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Introdução
O atual interesse pelos estudos que envolvem a Literatura na/da Amazônia, deve-se à
necessidade de um debate sobre a Literatura e a Cultura dessa região, não apenas como espelho
de uma paisagem imóvel, que retrata a diversidade de fauna e flora presentes na região, mas uma
discussão que vise salientar as várias interações sociais que se desenvolveram aqui em função da
presença de vários povos e culturas que compõe o mosaico de nossa identidade cultural.
Os estudos acerca da Literatura de expressão amazônica demandam uma visão dinâmica,
que atente para a representação dos vários povos que aparecem nas narrativas produzidas na ou
sobre a região; tais estudos pedem uma análise de como a sociedade volta seu olhar para os grupos
marginais, principalmente, aos povos indígenas que viveram e ainda vivem por aqui. Durante o
processo de modernização da Amazônia, as mulheres indígenas desenvolveram papéis de extrema
importância, no entanto, por serem indígenas e por serem mulheres, seus espaços, na maioria das
vezes, eram subalternos e passíveis a sofrimentos e a todos os tipos de violência.
Deste modo, por meio da obra de Hatoum, é importante analisar a crítica ao espaço semi-
servil ocupado por mulheres indígenas. Por meio da literatura é possível também, fazer um estudo
detalhado de como povos indígenas ainda são vistos como pessoas desprovidas de cultura, ou,
mesmo que sua cultura seja reconhecida, ainda é tida como inferior, em relação à cultura do
colonizador, fato que os coloca no espaço de modernização de Manaus sempre como subordinados.
É imprescindível ressaltarmos que, até pouco tempo, havia a ideia de que os indígenas
precisavam ser “civilizados”, ou seja, apresentados à cultura ocidental, como mostrado na obra
de diversos teóricos, entre eles, Aníbal Quijano (2005). Deste modo, percebe-se nitidamente
a concepção de que a cultura indígena ainda é entendida como primitiva, rude e sem nenhuma
importância.
As mulheres indígenas, em especial, para ocuparem um espaço de doméstica, como é o caso
das personagens em questão, precisavam passar por um processo de ocidentalização que envolvia
o aprendizado da língua portuguesa e a doutrina cristã. Nesse sentido, a cultura de origem não era
aceita na sociedade amazônica na qual a cultura de matriz europeia fazia-se dominante nos espaços
urbanizados.
Milton Hatoum mostra, nitidamente por meio das personagens Florita em Órfãos do
Eldorado e Domingas, em Dois irmãos, estes aspectos. Para que ambas pudessem ter uma vida
considerada melhor - ainda que de subserviência - deveriam passar por processos de aprendizagem
da cultura do outro e isso incluía a língua do colonizador e sua religião. Entretanto, ainda que
timidamente, sua cultura de origem continua ocupando um espaço considerável em suas ações
cotidianas, nas práticas de cura, no preparo de comidas da região e sobretudo na visão de mundo
e no jeito de ser e fazer.
Considerando que a cultura Latino-americana tem sua base na mistura da cultura indigenista
e europeia, Milton Hatoum, em suas obras, mostra de que forma essa mistura de culturas influenciou
na formação da sociedade das amazônias,em especial, de Manaus, e como a valorização da cultura
eurocêntrica empurra mulheres indígenas para situações semi-servis que beiram a escravidão.
Isto posto, por meio da manipulação da força de trabalho, mulheres indígenas são inseridas
em situações degradantes na modernização das cidades da Amazônia. Destarte, este trabalho
visa investigar de que maneira tais acontecimentos são retratados na obra de Milton Hatoum por
meio das indígenas Domingas e Florita, personagens das obras Dois irmãos e Órfãos do Eldorado,
respectivamente.
Para subsidiar esta pesquisa, far-se-á um paralelo entre a construção histórica da manipulação
da força de trabalho na perspectiva da América Latina, tomando por base, Aníbal Quijano (2005)
Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina e o lugar ocupado pela mulher indígena
na modernização da Amazônia, especificamente da cidade de Manaus, adotando por apoio Araújo
e Torres (2008) Trajetória de vida e de trabalho de mulheres indígenas em Manaus. Para melhor
entendermos o caráter híbrido da literatura hatouniana, far-se-á uma breve discussão acerca dos
conceitos de hibridismo, entrelugar e heterogeneidade, levando em consideração Figueiredo (2005)
Conceitos de Literatura e Cultura e sobre a relação entre os povos de culturas de intenso contato,
Homi K. Bhabha em O local da cultura. (2013).
Desta maneira, para compreender como se dá a relação da mulher que tem sua origem
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pautada na mistura de culturas, com o espaço ao qual esta inclui-se, este trabalho apoiar-se-á em
Anzaldúa (2005), La consciencia de La mestiza, bem como, outros autores que corroboram para o
arcabouço teórico deste trabalho.
Ainda para Figueiredo, o termo hibridismo no âmbito cultural, é utilizado para descrever
culturas criadas em espaços de intenso contato cultural, como é o caso da cidade de Manaus, onde
são ambientadas as obras de Hatoum em questão.
O contato de culturas apresentado nas obras Dois Irmão e Órfãos do Eldorado, do escritor
Milton Hatoum, apresenta diversas etapas, entre elas, o tumulto de se conviver em uma outra
realidade cultural gerada a partir do choque entre culturas diferentes.
1 Fonte: PENALVA, Gilson. Identidade e Hibridismo cultural na Amazônia Brasileira: Um estudo comparativo entre Dois
Irmãos e cinzas do Norte, de Milton Hatoum, e A Selva, de Ferreira de Castro. UFPB 2012.
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Para Cornejo Polar (Apud Figueiredo 2005,p 144), a pluralidade dos signos sociais presentes
no processo de produção literária, cria uma zona de conflitos dentro da obra, uma vez que, desse
modo, pelo menos um elemento será diferente dos demais o que ocasiona em um fenômeno que
ele chamará de “literatura heterogênea”.
Em Hatoum, esses elementos heterogêneos da narrativa estão presentes nas indígenas
Domingas e Florita. Ambas pertencem a um espaço cultural diferente dos demais personagens,
ainda que tenham absorvido a cultura hegemônica, guardam consigo seus traços da cultura
indígena, como, por exemplo, sua língua materna - Florita - e sua medicina tradicional - Domingas.
Ao participar desses diálogos culturais, o indivíduo não pode fechar as portas ao novo,
entretanto, não pode desvincular-se totalmente se suas origens culturais, nesse sentido, os
elementos híbridos e heterogêneos, figuram para a formação de um entre-lugar. Assim, este
conceito age como forma de resistência do colonizado subalterno à imposição de valores trazidos
e impostos pelos europeus.
Ao citar Nubia Hanciau, Figueiredo (2005, p 127) mostra que o entre-lugar se insere nos
conceitos que indicam a existência de um descentramento que reafirma a heterogêneidade dos
povos e nega a existência de uma cultura pura, homogênea e cristalizada. Destarte, a ocorrência de
tais fenômenos corroboram para a dinâmica cultural dos povos da Amazônia.
Para tanto, Quijano (2005) critica a modernidade como fator de superioridade, uma vez
que defende que todas as culturas estão passíveis de desenvolver os avanços e novidades que são
considerados como a ‘modernidade’, fazendo referência direta à cidades da América Latina que se
desenvolveram tecnologicamente antes mesmo de a Europa desenvolver sua identidade.
Na verdade, a estas alturas da pesquisa histórica seria
quase ridículo atribuir às altas culturas não-européias uma
mentalidade mítico-mágica como traço definidor, por exemplo,
em oposição à racionalidade e à ciência como características
da Europa, pois além dos possíveis ou melhor conjecturados
conteúdos simbólicos, as cidades, os templos e palácios, as
pirâmides, ou as cidades monumentais, seja Machu Pichu ou
Boro Budur, as irrigações, as grandes vias de transporte, as
tecnologias metalíferas, agropecuárias, as matemáticas, os
calendários, a escritura, a filosofia, as histórias, as armas e as
guerras, mostram o desenvolvimento científico e tecnológico
em cada uma de tais altas culturas, desde muito antes da
formação da Europa como nova id-entidade. ( QUIJANO, 2005
p.122,123)
O conceito de modernidade pregado pela Europa, segundo o autor, está pautado no controle
da força de trabalho, do sexo e da raça, tendo como sujeito o eurocentrismo. Destarte, o padrão de
poder configura-se enquanto sistema.
Há, claro, uma relação umbilical entre os processos históricos
que se geram a partir da América e as mudanças da
subjetividade ou, melhor dito, da intersubjetividade de todos
os povos que se vão integrando no novo padrão de poder
mundial. (QUIJANO, 2005 p. 124)
Isto posto, o processo de construção da ideologia ocidental, ocorre a partir da Europa e está
diretamente relacionada à manipulação da força de trabalho que corrobora para sua preeminência
enquanto potência econômica.
Deste modo, por meio do discurso que exalta os valores europeus, essa ideologia atravessa
as gerações estereotipando mulheres, negros, indígenas, e outras minorias, como indivíduos
inferiores,de culturas inferiores o que, de alguma maneira, os empurra para a subalternidade. Homi
K. Bhabha (2013) defende a ideia de que o estereótipo é principal estratégia de fixidez do discurso
eurocêntrico, uma vez que reforça a ideia negativa em relação ao outro que não segue o padrão
proposto pela Europa.
Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia
de discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação
que vacila entre o que está ‘sempre no lugar’, já conhecido,
e algo que deve ser ansiosamente repetido. (BHABHA, 2013,
p. 117)
Nesse sentido, o corpo da mulher e sua força de trabalho segue estereotipados, e, quanto
mais inferior sua cultura for considerada, mais a mulher será subjugada e levada a subserviência.
No que tange as mulheres indígenas, é importante salientar que as obras em destaque Dois
irmãos e Órfãos do Eldorado refletem como se deu o processo de modernização de Manaus e de
que maneira as mulheres indígenas fizeram parte desse processo: arrancadas de suas comunidade
ou em busca de uma vida mais digna, tais mulheres eram catequizadas e escolarizadas com apenas
um intuito, o de servir e estar digna a servir, uma vez que a cultura indígena era tida como inferior
em relação aos padrões eurocêntricos e as mulheres indígenas deveriam ser “dignas” de ocupar
um espaço longe de sua cultura, um espaço no qual a língua e os costumes do colonizador eram
valorizados e sua cultura materna era totalmente desprivilegiada, conforme Araújo e Torres (2008):
Nos diferentes ciclos econômicos pelos quais passaram a
capital e o Estado do Amazonas, esteve presente o preconceito
étnico articulado pelos processos culturais e sociais. Esta é,
talvez, uma forma de legitimar a exploração da mão-de-obra
indígena e da caboca, no trabalho doméstico e nos demais
tipos de trabalho existentes, inclusive o industrial. A mulher
indígena é inserida no trabalho doméstico, em condições
quase semi-servis. (ARAÚJO E TORRES 2008 p. 2)
Desta maneira, Araújo e Torres ( 2008), assim como Bhabha (2013), apontam que
a justificativa para essa exploração de mão de obra é a estereotipação e o preconceito étnico
notados nos processos de construção das sociedades. Desta maneira, o elemento diferente, o
outro, é subestimado sendo empurrado assim para a margem.
Para tanto, ao longo da história a mulher segue como mão-de-obra não remunerada e
não reconhecida dentro de sua própria casa, desta maneira, o serviço doméstico acompanha a
estereotipação, desqualificando mulheres e as explorando ao longo dos processos de formação da
sociedade e da economia de um povo.
Nas sociedades emergentes a partir da Revolução Industrial, a
posição de desqualificação dos serviços domésticos, acentua-
se, contribuindo para a marginalização das mulheres que são
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Para Anzaldúa (2005, p. 706), esse contato e choques de cultura, cria uma ambivalência na
mestiza, e ela, como ser mutável que é, mantêm-se flexível, afastando-se de objetos e costumes
cristalizados buscando uma perspectiva que inclui ao invés de excluir: “A nova mestiza enfrenta tudo
isso desenvolvendo uma tolerância às contradições, uma tolerância às ambiguidades [..]aprende a
equilibrar as culturas.”
Destarte, com o choque de culturas tão diferentes entre colonizador e colonizados, surgem
novas culturas, entretanto, tais culturas surgem com traços de resistência uma vez que abarcam,
não apenas a cultura ensinada pelo colonizador, mas também traços de sua cultura de origem.
No entanto, ainda que exista resistência na mulher indígena, pode-se afirmar que a
exploração de seu trabalho doméstico, muito tem a ver com esse choque de culturas uma vez
que convier em uma outra realidade as fragiliza e as dificuldades por elas enfrentadas fora de seu
espaço de origem, acabam sendo uma porta para a subalternidade.
O indígena torna-se frágil fora da sociedade-não-india, o
ethos que perpassa a vida desse sujeito não se efetiva fora
da comunidade étnica a qual pertence. Na ausência de um
sentido de pertencimento a um grupo identitário, torna-se
sujeito fácil de exploração e cooptações de diferentes ordens.
Em função disso muitas mulheres indígenas se submetem às
condições de exploração, no trabalho doméstico (ARAÚJO E
TORRES, 2008. p. 5)
Isto posto, destaca-se nas obras de Milton Hatoum em questão, o reflexo de uma sociedade
em formação, sociedade esta na qual a contribuição cultural indígena é omitida e a presença
“civilizatória” do colonizador valorizada. Neste sentido, fora de sua cultura de origem, Florita e
Domingas veem-se fragilizadas e encontram distinção na servidão de famílias mais afortunadas e,
ainda que seus traços de resistência existam, sua cultura desprivilegiada no ambiente manauara, as
conduz para a ocupação de espaços subalternos, não reconhecidos e não valorizados.
sua maioria, saiam de suas comunidades e iam para a cidade grande em busca de uma vida mais
segura e confortável, “que na expectativa de melhoria das condições de vida e trabalho, deslocam-se
de seus lugares de origem em busca de educação formal e são adsorvidas no trabalho domésticos”
ou então, eram arrancadas de suas comunidades pelas missões religiosas com a desculpa de serem
escolarizadas e catequizadas para que assim, pudessem alcançar uma vida mais digna, longe das
constantes dificuldades enfrentadas por seus grupos sociais por conta da crescente urbanização das
cidades da região Amazônica, principalmente a cidade de Manaus.
Domingas fora arrancada de sua comunidade indígena e passou por um doloroso processo
de esquecimento de sua cultura. Era obrigada, sob pressão de palmatórias, a aprender as orações
da igreja católica e a deixar à margem suas próprias crenças. Ainda menina fora levada à Zana para
servi-lhe de doméstica e passa a vida toda dormindo no fundo do quintal.
Na época em que abriram a loja, uma freira, Irmãzinha de
Jesus, ofereceu-lhes uma órfã, já batizada e alfabetizada.
Domingas, uma beleza de cunhantã, cresceu nos fundos
da casa, onde havia dois quartos, separados por árvores e
palmeiras.(HATOUM, 2000, p 41)
Ainda que na obra Dois irmãos, não se note a presença clara da palavra escravidão, a acepção
deste conceito aparece de forma velada, como podemos perceber no trecho acima, o qual mostra
a analogia a situação da senzala, que ficava separada das casas dos senhores, e quando se fala
em Domingas na narrativa, como vemos em: “meio escrava,meio ama”. Domingas também fora
trocada por móveis ,o que leva o leitor a crer ainda mais no caráter escravista ao qual Domingas
estava submetida:
Trouxe uma cunhantã para vocês”, disse a irmã. “Sabe fazer
tudo, lê e escreve direitinho, mas se ela der trabalho, volta
para o internato e nunca mais sai de lá.” Entraram na sala,
onde havia mesinhas e cadeiras de madeira empilhadas num
canto. “Tudo isso pertencia ao restaurante do meu pai”, disse
a mulher, “mas agora a senhora pode levar para o orfanato.”
Irmã
Muito embora Domingas tenha sido catequizada, ela não esquece totalmente sua cultura
de origem, observa-se isso quando ela faz os pássaros de madeira para Yaqub, quando cuida das
doenças de Omar utilizando remédios feitos com ervas, como vemos em: “Zana esperava Halim
sair, Domingas fervia água com folhas de crajiru e o Caçula ficava de cócoras ao lado da bacia,
recebendo o tratamento da mãe.”(HATOUM, 2000 p.133)
O entre-lugar formado por Domingas abarca a cultura nova, do colonizador, mas também
traz consigo traços de sua cultura de origem que lhe fornece um grande conhecimento da Amazônia
como forma de resistência de sua cultura de matriz indígena, como se nota em:
Aqui embaixo, na calçada suja, o corpo de Domingas
debruçava-se sobre o tabuleiro, as mãos apalpavam os olhos
de um peixe. Ela resmungava: “Esse matrinxã já foi fresco,
agora serve para gato de rua”. Adamor se irritava com as
fisgadas de Domingas. Ele queria esvaziar o tabuleiro na nossa
rua, mas minha mãe era exigente, ranzinza, não comprava
peixe liso: “São reimosos, não prestam, dão doença de pele”.
Os dois discutiam, chamavam a patroa, Domingas tinha razão.
Na escolha dos peixes minha mãe triunfava, era vitoriosa, se
orgulhava disso. .(HATOUM, 2000 p.106)
Florita, de Órfãos do Eldorado,por sua vez, é resgatada por Almerindo, caseiro de Amando
e, segundo o narrador, ela desiste de uma fuga:”não quis fugir com os preguiçosos , largou a família
para trabalhar e viver melhor.” (HATOUM, 2008 p.32) ..Assim como Domingas, Florita é batizada
no cristianismo e educada para servir à uma família rica. Florita traduz para Arminto, o menino ao
qual dedicou boa parte de sua vida, as narrativas orais indígenas que eles ouviam em LGA2. Após
o “resgate” da jovem, assim como Domingas, a indígena Florita também passa por um processo de
ocidentalização, é catequizada e escolarizada,assim como Domingas, para fins de servidão.
Meu pai levou a moça para o palácio branco, e lhe comprou
roupa e sandálias. Em Vila Bela ela estudou e ganhou um
nome, com batismo cristão, festejado. Amando dizia que era
uma cunhantã de confiança, e que ele respeitava e até ajudava
as pessoas de confiança. Essa moça me criou. A primeira
mulher na minha memória. Florita (HATOUM, 2008 p.32).
Florita servia a uma família rica que, assim como a família à qual Domingas servia, também
fazia grandes doações à igreja católica, como mostrado pelo narrador de Órfãos do Eldorado em:
“Depois de sua morte, eu soube que ele havia sido um verdadeiro filantropo. Dava roupa e comida
ao orfanato das carmelitas, ajudara a construir o palácio episcopal e a restaurar a cadeia pública.”
(HATOUM, 2008 p.14)
A personagem passa a vida na subalternidade, servindo à família e criando Arminto. Uma
das consequência da subalternidade para a mulher indígena é retratada na narrativa por meio de
2 LGA: Língua geral Amazônica. Sobre o conceito de LGA e sua importância na história da Amazônia ver FREIRE, José
Ribamar Bessa. Rio Babel - A História Social Das Línguas na Amazônia p. 41-89. Rio de Janeiro. EDUERJ/ATLANTICA 2004
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O novo espaço subalterno ocupado pela indígena, a oprime e a infelicidade trazida por
consequência desse lugar é apontada pela personagem, tal infelicidade gera angústia e um desejo
de morte como fim de seu sofrimento e cansaço:
Tu ainda tiveste uns dias de felicidade, ela disse, sem olhar
para mim. Quem nunca teve isso merece viver? A voz de
Florita não me recriminava, não queria me culpar. E nem era
voz de ameaça.(HATOUM, 2008.p. 42)
Florita, assim como Domingas, anseia sua liberdade “ Se eu fosse mais nova, ia embora
desta terra, disse Florita. - Para onde? - Para outro mundo.” (HATOUM, 2008. p.41). No entanto,
Florita tem seu fim trabalhando, é encontrada morta sobre seu tabuleiro de beiju, no qual alcançou
o auge de sua subalternidade se tornando escrava de seu próprio trabalho autônomo.
Eu colhia jambos rosados quando um homem apareceu.
Empurrava bem devagar o tabuleiro de Florita, e parou ali na
beirada da rua. Fui ver o que ele queria e vi minha Flor deitada
no tabuleiro.
lugar formado por suas personagens em questão, ocorre como forma de resistência tendo
como objetivo, salientar a diferença cultural de povos que tentam conviver em um novo espaço
de desenvolvimento urbano. Infelizmente, tal espaço privilegia alguns, deixando á margem do
desenvolvimento os povos nativos da região, e a mulher indígena, ao ser inserida ocupa um lugar
inferior, semi-servil, acontecimento representado pelas indígenas em destaque.
Como mencionado anteriormente, tanto Domigas quanto Florita, passam por processos
de esquecimento de sua cultura para que possam tornar-se “civilizadas” e aceitas na sociedade.
Ambas são criadas de famílias ricas, ambas designadas à cuidar dos filhos de seus patrões, ambas
lembram com medo, ou forçadamente, suas origens, sua língua materna e sua religião. Ambas são
doutrinadas e batizadas na igreja católica, não para serem fiéis, mas para servir à seus fiéis, tendo
em vista que seus patrões faziam grandes doações para a igreja .
Ainda que catequizadas e escolarizadas, ambas sofrem as consequências da subalternidade,
como a violência simbólica, o estupro e o silenciamento e a subserviência. Ainda que sonhem com
uma liberdade ela torna-se distante, uma vez que o espaço ao qual estão inseridas as empurra
para a subalternidade pela falta de opções. Assim, de acordo com Araújo e Torres (2008), a mulher
indígena da Amazônia:
Mesmo consciente da situação de exploração muitas
mulheres indígenas, sem oportunidades de trabalho, podem,
facilmente, não sair da condição de empregadas domésticas.
A baixa escolaridade e a falta de treinamento, impedem que
elas exerçam outras ocupações mais valorizadas econômica e
socialmente.(ARAÚJO E TORRES 2008 p. 5)
Isto posto é possível considerar que a chegada da mulher indígena a Manaus se deu
reservando a ela um espaço subalterno e limitado que não lhes permitia dignidade e justiça,
apenas lhe guardava uma casa para limpar e uma família para servir, episódio representado por
Florita e Domingas, nas obras hatounianas em questão, o que deixa nítido a representação, por
meio da Literatura, das relações de manipulação da força de trabalho e interações sociais dos povos
da Amazônia.
Considerações Finais
Pode-se considerar que a Literatura tem um espaço que supera o tempo, guarda ações
humanas capazes de influenciar futuras gerações,ela é uma expressão social transformadora de
consciência, que reflete os anseios e incômodos de um povo.
Para tanto, a análise da Obra de Milton Hatoum, não é apenas uma marcadora de determinada
paisagem e espaço, ela transcende esse olhar, abarcando uma sociedade em constante conflito no
que diz respeito às culturas que a ela estão inseridas.
Estudar tais obras torna-se de grande necessidade, uma vez que elas refletem um tempo
de formação de uma sociedade, uma situação na qual grupos menos abastados da sociedade
de Manaus eram excluídos da modernização que alí chegara e a mão de obra indígena feminina
era explorada de forma desumana. Assim, uma das formas de serem inseridas, à modernização
era serem catequizadas para servir os grandes poderosos, detentores da riqueza que estava em
evidência no momento, mas essa riqueza, chegava e saía sem pelo menos tocar na mão dos
subalternos, uma fortuna produzida por eles, mas para outros.
Examinar,pois, com perseverança estes processos de interações culturais por meio da obra
de Milton Hatoum faz-se de grande importância, uma vez que demanda uma visão de resistência
de povos que sofrem práticas excludentes no processo de urbanização de Manaus.
Neste sentido, esses processos de permutação da cultura, age, ainda para melhor
entendermos como e por qual motivo a ocidentalização indígena fazia-se e faz-se necessária,
principalmente por fins religiosos na Amazônia.
Destarte, este processo proporcionam uma larga análise voltada a responder a tais
questionamentos, haja vista que, explicando o passado, por meio da literatura, é possível entender
melhor as relações estabelecidas hoje pelos povos que vivem no território amazônico, bem como
sua cultura e os processos pelos quais fora formada.
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