para limpar e uma família para servir, episódio representado por
Florita e Domingas, nas obras hatounianas em questão, o que deixa nítido a representação, por
meio da Literatura, das relações de manipulação da força de trabalho e interações sociais dos povos
da Amazônia.

Considerações Finais
Pode-se considerar que a Literatura tem um espaço que supera o tempo, guarda ações
humanas capazes de influenciar futuras gerações,ela é uma expressão social transformadora de
consciência, que reflete os anseios e incômodos de um povo.
Para tanto, a análise da Obra de Milton Hatoum, não é apenas uma marcadora de determinada
paisagem e espaço, ela transcende esse olhar, abarcando uma sociedade em constante conflito no
que diz respeito às culturas que a ela estão inseridas.
Estudar tais obras torna-se de grande necessidade, uma vez que elas refletem um tempo
de formação de uma sociedade, uma situação na qual grupos menos abastados da sociedade
de Manaus eram excluídos da modernização que alí chegara e a mão de obra indígena feminina
era explorada de forma desumana. Assim, uma das formas de serem inseridas, à modernização
era serem catequizadas para servir os grandes poderosos, detentores da riqueza que estava em
evidência no momento, mas essa riqueza, chegava e saía sem pelo menos tocar na mão dos
subalternos, uma fortuna produzida por eles, mas para outros.
Examinar,pois, com perseverança estes processos de interações culturais por meio da obra
de Milton Hatoum faz-se de grande importância, uma vez que demanda uma visão de resistência
de povos que sofrem práticas excludentes no processo de urbanização de Manaus.
Neste sentido, esses processos de permutação da cultura, age, ainda para melhor
entendermos como e por qual motivo a ocidentalização indígena fazia-se e faz-se necessária,
principalmente por fins religiosos na Amazônia.
Destarte, este processo proporcionam uma larga análise voltada a responder a tais
questionamentos, haja vista que, explicando o passado, por meio da literatura, é possível entender
melhor as relações estabelecidas hoje pelos povos que vivem no território amazônico, bem como
sua cultura e os processos pelos quais fora formada.
163 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019

Referências
ANZALDÚA, Glória. La consciência de la mestiza/ Rumo a uma nova consciência. Revista Estudos
feministas, florianópolis, 13. Setembro-dezembro. 2005. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/
index.php/ref/article/view/S0104-026X2005000300015>. Acesso em: 03 de Junho de 2018.

ARAÚJO E TORRES. Wagner dos Reis marques e Iraildes caldas. Trajetória de vida e de trabalho
de mulheres indígenas em Manaus. Fazendo Gênero 8 - corpo violência e poder. Florianópolis,
25 a 28 de Agosto de 2008. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST19/Araujo-
Torres_19.pdf>. Acesso em: 15 de Setembro de 2018.

ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III,
1994. Publicado originalmente em O Novo Mundo, 24/03/1873.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. 2. ed. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2013

BOSI, Alfredo, 1936- Dialética da colonização / Alfredo Bosi. — São Paulo : Companhia dasLetras,
1992,

CHIAPPINI, Ligia. AGUIAR, Flávio Wolf de. Literatura e história da América Latina: seminário
internacional, 9 a 3 de setembro de 1993

FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel - A História Social Das Línguas na Amazônia p. 41-89. Rio de
Janeiro. EDUERJ/ATLANTICA 2004

FIGUEIREDO, Eurídice. org. Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de fora: UFJF, 2005

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

______. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

LARAIA, Roque de Barros, 1932- Cultura: um conceito antropológico / Roque 14.ed. de Barros
Laraia. — 14.ed. — Rio de Janeiro: Jorge “Zahar Ed., 2001

PENALVA, Gilson. Identidade e Hibridismo cultural na Amazônia Brasileira: Um estudo comparativo


entre Dois Irmãos e cinzas do Norte, de Milton Hatoum, e A Selva, de Ferreira de Castro. UFPB
2012

QUIJANO, Anibal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.


Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales 2005.

RIBEIRO, Paulo Silvino. “Do que se trata a aculturação?”; Brasil Escola. Disponível em <http://
brasilescola.uol.com.br/sociologia/do-que-se-trata-aculturacao.htm>. Acesso em 08 de junho de
2017.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno falar? Belo Horizonte. Editora UFMG, 2010.

Recebido em 15 de setembro de 2018.


Aceito em 9 de abril de 2019.

Você também pode gostar