Você está na página 1de 51

SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA DAS AGULHAS NEGRAS

DIEGO DE OLIVEIRA PEREIRA

A VIDA CRISTÃ CONTEMPORÂNEA SOB AS BASES DO sacerdócio REAL DOS


CRENTES

Resende – RJ
2019
DIEGO DE OLIVEIRA PEREIRA

A VIDA CRISTÃ CONTEMPORÂNEA SOB AS BASES DO sacerdócio REAL DOS


CRENTES

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Seminário Teológico Batista das Agulhas Negras,
como requisito para o recebimento do Bacharel em
Teologia.

Orientador: Pr. Dr. Acyr de Gerone Jr


Coorientador: Pr. Márcio Alexandre de Moura

Resende – RJ
2019
AGRADECIMENTOS

Depois de uma longa jornada, sinto-me realizado ao escrever estas linhas.


Muitas foram as dificuldades enfrentadas para se chegar até aqui, mas em todo o
tempo tive a certeza de que Deus estava guiando os meus passos e me protegendo
de mim mesmo. Certamente se não fosse o cuidado e a proteção Dele, nada disso
seria possível.
Ainda cabe mencionar minha digníssima mãe, que sempre foi um incentivo a
não desistir dos meus sonhos e sempre demonstrou com a sua própria vida que
desistir não é opção. Por mais dificuldades que a vida nos ofereça, continue tentando.
Um dia se consegue equilibrar em cima da bicicleta e quem sabe até ganhar uns
trocados com isso!
Minha querida e amada esposa, parte fundamental deste projeto. Se não fosse
por você não teria as condições de terminar tão árdua missão. Obrigado por todas as
vezes que você assumiu a casa, a e as nossas filhas (uma vez que começamos nesta
jornada com a Isabell e terminamos com a Isabell e a Déborah). Obrigado por todas
as vezes que você saiu com as meninas para que eu pudesse ficar em casa sem os
barulhos que são inerentes das crianças, por todas as vezes que foi deitar sozinha,
entendendo que era necessário que eu ficasse mais umas horas na frente do
computador. Por entender minha ausência nestes três anos e por nunca ter jogado
nenhum peso a mais em cima dos meus ombros. Este trabalho é a nossa vitória.
Minhas filhas lindas, Isabell e Déborah. Vocês nunca atrapalharam o projeto,
vocês são o projeto. Se o estudar teologia for simplesmente para fazer com que vocês
estendam as verdades das Escrituras, já terá valido a pena. Apesar das dificuldades
de se trabalhar, estudar e ter que criar filhos, digo que não me arrependo nenhum
pouco do privilégio que é ser pai de vocês. Mesmo que em alguns dias a Déborah
tenha descumprido o acordo… Mas, faz parte!!!
Agradeço a minha família em geral, base para toda a minha formação social,
espiritual, psicológica. Aos meus irmãos, meus sobrinhos, tios e tias, meu muito
obrigado. Minha avó, Dona Ruth, aquela que me introduziu nos caminhos do Jesus.
Faltarão palavras para tamanha gratidão…obrigado vovó!
Meus sogros que sempre me apoiaram e me ajudaram em tudo aquilo que
esteve ao alcance deles. Costumo dizer que não tenho sogro e sogra e sim um
segundo pai e uma segunda mãe. Obrigado, cunhadas e concunhado, a vocês, um
grande beijo.
Aos amigos que me pastorearam e que tão de perto me acompanharam nesta
caminhada. Aqueles que direta e indiretamente fizeram e fazem parte do meu
amadurecimento espiritual e pessoal. Àqueles que sempre me indicavam boas
literaturas em promoção, além de muitos conselhos vindos de Deus (Fabrício Areias)
ou mesmo a simples e amorosa convivência e preocupação, como a demonstrada no
primeiro aniversário em que passei em Resende (Franklin e Bruna). Amo vocês.
Uma menção especial aos amigos e irmãos de classe, que juntos
desenvolvemos uma amizade que ficará marcada na minha vida. Obrigado por toda a
compreensão e por terem me pastoreado nestes momentos em que estivemos juntos,
em especial ao meu amigo mais chegado que um irmão, Guilherme, que no momento
mais crucial do seminário, pode me ouvir e me aconselhar segundos os padrões
bíblicos. Ainda bem, porque se tivesse usado a psicologia seria um grande problema,
uma vez que psicologia não é ciência e psicólogo não é gente!
Aos irmãos da Igreja Batista Central em Resende por terem investido em minha
família, por terem nos recebido com tanto carinho e amor. Por terem cuidado de nós
e nos abraçado com tanto amor. Ao pastor Luciano Cozendey e família, pois vocês
foram peça principal neste amor que a igreja despejou em nós. Muito obrigado por
toda a consideração, amor, carinho e pastoreio no tempo em que tivemos juntos.
Vocês moram em nossos corações.
Todos os professores que desenvolveram tal nobre tarefa com o fim único de
nos fazer pessoas melhores. Muito obrigado. Vocês marcaram minha vida. Mas, cabe
ao Pr. Roosevelt um agradecimento muito especial. Obrigado por não estar
preocupado em apenas lecionar para nós. Obrigado por nos mostrar na prática o que
livro nenhum consegue demonstrar. Obrigado por, mesmo sem ser dono da cadeira,
ter ministrado “teologia pastoral” para nós. Obrigado por cada devocional, cada
exortação, cada momento que o senhor se colocou à disposição para nos ouvir, tanto
em sala de aula como no seu gabinete. Obrigado por me pastorear, por não ter se
esquecido o que é o seminário e por ter nos ensinado como deve ser a vida de um
pastor.
Cabe mencionar minha nova igreja, Peniel em Resende, obrigado por nos
receber, por nos amar e cuidar de nossa família. Obrigado por todo esforço para
viverem de forma bíblica, contextualizando sem deixar que a igreja se pareça com o
mundo.
Obrigado ao Pr. Acyr, por aceitar o desafio de me ajudar a concluir o trabalho
final. Mesmo sem tempo e com diversas atividades, sempre foi muito solícito e
preocupado com a qualidade do mesmo. Certamente, sem a ajuda do senhor não teria
condições de terminar esta pesquisa.
Pastor Jean, não teria como o senhor não estar presente nestas linhas. No
momento mais crucial desta batalha, só tenho a agradecer, ao senhor e a sua família,
por me cederem este notebook, uma vez que o meu computador resolveu me
abandonar nos minutos finais deste jogo.
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a Deus, autor e consumador da minha fé. Quem tem me
mantido em pé e todos os dias têm demonstrado o Seu amor a mim.
Dedico à minha querida mãe, exemplo de persistência e grande responsável pelo
meu amor aos estudos e pela minha formação moral.
Dedico à minha esposa, mulher que Deus, em mais uma demonstração do Seu
cuidado para comigo, me abençoou e tem sido minha companheira de caminhada,
apoiando-me em todos os meus projetos.
Dedico às minhas filhas, respostas de orações e que deixaram o nosso mundo mais
feliz.
Dedico ao meu orientador, Pr Acyr de Gerone Junior, o senhor marcou minha vida
com tamanha ajuda.
Dedico a todos os professores do Seminário Teológico Batistas das Agulhas Negras,
que direta ou indiretamente fazem parte deste projeto.
Dedico aos meus irmãos seminaristas, saímos juntos, chegamos juntos.
“Não basta ter luz na mente, é preciso ter fogo no
coração”.
Hernandes Dias Lopes
RESUMO

Doutrina de grande importância no contexto cristão, o sacerdócio universal de todos


os que creem deve ser compreendido de forma bíblica para que haja um
relacionamento maduro entre os membros que compõem o corpo de Cristo, ou seja,
a igreja. A análise da temática recai sobre todo o enredo que envolve o tema, a partir
da revisão de literatura. O trabalho inicia-se pela definição do conceito sacerdotal, por
meio do qual os patriarcas exerciam tal posição. Em seguida, contempla-se o
desenvolvimento do sacerdócio, perpassando pelo sacerdócio aarônico e a correlação
dele com o sumo sacerdócio de Cristo. Também é analisado o sacerdócio levítico e a
representatividade que ele apresenta. O misterioso sacerdócio de Melquisedeque
também é analisado sob a perspectiva de um sacerdócio eterno, e que precisa ser
bem compreendido para que, assim, se tenha facilidade em entender o sumo
sacerdócio de Jesus. Neste ínterim, compreende-se, ainda, o sumo sacerdócio
perfeito de Cristo, sendo este, o cumprimento pleno de todos os tipos sacerdotais do
Antigo Testamento, bem como aquele que propicia aos cristãos o privilégio de serem
feitos um reino de Sacerdotes, retirados das trevas para viverem sob os cuidados de
Deus e a serviço Dele. Após esta análise, o trabalho aborda como esse assunto foi
tratado no período medieval, e principalmente como o entendimento dos
reformadores, com destaque para Lutero e Calvino, foi de grande valor para que a
igreja retornasse aos trilhos da sã doutrina cristã. Por fim, este trabalho procura
analisar se as igrejas dos dias atuais entendem e vivem o sacerdócio universal de
forma plena. Espera-se que as reflexões suscitadas neste trabalho contribuam com a
realidade e a teologia imbricada e praticada pela igreja contemporânea.

Palavras-chave: Jesus, Melquisedeque, sacerdócio, Sacerdote, Arão, Universal.


ABSTRACT
Doctrine of great importance in the Christian context, the universal priesthood of all
who believe must be understood biblically so that there is a mature relationship
between the members that make up the body of Christ, namely, the church. The
analysis of the theme concerns on the whole script that involves the theme, from the
literature review. The work begins with the definition of the priestly concept, whereby
the patriarchs held such a position. Then contemplates the development of the
priesthood, going through the aaronic priesthood and its correlation with the high
priesthood of Christ. The Levitical priesthood and its representativeness are also
examined. The mysterious Melchizedek priesthood is also analyzed from the
perspective of an eternal priesthood, and which needs to be well understood so that it
is easy to understand the high priesthood of Jesus. In the meantime, the perfect high
priesthood of Christ is grasped, being this, the full compliance of all priestly types of
the Old Testament, as well as one who gives Christians the privilege of being made a
kingdom of priests, taken out of darkness to live in God's care and in His service.
After this analysis, the paper approaches how this subject was treated in the medieval
period, and especially as the Reformers' understanding, especially Luther and Calvin,
was of great value to the church to return to the path of sane Christian doctrine. Finally,
this paper seeks to analyze whether today's churches fully understand and live the
universal priesthood. The reflections aroused in this work are expected to contribute to
the reality and the theology enmeshed and practiced by the contemporary church.

Keywords: Jesus, Melchizedek, priesthood, priest.


SUMÁRIO
11
14
19
19
21
23
25
26
3.6. sacerdócio Real de Todos os Cristãos, Uma Graciosa Responsabilidade30
32
32
36
39
39
43
46
47
49
1. INTRODUÇÃO
O sacerdócio universal do cristão ou o sacerdócio de todos os crentes é uma
doutrina bíblica, presente desde o Antigo Testamento. Contudo, ela tem sua
compreensão ampliada no Novo Testamento, uma vez que neste testamento é
ensinado explicitamente que todo homem e mulher, escolhidos por Deus, são
chamados à responsabilidade cristã externada em um relacionamento de intimidade
e serviço a Deus, sem a necessidade de intermediários, a não ser Jesus Cristo, de
comunhão e serviço ao próximo, tal como foi ensinado pelo próprio Jesus no
Evangelho de Marcos:
E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel,
o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus
de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e
de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento.
E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Não há outro mandamento maior do que estes. (Mc 12:29-31)

Esta doutrina foi fundamental na história da igreja pós-reforma, pois, com o


passar dos tempos e, principalmente, com a ascensão da Igreja ao poder político, por
volta de 313 d.C. esta foi sendo deixada de lado, ganhando a igreja uma estrutura
hierárquica/institucional cada vez maior, a ponto de haver um surgimento separatista
entre clérigos e leigos. Esta separação caminhou com a história da igreja no decorrer
dos séculos, mas foi revisada pelos reformadores, tais como Lutero, Calvino e seus
sucessores. Eles ensinaram aos cristãos, de forma geral, a responsabilidade que
estes tinham diante de Deus e dos homens. Um estudo detalhado deste período revela
a importância desta doutrina, como pode ser visto nas palavras de René Padilla:
Para muitos estudiosos da Reforma Protestante do século XVI, as ênfases
centrais desse movimento foram cinco: só Cristo (solus Christus), só a Bíblia
(sola Scriptura), só a graça (sola gratia), só a fé (sola fide) e só a glória de
Deus (soli Deo gloria). Todavia, há boa base para afirmar que, além dessas
ênfases fundamentais, os reformadores também reservaram um lugar de
destaque para uma doutrina que (por razões que daremos mais adiante)
poderia ser considerada a Cinderela tanto da Reforma clássica como do
movimento evangélico no tempo presente. Refiro-me à doutrina do
sacerdócio de todos os crentes, também chamado de sacerdócio universal
ou comum (PADILLA, 2012).

Diante de tal relevância, este trabalho procura mostrar como a compreensão


correta do sacerdócio universal dos crentes, apresenta contribuições teológicas,
eclesiais e bíblicas fundamentais para a maturidade dos cristãos.
Isto posto, o presente trabalho tem como objetivo geral apresentar de que forma
a compreensão do sacerdócio universal de todos os crentes pode contribuir com a
prática da vida cristã e com a realidade da igreja evangélica atual, tendo como
benefício o crescimento espiritual à medida que os cristãos aprendem e
desempenham seu papel sacerdotal tanto dentro, quanto fora da igreja.
É notório que os protestantes atuais, em sua maioria, não aprenderam com a
história e caminham a passos largos para o esquecimento do tema em comento. Isto
pode ser visto na cosmovisão dos cristãos e na forma de ser da igreja hodierna, uma
vez que ainda é nítida a separação entre os religiosos e os leigos, sendo aqueles os
responsáveis pelo desenvolvimento religioso das comunidades, enquanto estes se
comportam apenas como espectadores ou meros executores de ordens.
Também é percebido uma valorização da figura pastoral e da comunidade de
fé em níveis antibíblicos, sendo que tal enaltecimento se dá pelos próprios pastores,
mas também pelos seus seguidores resultando em disparates cristãos tais como: a
oração do pastor é mais forte, nesta igreja reside a benção de Deus, o pastor é o
ungido do Senhor, ou seja, colocando a igreja ou o pastor no lugar de Jesus Cristo,
mediador entre Deus e os homens.
Assim, dentre outras, a doutrina do sacerdócio universal é uma valiosa
ferramenta a fim de ajudar homens e mulheres no crescimento espiritual, tanto no
sentido vertical (relacionar-se com Deus), quanto no sentido horizontal (relacionar-se
com o próximo). Portanto, buscou-se reunir informações com o propósito de responder
ao seguinte problema da pesquisa: De que maneira a compreensão do sacerdócio
universal do cristão pode contribuir com a prática da vida cristã e com a essência das
igrejas contemporâneas?
O que motivou a realização desta pesquisa foi entender que, mesmo após a
reforma protestante do século XVI, que em 31 de outubro de 2019 completa 502 anos,
a doutrina do sacerdócio universal do cristão ainda não é compreendida por muitos
cristãos.
Corrobora com o exposto a afirmativa de George (1994, p.96):
A maior contribuição de Lutero à eclesiologia protestante foi a sua doutrina
do sacerdócio de todos os cristãos. Contudo, nenhum outro elemento de seu
ensino é tão mal compreendido. Para alguns, isso significa apenas que não
há mais Sacerdotes na igreja; é a secularização do clero. Dessa premissa,
alguns grupos, notadamente os quacres, defenderam a abolição do ministério
como ordem distinta dentro da igreja. Mais comumente, as pessoas acreditam
que o sacerdócio de todos os cristãos implica que cada cristão é seu próprio
Sacerdote, e, assim, possui o “direito do julgamento privado” em assuntos de
fé e doutrina. Ambos os casos constituem perversões da intenção original de
Lutero. A essência de sua doutrina pode ser expressa numa única frase: todo
cristão é Sacerdote de alguém, e somos todos Sacerdotes uns dos outros.
Com isto, faz se necessário uma análise sobre tal assunto com o intuito de,
sem ter a pretensão de esgotar o tema, trazer luz a um ensinamento bíblico tão
importante para a vida e a saúde da igreja, externados no serviço e obediência a Deus
e na comunhão entre os irmãos. A abordagem teórica, como seguir-se-á, assume uma
perspectiva bíblica reformada, ao tentar compreender a relação histórica entre a
doutrina apresentada e as práticas desenvolvidas pela comunidade cristã ao longo
dos tempos, problematizando estas duas vertentes.
O estudo será desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, onde se buscará
o entendimento de diversos teólogos, tanto nomes históricos, como contemporâneos,
sobre o assunto, tais como Martinho Lutero, João Calvino, Timothy George, Franklin
Ferreira, dentre outros.
A fim de trazer luz ao método utilizado para o presente trabalho, Gil (2010, p.29-
31) explica de forma clara a principal finalidade da pesquisa bibliográfica, ele diz que
“a pesquisa bibliográfica é elaborada com base em material já publicado.
Tradicionalmente, esta modalidade de pesquisa inclui material impresso, como livros,
revistas, jornais, teses, dissertações e anais de eventos científicos”, completando
ainda, que em algum momento de um trabalho acadêmico, será feito o uso de tal
pesquisa.
Fonseca (2002, p.32) segue a mesma linha ao ensinar que:
A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências
teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como
livros, artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico
inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador
conhecer o que já se estudou sobre o assunto. Existem porém pesquisas
científicas que se baseiam unicamente na pesquisa bibliográfica, procurando
referências teóricas publicadas com o objetivo de recolher informações ou
conhecimentos prévios sobre o problema a respeito do qual se procura a
resposta.

Para alcançar os objetivos expostos, o trabalho foi estruturado em


quatro partes onde, além desta introdução, tem-se o primeiro capítulo, estabelecendo
as definições etimológicas e teológicas do termo sacerdócio. Em seguida, foi
analisado o desenvolvimento bíblico histórico do sacerdócio. No terceiro capítulo, foi
investigado como se deu o surgimento da sistematização e a aplicação do conceito
do sacerdócio universal no período da Reforma Protestante; e, por fim, fez-se uma
reflexão a partir das perspectivas contemporâneas sobre o sacerdócio universal.
Nesta última parte, procura-se constatar algumas possíveis falhas que ocorrem nos
tempos hodiernos, bem como as consequências que a correta compreensão do tema
traz à vida cristã na prática.
2. O sacerdócio E O Sacerdote: CONCEITO E DESENVOLVIMENTO
Para o entendimento da doutrina do sacerdócio universal, faz-se necessário a
compreensão dos conceitos bíblicos relacionados ao tema, que remetem,
principalmente, aos escritos do Antigo Testamento. Para isto, é essencial entender os
significados de Sacerdote e sacerdócio, bem como entender os modelos de
sacerdócio, conforme apresentados na Bíblia, a saber: os sacerdócios de
Melquisedeque, de Arão, Levítico, de Cristo e dos cristãos.
De forma geral, a figura do Sacerdote pode ser definida como alguém separado
para o serviço sagrado; tendo, no contexto bíblico, a função de oferecer sacrifícios do
homem a Deus, além, é claro, de queimar incensos no altar. No contexto pagão, entre
os gentios, ele era chamado de Sacerdote sacrificador, uma vez que, sua principal
função, era a de realizar sacrifícios para os deuses). Assim, aqueles que ocupavam
tal posição eram considerados como mediadores entre a divindade e o homem, e a
função exercida era denominada sacerdócio (Buckland, Willians, 2010)
Segundo o Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, o verbo
kahan, que aparece 23 vezes no Antigo Testamento, é traduzido por “ministrar na
função sacerdotal”, “ser Sacerdote” ou por “servir como Sacerdote” (HARRIS, 1958,
p.959).
Já o substantivo kõhen, apesar de conter outros significados, uma vez que sua
etimologia é desconhecida, possui majoritariamente o significado de “Sacerdote”,
refletindo o sentido mais restrito de “ministro das coisas sagradas, especialmente dos
sacrifícios” (HARRIS, 1958, p.959). O termo aparece 729 vezes em todo o Antigo
Testamento. (Strong, p. 507)
Andrade (1996, p.222) define o termo da seguinte maneira:
Sacerdote [do heb. Cohen; do lat. Sacerdos] Ministro devidamente
designado, cuja principal função era representar o homem diante da
divindade.
Eis suas obrigações básicas: santificar o povo, oferecer dons e sacrifícios e
interceder pelos pecadores.

De forma complementar, Pearlman (2006, p.136) define da seguinte forma:


“Sacerdote, no sentido bíblico, é uma pessoa divinamente consagrada para
representar o homem diante de Deus e para oferecer sacrifícios que assegurarão o
favor divino”.
Dentro da história hebraica, pelo menos em seu início, conforme descrito nas
Escrituras, o que se infere é que inicialmente os homens eram seus próprios
Sacerdotes, como pode ser visto em Gênesis 8:20; 22:13; 26:25; 33:20. Champlin
(1993, p.176) lança luz a este tema, relatando que “antes da instituição formal do
sacerdócio em Israel, o filho primogênito era o Sacerdote do lar, cuidando do culto e
das práticas espirituais da família. Ver Nm 3:12-18; 8:18; Gn 27:29”.
Uma passagem que ilustra isso pode ser vista em Gênesis 8:15-20, quando
Noé assume uma posição sacerdotal. Na história de Jó (Jó 1:4-5) também se vê este
sacerdócio, quando Jó oferece sacrifícios em favor de seus filhos com o intuito de
aplacar a ira de Deus, por eventuais pecados cometidos por seus descendentes. No
entanto, esses textos serão abordados em um capítulo específico, onde serão
tratados com mais detalhes.
Assim, é possível perceber que mesmo antes da existência de uma religião
instituída, havia uma noção geral entre os hebreus de deveres religiosos que deveriam
ser exercidos por pessoas específicas de dentro do povo (neste caso, o patriarca ou
o primogênito).
Essa percepção será fundamental para aquilo que seria o desenvolver religioso
da nação, uma vez que esta conduta se estenderia de forma oficial no andamento da
história de Israel. Champlin (1993, p.411) segue esta linha de pensamento ao fazer
um comentário sobre o livro de Êxodo:
Os Sacerdotes, neste ponto, não pertenciam à ordem posterior dos levitas;
mas não há razão para pensarmos que já não existia algum tipo de
sacerdócio em Israel, talvez o sacerdócio dos primogênitos, ou, quem sabe,
pelos cabeças de famílias em combinação com os primogênitos.

Vaux (2003, p.375) vai também nessa mesma linha:


Na época patriarcal não havia sacerdócio. Os atos de culto, especialmente o
ato central que é o sacrifício, eram realizados pelo chefe da família, Gn 22;
31.54; 46.1. Os próprios patriarcas sacrificavam nos santuários que
frequentavam e o Gênesis só fala de Sacerdotes estrangeiros, que são
sedentários: os Sacerdotes egípcios, Gn 41.45; 47.22, e Melquisedeque, o
rei-Sacerdote de Salém, Gn 14.18.

Vaux (2003) também menciona que o sacerdócio não pode ser visto como uma
vocação, e sim como uma função. Assim, a terminologia de sacerdócio pode ser
entendida como a investidura do Sacerdote no cargo, ou seja, o exercício
propriamente dito da função sacerdotal. Andrade (1996) define como a investidura
sacrea amparada pela designação divina, que capacita um homem a interceder,
diante de Deus, pelos demais.
Logo, o entendimento que se tem é o de que a partir do momento em que a
figura do Sacerdote recebe, de forma explícita, uma responsabilidade divina, surge o
sacerdócio.
Com a explanação do conceito de sacerdócio, dois pontos devem ser descritos
para a continuidade da construção do raciocínio sobre o assunto. O primeiro é a figura
de Melquisedeque que, segundo a história narrada em Gênesis, foi um Sacerdote do
Deus altíssimo, exercendo um tipo sacerdócio distinto, ou seja, não se confundindo
com os Sacerdotes patriarcas, mas também ocupando uma posição que ainda não
tinha sido estabelecida para o povo de Israel (Gn 14:14-21 e Hb 7:11). Por mais que
existam diversas opiniões sobre essa passagem misteriosa, a certeza é que o escritor
de Gênesis narra Melquisedeque como sendo um Sacerdote oriundo de Deus, e o
escritor de Hebreus ratifica tal entendimento, inclusive demonstrando que este
sacerdócio era uma tipologia que aponta para o sacerdócio de Cristo.
O outro fator a ser considerado é o ponto de partida para o sacerdócio entre os
hebreus. Se antes os Sacerdotes estavam inseridos no sistema patriarcal e de
primogenitura, após Moisés receber as leis do Senhor, com as instruções de como
deveria ser a vida e o culto religioso de Israel, o cenário mudou. Para alguns
estudiosos, este evento marca o início do próprio sacerdócio, uma vez que o povo, ao
se deparar com o evento estrondoso ocorrido no monte, suplica a Moisés para que
ele seja o mediador entre eles e Deus. O mesmo entendimento tem o pastor Isaltino,
como se vê:
A função do Sacerdote foi pedida pelo próprio povo. Lemos em Êxodo 20.18-
19: “Vendo-se o povo diante dos trovões e relâmpagos, e do som da trombeta
e do monte fumegando, todos tremeram assustados. Ficaram à distância e
disseram a Moisés: “fala tu conosco, e ouviremos, Mas que Deus não fale
conosco, para que não morramos”. O povo reconheceu a necessidade de um
intermediário da comunicação entre o divino e o humano. O sacerdotalismo
em Israel pode ser datado a partir daqui (ISALTINO, 2019, p.1).

No entanto, há uma fala divina digna de ser analisada, que se encontra no livro
de Êxodo 19:5-6. Nesse texto, é possível perceber uma antecipação daquilo que, a
partir de Cristo, seria conhecido como: a doutrina do sacerdócio universal de todos
aqueles que creem. De forma explícita, Deus convida seu povo a uma vida de
obediência irrestrita à sua Lei. O cumprimento de tal mandamento não só traria
bênçãos para eles, como também faria deles homens e mulheres que abençoariam
outros povos, caracterizando, assim, uma nação sacerdotal, onde todos os privilégios
e responsabilidades da função seriam inerentes a todo o povo hebreu. Todos fariam
a mediação entre os povos pagãos e o Deus de Israel.
Sobre o tema, Carriker comenta:
Se Deus é o agente e a origem da missão, ele não trabalha sozinho. Seu
instrumento é um povo específico. A missão também é a tarefa da igreja que,
por sua vez, é derivada então da missão de Deus. Deus escolhe um povo
específico como instrumento da sua missão. Elegeu um povo, Israel, no Velho
Testamento e com este fez uma aliança peculiar a fim de que este fosse a
sua testemunha no meio das nações (Gênesis 12.3; Êxodo 19.5-6; Efésios
3.10; 1 Pedro 2.9-10). A eleição de Israel, antes de denotar qualquer
favoritismo exclusivista de Deus, teve um propósito inclusivo de serviço
missionário para as nações. Quando não cumpria este propósito, Israel era
julgado através das mesmas nações para as quais ela deveria ter dado
testemunho e deveria ter sido uma benção (CARRIKER, 1992).

Em vista disso, o que se depreende da história bíblica é a transferência da


responsabilidade, cessão esta que culmina no sacerdócio pedido pelo povo e que se
dará a partir de Arão e seus filhos, tendo como grande aceitação do seu início o livro
de Êxodo entre os capítulos 25:1 e 31:17, substituindo o sacerdócio dos primogênitos,
de uma forma geral (CHAMPLIN, 1993, p.429).
Arão recebe de Deus um sacerdócio perpétuo, prática muito comum na época
vigente, uma vez que as profissões eram hereditárias e as técnicas eram transmitidas
de pais para filhos. Assim, Arão e seus descendentes, oriundos da tribo de Levi,
subordinam os outros levitas na função sacerdotal, como se vê nas palavras da Vaux:
Dentro dessa tribo, um ramo recebe a promessa de um sacerdócio perpétuo,
que lhe subordina os outros levitas, acantonados nas funções interiores do
culto; é a família de Arão, irmão de Moisés, Êx 29.9,44; 40.15. O sacerdócio
passa, pois, aos filhos de Arão, Eleazar e Itamar, Nm 3.4, a promessa é
renovada a Fineias, filho de Eleazar, Nm 25.11-13. De acordo com I Cr 24.3,
o sacerdócio de Siló, depois o de Nob, depois o de Jerusalém até a expulsão
de Abiatar, representa a descendência de Itamar, Zadoque, que substitui
Abiatar, 1 Rs 2.35, está ligado a Arão por Eleazar, e sua família mantém o
sacerdócio até a queda do Templo, I Cr 5.30-41; 6.35-38; Ed 7.1-5 (VAUX,
2003, p.389).

Em vista disto, é correto afirmar que os membros do sacerdócio são chamados


de filhos de Levi ou levitas, afirmativa esta de suma importância para o
desenvolvimento cronológico do assunto estudado. Diversas eram as
responsabilidades relatadas nas determinações divinas as quais os Sacerdotes
deveriam cumprir. Para maior elucidação do tema, segue o comentário de Beaumont:
A origem dos Sacerdotes remonta a Arão, irmão de Moisés, e seus quatro
filhos, cujos descendentes eram os únicos que poderiam sucedê-los. Para
expressar a santidade de suas obrigações, Deus lhes deu regulamentos
relacionados à maneira de se vestir e ao trabalho que faziam, que incluía
ensinar a Lei de Deus, atuar como juízes e inspetores da saúde pública, e
discernir a vontade de Deus por meio das pedras Urim e Tumim, além de
oferecer sacrifícios (BEAUMONT, 1993, p.148).

Além da função de entregar os oráculos divinos, a Bíblia relata que também


eram atribuições dos Sacerdotes o ensino da Torá e o serviço do altar, com destaque
para a questão do sacrifício. Em relação ao ensino, esta responsabilidade foi delegada
por Deus a este grupo. Estes homens deveriam guiar o povo israelita sobre as
determinações divinas, instruindo-os a viverem de acordo com a Torah. Outro
destaque relacionado às responsabilidades do ministério sacerdotal de Arão, ou
aarônico, era o de fazer sacrifícios a Deus. E por mais que o senso comum coloque
esta função como a principal no ofício sacerdotal, as linhas dos textos canônicos
parecem demonstrar que seria na verdade uma atribuição secundária, já que o próprio
ofertante deveria abater seu sacrifício (Lv 1:5; 3:2,8,13; 4:24,29,33), estando excluído,
contudo, do contato com o altar, encargo este pertencente ao Sacerdote, de seu direito
de o imolar (Lv 1:14-15; 5:8).
Em suma, o que se entende é que o Sacerdote ocupava uma posição de
mediador entre Deus e o homem, assunto este que será exposto no capítulo seguinte.
O que se vê no Antigo Testamento são alguns tipos de sacerdócios
apresentados, mesmo que carecendo de compreensão posterior por se tratarem de
tipos ou figuras, que terão sua total compreensão com o advento do Novo Testamento,
no ministério de Jesus. A partir dEle, Sumo Sacerdote eterno (Hb 7), uma releitura
será feita na história do sacerdócio iniciado em Israel, uma vez que Jesus cumpriu
com todas as exigências da Lei, e estando nEle, o homem não tem mais a
necessidade de nenhum semelhante para fazer a mediação entre ele e Deus,
assumindo assim todos os privilégios e responsabilidades que estavam restritos a um
grupo específico de pessoas.
Pedro tem esse entendimento do tema, e fazendo alusão à passagem de
Êxodo, escreve em sua primeira carta que em Cristo há o cumprimento total daquilo
que fora dito aos israelitas (1 Pe 2.9), dando total compreensão do sacerdócio
universal do cristão, que Andrade (1996, p.221) define do seguinte modo:
sacerdócio UNIVERSAL – Do lat. Sacerdotium + universalis, geral).
Prerrogativa concedida por Cristo Jesus aos que nele creem de, por
intermédio de seu sacrifício na cruz, entrar à presença de Deus sem a
necessidade de qualquer mediador terreno.

Logo, será possível perceber que desde a gênese da história hebraica um


conceito se desenvolve até os dias atuais: Deus chamando o homem para relacionar-
se com Ele de forma direta, tal qual foi no Éden. No entanto, devido ao pecado original,
o homem perdeu este privilégio, tendo a necessidade de que homens separados
fizessem esta mediação, mas apenas de forma figurativa, já que, devido à natureza
humana, não haveria condições de relacionar-se com Deus, segundo os padrões
estabelecidos por Ele. Estes homens deveriam expressar em suas vidas os mais altos
padrões de santidade e obediência, e não só isso, também deveriam instruir outros
homens a viverem de tal forma, bem como compadecerem-se daqueles que se
afastaram de Deus, e levá-los novamente à presença do Altíssimo. Isto se deu de
forma completa na pessoa de Jesus, visto que Deus escreveu a história de modo que
ela apontasse para o seu Filho, Sumo Sacerdote que cumpre de uma vez por todas
as exigências da Lei divina, permitindo à igreja neotestamentária uma posição
sacerdotal diante de DEle e do mundo.
3. OS DIVERSOS TIPOS DE Sacerdote NA BÍBLIA
Como se constatou até aqui, o Sacerdote é uma figura central no Antigo
Testamento, principalmente pelo fato de que a ele era confiado diversos atos de
mediação e de serviço a Deus e ao povo. Contudo, como também se constatou, a
função sacerdotal não é rígida. Tanto o Sacerdote quanto o sacerdócio foram se
desenvolvendo aos poucos, de forma progressiva, por todo a Escritura Sagrada.
Portanto, para se apreender melhor sobre tal perspectiva importa-nos conhecer um
pouco mais sobre os diferentes tipos de sacerdócios, bem como a figura sacerdotal
que os permeiam.

Em cada tempo e contexto, a história bíblica apresenta-nos atos, funções e


responsabilidades bem específicas a cada tipo sacerdotal, desde o modelo mais
incipiente, isto é, o sacerdócio Patriarcal, até o modelo pleno e perfeito, ou seja, o
sacerdócio de Cristo, gerando, assim, implicações importantes para o sacerdócio
Universal de todo cristão.
3.1. Sacerdócio Patriarcal
O primeiro tipo de Sacerdote que a Bíblia nos apresenta é aquele que foi
exercido pelos chefes das famílias, os patriarcas (como eram conhecidos). Apesar de
não fazer menção ao termo “Sacerdote” em específico, certo é que estes homens
representavam o povo diante de Deus na entrega de ofertas, e dessa forma, estariam
fazendo a mediação entre Deus e seus familiares.
Noé pode ser apontado como um Sacerdote nesse modelo, uma vez que
depois das águas do dilúvio terem abaixado, ele, representando toda a sua família,
ofereceu um holocausto a Deus, tendo sua oferta sido aceita, conforme se vê no texto
abaixo:
Então disse Deus a Noé: - Saia da arca, você, a sua mulher, os seus filhos e
as mulheres dos seus filhos. Faça sair também todos os animais que estão
com você, tanto aves como gado, e todo animal que rasteja sobre a terra,
para que povoem a terra, sejam fecundos e nela se multipliquem. Saiu, pois,
Noé, com os seus filhos, a sua mulher e as mulheres dos seus filhos. E
também saíram da arca todos os animais, todos os animais que rastejam,
todas as aves e tudo o que se move sobre a terra, segundo as suas famílias.
Noé levantou um altar ao Senhor e, tomando de animais puros e de aves
puras, ofereceu holocaustos sobre o altar (GÊNESIS 8:15-20 NAA)

Uma vez que a palavra holocausto pode ser definida como sendo um sacrifício
feito a Deus de forma que o sacrificante estava se dedicando completamente e, dentre
as atribuições do Sacerdote estavam o oferecer holocaustos e o se consagrar ao
Senhor, pode-se assim destacar em Noé a atitude de uma posição sacerdotal.
Outro a desempenhar um papel idêntico, e com mais semelhança à figura do
Sacerdote, foi Jó:
Os filhos dele iam às casas uns dos outros e faziam banquetes, cada um por
sua vez, e mandavam convidar as suas três irmãs a comerem e beberem com
eles. Quando se encerrava um ciclo de banquetes, Jó chamava os seus filhos
e os santificava; levantava-se de madrugada e oferecia holocaustos segundo
o número de todos eles. Pois Jó pensava assim: “talvez os meus filhos
tenham pecado e blasfemado contra Deus em seu coração”. Jó fazia isso
continuamente (JÓ 1:4-5 – NAA)

Mais uma vez é visto um líder da família fazendo a mediação entre os membros
da casa com o próprio Deus. Ainda, em semelhança à história de Noé, outro ponto
está relacionado ao holocausto oferecido. Como se percebe, aqui há o detalhe do
texto sagrado ressaltar explicitamente que a preocupação do patriarca era a de
santificar os seus filhos, considerando a hipótese de que eles tivessem transgredido
algum mandamento de Deus. Não se pode esquecer que ambos os personagens
estavam inseridos em um contexto distante do das leis de Moisés. Schultz (1977, p.39)
tem o mesmo entendimento, ao dizer que “antes dos tempos mosaicos, as oferendas
usualmente eram apresentadas pelo chefe de uma família, que oficialmente
representava seus familiares no reconhecimento e adoração a Deus!.
Não há muitos detalhes sobre esse tipo de sacerdócio e nem mesmo é
apropriado o uso dessa expressão neste período da história, já que a instituição do
sacerdócio, propriamente dita, será em eventos posteriores, que serão analisados
mais à frente. Portanto, reitera-se que o uso do termo, dentro deste contexto, é
anacrônico. Contudo, ainda assim, é bem evidente que o conceito já estava inserido
no âmago do povo que fora escolhido por Deus.
3.2. Um Tipo de Cristo e o sacerdócio Universal - Melquisedeque
Após estas referências à figura sacerdotal, a Bíblia ainda menciona o
aparecimento de Melquisedeque (Gn 14), onde há a expressa menção que o mesmo
era Sacerdote do Deus altíssimo, mesmo sem fazer parte da história do povo hebreu
– que tem início em Abrão. Essa figura misteriosa dá o indício de um novo tipo de
sacerdócio que se revelaria com o passar do tempo, sendo certo que ele era um
arquétipo daquilo que se revelaria em Cristo, conforme é ensinado pelo escritor aos
hebreus (Hb 7). O livro de Gênesis 14.18-24 detalha o encontro entre Melquisedeque
e Abrão:
Porque este Melquisedeque, que era rei de Salém, Sacerdote do Deus
Altíssimo, e que saiu ao encontro de Abraão quando ele regressava da
matança dos reis, e o abençoou. A quem também Abraão deu o dízimo de
tudo, e primeiramente é, por interpretação, rei de justiça, e depois também rei
de Salém, que é rei de paz; sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo
princípio de dias nem fim de vida, mas sendo feito semelhante ao Filho de
Deus, permanece Sacerdote para sempre. Considerai, pois, quão grande era
este, a quem até o patriarca Abraão deu os dízimos dos despojos. E os que
dentre os filhos de Levi recebem o sacerdócio têm ordem, segundo a lei, de
tomar o dízimo do povo, isto é, de seus irmãos, ainda que tenham saído dos
lombos de Abraão. Mas aquele, cuja genealogia não é contada entre eles,
tomou dízimos de Abraão, e abençoou o que tinha as promessas (HEBREUS
7:1-6 – ACF, grifo nosso).

De um lado está Abrão, homem escolhido por Deus, para que através dele
todos os povos da Terra fossem abençoados, representando até o presente momento
o sacerdócio patriarcal e, do outro lado, um rei Sacerdote, sem genealogia, que nada
se tem sobre sua origem, não pertencente ao povo hebreu, mas, o que a Bíblia diz de
forma bem clara é que ele era Sacerdote do Deus Altíssimo, abençoando a Abrão por
meio de uma mediação entre este e Deus. O entendimento de Milt Rodriguez (2015,
paginação irregular) reforça tal ideia ao afirmar que:
O sacerdócio segundo Melquisedeque é eterno e cumpre o pensamento de
Deus para o Seu propósito. Somente um sacerdócio eterno poderia fazer
isso. Já que o propósito do Pai é encher todas as coisas de Cristo, Ele
precisaria de um sacerdócio que fosse baseado na vida de Seu Filho amado.

De fato, o estudo do sacerdócio universal passa pela figura de Melquisedeque,


um Sacerdote do Deus Altíssimo, rei da justiça, superior a Abraão, e que o abençoa.
Estando sua história relatada no livro de Gênesis, que dá sempre ênfase à genealogia
de homens importantes, esse Sacerdote não tem início e fim relatado no Pentateuco.
Além disso, Davi, em um de seus Salmos, diz: “o Senhor jurou e não voltará atrás:
você é Sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (SALMOS 110:4
– NAA).
Isso comprova que a figura de Melquisedeque foi histórica e que, como é
possível compreender posteriormente no Novo Testamento, era um tipo de Cristo.
Para além disso, Deus reafirma que assim como fora com a escolha de Abrão, toda a
vida espiritual do povo que Ele escolheu para Si, se daria de acordo com os padrões
estabelecidos por Ele mesmo.
Essa relação entre Melquisedeque e Jesus se dá pelo fato de ambos serem
Sacerdotes, por nenhum dos dois serem sujeitos à ordem levítica, por não serem
conhecidos o princípio e o fim de ambos, por serem reis de paz e de justiça (Hb 7:2)
e por terem sido escolhidos exclusivamente por Deus. Richardson (1986, p.2008)
reforça esse entendimento:
O autor de Hebreus cita, a seguir, uma profecia do rei judeu Davi – rei que
primeiro conquistou a antiga Salém das mãos dos jebuseus (1000a.C.) e fez
dela Jerusalém, capital da nação judaica. A profecia declara explicitamente
que o Messias judeu, quando vier, não servirá como membro do sacerdócio
levítico inerentemente temporário, com sua linhagem restrita. Em vez disso,
vai ser um Sacerdote da “ordem de Melquisedeque” e, cuja ordem não ficará
aparentemente restrita a qualquer linhagem particular. E não apenas isso,
mas a filiação do Messias à “ordem de Melquisedeque” é confirmada por nada
menos que um juramento divino; e Ele pertencerá eternamente à mesma! “O
Senhor jurou e não se arrependerá: tu és Sacerdote para sempre, segundo a
ordem de Melquisedeque” (Salmos 110:4).

Em Hebreus 7 ainda é possível analisar as comparações feitas entre o


sacerdócio de Cristo, que é mencionado segundo à ordem de Melquisedeque, e o
sacerdócio de Arão, que será detalhado mais à frente. Ali, é demonstrado que o
sacerdócio do rei de Salém é maior do que aquele instituído pelas leis, que têm em
Arão o seu precursor; contudo, sendo apenas uma sombra do sacerdócio santo,
imutável e eterno de Cristo. A conclusão a que se chega é a de que Cristo é superior
em sua posição sacerdotal.
Pfeiffer, Vos e Rea (2000, p.1248) comentam sobre o texto de Hebreus o
seguinte:
As passagens no livro de Hebreus trazem a mesma interpretação. O autor
está discutindo a superioridade do sacerdócio de Cristo em comparação ao
de Arão. Melquisedeque e seu sacerdócio são um exemplo de Cristo e de
seu sacerdócio. O sacerdócio de Melquisedeque não estava limitado a uma
raça ou tribo, sendo, portanto, universal.

Assim, antes da instituição na nação santa, é importante compreender que já


existia um outro sacerdócio com o intuito de demonstrar que Deus tinha em seus
planos uma função a ser exercida com o cumprimento total da lei que ele instituíra.
Certamente, não seriam em homens mortais e pecadores o cumprimento de tal fato,
como o próprio escritor aos hebreus demonstrou. De forma especial e arquetípica, no
próprio sacerdócio de Melquisedeque, já havia um apontamento que explicaria e
aprofundaria tal realidade.
3.3. Arão, O Primeiro Sumo Sacerdote
Um outro tipo de sacerdócio, seguindo a narrativa bíblica, é aquele que foi
desempenhado por Arão. No entanto, como já foi dito, mais uma vez, a história
demonstra que Deus tinha um propósito específico e que estava sendo revelado
progressivamente ao longo dos tempos. Isso porque, o sacerdócio aarônico surgiu,
segundo alguns especialistas, devido à negativa do povo israelita em se relacionar
diretamente com Deus, como se pode ver nas palavras do pastor Isaltino Gomes
Coelho Filho, em um artigo escrito para a Faculdade Teológica Batista do Paraná:
No início, a função sacerdotal era a de mediar o relacionamento entre Deus
e o homem. A função do Sacerdote foi pedida pelo próprio povo. Lemos em
Êxodo 20.18-19: “Vendo-se o povo diante dos trovões e dos relâmpagos, e
do som da trombeta e do monte fumegando, todos tremeram assustados.
Ficaram à distância e disseram a Moisés: “Fala tu mesmo conosco, e
ouviremos. Mas que Deus não fale conosco, para que não morramos”. O povo
reconheceu a necessidade de um intermediário da comunicação entre o
divino e o humano. O sacerdotalismo em Israel pode ser datado a partir daqui.

Arão é chamado para ser Sumo Sacerdote e seus filhos são chamados para o
auxiliarem como Sacerdotes (dando início a uma clara hierarquia entre os cargos),
pois desta forma haveria uma adoração ordenada de acordo com os padrões de Deus,
mesmo estando os israelitas no deserto. Esta escolha era para ensinar ao povo como
seria a aproximação a Deus, sendo a santidade essencial para a comunhão com o
mesmo. Os pecados do povo deveriam ser expiados por sangue, através do sistema
de sacrifícios; sistema este que só poderia ser exercido pelos Sumos Sacerdotes, ou
seja, Arão e seus descendentes.
Packer, Merrill e Tenney (1988, p.106) dizem a respeito que:
A esta altura, na história de Israel, passou a existir um sacerdócio ordenado.
De acordo com a ordem de Deus (Êx 28:1), Moisés consagrou seu irmão Arão
e aos filhos deste como Sacerdotes. Estes homens vinham da tribo de Levi.
Deste ponto até aos tempos intertestamentários, o sacerdócio oficial
pertenceu aos levitas. Moisés estabeleceu distinção entre Arão e seus filhos,
pois ele ungiu Arão como “Sumo Sacerdote entre seus irmãos” (Levítico
21:10). Ele distinguiu o ofício de Arão dando lhe vestes especiais (Êxodo
28:4, 6,39; Levítico 8:7-9). Com a morte de Arão, as vestes e o ofício
passaram para Eleazar, seu irmão mais velho (Números 20:25-28).

Diversas eram as funções estabelecidas para este cargo e todas elas


apontavam para algo futuro; por mais que as pessoas naquela época não tivessem
este entendimento. Toda a vida religiosa de Israel passaria pelo encargo exercido por
estes homens, o que demonstra quão importante era o trabalho de Arão e de sua
descendência.
A este respeito, Ferreira (2002, p.204) comenta:
Deus estabelece os Sacerdotes na história do povo de Israel com a escolha
de Arão e seus filhos (cf Ex 28.1), e como tais, eles deveriam servir como
mediadores entre Deus e os homens, como Sacerdotes e representantes de
um Deus Santo, eles participavam da santidade do tabernáculo e tinham que
seguir os padrões rigorosos da pureza ritualista impostas por Deus (cf Lv
21.1- 22.16). Além dos seus deveres cerimoniais – tais como: oferecer
sacrifícios e cuidarem do lugar de adoração – eles atuavam ainda como juízes
(cf Dt 17.8-13), dispensavam bênçãos (Nm 6.22-27), apresentavam oráculos
(Nm 27.21) e ensinavam a lei divina ao povo (Dt 33.10). Os Sacerdotes a
priori
deviam ser os responsáveis pela verdadeira religiosidade do povo, a fim de
que o culto prestado a Deus fosse legítimo e sem mácula.

O que cabe ressaltar sobre o sacerdócio de Arão, é que além dos variados
deveres, os de maior destaque estavam relacionados à entrada no santíssimo lugar,
só permitido ao Sumo Sacerdote, à instrução da lei de Deus e ao ministério sacrificial.
Através dele, o povo e os próprios Sacerdotes, começariam a desenvolver uma
mentalidade de como deveria ser o relacionamento Deus-homem-pecado; onde havia
a necessidade do sangue para a purificação (Hb 9:22). Como descreve as Escrituras,
este sangue deveria ser de um inocente, no caso um animal. A este respeito, diz
Habershon (1957, p.60):
O sangue dos sacrifícios — primeiramente do boi, e depois do bode — era
aspergido nela no dia da expiação. Os querubins olhavam para aquele
sangue, e o olhar de Deus repousava sobre ele; e, por causa do sangue,
podia aceitar o povo. Era uma expiação, ou tampa de cobertura; pois o próprio
Deus não olha através do sangue precioso. E um a tampa totalmente
suficiente para o nosso pecado, de modo que lemos; “Naquele dia o
Sacerdote fará expiação por vocês, a fim de purificá-los, a fim de estejam
puros dos seus pecados diante do Senhor”. Pode ser dito a respeito deste
tipo, o que foi dito na páscoa: “Quando eu vir o sangue, passarei por cima de
vocês”. Em cada caso, o sangue era para ser visto por Deus somente; pois
ninguém podia entrar no Lugar Santíssimo senão o Sumo Sacerdote, e
mesmo ele, somente nessa única ocasião.

Em notas explicativas, a Bíblia de Estudo Nova Versão Transformadora (2016,


p.128) traz uma abordagem significativa sobre o tema:
Durante o período em que os israelitas vagaram pelo deserto, Arão se tornou
o primeiro Sumo Sacerdote de Israel. Deus nomeou Arão e seus filhos para
serem consagrados como Sacerdotes (28.1-5;29,1-46; Lv 8.1-36). O papel de
Arão como Sumo Sacerdote era especialmente importante na celebração
anual do Dia da Expiação, o único dia em que o Sumo Sacerdote entrava no
lugar santíssimo para purificá-lo dos efeitos do pecado de Israel (Lv 16).
Antes de o Sumo Sacerdote poder entrar, porém, tinha de oferecer um
sacrifício a fim de que seus próprios pecados fossem expiados.
Logo, o entendimento deste tipo de sacerdócio é o de que um homem, Arão e
sua descendência, foram escolhidos para estarem como Sumo Sacerdotes acima de
outros homens, os Sacerdotes-levitas, na hierarquia estabelecida por Deus na
formação do serviço religioso de Israel.
No entanto, por também estarem sob a influência do pecado, Arão não logrou
êxito em ser perfeito (Êx 32; Nm12). Nota-se com isto que em Arão estava a figura do
Sumo Sacerdote que precisava ser perfeito para estar na presença de Deus, figura
essa que tem a sua realização plena e total em Jesus Cristo.
3.4. A Representatividade no sacerdócio Levítico
Como já mencionado, a Bíblia também relata o nascimento da função
sacerdotal na figura da tribo de Levi, e muitos estudiosos apontam que o ponto inicial
deste conceito sacerdotal levítico se deu além das escolhas de Arão, na passagem
ocorrida depois da edificação do bezerro de ouro.
Ali, os descendentes da tribo de Levi, após o povo ter sido confrontado por
Moisés, se colocaram ao lado de Deus e fizeram parte do processo de purificação.
Assim, pode-se dizer que todos os Sacerdotes eram da tribo de Levi, mas nem todos
da tribo eram Sacerdotes, conforme se vê em Êxodo 32:
Pôs-se em pé à entrada do arraial e disse: — Quem é do Senhor venha até
mim. Então se juntaram a ele todos os filhos de Levi, aos quais ele disse: —
Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: “Cada um ponha a espada na cintura.
Passem e tornem a passar pelo arraial de porta em porta, e cada um mate o
seu irmão, o seu amigo e o seu vizinho”. E os filhos de Levi fizeram segundo
a palavra de Moisés e, naquele dia, morreram uns três mil homens. Pois
Moisés tinha dito: “Consagrem-se hoje ao Senhor, cada um contra o seu filho
e contra o seu irmão, para que hoje Deus lhes conceda uma bênção” (ÊXODO
32:26-29 - NAA).

No entanto, deve-se ressaltar que o início do surgimento do ofício sacerdotal


dentro da tribo de Levi não é simples de ser apontado. Diversas são as teses
defendidas e várias são as passagens que apontam para a instauração desse ofício.
Contudo, além de considerar a soberania de Deus na escolha de tal sacerdócio,
satisfatório é o entendimento de que a opção pela tribo de Levi passa pela
representação de todo povo no serviço a Deus. Vale ressaltar que tal escolha era,
também, uma representatividade dos filhos mais velhos, poupados no extermínio dos
primogênitos acontecido por ocasião da libertação israelita do Egito (Êx 12:28-30).
Nesse sentido, Schultz (1977, p.39) acrescenta que:
Em virtude de ter escapado da morte no Egito, o primogênito de cada família
pertencia a Deus. Escolhidos como substitutos pelo filho mais velho de cada
família, os levitas auxiliavam os Sacerdotes em seu ministério (Nm 3.5-13;
8.17). Desta forma, a totalidade da nação estava representada no ministério
sacerdotal.

Vaux (2003, p.398) aborda tanto a questão da dificuldade em apontar um início


sacerdotal dentro da tribo de Levi, como aborda seu papel representativo:
Os descendentes de Levi, o filho de Jacó, foram separados para exercer
as funções sagradas, por uma iniciativa positiva de Deus, Nm 1.50; 3.6s.
Eles foram tomados por Deus, ou dados a Deus, em lugar dos primogênitos
de Israel, Nm 3.12; 8.16. Segundo Nm 3.6, eles estão a serviço de Arão, mas,
segundo Êx 32.25-29, eles foram estabelecidos contra Arão que tinha
encorajado a idolatria do povo; por fim, segundo o texto atual de Dt 10.6-9,
foi após a morte de Arão que eles foram escolhidos por Moisés.

Os levitas eram, portanto, auxiliadores do Sumo Sacerdote Arão e de seus


herdeiros, e também possuíam diversas funções no contexto religioso de Israel.
Diante de tamanha responsabilidade, uma parte do livro de Levítico é destinada
à orientação da vida sacerdotal, com inúmeras recomendações a serem
criteriosamente observadas.
Hindson e Yates (2014, p.81) esclarecem essa assertiva com os comentários
abaixo:
Por causa da importância que os Sacerdotes tinham em sua função de liderar
a nação à santidade prática e à comunhão com Deus por meio da
administração correta dos sacrifícios, os três capítulos seguintes (8-10) são
dedicados a discussão sobre o sacerdócio. Especificamente, esses
capítulos abrangem a consagração (cap.8), a iniciação (cap.9) e a
condenação de Sacerdotes (cap.10). Ao passo que Êxodo 28-29 explica
como os Sacerdotes deveriam ser selecionados, ungidos e preparados para
o ministério, Levítico 8-9 apresenta, essencialmente, o cumprimento dessas
instituições. Depois de Israel ser reunido (Lv 8.1-5), a consagração dos
Sacerdotes caracterizou-se por vestimentas limpas e apropriadas (Lv 8.6-9),
unção (Lv 8.10-13) e várias ofertas feitas em favor deles (Lv 8.14-36). Após
receber certas instruções, eles foram consagrados e abençoados (Lv 9), mas
os filhos de Arão (Nadabe e Abiú) não trataram Deus como um ser santo, e,
por isso, Ele os entregou à morte (Lv 10.1-7).

3.5. Jesus Cristo, O Grande Sumo Sacerdote


Como se constatou até aqui, este era o cenário religioso que estava sendo
desenvolvido em Israel, ou seja, os Sumos Sacerdotes e os Sacerdotes estavam
dispostos em uma escala hierárquica com responsabilidades distintas e todas elas
apontavam para Deus. Contudo, com o surgimento de Jesus Cristo, um novo modelo
sacerdotal emerge, comprovando que todo o sistema anterior a Ele era apenas uma
figura daquilo que seria revelado (Cl 2:7). Em Cristo e por meio de Seu sacerdócio
constatou-se, com clareza, a impossibilidade do homem se aproximar de Deus,
segundo os padrões de santidade propostos pelo próprio Deus.
A carta aos Hebreus apresenta, sem dúvida, a melhor definição que se tem
sobre o sumo sacerdócio de Jesus, dando entendimento a todo o sistema que tinha
vindo antes dEle. E este, aliás, é o tema central do livro. O autor de Hebreus traz o
entendimento de todo o sistema sacerdotal sob uma nova perspectiva interpretativa,
isto é, sob a ótica da pessoa do Filho de Deus. Nesse novo momento, é possível
perceber que Cristo cumpriu todos os altíssimos padrões exigidos por Deus e, assim,
se tornou o Sumo Sacerdote capaz de ter misericórdia e graça para com os homens
pecadores.
Dentre as várias características exigidas, a primeira diz respeito ao fato do
Sumo Sacerdote ter de ser um homem escolhido por Deus para representar seus
pares, oferecendo sacrifícios em favor deles, e o capítulo cinco do livro de Hebreus
demonstra este aspecto na pessoa de Jesus:
Cada Sumo Sacerdote, sendo escolhido dentre os homens, é constituído nas
coisas relacionadas com Deus, a favor dos homens, para oferecer dons e
sacrifícios pelos pecados. Ele é capaz de se compadecer dos ignorantes e
dos que se desviam do caminho, pois também ele mesmo está rodeado de
fraquezas. Por esta razão, deve oferecer sacrifícios pelos pecados, tanto do
povo como de si mesmo. E ninguém toma esta honra para si mesmo, a não
ser quando chamado por Deus, como aconteceu com Arão. Assim, também
Cristo não glorificou a si mesmo para se tornar Sumo Sacerdote, mas quem
o glorificou foi aquele que lhe disse: “Você é meu filho, hoje eu gerei você”
(HEBREUS 5:1-5 – NAA).

Percebe-se nas linhas expostas os princípios básicos que estavam de acordo


com o entendimento judaico em relação ao Sumo Sacerdote e que tinham se cumprido
em Jesus, dando-lhe autoridade para desempenhar tal posição e montada a base para
a confiança de todo aquele que se aproximaria dEle. Contudo, o sacerdócio de Cristo
é superior ao de Arão e de todos os Sumos Sacerdotes, quer sejam anteriores ou
posteriores a ele, uma vez que diferente destes, em Cristo não se achou pecado
durante o seu ministério terreno, como se vê abaixo:
Porque nos convinha um Sumo Sacerdote como este, santo, inculpável, sem
mácula, separado dos pecadores e exaltado acima dos céus, que não tem
necessidade, como os outros Sumos Sacerdotes, de oferecer sacrifícios
todos os dias, primeiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do povo;
porque fez isto uma vez por todas, quando a si mesmo ofereceu. Porque a lei
constitui homens sujeitos a fraquezas como Sumos Sacerdotes, mas a
palavra do juramento, que foi posterior à lei, constitui o Filho, perfeito para
sempre (HEBREUS 7:26-28 – NAA)

A este respeito, Pfeiffer, Vos e Rea (2000, p.20) comentam:

O crente do AT aproximava-se de Deus através de um Sacerdote, depois de


ter oferecido sacrifícios pelos seus pecados; o crente do NT aproxima-se
diretamente por causa de, e através de Jesus Cristo. O conceito de acesso
só pode ser adequadamente entendido pela revelação do AT de que Deus é
Rei e, portanto, devemos nos aproximar dele por meio de um representante
digno e qualificado (Sl 47.7).

Dessa maneira, a perfeição do sacerdócio de Cristo já é relatada logo de início,


quando é demonstrado um Sumo Sacerdote perfeito, algo inimaginável para qualquer
homem comum. Mas, há ainda outros pontos de muita importância na posição
assumida por Cristo Jesus e defendida pelo escritor aos Hebreus. No capítulo sete
desta carta, o sacerdócio de Cristo é apresentado como superior ao levítico e o
fundamento para a defesa dessa tese apresentada está no sacerdócio tipológico de
Melquisedeque; estudado anteriormente.
Sendo Jesus da tribo de Judá, uma vez que não se vê em momento algum
qualquer tipo de menção de sacerdócio nessa tribo (pois o sacerdócio era exclusivo
da tribo de Levi), o autor aos hebreus demonstra que Cristo foi o esclarecimento do
encontro relatado em Gênesis 14.
Sendo Melquisedeque aquele que recebeu o dízimo de Abrão, deixando de
forma explícita que ele era superior ao Patriarca, o autor da carta neotestamentária
demonstra que toda a tribo de Levi, e consequentemente a Lei que a regia, também
eram inferiores. Dessa forma, é apresentado mais um aspecto do sacerdócio de
Cristo: sua superioridade à Lei de Moisés e a certeza de que esta posição assumida
por Jesus é eterna. Isso pode ser visto nos seguintes versículos:
Porque este Melquisedeque, rei de Salém, Sacerdote do Deus Altíssimo, foi
ao encontro de Abraão, quando este voltava da matança dos reis, e o
abençoou. Foi para ele que Abraão separou o dízimo de tudo. Primeiramente
o nome dele significa “rei da justiça”; depois também é “rei de Salém”, ou seja,
“rei da paz”. Sem pai, sem mãe, sem genealogia, ele não teve princípio de
dias nem fim de existência, mas, feito semelhante ao Filho de Deus,
permanece Sacerdote para sempre. Vejam como era grande esse a quem
Abraão, o patriarca, pagou o dízimo tirado dos melhores despojos.Ora, os
que dentre os filhos de Levi recebem o sacerdócio têm ordem, de acordo com
a lei, de recolher os dízimos do povo, ou seja, dos seus irmãos, embora estes
sejam descendentes de Abraão. Entretanto, aquele cuja genealogia não se
inclui entre os filhos de Levi recebeu dízimos de Abraão e abençoou aquele
que havia recebido as promessas. Evidentemente, não há dúvida de que o
inferior é abençoado pelo superior.
Aliás, aqui os que recebem dízimos são homens mortais, porém ali o dízimo
foi recebido por aquele de quem se testifica que vive. E, por assim dizer,
também Levi, que recebe dízimos, pagou-os na pessoa de Abraão. Porque
Levi, por assim dizer, já estava no corpo de seu pai Abraão, quando
Melquisedeque foi ao encontro deste. Portanto, se a perfeição fosse possível
por meio do sacerdócio levítico — pois foi com base nele que o povo recebeu
a lei —, que necessidade haveria ainda de que se levantasse outro
Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque, e não segundo a ordem de
Arão? Pois, quando se muda o sacerdócio, necessariamente muda também
a lei.
Porque aquele de quem são ditas estas coisas pertence a outra tribo, da qual
ninguém prestou serviço diante do altar. Pois é evidente que nosso Senhor
procedeu de Judá, tribo à qual Moisés nunca falou nada a respeito de
sacerdócio. E isto é ainda muito mais evidente, quando, à semelhança de
Melquisedeque, surge outro Sacerdote, constituído não conforme a lei de
mandamento carnal, mas segundo o poder de vida que não tem fim.
Porque dele se testifica: “Você é Sacerdote para sempre, segundo a ordem
de Melquisedeque.” Portanto, por um lado, se revoga a ordenança anterior,
por causa de sua fraqueza e inutilidade (HEBREUS 7:1-18 – NAA).

Logo, em Jesus Cristo, encontra-se um sacerdócio com as mesmas


prerrogativas que os judeus já estavam acostumados. Mas sob uma nova lei (Hb 7:12),
independente, tal qual fora o de Melquisedeque e recebido diretamente do Deus
Altíssimo, demonstra, dessa maneira uma descontinuidade dos sacerdócios
anteriores (Hb 8:6-13), visto que, tudo aquilo era figurativo, permanecendo, no
entanto, os princípios espirituais envolvidos.
Outro ponto de grande destaque em relação ao sacerdócio de Cristo diz
respeito a sua entrada no santuário para se oferecer em sacrifício em favor dos seres
humanos, como pode ser visto no capítulo nove da carta aos hebreus:
Quando, porém, Cristo veio como Sumo Sacerdote dos bens já realizados,
mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos humanas,
quer dizer, não desta criação, e não pelo sangue de bodes e de bezerros,
mas pelo seu próprio sangue, ele entrou no Santuário, uma vez por todas, e
obteve uma eterna redenção.
Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha,
aspergidos sobre os contaminados, os santificam quanto à purificação da
carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo
ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas,
para servirmos ao Deus vivo! (HEBREUS 9:11-14)

Assim, todos os ritos de sacrifícios caducaram após o sacrifício único e perfeito


de Cristo. E assim como o sangue dos animais santificava aqueles sobre o qual era
aspergido, muito mais significado e importância tem o sangue do Sumo Sacerdote
Jesus, que não apenas purifica a carne, mas tira o pecado de muitos (Hb 9.28). Todo
homem que recebe esse sacrifício sacerdotal como verdadeiro, adentra em uma nova
aliança, e se torna coparticipante da obra sacerdotal de Cristo, como pode ser visto
em Hebreus dez:
Portanto, meus irmãos, tendo ousadia para entrar no Santuário, pelo sangue
de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto
é, pela sua carne, e tendo um grande Sacerdote sobre a casa de Deus,
aproximemo-nos com um coração sincero, em plena certeza de fé, tendo o
coração purificado de má consciência e o corpo lavado com água pura.
Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a
promessa é fiel.
Cuidemos também de nos animar uns aos outros no amor e na prática de
boas obras.

O autor aos Hebreus, portanto, ressalta a grandiosidade do Sacerdote de


Cristo, visto que, nEle, todos os modelos sacerdotais se concretizaram. Cristo é o
clímax de figura sacerdotal do Antigo Testamento. E agora, tudo o que era sobra se
torna pleno com a encarnação e a obra de Cristo. Tal realidade não altera apenas
todo o sistema sacrificial anterior, mas muda radicalmente as consequências de tal
sacerdócio para aqueles que se apropriam da obra sacrificial na cruz do único e
perfeito Sumo Sacerdote, Cristo Jesus. É com base nisso que todos os que creem
passam a ter uma nova perspectiva em suas vidas, sob o prisma de um sacerdócio
universal.
3.6. Sacerdócio Real de Todos os Cristãos, Uma Graciosa Responsabilidade
Como se percebe, é maravilhosa para o cristão a obra e a posição de Sumo
Sacerdote de Cristo Jesus, pois através dEle, todos os que creem estão habilitados
para exercerem um papel sacerdotal no reino de Deus.
Pedro, discípulo e apóstolo de Jesus, teve total entendimento disso, tanto que
em sua carta, ele, fazendo menção ao Antigo Testamento, adverte aos cristãos de
sua época a viverem de forma sacerdotal, principalmente em relação à adoração, ao
serviço e ao testemunho:
[...]também vocês, como pedras que vivem, são edificados casa espiritual
para serem sacerdócio santo, a fim de oferecerem sacrifícios espirituais
agradáveis a Deus por meio de Jesus Cristo (1 PEDRO 2:5 – NAA).

Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de
propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamar as virtudes daquele que
os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1 PEDRO 2:9 – NAA).

Essa é uma quebra do paradigma sacerdotal do Antigo Testamente que só


existe por causa de Cristo. A partir do entendimento exposto por Pedro, é apresentado
o último tipo de sacerdócio que este trabalho se propõe a analisar: o sacerdócio real
de todos os cristãos. Para tanto, será de grande valia olhar mais detalhadamente para
os versículos citados acima.
De início, deve-se notar o paralelo feito por Pedro entre o Sacerdote e os
sacrifícios. Como já comentado, era o Sumo Sacerdote que tinha este privilégio. Mas
a partir de, e em Jesus, todos têm acesso ao local da adoração (Mt 27:51).
Assim, o caminho da adoração não é mais exclusivo de uma classe de pessoas;
suplantando, assim, os sacrifícios judaicos. O homem, tanto judeu quanto gentio, que
outrora era pecador, pode-se aproximar de um Deus que é santo (Rm 12:1-2).
No versículo nove, Pedro faz uma aplicação do texto de Êxodo capítulo
dezenove, versículos cinco e seis, sob a ótica de Cristo. Em primeiro lugar, tal qual
aconteceu com Israel (Is 43:20b-21), aqueles que estão em Cristo foram escolhidos
por Deus e isto não se deu por mérito humano (Jo 15:16), mas unicamente pelo amor
que Deus pelos escolhidos (1 Jo 4:9). A eleição não se dá por obras humanas, e sim
por graça divina, e isto foi visto tanto em Israel como na igreja.
Também é possível entender que todo cristão não é apenas um Sacerdote,
mas, sim, um Sacerdote real; ou seja, pertencente ao corpo de reis (Ap 1:6; 5:10) que
exercem o ofício sacerdotal, pertencentes ao Rei dos reis e introduzidos no Reino
dele. Horton (1974, p.31) comenta que:
Tais expressões (1 Pe 2.9) faziam parte da promessa feita por Deus a Israel
no Sinai. Se tivessem ouvido sua voz e guardado sua aliança, estas coisas
seriam verdades para eles (Êx 19.5,6). Mas, devida a sua desobediência,
estas relações e ministérios nunca chegaram a ser cumpridos na íntegra.
Fez-se necessária a Nova Aliança para conduzir judeus e gentios a um novo
corpo. Sob a Lei, somente algumas pessoas eram separadas como
Sacerdotes. A massa do povo, que não era descendente de Arão, não tomava
parte no ministério do templo. Mas sob a graça, todos os crentes fazem parte
do sacerdócio. O cristão não precisa de ninguém, somente de Jesus, para lhe
dar acesso ao Santo dos santos, à presença de Deus (Hb 10.19,20).

Essa é uma mudança crucial. Afinal, a partir de agora, a mediação não é mais
humana. Cristo é o mediador e agora, qualquer crente em Jesus, pode ter acesso ao
Pai. Além disso, Pedro ressalta que estes Sacerdotes são de propriedade exclusiva
de Deus, sendo preservados por Ele e tendo como função anunciar ao mundo as
maravilhas feitas por Deus, tal qual foi o objetivo inicial para Israel; ou seja, ser benção
para todas as nações.
A este respeito, diz Shedd (1993, p.45-46):
Esses filhos do Rei não devem viver ociosamente nem exultar com a glória
de sua honra. Antes, são vocacionados para o ministério pontificial (do latim,
ponte, “mediador”). A missão sacerdotal de Israel na velha aliança que Deus
constituiu como nação foi a de servir de ponte entre o Todo-Poderoso e as
nações do mundo (Êx 19.6). Hoje, todos os que participam do sacerdócio em
virtude de sua adoção na família real de Deus devem servir mediante a
intercessão (a ponte da oração), mediante a evangelização (a ponte da
comunicação), mediante o serviço (a ponte da realização) e mediante
demonstração do amor de Deus na prática.

Para além do contato direto com Deus, o cristão é um privilegiado. Ele é


chamado a participar da obra de Deus em testemunho a todas as pessoas e nações.
O crente em Jesus é chamado ao serviço a Deus e às pessoas, assim como eram os
levitas. Contudo, este conceito sacerdotal na figura de Cristo foi esquecido, ao longo
dos tempos, por alguns durante toda a história da igreja cristã. Ainda assim, conforme
seu bom propósito, Deus levantou homens piedosos em determinados tempos para
que pudessem ressaltar tal importância. É claro que, neste caso, falamos dos
reformadores, que se debruçaram sobre esta importante doutrina bíblica na tentativa
de corrigir diversos equívocos cometidos por muitos que não aplicaram o sacerdócio
universal do cristão a partir da pessoa de Jesus Cristo.
4. O SACERDÓCIO UNIVERSAL DOS CRENTES – UMA PERSPECTIVA
TEOLÓGICA E HISTÓRICA
Para além das narrativas bíblicas delineadas acima, importa perceber como o
assunto foi desenvolvido na história da igreja. Como dito há pouco, tal doutrina foi,
paulatinamente, sendo ignorada pela igreja da época. E é somente no período da
Reforma que o sacerdócio universal dos crentes emerge com força e vigor, mudando,
de forma significativa, os caminhos da igreja. Por isso, é de fundamental importância
apreender como o assunto foi tratado pelos reformadores.
4.1 Lutero e o sacerdócio, a Retomada da Concepção: “De Alguns Para Todos”
Depois de passar de perseguida para perseguidora, a igreja cristã adentrou em
um período tido por alguns como período das trevas. E foi, exatamente neste período,
mas propriamente, na Idade Média, que foi desenvolvida plenamente a ideia do
sacerdócio clerical. Tal conceito, distante do que se propunha a partir de Cristo, era
concebido por meio de uma classe distinta, entre Sacerdotes e leigos. Os clérigos, em
sua posição hierárquica, foram dotados de dignidade e direitos especiais, se
afastando completamente daquilo que fora ensinado por Jesus e fora vivido
amplamente pela igreja primitiva; ou seja, que todos os cristãos são Sacerdotes,
membros de um mesmo corpo, com funções distintas. Esta ideia se entranhou de tal
maneira na igreja de modo que aqueles que ousassem pensar de forma diferente
estariam sujeitos a severas punições.
Contudo, alguns homens redescobriram princípios básicos que foram
abandonados, e confrontaram de forma veemente as doutrinas ensinadas pela Igreja
Católica Apostólica Romana. Dentre os vários nomes que se insurgiram e mais se
destacaram neste cenário, estão Martinho Lutero e João Calvino.
Lutero era um monge agostiniano, alemão, e teve sua vida totalmente mudada
quando entendeu que a salvação do homem se dava pela fé em Cristo Jesus e não
necessitava das penitências ou das obras, conforme era ensinado pelos Sacerdotes
de sua época.
Depois desta grande descoberta, e envolto em grandes crises contra o sistema
religioso dominante da época, Lutero se dispôs a refutar todas as doutrinas que eram
vividas e incentivadas pela Igreja romana, mas que eram conflitantes com a Bíblia.
George (1994, p.145), fazendo um paralelo entre a igreja primitiva e a igreja
medieval, comentou em relação à ceia, algo que traduz o contexto vivido por Lutero:
Até a época da reforma, entretanto, esse rito sofrera um desenvolvimento tão
drástico que dificilmente seria reconhecido como o mesmo evento. Em
primeiro lugar, tornara-se “clericalizado”. Em vez de um ato de adoração com
a participação de toda a igreja, a missa passou a ser uma tarefa especial
realizada pelo clero ordenado. A Eucaristia continuava a ser celebrada a cada
domingo, mas a congregação não mais participava, a não ser na Páscoa.
Como a missa era função do Sacerdote e não do povo, o latim tornou-se a
língua da liturgia em lugar da língua do povo. Naquelas raras ocasiões em
que o povo participava, davam-lhe apenas pão, sendo que o vinho ainda
permanecia reservado para os Sacerdotes.

Percebe-se como o conceito clerical e sacerdotal implementado pela igreja


alterou significativamente a proposta neotestamentária para o que deveria ser o povo
de Deus, a igreja de Jesus. Em outro ponto de sua obra George mostra como a igreja
estava familiarizada com as filosofias de sua época, inserindo-as nas doutrinas
bíblicas:
Após o IV Concílio Laterano, em 1215, os teólogos católicos medievais
explicavam a presença de Cristo na Eucaristia com referência ao dogma da
transubstanciação. Usando as categorias da filosofia aristotélica, eles
ensinavam que, no momento da missa em que o Sacerdote consagra o pão
e o vinho, um milagre ocorre: a substância dos elementos é subitamente
transformada (transubstanciada) no corpo e no sangue de Cristo, enquanto
os acidentes dos elementos permanecem os mesmos. Em outras palavras,
quando o Sacerdote erguia o pão do altar e dizia “Hoc est corpus meum”,
estava realmente segurando nas mãos o próprio corpo de Cristo, embora
ainda parecesse e tivesse gosto de pão.

É percebível desta forma que, se o pão e o vinho se transformavam no corpo e


no sangue de Cristo literalmente (doutrina da transubstanciação), como consequência
disso, aqueles que ministravam tais elementos eram dotados de uma posição
privilegiada, distanciando assim ainda mais o clero (Sacerdotes) dos leigos (pessoas
que não possuíam uma posição dentro do sistema eclesiástico vigente). Além disso,
com tal rito, o sacrifício de Cristo perdia sua validade, afinal, a cada eucaristia o corpo
de Cristo era sacrificado novamente.
Toda a vida da igreja estava nas mãos do papa e dos Sacerdotes, e para se
consolidarem mais nessa posição, a Igreja de Roma afirmara outra aberração, a de
que somente o magistério da Igreja, isto é, os clérigos, tinha o poder de interpretar
corretamente a Bíblia. Dessa forma, suas doutrinas errôneas foram cada vez mais
incutidas na mente dos leigos, sem qualquer oportunidade de refutação. Nada mais
poderia ser tão contraditório à doutrina do sacerdócio de todos os crentes.
Desta maneira, o então monge agostiniano se levantou em oposição a estes e
outros desvios doutrinários. Para além das diversas contribuições e ressignificações
teóricas propostas por Lutero, entretanto, de acordo com George (1994, p.90), “a
maior contribuição de Lutero à eclesiologia protestante foi sua doutrina do sacerdócio
de todos os cristãos”.
Por isso, aqui se constata a importância de se explorar a forma de pensar desse
reformador em relação ao tema estudado; visto ser de grande valia e de aplicabilidade
para os dias hodiernos.
As palavras de George (1994, p.96) são esclarecedoras para se ter uma noção
do pensamento de Lutero:
Lutero rompeu decisivamente com a divisão tradicional da igreja em duas
classes, clero e laicato. Todo cristão é um Sacerdote em virtude de seu
batismo.
Esse sacerdócio deriva diretamente de Cristo: “Somos Sacerdotes como ele
é Sacerdote, filhos como ele é Filho, reis como ele é Rei”. Mais ainda, cada
membro da Gemeíne tem parte igual nesse sacerdócio. Isso significa que os
ofícios sacerdotais são propriedades comum de todos os cristãos, não
prerrogativa especial de uma casta seleta de homens santos. Lutero
enumerou sete direitos que pertencem a toda a igreia: pregar a Palavra de
Deus, batizar, celebrar a Santa Comunhão, carregar “as chaves”, orar pelos
outros, fazer sacrifícios, julgar a doutrina. Lutero baseou sua afirmação de
que todos os cristãos são Sacerdotes no mesmo grau em dois textos do Novo
Testamento: “Vós [...] sois [...] sacerdócio real” (1 Pe 2.9), e “nos constituiu
reino, Sacerdotes” (Ap 1.6).

Em objeção à invenção de que somente o magistério da igreja romana tinha o


poder de interpretar corretamente a Bíblia, Lutero também utiliza a doutrina do
sacerdócio universal dos cristãos:
É pura invenção que o papa, os bispos, Sacerdotes e monges devem ser
chamados ao estado espiritual, enquanto príncipes, senhores, artesãos e
fazendeiros sejam chamados ao estado temporal... Todos os cristãos, na
verdade, pertencem ao estado espiritual e, entre eles, não há diferença
exceto a do ofício (...) Sua afirmativa de que só o papa pode interpretar a
Escritura é uma fábula ultrajante e fantasiosa (LUTERO, apud SPROUL e
NICHOLS, 2017, paginação irregular – Edição Kindle)

Para Lutero, portanto, a ênfase está na premissa de que todos os cristãos são
Sacerdotes, todos tem os mesmos privilégios e direitos e todos tem livre acesso a
Deus. A distinção se dá apenas no ofício de cada um, afinal, cada pessoa é chamada
de alguma forma, para algum propósito específico. Alguns no ministério da Palavra,
outros em sua própria vocação. Contudo, todos igualmente Sacerdotes de e em
Cristo, em serviço a Deus e ao povo de Deus.
Alguns tratados foram escritos por Lutero durante a guerra que se instalou entre
ele e o papa, representante maior da Igreja romana. E no terceiro destes, em defesa
de suas fortes convicções teológicas, o monge agostiniano escreveu o livreto intitulado
“Da Liberdade Cristã”, de poucas páginas, mas tido como um dos melhores escritos
do reformador.
Nele, Lutero não defendia uma liberdade cristã que conduzisse ao ócio, mas
sim uma liberdade bíblica, atrelada à pessoa de Cristo.
Lessa (2017, paginação irregular) diz:
A ideia principal do opúsculo consiste no princípio de que o cristão é senhor
de todas as coisas, tudo lhe está sujeito e, em virtude da fé, a ninguém se
submete. Por outro lado, em virtude do amor, é servo de todos e sujeito de
cada um. As duas virtudes constituem a vida do cristão, uma o prende a Deus,
a outra ao próximo. É a doutrina de São Paulo. Imitar a Cristo deve ser o ideal
do cristão.

Certamente, colocar todos os cristãos em um mesmo patamar de igualdade e


expressar de forma bem clara que o mesmo era livre em Cristo foi um grande golpe
para o poder dominante religioso da época.
Junto desse pensamento, Lutero desenvolveu a questão das obras praticadas
pelos cristãos, demonstrando seu total entendimento sobre o que o apóstolo Pedro
falou em sua carta quando reiterou que os Sacerdotes são chamados “a fim de
proclamar as virtudes daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”
(1 PEDRO 2:9).
O cristão, segundo o tratado de Lutero, em total consonância com a Bíblia e
com a doutrina do sacerdócio universal, não é justificado pelas obras, mas unicamente
pela fé em Jesus. É a fé que constitui o crente e dignifica suas obras, como
demonstrou Lessa (2017, paginação irregular):
Não rejeitamos as boas obras; encarecemo-las no mais alto grau:
“Concluímos então que o cristão não vive em si e para si mesmo, mas em
Cristo e no próximo – ou não será cristão absolutamente. Em Cristo vive pela
fé, no próximo vive pelo amor. Pela fé sobe até Deus, pelo amor desce até o
próximo”.

Com estas palavras, é nítido ver o compromisso que Lutero tinha com as
Escrituras, e o papel que o sacerdócio de todos os cristãos teve na cosmovisão do
reformador. Assim como eram os Sacerdotes dos tempos da antiga aliança, os
cristãos, em Cristo, estão em uma posição de privilégio, onde podem se achegar a
Deus para servi-Lo, e também tendo por obrigação levarem outros a esta posição de
graça. Lutero deu seguimento a uma grande guerra doutrinária ao se opor de forma
contundente às práticas antibíblicas, tidas como normais na sociedade da Idade
Média.
O que se percebe no contexto em que o reformador viveu, é que de um lado
existiam homens sedentos por poder e lugar de destaque, e estes encontraram na
religião e nos conceitos caducados do sacerdócio uma oportunidade para exercerem
o domínio sobre os demais.
No entanto, por outro lado, encontravam-se pessoas totalmente dispersas das
mais nobres doutrinas bíblicas.
Da mesma forma como o povo hebreu clamou para que Moisés fosse o
mediador entre eles e Deus, ao que parece, esta prática ainda se encontrava
arraigada nos corações daqueles que, em Cristo, foram postos em outro nível de
relacionamento com Deus. O que se sabe é que Lutero foi aquele que desferiu duros
golpes; contudo, outros ainda tiveram que percorrer o mesmo caminho na tentativa de
consolidar uma doutrina que foi se tornando turva com o passar dos anos na história
da igreja cristã.
4.2. Calvino: Nas Pegadas de Lutero; nas Pegadas de Jesus
Outro importante nome do período da Reforma foi João Calvino (1509-1564).
Um pouco posterior a Lutero, pode-se dizer que ele deu segmento à visão que estava
sendo estabelecida pelo alemão no contexto religioso da época, sendo Calvino,
considerado pelos estudiosos, um reformador da segunda geração.
Apesar de nunca terem tido contato pessoal, alguns historiadores afirmam que
Calvino foi um dos maiores discípulos de Lutero, como se vê nas palavras de Pelikan
(1968, p.79), citado por George (1994, p.166):
Os dois reformadores nunca se encontraram pessoalmente. Ainda assim,
Lutero elogiou alguns dos primeiros escritos de Calvino que lhe haviam sido
enviados. Calvino, por sua vez, chamou Lutero de seu “pai muito respeitável”
e posteriormente declarou: “Nós o consideramos um extraordinário apóstolo
de Calvino, por meio de cujo trabalho e ministério, acima de tudo, a pureza
do evangelho foi restaurada em nossa época”. Ao contrário de Zuínglio,
Calvino nunca declarou ser teologicamente independente de Lutero. Mesmo
assim, não foi um simples imitador de Lutero.

Assim como Lutero, João Calvino teve uma límpida compreensão sobre o
sacerdócio universal dos cristãos. E este entendimento se deu pela alta compreensão
que teve de Cristo.
A este respeito, George (1994, p.215) comenta:
Pois Cristo sozinho faz todas as outras coisas subitamente desaparecerem.
Portanto, não há nada que Satanás mais tente fazer do que levantar névoas
para obscurecer Cristo; pois ele sabe que dessa forma o caminho está aberto
para todo tipo de falsidade. Assim, o único meio de manter e também
restaurar a doutrina pura é colocar Cristo diante de nossos olhos, exatamente
como ele é, com todas as suas bênçãos, para que seu poder possa ser
verdadeiramente percebido.

Seguindo a forma de pensar da visão reformada que se instalara na época,


Calvino via o sacerdócio universal dos cristãos como algo que expunha a relação
íntima entre o crente e seu Deus, sem a necessidade de nenhum outro nome, a não
ser o de Jesus. Longe de negar a validade dos ministros e líderes ordenados, o que
permeava o pensamento do reformador era os abusos que normalmente eram
inerentes a esta classe religiosa. Dessa forma, Calvino não apenas se opunha ao
clericalismo dominante, como também chamava os cristãos para a responsabilidade
de uma vida digna diante de Deus, sendo isso tanto uma responsabilidade como um
grande privilégio.
Em sua principal obra, Institutas da Religião Cristã, João Calvino (1536, p.255,
vol.2) atrela Cristo ao sacerdócio universal, uma vez que este só pode ser exercido
devido à condição sacerdotal daquele, como pode ser visto:
Agora Cristo exerce a função de Sacerdote, não só para que, mercê da eterna
lei de reconciliação, nos torne o Pai favorável e propício, mas ainda para que
nos admita à participação de tão grande honra [Ap 1.6]. Ora, que em nós
mesmos somos depravados, todavia Sacerdotes nele, oferecemos a Deus a
nós mesmos e a tudo que é nosso e entramos livremente no santuário
celeste, para que sejam agradáveis e de bom odor à vista de Deus os
sacrifícios de preces e de louvor que de nós procedem. E até este ponto se
estende essa afirmação de Cristo: “Por causa deles a mim mesmo me
santifico” [Jo 17.19], porquanto, banhados de sua santidade, até onde
consigo nos consagrou ao Pai, nós que, de outro modo, cheiramos mal diante
dele, lhe agradamos como se fôssemos puros e limpos, aliás, até mesmo
santos.

Já no volume 4, Calvino continua a confrontar os Sacerdotes de sua época,


uma vez que estes diziam ser Sacerdotes sacrificadores. Calvino os chamou de
“contraventores para com Cristo” (CALVINO, 1536, p.541).
Cada vez mais Calvino ressalta sua convicção em Cristo e na sua obra,
refutando tudo o que se opusesse a Ele, principalmente na tentativa lesiva de Roma,
ao tentar reivindicar práticas Veterotestamentárias, a fim de ter o controle das
pessoas.
Essas práticas, segundo os romanistas, conferiam aos Sacerdotes de Roma a
responsabilidade de oferecer, no altar, o corpo e o sangue de Cristo, além de formular
orações e abençoar as dádivas de Deus.
Dessa forma, sendo usado por Roma, o texto de 1 Pedro 2:9 para ratificar essa
posição, não era de se esperar outra coisa que não fosse uma visão geral de que
estes Sacerdotes eram autoridades espirituais, distanciando-os ainda mais das
pessoas comuns; em total contradição à doutrina sacerdotal de todos os crentes.
A este respeito, Calvino (1536, p.440, vol.4) comentou:
De princípio, a todos quantos alistam em sua milícia ao clericato os iniciam
com um símbolo comum, pois os raspam no topo da cabeça, para que a coroa
signifique dignidade real, porque os clérigos devem ser reis para regerem a
si mesmos e aos outros. Ora, sustentam, Pedro assim fala deles: “Vós sois a
raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo de sua aquisição” [1Pe
2.9]. Mas, foi um sacrilégio arrogar só para si o que se atribui à Igreja toda, e
soberbamente gloriar-se de um título que haviam arrebatado aos fiéis. Pedro
fala em relação a toda a Igreja; esses o aplicam a uns bem poucos
tonsurados, como se somente a eles fosse dito: “Sede santos” [1Pe 1.15, 16;
assim Lv 19.2; 20.7], como se somente eles fossem adquiridos pelo sangue
de Cristo [1Pe1.18, 19], como se somente eles fossem feitos, através de
Cristo, reino e sacerdócio para Deus [1Pe 2.5, 9]!

Calvino ratifica o seu modo de pensar sobre o sacerdócio e os absurdos


cometidos pelos Sacerdotes romanistas, novamente apontando para Cristo, sua obra
e as promessas feitas em relação ao seu Nome. O reformador, com muita maestria,
demonstra que o sacerdócio do Antigo Testamento se encerrou em Cristo, e a não ser
que se esteja nEle, nenhum homem pode conquistar tal posição:
Ora, Cristo é o único Pontífice e Sacerdote do Novo Testamento, a quem
foram transferidos todos os sacerdócios e em quem foram eles concluídos e
encerrados. Ainda que a Escritura nada lembrasse acerca do eterno
sacerdócio de Cristo, uma vez que, no entanto, Deus cancelara aqueles
sacerdócios antigos, nenhum outro instituiu em seu lugar, o argumento do
Apóstolo permanece invencível: “Ninguém toma para si essa honra, senão
aquele que foi chamado por Deus [Hb 5.4]. Com que ousadia, pois, esses
sacrílegos, que se gabam de ser carrascos de Cristo, ousam chamar-se
Sacerdotes do Deus vivo? (CALVINO, 1536, p.413).

Calvino também esclarece sobre a Ceia do Senhor e os sacrifícios oferecidos


a Deus após Cristo Jesus, demonstrando os crassos erros teológicos cometidos à
época e que afrontavam a doutrina do sacerdócio universal do cristão, deixando
explícito que em nada se comparavam com os sacrifícios feitos pelo arcaico
sacerdócio levita:
A Ceia do Senhor não pode carecer de sacrifício deste gênero, na qual,
enquanto anunciamos sua morte [1Co 11.26] e rendemos ação de graças,
outra coisa não oferecemos senão um sacrifício de louvor. É por causa deste
ofício de oferecer sacrifícios que todos os cristãos são chamados “um
sacerdócio real” [1Pe 2.9], visto que, pela intermediação de Cristo,
oferecemos esse sacrifício de louvor a Deus deque fala o Apóstolo, “o fruto
de lábios que confessam seu nome” [Hb 13.15]. Pois não comparecemos na
presença de Deus sem um intercessor, com nossas oferendas. É a esse
Cristo, que intercede como nosso Mediador, que nos oferecemos ao Pai, a
nós e a nossas coisas; Ele é nosso Pontífice que, entrando no santuário do
céu [Hb9.24], nos abriu acesso [Hb 10.10]; ele é o altar [Hb 13.10] sobre o
qual depomos nossas oferendas; nele ousamos tudo quanto; ainda digo que
ele é Aquele que nos fez reino e Sacerdotes para o Pai [Ap 1.6] (CALVINO,
1536, p.415).
Como se percebe, no período da Reforma, principalmente por meio de Lutero
e Calvino, em suas ênfases de retorno às Escrituras e da centralidade suficiente de
Cristo por meio de sua obra na cruz, a doutrina do sacerdócio universal de todo cristão
é resgatada e reafirmada, fazendo com que, assim, uma nova igreja surja alicerçada
sobre tal fundamento.
5. O SACERDÓCIO UNIVERSAL DOS CRENTES – UMA PERSPECTIVA
TEOLÓGICA E CONTEMPORÂNEA
Depois de se analisar as implicações bíblicas e teológicas dos diferentes tipos
de sacerdócio em toda a história de Deus com o seu povo, importa-nos perceber como
se desenvolve o sacerdócio Universal de todos os crentes e como tal doutrina está
sendo percebida e prática na atualidade.
5.1- A Igreja e o sacerdócio Universal: Jesus o Único Mediador
Uma vez que foram demonstradas as ideias centrais em relação ao sacerdócio,
assim como o fato do sacerdócio do Antigo Testamento ter sido apenas uma sombra
daquilo que seria cumprido plenamente em Jesus e, ainda, por mais que os cristãos
dos primeiros séculos tenham entendido e vivido tal conceito, a história atual nos
mostra que a doutrina do sacerdócio universal dos cristãos, por mais simples que seja,
carece de um novo movimento reformador, a fim de que seja vivida conforme a Bíblia
orienta.

Diversos são os aspectos nos dias atuais que comprovam tal afirmação, tais
como: o sentimento de obrigatoriedade de se estar na igreja aos domingos, aos invés
de um desejo de se estar em comunhão com os irmãos para adorarem a Deus; a visão
de que o pastor, ou líder, é dotado de “mais unção” do que os demais membros da
igreja; a concepção de que se pode viver de forma isolada dos demais membros da
igreja, dentre outros tantos. Como se constata, o tema é amplo e abrangente. Diante
disso, resta claro que não é possível, no presente trabalho, abordar todas as
implicações inerentes a esta visão teológica obscurecida ou reducionista. Sendo
assim, será tratado, à luz do que já foi exposto, aqueles que são percebidos como
mais perniciosos para uma vida cristã sadia.

O ponto de partida está relacionado à mediação entre o homem e Deus. Como


já visto, com base no estudo do sacerdócio universal, chegou-se ao entendimento de
que somente Jesus Cristo é o mediador entre Deus e o homem. Esta é a verdade
neotestamentária que mudou o sacerdócio para sempre. No entanto, não parece ser
esta a forma de se pensar da maioria dos cristãos atuais, uma vez que, ainda há,
mesmo que de forma velada, a errônea concepção de que os líderes eclesiásticos,
em especial os pastores, serem aqueles que ocupam tal posição diante de Deus. A
discussão sobre este ponto ganha contornos mais alarmantes quando os próprios
líderes advogam para si este lugar de superioridade, revivendo os tempos mais
sombrios da história cristã, determinando uma explícita e equivocada separação entre
duas classes de crentes, isto é, clérigos-Sacerdotes e leigos. Na obra “O que estão
fazendo com a igreja”, Augustus Nicodemus trata sobre esta questão a afirmar que:

Só assim consigo entender a aceitação generalizada por parte dos próprios


evangélicos de bispos e apóstolos autonomeados, mesmo após Lutero ter
rasgado a bula papal que o excomungava, queimando-a na fogueira. A
doutrina reformada do sacerdócio universal dos crentes e a abolição da
distinção entre clérigos e leigos ainda não permearam a cosmovisão dos
evangélicos no Brasil, com poucas exceções. […] Essa noção de mediação
humana passou para os evangélicos com poucas alterações. Até nas igrejas
históricas os crentes brasileiros agem como se a oração do pastor fosse mais
poderosa que a deles, considerando-o como um mediador entre eles e os
favores divinos (LOPES, (2008, p.27-28).

Esta visão distorcida da obra de Cristo resulta em alguns danos significativos.


Dentre outros, pode se destacar que o primeiro dano é que o “leigo”, ao assumir tal
propositura, deixa de desfrutar e desenvolver um relacionamento íntimo com o seu
Deus. Parece-nos que estes liderem tencionam desenvolver crentes imaturos,
limitados em sua fé, que dependem constantemente de que alguém os carregue, de
um clérigo interceda por ele. Há, de fato, um muro de separação entre tais classes,
onde o sacerdócio é aquele que fala com Deus e o “leigo” é aquele que depende de
tal mediação. Dessa forma, algumas promessas bíblicas, como aquelas encontradas
em Mt 28:20 e 1 Co 3:16, que foram feitas a todos os cristãos, não são vividas em sua
forma plena. As Escrituras evidenciam que qualquer mediação que não seja a de
Cristo, por meio de seu Espírito, não é necessária. Desta forma, se resgata o princípio
reformador Solo Christus. O sacerdócio universal concede, para aqueles que estão
em Cristo, acesso ao santíssimo lugar, um local que outrora era destinado a poucos
homens, mas que atualmente não é cabível mais este tipo de entendimento. Esta
intimidade com Deus é baseada na concepção clara da remissão dos pecados e na
salvação obtida através de Jesus Cristo.

Assim como o Sumo Sacerdote tinha confiança para entrar na presença de


Deus, depois de ter feito o sacrífico em seu próprio favor, os cristãos atuais devem
crer e viver os benefícios do sacrifício único realizado por Jesus, o Sumo Sacerdote
perfeito, a fim de perdoar todos aqueles que se aproximam Dele, fazendo-os
inculpáveis perante Deus, como diz o escritor aos Hebreus (4.16): “Portanto,
aproximemo-nos do trono da graça com confiança, a fim de recebermos misericórdia
e encontrarmos graça para ajuda em momento oportuno”. Através do sacerdócio
universal o homem deixa de receber aquilo que merecia, a punição pelos seus
pecados, e recebe aquilo que ele não merecia, o amor e a bondade de Deus.
Misericórdia e graça.

Dentro destas afirmações encontra-se uma das principais teses defendidas por
Lutero e que deve ser vivida por todos aqueles que entendem a doutrina do sacerdócio
universal: a salvação se dá somente pela fé em Jesus e esta dádiva restaura o
relacionamento entre o homem e Deus, uma vez que houve um rompimento deste no
Éden (Gn. 3). Aqueles que entendem estes conceitos expressam no caminhar cristão
a verdade relatada em Gálatas 4.7: “Assim, você já não é mais escravo, porém filho;
e, sendo filho, também é herdeiro por Deus.”

E como filho, todo homem tem a garantia de uma vida de intimidade com o seu
pai, não necessitando de rituais religiosos ou cerimônias externas para que esta
convivência possa ser expressa. Contudo, muitos são os cristãos que, ainda hoje,
acreditam na necessidade de rituais, de lugares santos e homens mediadores para
terem seus pecados perdoados, vivendo desta forma uma vida presa às correntes da
religião, e ainda assim, sem nunca terem desfrutado de uma vida real com Deus. Para
estas pessoas, Deus é apenas um Ser transcendente, negando, desta forma, por seus
estilos de vida totalmente discrepantes com o conceito da doutrina do sacerdócio
universal, a imanência Dele, o Deus conosco, o Emanuel (Mt 1:23). Este é o
entendimento de Kivitz (1995, p.60), quando trata em seu livro sobre a questão do
discipulado:

Discipular não consiste em fazer com que alguém se envolva com atividades
religiosas, como cultos, classes para estudos bíblicos e eventos diversos.
Discipular é compartilhar a vida, é envolver-se em um relacionamento
pessoal, à luz da palavra de Deus, para que o Espírito Santo encontre espaço
e recursos para transformar o estilo de vida completo dos discípulos. Cristãos
maduros, satisfeitos na alma em razão do seu relacionamento com Jesus é a
proposta do Novo Testamento a respeito da vida cristã. Veja que o apóstolo
Paulo salienta que "todas as coisas contribuem para o bem daqueles são
chamados segundo o seu propósito". Mas qual é este propósito? A resposta
está no versículo seguinte: " serem conformes a imagem do seu Filho" (Rm
8.28,29).

Certamente não é possível viver uma vida da forma que o autor apresentou, se
o conceito do sacerdócio universal não estiver bem enraizado nas mentes daqueles
que fazem parte da igreja. O cristão deve viver e ser cada dia mais orientado a
desfrutar de um estilo de vida de intimidade com Deus, que transcenda às expressões
externas religiosas. O louvor e a adoração a Deus não estão mais restritos a um lugar,
a um dia, a algumas pessoas. O sacerdócio a partir de Jesus libertou os cristãos para
terem uma vida completamente diferente disso tudo. E este princípio está diretamente
relacionado com uma função de grande importância na vida do Sacerdote, qual seja,
o louvor e a adoração a Deus.

Milt Rodriguez (2015, não paginada) comenta a este respeito:

O nosso primeiro e principal ministério como Sacerdotes é oferecer louvor e


adoração ao nosso Deus. Essa é a nossa prioridade. Esse é o culto, função,
responsabilidade e privilégio e benção supremos. Não há nenhum ministério
maior do que o de ministrar a Deus em adoração. Você compreende o que
estou dizendo? Podemos de fato ministrar ao Deus de toda a criação! É isso,
a adoração é ministrar a Deus. Não devemos nunca nos esquecer disso. O
nosso primeiro e principal ministério como Sacerdotes é para Deus.

A este respeito Brasil (2014, não paginada), acrescenta:

O princípio é que toda igreja agora adora e canta a Deus diretamente; toda
congregação exalta a Deus, é o sacerdócio rela que adora a Deus. No VT a
adoração era através de alguém, mas agora é Cristo que nos leva a Deus
desfazendo a barreira. Quem está em Cristo tem acesso direto ao Pai.
Quanto mais perto de Cristo, menor a necessidade de sombras e tipos.
Quando Cristo chega as sombras são dissipadas.

Como se percebe, em toda a vida cristã, o que os cristãos


contemporâneos precisam é de desenvolver uma fé firmada nas Escrituras e no
próprio Deus. Trata-se de uma fé viva e relacional, mediada apenas por Cristo, que
dá ao cristão a salvação (1 Tm 2:5) e a plena liberdade de se relacionar, servir e adorar
ao Senhor por causa de Cristo e em Cristo.
5.2. A Igreja e o sacerdócio Universal: A Responsabilidade é de Todos.

Outro embaraço que a falta de compreensão do tema apresentado acarreta ao


cristão contemporâneo é a falta de compromisso com o Reino de Deus e todo tipo de
ação que visa promovê-lo, como fora ordenado a todos os discípulos de Jesus (Mt
28:16-20) permeando, inclusive, o campo da eclesiologia. Se de um lado existem os
Sacerdotes, responsáveis por tudo aquilo que está relacionado com o sagrado, do
outro existem os leigos, aqueles sobre os quais não residem nenhuma
“responsabilidade santa”, como pensam a maioria dos cristãos hodiernos. Não é de
se espantar que apenas aqueles meterão a mão no arado (Lc 9.62), enquanto estes
serão meros espectadores do Reino.

Este aspecto, na área da eclesiologia e da vida pessoal, certamente é um dos


grandes paradigmas que o sacerdócio universal daqueles que creem se propõe a
quebrar. Tanto líderes como liderados não vivem o serviço cristão da forma como
deveriam, deixando assim de exercerem um papel fundamental para um Sacerdote,
qual seja, o de levar os homens pecadores para Deus. Por um lado, pastores e líderes,
tomam para si toda esta responsabilidade, passando, assim, uma mensagem
subconsciente de retroalimentação do sistema sacerdotal Veterotestamentários. Tal
visão restringe ao líder, e exclusivamente a ele, como a pessoa responsável pelo
“serviço sagrado”. Em caso de serviços secundários, até chamam equivocadamente
alguns de levitas, como acontece com a nomenclatura dada aos músicos na igreja. A
verdade é que tal perspectiva causa uma sobrecarga sem precedentes e que, talvez,
possa até ser uma possível resposta para alguns suicídios que estão acontecendo no
meio pastoral. Do outro lado estão aqueles que simplesmente não entendem que
também são responsáveis por tudo àquilo que está relacionado com o Reino de Deus.
Como Paulo adverte, ao falar para os Coríntios sobre os dons espirituais:

A uns Deus estabeleceu na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo


lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres; depois, operadores de milagres;
depois, os que têm dons de curar, ou de ajudar, ou de administrar, ou de falar
em variedade de línguas. Será que são todos apóstolos? Será que são todos
profetas? Será que são todos mestres? São todos operadores de milagres?
Todos têm dons de curar? Todos falam em línguas? Todos têm o dom de
interpretar essas línguas?(1 Coríntios 12:28-30 - NAA)
A narrativa bíblica é clara ao afirmar que a igreja de Jesus é desenvolvida por
todos aqueles que Deus escolhe para o serviço. Essa escolha não é para os líderes,
apenas, É, antes, para todos que estão inseridos na dinâmica do Reino de Deus. Além
deste texto específico aos Coríntios, Paulo reitera a distribuição de dons e ministérios
para o povo de Deus em Romanos 12:3-8, em Efésios 4:7-13 e em 1 Coríntios, nos
capítulos doze, treze e catorze.

A igreja de Jesus, firmada no único e pleno Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, se


desenvolve por meio do trabalho de todos os que foram salvos. A estas pessoas Deus
dá dons e ministérios específicos, a fim de que a igreja, como corpo de Cristo, se
desenvolva plenamente. Mais uma vez Kivitz (1995, p.60) exemplifica o que foi
exposto até agora quando lembra que:

Infelizmente, a mentalidade de muitas igrejas, principalmente as de tradição


reformada, implica na outorga da função pastoral a "um homem vocacionado
formado no seminário denominacional". E não somente as igrejas, mas
principalmente os seminários e os próprios vocacionados para a função
pastoral têm a mentalidade de "pastor titular, ou único, de tempo integral".
Este modelo tem trazido alguns males à igreja de Cristo. Primeiro, alimentar
a mentalidade clericalista dos rebanhos, que atribuem aos tais vocacionados
e estudados, a responsabilidade do ministério que deveria ser de todos.

Na mesma perspectiva, Fischer (2018, p.32), em um artigo onde é abordada a


teologia do Martinho Lutero sobre o tema destaca:

Sacerdote em serviço é o cristão ensinado por Deus a viver em liberdade,


integrado a um círculo exortativo comunitário. O propósito da igreja, segundo
o Novo Testamento, deveria sempre voltar-se à multiplicação dos ministérios.
A Palavra que foi confiada por Deus a todos e por estes é anunciada,
necessita, porém, de uma ordenação de pessoas específicas para promovê-
la. Quantos forem necessários devem ser escolhidos para assumir funções
ministeriais. Trata-se de exigência de ordem. Mas afinal, o ministério da
Palavra foi confiado à igreja toda ou somente a alguns? Sustenta-se não
haver contradição no pensamento de Lutero, pois toda espécie de ministério
emerge do sacerdócio Universal: o serviço de todos, demanda o de alguns
em nome dos demais. A evidente tensão necessita ser mantida e pode ser
proativa, pois, o ministério de uns é o mesmo atribuído por Deus para toda a
igreja. Oração e exortação mútua se apresentam como caminho para que o
ministério não seja transformado em campo de conflito e em desiderato, uma
manifestação dos nefastos desejos que se escondem na natureza humana.

Contudo, não se pretende com tais afirmações subtrair a importância que um


líder tem no contexto do corpo de Cristo. Para tanto, pastorear, ensinar, presidir,
pastorear, entre outras tarefas eclesiais, são, igualmente, dons e ministérios
concedidos aos cristãos (Cf. Rm 12:3-8, Ef 4:7-13). Sendo assim, para que a função
de liderança pastoral não seja erroneamente exercida, faz-se necessário evocar o
sacerdócio de todos os crentes, relembrando aos filhos de Deus que todos foram
chamados para viverem uma vida de forma que o nome de Deus seja glorificado (1Co.
10.31). Calvino teve esta preocupação, de não desvalorizar a figura pastoral, como se
vê nas palavras de George (1994, p.241):

Mas por que os pastores são tão importantes para a igreja? “Por acaso todos
não têm a oportunidade de ler as Escrituras por si mesmas?”, perguntava
Calvino. Sim, mas os pastores tinham de cinzelar ou dividir a Palavra, “como
um pai /repartindo o pão em pequenos pedaços para alimentar seus filhos”.
Os pastores devem ser completamente ensinados nas Escrituras, para que
possam instruir corretamente a congregação na doutrina celeste.

As palavras do grande estudioso e exegeta Vanhoye (2006, p.414) vão ao encontro


do pensamento exposto quando afirma:

Quanto à igualdade de todos no sacerdócio, o texto de Pedro não diz


absolutamente nada. Fala, certamente, da participação de todos os crentes
no sacerdócio da Igreja, mas não fala de igualdade. Ao relacionar o
“organismo sacerdotal” com a “casa espiritual”, sugerem, isso sim, diversos
níveis de participação. Efetivamente, em uma construção, todas as pedras
são parte do edifício e são solidárias umas das outras, mas nem todas elas
estão no mesmo nível, nem cumprem a mesma função. Uma casa tem,
necessariamente, uma estrutura diferenciada. A existência de uma hierarquia
sacerdotal na igreja não está, portanto, em desacordo com a ideia de [...]
(hiérateuma), tal como Pedro a apresenta em 2,4.5; pelo contrário, está
implicitamente contido nela.

O que pode se apreender de tudo isto é que o pregador ou o pastor, entre


outras funções de perfil de liderança constituem um dom ou ministério dentre os outros
que são concedidos por Deus para a igreja. É por isso que o conceito paulino é de
que, na verdade, aquele que pastoreia é nada mais nada menos que um servo (1
Coríntios 4:1-2). Diante da doutrina do sacerdócio universal do cristão, todos somos
um em Cristo, salvos por Ele, para servir a Ele e ao povo de Deus, por que “somos
membros uns dos outros”, porém, “com diferentes dons, segundo a graça que nos foi
dada” (Rm 12:5,6)
5.3. A Igreja e o Sacerdócio Universal: um Alcance Interno e Externo

Por fim, mas não menos importante, está o dano na esfera do convívio em
comunidade, tanto com os de dentro da igreja como com os de fora dela. A primeira
análise recai sobre aqueles que são membros do corpo de Cristo. Como Lutero
defendeu, o sacerdócio só pode ser vivido em sua íntegra quando é feito para Deus e
para o próximo. Quando o cristão compreende o sacerdócio universal ao qual está
inserido, ele consequentemente vive uma vida madura em comunidade. Este
amadurecimento pode ser externado de várias formas, mas principalmente pelo
cuidado para com o próximo, uma vez que esta também era uma das funções
sacerdotais. Este cuidado é expresso na instrução da Palavra de Deus, nas
admoestações, na ajuda, dentre outros mais. Tais cuidados são evidenciados nos
inúmeros mandamentos de reciprocidade contidos no Novo Testamente. Por diversas
vezes as Escrituras ordenam o amor, o acolhimento, o suporte, o perdão, a
admoestação, a intercessão, o consolo etc. de forma recíproca.

Nesse sentido, Fischer (2018, p.50) afirma que:

O poder, a graça salvadora, conferidos por Deus aos que creem não pode
ser aprisionado ao âmbito do privado, nem ao individual, o que acarretaria,
no primeiro caso, dissociação de seu caráter comunitário e, no segundo,
usurpação e dominação. O ministério da Palavra é sempre público e, como
tal, comunitário. Trata-se, pois, de um pleno poder comum ao povo de Deus.
Nem mesmo os apóstolos enquanto líderes da igreja cristã da primeira hora
apresentaram-se como representantes do ministério cristão. Serviço à
Palavra constitui em ação exortativa compulsória, um ter de ser, cabendo a
todos os que com esta se encontram vinculados. [...]Na ocasião em que os
apóstolos Pedro e João foram levados diante das lideranças sacerdotais
judaicas a explicar suas ações e sua proclamação do evangelho de Jesus
Cristo, tendo respondido a estas que não podiam “deixar de falar das coisas
que vimos e ouvimos”, fica evidente em sua reação que não se encontravam
ancorados em sua própria autoridade, antes na daquele que o Novo
Testamento apresenta como sendo o Sumo Sacerdote (At 4.10-12).

Por consequência, pode ser visto que o princípio da função pretérita do


Sacerdote estabelecido no Antigo Testamento, qual seja, a responsabilidade para com
os professantes da mesma fé, permanece inalterada. Só que agora, não é só a
responsabilidade de uma pessoa apenas, mas, de todos, por meio de um sacerdócio
não mais exclusivista, mas, universal.
Para com os de fora da igreja, talvez esteja aqui o maior problema da falta de
compreensão da doutrina estudada, afinal, o sacerdócio dos que creem instiga para
que se leve pessoas que estão distantes de Deus para um caminho de reconciliação
com Ele. Deus propôs aos homens, tal qual foi em toda a história narrada nos livros
do Antigo Testamento, para que eles fossem bênçãos para todos os povos que
estavam distantes dEle. Por isso, o chamado que foi feito para o povo no deserto (Êx
19) continua verdadeiro para a Igreja atual. É através da igreja, que vive uma vida
sacerdotal, que o mundo verá a forma que Deus projetou para o ser humano viver,
pois vivendo desta forma, onde quer que se esteja, ali se estará preocupado em
glorificar a Deus, seja no trabalho, em casa, na faculdade ou mesmo em momentos
de lazer. Fischer (2018, p.57) completa tal compreensão ao afirmar que:

Aquele que recebe ensino não consegue deixar de ensiná-la e, nisto que faz
será sempre um Sacerdote em serviço. Tal dinâmica, que não deve ser
cerceada por ninguém, ocorre na família, nas ruas, nos ambientes de trabalho
e nos lugares de reunião da igreja. Todos os que conhecem a mensagem do
evangelho de Cristo são interpelados pelo Espírito Santo a também anunciá-
la; trata-se de testemunho público, isto é, não feito à revelia e às escondidas
da comunidade em seu todo, mesmo que ocorra em espaços onde se
encontrem apenas poucas pessoas.

Os cristãos não foram chamados para viverem uma função sacerdotal que tem
fim em si mesma. “Deus amou o mundo,” alerta João em seus escritos, e este amor
deve ser demonstrado para todos aqueles que vivem como filhos pródigos, rejeitando
a Deus, vivendo suas vidas de forma inconsequente. Para isso, necessário se faz a
compreensão do estilo de vida que todo cristão foi chamado a viver, isto é, uma vida
sacerdotal, sacerdócio este vivido em Jesus, onde não há mais separação entre
lugares santos e profanos. Os cristãos precisam reavivar, com urgência, esta doutrina
tão importante para que tenham condições de anunciar as maravilhosas obras de
Deus, como Pedro admoestou em 1 Pedro capítulo dois, versículo nove.
6. CONCLUSÃO

Depois de realizar uma análise bíblica e histórica do sacerdócio, este trabalho


possibilitou um estudo sobre o tema do sacerdócio universal do cristão, demonstrando
a importância que há na compreensão de tal tema. Conclui-se, simples e
objetivamente, que um relacionamento sadio com Deus, com o próximo e pessoal
depende, dentre outros entendimentos, só podem acontecer por meio da aplicação
correta da doutrina exposta.

Para se atingir uma compreensão dessa realidade, definiram-se quatro


objetivos específicos, quais sejam, entender a temática relacionada ao Sacerdote em
diversos contextos: patriarcal, tipológico em Melquisedeque, Aarônico, levítico, e, é
claro, o sacerdócio perfeito, dado em Cristo Jesus. Analisou-se, também, como a
igreja na idade média tratou o assunto, sob as perspectivas de Lutero e Calvino. Por
fim, foram destacados o entendimento contemporâneo sobre o assunto.

Usando o pensamento de diversos autores, através da revisão bibliográfica, foi


possível demonstrar, desde a gênese do pensamento sacerdotal até os pensamentos
modernos, como os cristãos lidaram e lidam com a posição na qual foram colocados,
em primeiro lugar através da Lei de Moisés e, posteriormente, com a graça obtida em
Cristo Jesus. O que se percebe é uma verdadeira mudança de posicionamento com
o passar dos tempos, tanto para longe das verdades que a doutrina apresenta, como
para próxima dela. Sendo assim, entende-se que todas as vezes que os cristãos se
distanciaram dos princípios que envolvem o sacerdócio de todos os que creem, a
igreja adentrou em caminhos antibíblicos.

Logo, respondendo a pergunta feita no início desta pesquisa, a conclusão que


o presente trabalho chegou é de que o sacerdócio universal foi, é e, enquanto Cristo
não voltar, uma doutrina fundamental para a vida do cristão, quer seja no
relacionamento deste com Deus, quer seja no relacionamento dele com o próximo.
Ainda, tal perspectiva está intimamente relacionada com a forma de ser igreja e como
esta igreja constituída relaciona-se com aqueles que não são pertencentes à fé cristã.
Os absurdos religiosos que se tem cometido e, que tem envergonhado a verdadeira
igreja de Jesus, passam pela falta de compreensão da doutrina sacerdotal.

Em pesquisas futuras, serão abordados temas mais específicos que tenham


relação íntima como o sacerdócio universal, visto ser de grande abrangência o estudo
realizado e com desdobramentos em várias áreas, tendo como principais a
eclesiologia, a teologia pastoral, o evangelismo, igreja e a sociedade. Todas elas com
uma correlação muito específica com o sacerdócio obtido para todos os cristãos que
se encontram em Jesus Cristo. Por ora, nosso desejo é de que a igreja contemporânea
possa olhar para as Escrituras, assim como fez a igreja primitiva e a igreja que se
reformou, para que, a partir da Palavra de Deus, ela possa viver uma vida cristã
coerente, biblicamente sadia e doutrinariamente correta. Para tanto, não há como
viver tal realidade sem que a doutrina do sacerdócio universal de todo aquele que crê
seja exercida nas igrejas e de forma prática na vida dos crentes em Jesus. Que assim
fazer a diferença neste mundo, como geração eleita, como sacerdócio real, de
propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamar as virtudes daquele nos chamou
das trevas para a sua maravilhosa luz (1 Pe 2:9).

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, C. D. Dicionário Teológico. Rio de Janeiro: CPAD, 1996.

ARCHER JR., G.; HARRIS, L.; WALTKE, B. Dicionário Internacional de Teologia


do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.

BEAUMONT, M. Enciclopedia Bíblica Ilustrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do


Brasil, 1993.
BÍBLIA de Estudo Nova Almeida Atualizada. Tradução de João Ferreira de Almeida.
3ª. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.

BÍBLIA Sagrada: Nova Versão Transformadora. 1ª. ed. São Paulo: Mundo Cristão,
2016.

BRASIL, P. A Igreja do Velho Testamento. Recife: Os Puritanos, 2014. Não


Paginada.

BUCKLAND, A.; WILLIANS,. Dicionário Bíblico Universal. São Paulo: Vida Nova,
2010.

CALVINO, J. As Institutas. Tradução de Waldyr Carvalho Luz. Clássica. ed. São


Paulo: Cultura Cristã, v. 4, 2018.

CALVINO, J. As Institutas. Tradução de Waldyr Carvalho Luz. Clássica. ed. São


Paulo: Cultura Cristã, v. 2, 2018.

CARRIKER, T. Princípios Teológicos para a Ação Missionária Reformada.


Monergismo, 1992. Disponivel em:
<http://www.monergismo.com/textos/missoes/principios_teologicos_acao_missionari
a.htm>. Acesso em: Outubro 2019.

CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São


Paulo: Hagnos, v. 1, 1993.

FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2002.

FILHO, I. G. C. Sacerdotes e Profetas - Uma Relação Tumultuada, 2003. Disponivel


em: <www.isaltino.com.br/doctos/art51.pdf>. Acesso em: Novembro 2019.

FONSECA, J. J. S. D. Metodologia da Pesquisa Científica. Fortaleza: UEC, 2002.

GEORGE, T. Teologia dos Reformadores. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 1994.

GIL, A. C. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Atlas, 2010.

HABERSHON, A. Manual de Tipologia Bíblica: Como Reconhecer e Interpretar


Símbolos, Tipos e Alegorias das Escrituras Sagradas. São Paulo: Vida, 2003.

HINDSON, E.; YATES, G. A Essência do Antigo Testamento. Rio de Janeiro:


Central Gospel, 2014.

HORTON, S. Sempre Prontos: Comentário Devocional Sobre as Epístolas de Pedro.


Rio de Janeiro: CPAD, 1974.

KIVITZ, E. R. Quebrando Paradigmas. São Paulo: Abba Press, 1995.

LOPES, A. N. O Que Estão Fazendo com a Igreja: Ascensão e Queda do Movimento


Evangélico Brasileiro. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

PACKER, J.; TENNEY, M.; WHITE JUNIOR, W. Vida Cotidiana nos Tempos
Bíblicos. São Paulo: Vida, 1988.

PADILLA, R. O Dia da Reforma e o sacerdócio de Todos os Crentes. Ultimato,


Outubro 2012. Disponivel em: <https://www.ultimato.com.br/conteudo/o-dia-da-
reforma-e-o-sacerdocio-de-todos-os-crentes>. Acesso em: Novembro 2019.

PEARLMAN, M. Conhecendo as Doutrinas da Bíblia. São Paulo: Vida, 2006.

PFEIFFER, C.; VOS, H.; REA, J. Dicionário Bíblico Wycliffe. 4ª. ed. Rio de Janeiro:
CPAD, 2000.
RICHARDSON, D. O Fator Melquisedeque: O Testemunho de Deus nas Culturas
por Todo o Mundo. São Paulo: Vida Nova, 2008.

RORIGUEZ, M. O sacerdócio de Todos os Crentes: A Vida da Igreja do Século I no


Século XXI. Curitiba: Restauração, 2015.

SCHULTZ, S. A História de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,


2009.

SHEDD, R. Nos Passos de Jesus. São Paulo: Vida Nova, 1993.

SPROUL, R. C.; NICHOLS, S. O Legado de Lutero. São José dos Campos: Fiel,
2017. Não Paginada.

STRONG, J. Dicionário Bíblico Strong: Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de


Strong. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.

THEMUDO, V. Lutero: Sua Vida e Sua Obra. 1ª. ed. Brasília: Monergismo, 2017. Não
Paginada.

VANHOYE, A. Sacerdotes Antigos e Sacerdote Novo - Segundo o Novo


Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2006.

VAUX, R. D. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teológica,


200

Você também pode gostar