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e-book:

os desafios
da produção
escrita em
sala de aula
A narrativa e a oralidade como
mecanismos para criar e projetar
cenários de aprendizagem em
sala de aula – da escrita autoral à
digestão das Ciências.
Helenice Schiavon
ín
página

2 Ah, a escola!

di 5 Minhas memórias de base

ce
8 O Contexto

9 O currículo? Ora, o currículo!

10 Equação e premissa

13 É preciso emocionar

14 É proibido calar

15 Toda a forma de se expressar vale a pena

16 A Oralidade

17 Tudo muito inspirador, mas, como fazer?

18 Cuidado para não se deixar enganar

20 Esse é ou não é o fundamento da Ciência?

21 Mudar o cenário

23 Narrar, narrar, narrar

26 Então, do que esta tecnologia é mesmo capaz?

27 Um presente adocicado

31 O laço de fita

32 Feito por

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Ah, a escola!

Photo by Sebastián León Prado on Unsplash


Parece bem óbvio pensar que todas as pessoas que já passa-
ram pela experiência da escola têm em seu acervo de memórias, de
uma forma ou de outra, a lembrança de um professor (para o bem
e para o mal). Eu mesma faço parte de um seleto grupo nas redes
sociais, cuja função é revitalizar as memórias de infância, adolescên-
cia e juventude de nosso antigo bairro. Dentre as lembranças que
surgem, a grande maioria está ligada à experiência que tivemos na
escola. Ali mesmo, entre quase desconhecidos, deixamos todos
brotar comentários sobre o professor mais implicante, o mestre mais
simpático, o que sempre nos deixava de exame, o que ainda está
vivo (!)... Muitas fotos são postadas, inúmeros nomes são lembra-
dos, e proporcionalmente grande é o empenho de nos reconhecer-
mos em tudo isso.
Nesse grupo recente e numeroso, a imensa maioria nunca se
viu na vida – nem no passado. O que nos une, porém, é a memória
da escola enquanto território, enquanto lugar destinado à experiên-
cia. Impossível passar incólume a ela; até mesmo para aqueles que

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hoje já estão tão longe desse lugar – física e emocionalmente. Não
é o meu caso. Sou professora há trinta anos e, confesso, ainda lá
reinvento experiências todo dia, e nele, várias vezes.
Esses momentos despreocupados e quase anônimos no grupo
do bairro têm me dado uma cota de emoção singular, contribuindo
para alimentar a anima reinventora que sei que está em mim desde
sempre. Esses dias têm sido como um estímulo incessante para ha-
bituar o olhar para as pequenezas e não para todos os elementos
da cena. Significa que, por este e outros motivos, a cada manhã
que se inicia não é propriamente o espaço da escola que me recebe
na sua (im) perfeição, tampouco são os alunos em sua derradeira
(des) obediência que ali se enfileiram; muito menos são as paredes
e corredores que levam, vão e voltam. Esses momentos (e tantos
outros fora da escola) têm ensinado meus olhos a não ver apenas a
cor que ela sempre tem, mas também o seu tom, valor e saturação.
É como se, apesar de ter o propósito de pintar cenas em aqua-
rela, vejo-me a pintá-las primeiro em nanquim: a cor há de ser a do
petróleo, o papel branco e o pincel, macio e longo. O elemento
mágico, a água. A tarefa: diluir, encontrar tons, valores e saturação
para a cor mais densa que ali está, a que vem do nanquim. Assim é
a sala de aula. A tarefa do professor é montar uma paleta a partir
de uma única cor – aquela que está aparentemente disponível,
sempre disposta a enganar nossos olhos.
Alguns podem chamar a isso de ingenuidade. Outros, de
poesia. Alguns, de inovação (ou antes, renovação). Haverá quem
nomeará tudo como anima... Para uma boa parcela das pessoas
não passará de teimosia estar neste território sempre a se reinven-
tar. Eu mesma penso que o que se dá é muito simples: quem decide
estar na escola (por tanto tempo), mesmo com uma paleta que se
insiste mostrar monocromática todos os dias, é porque se deixou
contaminar por sua magia e por sua lógica.
A escola é um mundo. Ou um protótipo de mundo. A vida está ali

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travestida de saber pedagógico; isso é o que é. Por este motivo,
muitos de nós, professores ou não, nunca esquecemos as experiên-
cias que ali acontecem – mesmo que tenham se dado há mais de
trinta anos; mesmo que desde muito tempo não tenhamos mais
pisado ali. E não importa o quanto se diga sobre a obsolescência da
escola, ela continua sendo o nosso território, aquele que tão bem
abrigou - em algum momento e por algum minúsculo motivo - as
nossas almas piratas.
O que se abstrai daí é que não é possível captar as experiên-
cias da escola senão pela paixão. E disso sabemos todos, professo-
res e alunos. Neste sentido, pouco importa se as motivações sejam
mais (ou menos) práticas: tanto estará ali o aluno já empenhado em
construir um futuro, quanto aquele que lá pretende viver seu primei-
ro amor. O professor que faz essa leitura da escola certamente será
generoso nela e encontrará, entre uma paixão e outra, formas e
formas de inovar e persistir e, é claro, apaixonar.
Afortunadamente, também esses tempos têm sido mesmo genero-
sos: metodologias não faltam e as tecnologias só avançam; basta
treinar o olhar, abrir a mente para o novo que se repete, travestido
de lógica e mudança.
Não cabe aqui debater a seriedade da questão que é fazer
uma gestão inovadora da educação em nosso país. Eximo-me de
trazer ao debate questão tão séria e complexa; não por julgar-me
completamente incapaz de falar sobre isso - ao contrário. Mas sei
que pessoas há que poderão discutir tais questões com mais pro-
priedade do que eu. Sou profissional do “chão da escola” e é disso
que posso falar com mais propriedade: daquilo que acontece lá
dentro, entre um sinal e outro.
Da minha parte devo dizer que, na escola, não bastarão ino-
vações para acompanhar o que ali sempre se dá. Isso porque, neste
ambiente, não é preciso que circule a inovação, mas a lógica pre-
sente nela. O fato que não se deve desconsiderar é que o professor

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sabe, o professor sente, o professor compreende o que faz o aluno
aprender (e se apaixonar). Ele não tem dúvidas sobre o que é im-
portante aprender e qual a melhor maneira de fazê-lo.
Ao menos, quero dizer, isso tudo é muito claro ao professor que se
permite viver a escola como se ela fosse um mundo - com seus cur-
rículos, livros e conteúdo, mas também com todos os tons, valores e
intensidades; com diretrizes e com todos os parâmetros ou “bases” –
que, ao se darem entre seres humanos apaixonáveis, nada mais
são do que pontos de luz, longe de serem faróis.

Minhas memórias de base

Não duvidemos: as discussões sempre são acirradas quando o


que está em debate são os rumos que devem tomar a educação.
Creio mesmo que o único consenso que há é que nunca haverá
consenso. Prova disso é que, em “apenas” 30 anos de sala de aula,
essa não é a primeira vez que me deparo com o desafio de encarar
novos documentos norteadores para a Educação. Lembro-me bem
das vezes em que isso aconteceu e de quanto provocou em mim
curiosidade e também desconfiança. Recordo-me bem das Diretri-
zes Curriculares e muito mais ainda dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, os PCNs.
Só para ilustrar o que se passou comigo e com esse último
documento, os PCNs, vou relembrar um episódio – e, depois de
conhecê-lo, talvez você não me veja da mesma forma: lá no capítu-
lo que discorria sobre a Prática de Produção de Textos, vinha uma
tabela com os “Gêneros sugeridos para a prática de produção de
textos orais e escritos”. Não posso deixar de rir quando me lembro
dos debates dos quais participei e até das orientações que recebi
sobre como deveria incluir os gêneros textuais em minha sala de
aula. Àquela época, ao menos para mim, gênero significava bem
menos do que significa hoje, e entender que também o texto tinha

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um gênero (não no sentido encontrado na nomenclatura literária e
clássica) foi para mim uma grande novidade. A expectativa era alta,
confesso.
Entretanto, lembro-me também que as pessoas exacerbavam
na “autoconfiança”, quero dizer, na própria capacidade de entender
(e explicar) o que seria, de fato, um “gênero textual”: recordo-me
de ter sido orientada a montar uma atividade para meus alunos
para que eles produzissem uma “bula de remédio”.
Até hoje não sei se rio ou choro com isto. Meus alunos certamente
choraram.
Só aos poucos fui entendendo, à custa de muito esforço auto-
ral e de leituras difíceis como Dolz e Bakthin (e sobre esse último
poderia fazer um relato hilário de quando tomei contato com suas
teorias pela primeira vez), que a noção de gênero textual deveria
sempre vir atrelada à função social do texto.
Entretanto, para alguns, isso não foi tão óbvio e a descontextu-
alização do conceito fez penar muita gente, dentre alunos e profes-
sores, provocando em mim, anos mais tarde, uma vergonhazinha
alheia. O fato é que, até hoje, fico imaginando como meus alunos
acharam “útil” aprender a escrever uma bula... E isso pretendia ser
uma ironia.
Agora, o que se nos apresenta é a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), um documento que, em certo sentido, é o ama-
durecimento dos textos de outrora. Não sei de você, mas não consi-
go encarar a nova Base como uma normativa inédita, um documen-
to descontextualizado ou imposto; como também não foram os an-
teriormente escritos. Neste sentido, creio que a BNCC chega até
nós, professores, mais uma vez, sugerindo um contorno (uma luz
indireta) para as nossas práticas, principalmente a partir do entendi-
mento de que devemos pensar na aprendizagem dos nossos alunos
como direito. Não é a toa que, em seus termos, o documento escre-
ve sobre habilidades, competências e direitos. E que, mesmo que

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não haja consenso, ao menos neste ponto, creio que devemos todos
concordar.
O que acabei de escrever diz muito sobre mim e talvez isso
possa lhe interessar: sou desobediente por natureza ou, sendo
menos cruel, teimosa. Mas essa teimosia não me faz cética e inflexí-
vel diante daquilo que é novo para mim. Tampouco fico analisando
as verdades impostas nos documentos que chegam até a minha sala
de aula como sugestões ou exigências. Por isso, sempre carrego
comigo uma lógica (sempre inovadora) de pensar a sala de aula.
Como sou do “chão da sala de aula”, percebo a dinâmica fluida que
ali se apresenta e, por isso, ao pensar o ano letivo, faço-o não em
função do currículo, mas do “projeto” que pretendo desenvolver
com o aluno; de tal forma que ele sempre considere minhas aulas
como uma experiência - da qual possa sempre sair “melhor do que
entrou”. Por isso, quando tenho ou recebo uma ideia ou orientação
metodológica, por exemplo, a primeira coisa que penso não é se ela
se adaptará ao plano que tracei previamente, mas se aquilo que
chega até mim pode contribuir para o projeto do aluno.
Nem sempre isso é tão intuitivo e, para validar algo, é bom se
colocar as ideias em prática; o que não se trata de assumir uma
mera postura de obediência. É algo como uma persistência, travesti-
da de experimento e com toques de curiosidade e autoria... Algo
como não querer conhecer apenas a “cor” de uma ideia, mas,
sobretudo, seu “tom, valor e saturação”... Em palavras diretas: na
minha sala de aula sou eu que primeiro (me) apaixono. Assim, se
for preciso (des) validar, redefinir, assentir ou abster-me de uma
orientação prevista num documento, faço-o ali mesmo; sem plateia
– até porque, cabe lembrar, que sempre vale a máxima de não
querer passar vergonha alheia, amigos. O bom senso sempre esteve
e estará em alta, com ou sem diretrizes, parâmetros ou bases.

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O contexto

Photo by Yannis A on Unsplash


Como quer que seja, sempre vale olhar para o contexto:
muitos são os estudantes que já chegam até nós alfabetizados no
sentido mais amplo, embora poucos sejam os que podem ser consi-
derados letrados emocionalmente. Outros tantos, neste enorme
país, sequer chegam a lugar algum, somente à espera de ser nin-
guém.
Qualquer que seja o caso (e lembrando sempre que todos
estão ali só de passagem) a tarefa dos professores é mesmo a de
piratas que carregam nos ombros um enorme tesouro que, diga-se,
nunca não lhes pertence: a qualquer tempo, e por quanto tempo
durar, é hora de despojar-se dele. Sob esta ótica, parece fazer muito
sentido olhar para as habilidades dos alunos e não perder tempo
para iniciar a refiná-las, na certeza de transformá-las em competên-
cias – aquelas que lhes pertence por direito.

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O currículo? Ora, o currículo!

O currículo? A respeito dele, lembro-me do que diz o mestre


José Pacheco: deve-se “assegurar condições para que a escola seja
agregadora de comunidades e fator de promoção de desenvolvi-
mento, com espaços de cooperação e solidariedade, onde todos
possam fazer as suas aprendizagens, segundo os seus interesses,
capacidades e necessidades”.

O currículo? Ora, o currículo! É assim que entendo essa fala...

Sob o forte argumento de que não foram poucas as vezes que


tive que me por à prova, faço crer que o mesmo tenha se sucedido
com o professor que, porventura, lê estas linhas. Digo isso porque,
embora, em dado momento, tenham quase me convencido de que
o professor devesse ser um missionário e que a educação deveria
ser sempre inovadora, eu nunca me apropriei completamente desta
ideia. Não sou missionária e a educação que respeito não é sempre
inovadora – na linha do moderno, contemporâneo ou vanguardista.
Ao contrário: sou pirata, e a educação que respeito é aquela que
tem no seu cerne uma lógica - essencialmente inovadora, que fun-
ciona como mecanismo para a inovação; sempre protagonizando o
aluno.
Essa forma de ver faz toda a diferença, pois é em nome dessa
pirataria diária que faço caber a minha anima à força, às vezes nos
mesmos cinquenta minutos de sempre, dentro de salas com cadei-
ras perfiladas e ao som do sinal teimoso (ou obediente) que bate
sempre ardido e comprido... É em nome disso tudo que eu, mesmo
com o velho lápis estampado de tabuadas na mão, sou inovadora,
tantas vezes com os mesmos recursos de sempre. Pois que eu sei
que cumpro bem o meu papel de professora quando percebo e
valorizo a autenticidade – a minha e a de meu aluno. Tem sido

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assim, e tanto assim, que, nos últimos tempos, o que sou não tem
cabido em mim e nem em um único lugar. E, é claro, quando dis-
paro a falar sobre o que faço, e como faço, não raro sinto deitar
sobre mim um ou outro olhar calado. Às vezes, quando digo o que
faço e de que maneira faço a minha velha e boa inovaçãozinha
pirata na sala de aula, sinto deitar sobre mim olhares compridos a
perguntar:

Mas, e o currículo? Você é professora mesmo de quê? É isso


que você chama de inovador?

A resposta às vezes vem, e apenas para responder a primeira


pergunta; pois que acredito ser suficiente para calar as demais:

O currículo? Ora, o currículo!

Equação e premissa

Photo by Nicole Honeywill on Unsplash

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Se os livros, os conteúdos, os currículos, as diretrizes, os parâ-
metros (e agora as orientações descritas na BNCC) são documentos
importantes enquanto norteadores das práticas docentes e se o
valor central de tudo isso é o aluno (com suas formas diferentes de
aprender e seus direitos); como, então, equacionar tudo isso na sala
de aula e dentro da escola?

Algumas premissas surgem inconteste:

O processo que se deve priorizar na escola é o da “ensina-


gem” – aquele que pressupõe a troca de saberes; e isso inclui os
saberes de alunos e professores.

A escola é um mundo onde sempre deve haver pessoas dis-


postas a, pelas palavras do mestre José Pacheco, passar pelo pro-
cesso de “ensinagem” – o que se dá, é evidente, pela emoção.

Inovação é lógica, e pode estar presente em mecanismos, tec-


nologias e metodologias – novas ou não.

Aprender é um projeto e ao professor cabe encantar o aluno


para ele.

A autoridade vocal – pela escrita e pela oralidade – deve ser


conferida ao aluno e mediada pelo conhecimento.

É possível “digerir” conhecimento científico e importante é


popularizá-lo.

Aprender prevê desenvolver um pensamento complexo e holo-


gramático.

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Photo by Hermes Rivera on Unsplash
Num exercício de
imaginação, seria como
pensar num menino que,
apesar de ter tanta história
para contar todos os dias,
fosse obrigado a escrever
um texto emoldurado por
parágrafos e letras
maiúsculas...

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É preciso emocionar

Na escola não há tempo a perder. O currículo é extenso e com


diretrizes, parâmetros e bases, há muitos direitos a garantir. Tantas
demandas podem fazer com que o professor perca de vista quem
está diante dele – o aluno...
Tenho até uma teoria que justifica isso: é o prédio escolar que
nos faz a todos perder esta noção de quem está diante de nós.
Sem dúvida, na complexa geografia deste território que é a
escola há um encantamento, um potencial quase mágico. Não raro,
porém (e apesar de todo esforço), submetemos crianças, adolescen-
tes e jovens aos modelos e saberes. Insistimos em fazer despencar
toda a sorte de verdades, fatos e conceitos sobre suas cabeças (e
não quero dizer com isso que todo saber deva fazer sempre pleno
sentido, mas que todo o esforço deve ser pouco para garantir isso)...
É assim, que, na escola, os tempos, as cenas e os lugares se descon-
textualizam como se estivéssemos todos performando num palco do
absurdo; tão distantes estão os conteúdos, os currículos e os livros
das vidas e das almas dos que ali estão. Nem toda obediência do
mundo poderá dar sentido ao conhecimento que escolhemos levar e
perdurar na escola, enquanto não o pensarmos em consonância
com o projeto do aluno. Num exercício de imaginação, seria como
pensar num menino que, apesar de ter tanta história para contar
todos os dias, fosse obrigado a escrever um texto emoldurado por
parágrafos e letras maiúsculas... Imagine-o então, num absurdo
ainda maior, supondo que o texto que ele precisasse escrever não
fosse um qualquer... Mas uma bula de remédio...
Uma escola é um mundo e admiti-la lugar de emoção é essen-
cial. Por isso, pensar estudantes neste território sendo convidados
(ou convocados) a se transformarem imediata e simultaneamente, a
assumir uma identidade coletiva (sem ao menos terem pensado na
própria), a pegar como suas, de uma só vez – muitas vezes com

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mãos ainda tão pequeninas – a autonomia, a responsabilidade e a
liberdade, é algo assustador, para dizer pouco.
E alguém poderia perguntar: ora, e o que isso tem de mal?

À pergunta, uma convicção: impossível é sincronizar as batidas


do próprio coração com outros compassos sem ter passado pelo
encantamento.
Como quer que seja, nada disso seria de todo mal se, antes de
tudo, à porta, houvesse alguém que perguntasse ao menino:

O que você já sabe sobre isso? O que você sabe além disso?

Vamos conversar?

É proibido calar

Conversar? A escola não é lugar para isso, muitos dirão – até


mesmo no meu grupo de bairro...
Ao menos não era. Contra este argumento poder-se-ia disser-
tar muito e, nestas linhas, falar da importância de, na escola, exer-
citar lugares de fala e de escuta, experienciar a comunicação não
violenta e também a escuta ativa, ouvir os silêncios em rodas (e
fazer rodas em rede), chamar os narradores para lhes dizer coisas
boas - sem omitir que também há aquelas que não são motivo de
orgulho... E talvez, neste momento, devêssemos instruir os alunos
sobre os tipos de violência no mundo... Sim, porque às vezes elas
não são tão diretas ou palpáveis, mas são igualmente devastadoras.
A escola é lugar de falar, de ouvir, de aprender e de ensinar que
toda a empatia vale uma vida, mas que a empatia cognitiva pode
salvá-la... A escola, tão imperfeita e monocromática abriga vozes
que precisam ser amplificadas, autorizadas; mesmo que, no mo-
mento seguinte, vejam-se desvalidadas - não pelo professor, mas

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pelas formas de raciocínio que ali se alimentam sob a sua orques-
tração ou regência. Uma das maneiras de conferir autoridade vocal
ao aluno é estimular narrativas orais e escritas (e nas outras lingua-
gens).
Sabe-se, entretanto, que nem sempre a escola é considerada
como território de diálogo. Mais ainda: às vezes, é território do
calar; pois que há muitas formas de se calar alguém.
Como? Ora, por exemplo, desqualificar (criminalizar?) o erro é
uma forma de calar. Limitar a criatividade e o fluxo do pensamento
pelos tempos, períodos e sinais é uma maneira de calar. Encaixotar
conhecimentos, dificultando o pensar hologramático é uma forma
de calar. Exilar o caos que advém da conversa e do movimento dos
corpos é uma forma de calar. E o pior jeito de calar é o de apenas
exigir respostas, especialmente aquelas que sabemos corroborar
enquanto professores.

Toda a forma de se expressar vale a pena

No ambiente escolar é consenso que o texto escrito – muito


mais do que o falado – é o responsável por fazer circular, em sala de
aula, boa parte dos conteúdos previstos nos currículos da Educação
Básica. Para citar alguns exemplos, em torno da escrita (e não da
oralidade) se organizam os livros, os currículos e também as avalia-
ções de aprendizagem. Na escola, normalmente quem perde em
autoridade é a fala, enquanto a escrita reina quase soberana.
É bom entender que a apropriação do código necessário à
escrita (e à leitura) não se dá, nem de longe, de maneira fácil, equâ-
nime e simultânea entre os estudantes. Apenas este fato já justifica-
ria que o discurso oral recebesse um olhar mais atento dos educa-
dores na Educação Básica, e que este fosse aprimorado - não pelo
viés da oratória, mas pelo da funcionalidade, posto que é a oralida-
de que garante, na maior parte do tempo e das situações, a

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identidade do sujeito.
Adicione-se a este motivo que, dentre os estudantes, há aque-
les cujas especificidades são tão complexas – como é o caso dos
disléxicos, por exemplo – que estes encontram dificuldades para
impor seus projetos de aquisição e consolidação de conhecimento
na escola, porque esta não joga luz à autoridade vocal deles e
apenas prioriza a leitura e a escrita. Não se discute a importância
da leitura e da escrita, porém, é preciso compreender que boa par-
cela dos alunos que passam pela sala de aula com elas se desen-
canta, justamente por não encontrarem outras formas de interagir
com o conhecimento, senão por estas vias. Trata-se, sobretudo, de
entender que, enquanto a escrita é um construto social, a fala é um
mecanismo epistêmico; capaz de criar e projetar cenários de apren-
dizagem.

A oralidade

Photo by Andre Guerra on Unsplash

Ao se estimular o uso da voz em sala de aula, instituem-se


novas e instigantes possibilidades ao aluno, como a de permitir que

e-book: os desafios da produção escrita em sala de aula 16


se manifestem – fluidamente - ideias, fatos, conceitos, hipóteses,
deduções... A voz tem uma força peculiar, capaz de dar conta do
pensamento hologramático: o discurso oral é um eterno rascunho,
podendo ser retificado a qualquer tempo e por vontade. A fala apre-
cia participar de atos em rede e, nesta situação, é capaz de organi-
zar ideias, desenvolver analogias e motivar outros raciocínios - a
despeito de nossa insistência, como professores, de achar que
somos sempre os que devemos apresentar os saberes.
As narrativas de experiência pessoal (e também as inventadas),
permitem que o aluno retome contato com os atos da fala e que ele
ganhe autoridade para afirmar, refletir, descrever, relatar e até “per-
formar”. É a narrativa oral, antes mesmo da narrativa escrita, que
cria os cenários de aprendizagem em sala de aula; inclusive e prin-
cipalmente para aqueles que apresentam dificuldades de aprendiza-
gem. Melhor seria se todos os currículos fossem pensados a partir
dela. As referências à oralidade estão na BNCC.

Tudo muito inspirador, mas, como fazer?

A quem deseje valorizar a narrativa oral como mecanismo


epistêmico de aprendizagem é preciso entender que a prioridade
deve ser a de deixar surgir a voz que narra, mantendo o necessário
diálogo com as normativas da Língua, possibilitando aos alunos um
contato com estruturas discursivas diversas (gêneros) e criando cená-
rios para o debate com a realidade, com as subjetividades e com o
próprio projeto de vida (e de escrita) do aluno.
Importante é entender que, apesar de estarmos falando de
oralidade e escrita, o que está no centro de todas as questões não é
apenas o discurso ou o texto. O que se põe em destaque aqui é a
voz, enquanto elemento vivo nas (entre) linhas do que é dito ou
escrito; sem esquecer, contudo, do grão desta voz. A escola é um
mundo e nela se deve achar lugar para tudo isso.

e-book: os desafios da produção escrita em sala de aula 17


Para entender o que se sucede, é bom que se saiba que os
pensamentos que desejamos na escola são os complexos, os holo-
gramáticos, e que para que eles aconteçam, é preciso que circulem
livremente. Dessa forma, é possível que uma imagem, um som, um
cheiro, uma palavra ou até mesmo um silêncio possa provocar um
pensamento. Por este motivo, creio ser essencial transformar a sala
de aula num território de escuta, em que as vozes, amplificadas,
possam circular livremente do oral ao escrito, e se mais acertado for,
do escrito ao oral. Em suma, tênue e generosa deve ser a linha divi-
sória entre a oralidade e a escrita.

Cuidado para não se deixar enganar

Seria isso tudo inovador? Conclua você.


Para colocar luz nesta questão, citarei um exemplo que não se
ajusta somente às aulas de Língua Portuguesa. Tal experiência pode-
ria se dar numa aula de Física, de Sociologia ou de Ciências (pen-
sando no Ensino Fundamental): peça que seus alunos leiam anteci-
padamente, em casa, um texto sobre o conteúdo que debaterão na
aula seguinte, preferencialmente científico, complexo, com termino-
logias específicas, com semânticas próprias, com dados novos e
estudos comparativos – e tudo mais que é do texto escrito neste
gênero. Chame a isso de “metodologia ativa”, uma aula invertida.
Afinal, para ser um professor inovador, é preciso que você se apro-
prie de tecnologias educacionais inovadoras, não é mesmo? Bem,
mais ou menos isso...
Pois bem, diga aos seus alunos que se preparem para uma
apresentação deste texto e deste conteúdo para a classe... Ou para
um debate, se preferir. Certamente, a maioria dos alunos irá deco-
rar trechos, dissertar bravamente sobre o conteúdo e, com algum
empenho e disciplina, dará um panorama consistente do conteúdo
do texto. Restará a você apenas a tarefa de ampliar os conceitos,

e-book: os desafios da produção escrita em sala de aula 18


detalhar, explicar alguns pontos, sem os quais, muitos detalhes
não fariam sentido. Para a maioria – o que inclui você, professor –
esta terá sido a melhor aula do mundo; provavelmente bastante
inovadora.
Nada garante, entretanto, que o que tenha se dado em sua
aula seja mesmo algo inovador. Se o seu aluno se preparar para a
aula, preocupando-se apenas em reproduzir o conteúdo do texto
lido, garantindo-se através da precisão das respostas, então ele terá
perdido a oportunidade de pensar de maneira hologramática. Ade-
mais, se seu aluno não compreender que a aula invertida é uma
tecnologia que ele pode aplicar para qualquer objeto de estudo, sua
aula não terá sido inovadora. E pior, se seu aluno não compreender
que, ao estudar por antecipação e sem a ajuda do professor, ele tem
a chance de formular perguntas (muito mais do que pensar em res-
postas), se ele não se jogar nas incertezas dos conceitos e não for-
mular hipóteses ao invés de consolidar as respostas, então não terá
valido a pena inverter sua aula. A aula invertida, inovadora, só serve
se for para provocar o desejo do aluno em formular hipóteses e
fazer perguntas às quais você, professor, talvez nem saiba respon-
der.
Uma lógica inovadora, ao contrário, subverte os papéis em
sala de aula: os alunos assumem-se mais corajosos para fazer per-
guntas que, humildemente, nem sempre seus professores são capa-
zes de responder.
Estará você pronto para isso?

“A pedra no sapato”

Desafortunadamente, essa é a lógica comum


nas escolas: exigir respostas para avaliar suas
inconsistências. Essa é uma “pedra no sapato”
que valeria outro texto, não é mesmo?

e-book: os desafios da produção escrita em sala de aula 19


Esse é ou não é o fundamento da Ciência?

Photo by Nicole Honeywill on Unsplash


Na maioria das vezes, nós, professores, fechamos nossos ouvi-
dos às lacunas do pensamento dos estudantes, alheios às perguntas
que ficam nos ocos dos conceitos, nos ecos dos valores e fatos. Por
sorte, muitos alunos suprem sozinhos essa inconsistência (ou falta de
oportunidades) para o pensamento e para o discurso na sala de
aula, elaborando, eles mesmos, raciocínios mudos e genuínos,
frutos de perguntas caladas, aquelas que eles fazem a eles mesmos.
E pensar que isso poderia vir em narrativas, sem medo de
errar...
O que ninguém quer admitir é que boa parte dessa paixão
(científica) fica sepultada, lacrada dentro do aluno. Não demora
muito e estas perguntas – que serviriam de alimento para o saber –
sejam engolidas sem mastigar: uma fruta que não vingou... Uma
textura que nunca se sentiu...
Na sala de aula deveria haver, obrigatoriamente, um lugar
para as formas ousadas de narrar... Guardadas as proporções, po-
deria ser uma forma de fazer ciência.

e-book: os desafios da produção escrita em sala de aula 20


A valorização da dialética nas salas de aula abriria uma porta
que teima nunca se escancarar, projetaria cenários de aprendiza-
gem para a digestão e popularização da(s) Ciência(s). Antes de ser
inovação, uma lógica.
Ah, isso sim valeria outros textos, não é mesmo?

Mudar o cenário

É ousado e corajoso dar permissão efetiva aos alunos para que


narrem o que sabem e perguntem o que não sabem. Se assim o
fosse sempre, neste ambiente de tantas vozes narrativas (nas aulas
de Língua Portuguesa e em outras), o professor poderia alternar o
seu papel com o do aluno e ajudá-lo a criar e projetar cenários de
aprendizagem; o que se poderia dar ao:

Narrar um episódio (fato) histórico, não pela voz do narrador


onisciente, que tudo vê e avalia (como é a voz presente nos livros
didáticos, por exemplo), mas pela voz de um personagem (não pro-
tagonista). Neste caso, a aprendizagem passa a ser mais ativa,
posto que os alunos precisam criar hipóteses narrativas e dar a elas
consistência, coerência e clareza.

Criar um ambiente seguro para que os alunos coloquem livre-


mente suas experiências de vida, motivados pela discussão de um
texto, um conceito novo ou de alguma questão da atualidade. Inte-
ressante é que o professor intermedie este processo para não perder
o fio do conhecimento ali mediado e, para isto, deve sempre com-
plementar as manifestações de experiência do aluno pelo viés de
um conceito histórico, social, filosófico, ético, científico etc.

Catalisar falas, conceitos e valores, ou seja, o professor deve


agir sempre como coadjuvante, num diálogo constante com as

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as normativas e possibilidades da Língua.

Conduzir o discurso do estudante para que este produza enun-


ciados constativos (que descrevem ou relatam o estado das coisas)
ou performativos (passíveis de verificação, subjetivos, em 1ª pessoa);
explorando as possibilidades de gêneros textuais, seus contextos e
canais.

Aproximar conteúdos por sua funcionalidade, ou seja, o ato de


narrar pode justificar a aprendizagem de conceitos que não se apro-
ximariam pelas limitações do currículo ou seriação.

Aventurar-se pelo mundo da oratória, levando à sala de aula


esquemas orais que podem amparar discursos escritos ou, oposta-
mente, esquemas escritos que podem amparar discursos orais.

Avaliar pelo desempenho, utilizando-se de registros precisos,


previamente combinados com os alunos. Isso dará consistência às
avaliações de projetos orais, ou aqueles que são de longa duração.

Olhar atentamente para os sujeitos de sua sala de aula e com-


preender que crianças gostam de brincar, de imaginar, de criar...
Adolescentes gostam de falar de si, de assuntos que os incomodam
diretamente... Jovens estão se descobrindo como seres que podem
mudar o mundo.

Criar uma “Ala de Conferências” para a leitura compartilhada


de textos ou pequenas exposições orais.

Criar um ambiente de respeitabilidade na sala, onde haja


lugar para a autoridade vocal; aproveitar-se dela para valorizar
bens humanos: a ética, a solidariedade, a empatia, o direito e a
dignidade.
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Aproveitar-se das ferramentas da retórica para aprimorar, se
for o caso, o discurso oral.

Valorizar as narrativas de experiência e delas se aproveitar


para aprender.

Compreender quais são os objetos de aprendizagem em suas


aulas e desenhá-los como propósitos e produtos (Design Thinking). E
daqui derivaria outro texto, não é mesmo?

Debater mais do que discutir, fazer mais perguntas do que


afirmar; entender o mecanismo.

Aprimorar os discursos orais e escritos de seus alunos e com-


preender os cenários necessários para que a aprendizagem de um
grupo aconteça. Criar vínculo e cumplicidade.

Narrar, narrar, narrar


Photo by Santi Vedrí on Unsplash

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Tão simples e tão complicado, não é mesmo? Que tal se inspi-
rar com mais algumas sugestões?

Se as crianças gostam de jogar, de brincar, de criar e usar a


fantasia, estimule-as a isto. Leve para a sala de aula objetos, ima-
gens, palavras, filmes, cenas, enfim, desperte-os a criar.

Leia uma história e peça para eles ilustrarem. Apresente capas


de livros em que as ilustrações são representações das cenas das
histórias, mas também traga livros com representações de capas
mais expressivas e que exijam abstração, metalinguagem, compre-
ensão e interpretação.

Faça exercícios sensoriais. Trabalhe emoções e sensações, mis-


turando os sentidos como forma de aguçá-los. Proporcione experi-
ências de leitura no escuro, no silêncio, ao pé do ouvido, em am-
bientes barulhentos, silenciosos, coletivos, individuais.

Ensine os alunos a descobrir o leitor interno. Um passo estará


sendo dado no caminho do encontro com o autor que existe em
cada um deles.

Reescreva um texto dos alunos, usando suas capacidades para


tornar suas verdades bonitas.

Encante-os com um texto seu, seja autoconfiante e, sobretudo,


saiba torná-los confiantes, valorizando-os.

Molde os ouvidos dos seus alunos para a escuta. Eles estarão


desenvolvendo uma escuta interna.

Ouça-os sempre.

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Escolha textos para a reescrita. Corrija-os por objetivo: um dia
a ortografia, no outro a pontuação. No outro dia, a coerência. Em
outro ainda, a criatividade. Valorize o que eles têm de mais forte e
não os desvalorize pelo que têm de mais fraco.

Ensine-os a abrir as janelas da emoção e da autoridade.

Da mesma forma, se os adolescentes gostam ou precisam falar


de si, estimule-os. Coloque uma cena, faça perguntas desafiadoras,
estabeleça um ambiente instigante e confiável para que se posicio-
nem sem filtros. Medie suas conversas e, ao final – porque a palavra
final pode ser a sua – faça o contraponto, apresente algo novo, faça
novas perguntas. Este “falar”, estas vozes entrarão nas mentes deles
e sim, eles terão algo a dizer, a escrever. Depois, proceda às corre-
ções dirigidas por objetivos, com o propósito de JAMAIS desvalorizar
suas ideias, mas, se necessário, dar elementos para aprimorá-las
(com leveza) e reconfigurá-las.

“Aperte” o cerco nas correções orais, aproveite os momentos


para ensinar o uso correto de pronomes, a importância do vocabu-
lário, da organização das ideias. E coloque-os para escrever. A escri-
ta não deve desvalorizar o discurso oral. Ensine-os que o caminho é
o mesmo. Aponte formas de fazer isto.

Trabalhe postura, tom, expressividade e fluência. Ensine-os a


ler um texto como se estivessem lendo uma partitura.

Exija o primor autoral. Afinal, já foram encantados, ou antes,


estão permanente e primordialmente encantados: somos todos nar-
radores.

Se os jovens querem mudar o mundo, apresente-os ao

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mundo. Faça-os conhecê-lo através da realidade, promovendo infe-
rências, comparando fatos, orientando-os acerca dos postulados
verdadeiros, dos falsos, dos parcialmente verdadeiros e àqueles com
intenções.

Faça-os compreender que os fatos estão ligados por causas e


consequências, que a temporalidade, o contexto e a intenção são
decisivos.

Faça-os falar, ouvir suas vozes pelo comentário do outro. Ensi-


ne-os a comentar, baseados em fatos e juízos de valor; muito mais
do que apenas criticar ou dar opiniões vazias.

Mostre-lhes a importância do conhecimento dos livros, das


pessoas e de suas vozes. E apresente-lhes versões, saiba sintetizar
as vozes, reduza-as e provoque-os.

Peça a eles que escrevam suas ideias; não porque precisa ava-
liar pelo código escrito, mas porque ele é outra forma de mostrar o
que sabem, de perpetuar o que sabem. E, se preciso, estimule-os a
falar e escrever sobre o que não sabem.

Convença-os de que a escrita só fará sentido se o código não


for limitador dos pensamentos e tiver uma função social importante;
algo que se aproxima muito da ideia de “tornar nossas verdades
bonitas”, da “voz interior” ou ainda da “autoridade vocal”.

Então, do que esta tecnologia é mesmo capaz?

O emprego deste mecanismo social - a narrativa oral - eleva a


autoestima dos estudantes, aproxima-os de seus projetos de escrita
(e de vida) e direciona a aprendizagem para um currículo

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diversificado que contempla a relevância; não importa se pela ciên-
cia ou pela subjetividade.
Isto sem mencionar os impactos que esta tecnologia tem em
uma sala de aula que quer se dizer inclusiva: pela valorização das
vozes narrativas, alunos com dificuldades específicas e de aprendi-
zagem podem ocupar verdadeiramente seus lugares; uma vez que a
autoridade vocal se impõe, ancestralmente, como uma força motriz
em todo ser humano. Na maioria dos casos, o emprego desta tec-
nologia com este grupo de alunos não acentua suas dificuldades. Ao
contrário, ao empregar esta tecnologia em sala de aula, o professor
estará viabilizando o processo de “ensinagem” de todos os alunos,
sem distinção.
Eis aí o que a voz narrativa é, faz e como faz enquanto tecno-
logia social em sala de aula: ela estabelece uma lógica para a aqui-
sição de conhecimento que passa primeiro pela voz interior dos
sujeitos e que pode ser complementada, acrescida, reconstruída e
“ensinada” pelo professor.

Um presente adocicado Photo by Jonny Mansfield on Unsplash

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A este ponto, vou lhe dar uma pequena mostra do encanta-
mento que, certa vez, aconteceu lá pelas bandas da minha sala de
aula – um verdadeiro presente que recebi. Apresento então um
momento de encantamento que se deu comigo e com meus alunos
- de repente e sem aviso; embasbacando a todos. Faço então surgir
a narradora que há em mim, apenas para compartilhar a alegria:

Há um ditado em Yorubá que diz: “as palavras só


precisam de um ouvido adocicado para poder fazer senti-
do”. Repetidamente tenho pensado esta máxima como
professora de Língua Portuguesa. Tantas vezes - brava e
humildemente – sufoquei na alma minhas palavras só para
ouvir as dos meus alunos e lhes dar autoridade vocal –
aquela que os faria aprender mais pelas perguntas do que
pelas respostas. Ofereci gentilmente meus ouvidos, para
que entendessem a beleza de deixar surgir a voz interior (e
também os seus silêncios) – o que faria deles bons e eter-
nos leitores.
Mas nunca esta máxima fez tanto sentido para mim
quanto naquele dia. Foi assim:
Tinha acabado de ter uma experiência surreal. Não
cabe aqui contá-la em detalhes, mas o fato é que fui coad-
juvante numa cena que se deu no estacionamento do
supermercado. Sem poder me livrar da emoção da experi-
ência, resolvi, no dia seguinte, compartilhá-la com meus
alunos. Afinal, antes de ser professora, sou narradora.
Ao cabo de alguns comentários sobre a minha histó-
ria, um princípio de caos e muitas risadas, fiz-lhes a per-
gunta:
“E vocês? Têm aí algo para me contar?”
Sim, eles tinham. E como tinham: eram histórias ma-
ravilhosas, paradoxalmente racionais e assustadoras, tão
leves quanto doloridas, tão companheiras quanto

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bandidas... Todas absolutamente verdadeiras e que revela-
vam um José, uma Sandrinha e um Bernardo tão diferen-
tes do dia anterior! “As palavras só precisam de um ouvido
adocicado para poder fazer sentido”. E assim, com a
mesma intensidade com que os quarenta e dois ouvidos
“adocicaram-se” para me ouvir naquela manhã, também
eu, tão despreparada, rendi-me a ouvi-los.
Foi quando ele falou. O menino mais alto da sala.
Ou o menor. Quiçá o mais feliz... Talvez o mais desinteres-
sado. Ou o mais esforçado... Já nem sei mais. Na verdade,
no momento em que ele falou, Ele não era mais ele. E,
confesso: jamais, depois que Ele falou, seríamos de novo
nós mesmos.
Contou-nos uma história de perda. Uma história de
família. Uma história de coragem, proferida por uma voz
adolescente, em algum momento frágil e infantil; em
outro, guerreira e madura. Um enredo claro e conciso,
cujos personagens compunham uma cena comum, narra-
da em vocabulário absurdamente simples e maravilhosa-
mente humano.
Finalizada a história, veio a unanimidade: primeiro, o
silêncio - respeitoso e dolorosamente duradouro. Depois,
as palmas. Por fim, os abraços e os choros. Eis o milagre
que ouvidos adocicados podem fazer numa sala de aula.
Sei bem que, na escola, é a escrita que reina quase
soberana e quem perde em autoridade é a fala; principal-
mente a dos alunos; já que, invariavelmente, nós os dese-
nhamos como reprodutores de falas, conteúdos e concei-
tos. Eu mesma tenho cometido lá os meus deslizes. Mas foi
a partir daquela experiência absurdamente humana que
passei a considerar a voz como motor da aprendizagem e
entender que bastam “ouvidos adocicados” para que a voz

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faça o resto.
Dito assim, parece algo pouco inovador. De fato,
Platão, Aristóteles e Vieira já exaltavam o uso deste meca-
nismo que é a voz humana. Eu, na minha insignificância,
não tive outra saída senão a de me convencer de sua efici-
ência. Daquele dia em diante não parei mais. Resolvi me
especializar na vagareza – aquela a que se refere Rubem
Alves. Cismei; me especializei naquilo que não sabia – à
semelhança de Manoel de Barros. Segui assim, entenden-
do a voz como um mecanismo epistêmico, capaz de criar e
projetar cenários de aprendizagem.
Outras experiências se deram, nesta e em outras
turmas. Até que, em dado momento, brotaram, entre os
alunos, narrativas sobre suas origens, sobre suas ancestra-
lidades; motivadas principalmente pela crise migratória
mundial. Foi o suficiente para que eles descobrissem o
quanto de imigrantes havia neles.
Informações surgiam na mídia, mas certamente
foram as narrativas ouvidas durante o almoço de domingo
ou por telefone com aquela tia distante que deram corpo a
um projeto autoral. Sem falar daquelas noites vasculhando
fotos e objetos em cima do armário... O que ficou da expe-
riência perpassou pela tecnologia social da memória e
pela história, geografia, sociologia, política, arte e ética.
Erra quem pensa que a narrativa oral é um mecanis-
mo exclusivo para as aulas de português e que dela resul-
tarão apenas textos ou “chamadas orais”. Através dela, os
alunos assumem autoridade vocal e ampliam os objetos de
aprendizagem pelas lentes da emoção. No nosso caso, as
narrativas sobre a ancestralidade revelaram delicadezas e
espantos em família: a história dos três tios com nomes de
deuses gregos, com forças igualmente mitológicas – tão

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úteis em tempos de guerra; o relato sufocado de emoção
sobre a ventura daquele avô judeu que tropeçou na mala
“certa”, no momento “exato”, livrando-se da morte...
Aquela narrativa que descreveu, com leveza e graça, o
olhar de esperança trespassando o quarto destelhado até
atingir o céu, em pleno bombardeio na II Guerra... E que
maravilha foi reconhecer o engenho e a arte de uma famí-
lia – um clã de artistas fotógrafos, vanguardistas em
fotoshop, em pleno século XIX.
A voz sela nosso DNA de narradores, desconsideran-
do se temos ou não dificuldades com a leitura e com a
escrita. A voz narrativa nos expõe a um “status” mágico e
irreversível: quem ouve uma história provoca naquele que
a conta (e em si mesmo) uma sede de verossimilhança, de
coerência, de propósito. Exige do outro (e de si mesmo)
que fiquem claras as relações de causa e consequência;
que se lapide o discurso pela gramática. Ambos clamam,
por assim dizer, por personagens com alma, propósito,
destino, caráter. Buscam ansiosos por inferências e contex-
tos que façam sentido – memórias, conceitos e fatos dispo-
nibilizados pela escola (ou em outros cenários). Por fim, a
voz que narra inaugura um ato coletivo, que pressupõe o
outro – num balé apátrida, entre autor e ouvinte.
No mais, tudo é muito simples. Afinal, somos todos
narradores de ouvidos adocicados.

O laço de fita

Guardo até hoje o laço de fita do presente que recebi naquele


dia: a voz que gerou a narrativa daquele aluno. Uma partitura.
Em nome da teimosia, da ingenuidade, da inovação e da paixão,
tive a fortuna de gravar, naquele dia, pelo celular, o grão da sua voz.

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Minha versão desobediente - e emocionada - sempre vem.
E a sua?

Helenice Schiavon

NOTA DA AUTORA
"Encontrar um lugar para exercer meu
papel de narradora é um presente.Ver
minha escrita neste e-book, lindamente
desenhado pela arte generosa do
Luciano Mendes e contar com a
confiança dos parceiros da CORE é
preencher um oco, uma lacuna na minha
vida. Se fosse assim já seria bastante. Mas
não é só isso; é muito mais: é me ver
seguindo do ponto em que parei um dia."

ESCRITO POR REVISADO POR DIAGRAMADO POR


Helenice Schiavon Márcia Ameriot Luciano Mendes

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